TJ/PI: “Retificação de Registro: Transexualidade” – Des. Brandão de Carvalho

RETIFICAÇÃO DE REGISTRO. TRANSEXUALIDADE. ALTERAÇÃO DE PRENOME INDEPENDENTEMENTE DE CIRURGIA DE TRANSGENITALIZAÇÃO.

A 2ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Piauí sob nossa Presidência e Relatoria, julgou um procedimento judicial inédito na justiça de nosso Estado e quiçá do nordeste brasileiro acerca de um tema de suma importância para quem se destinou e que abra as portas para a defesa intransigente dos direitos invioláveis e imprescritíveis da dignidade da pessoa humana, como corolário do que estabelece o art. 1º, III da nossa Constituição Federal com esteio na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Ação já julgada, se incorpora de agora em diante no domínio público, motivo porque levo ao conhecimento do leitor este tema de importância inusitada face aos seus meios e fins; fomos seguidos à unanimidade pelos Desembargadores José de Ribamar Oliveira, José James Gomes Pereira, com anuência do Ministério Público, no ato representado pelo Procurador José Ribamar da Costa Assunção. Por tratar-se de pessoa hipossuficiente economicamente, a ação foi proposta pelos auspícios da assistência judiciária, tendo como Defensor Público o Dr. João Castelo Branco.

Antes de se adentrar ao mérito da causa, cumpre a este Relator fazer uma breve consideração. Embora não tenha havido instrução processual, tenho que a manifestação ministerial apresentada no primeiro grau à fl. 29, e neste segundo grau de jurisdição às fls. 55/68, autoriza este órgão julgador a decidir o presente recurso, estando a causa madura. Isso porque entendo como suficientes para julgamento a prova produzida com a inicial e, ainda, por não vislumbrar qualquer comprovação de efetivo prejuízo para as partes ou para a prestação jurisdicional. Por fim, é de registrar-se que o parecer ministerial nos autos é conclusivo pelo provimento do recurso, indicando, assim, que a causa está madura, pronta para julgamento, como autoriza o §3º do art. 515 do CPC.

Senhores Desembargadores, como visto, pretende a parte autora, ora recorrente, a alteração do prenome constante do seu registro civil de ‘José Alberto’ para ‘Safira’, fazendo-se constar Safira Bringel de Sousa.

Ao sentenciar, a magistrada a quo extinguiu o feito sem julgamento de mérito, por entender, em síntese, que “é imprescindível a transgenitalização para que o indivíduo passe a ter interesse processual na modificação de nome e gênero, posto que não há como requerer a mencionada retificação se, para fins de registro, o sexo está adequado”.

Pois bem, não se desconhece que o Judiciário em muitos casos vem autorizando a troca do prenome na hipótese em que a pessoa se submete à cirurgia de mudança de sexo, sendo a referida cirurgia conditio sine qua non. Todavia, entendo não ser justo e razoável forçar a pessoa e uma eventual “mutilação” para só assim autorizar-se a troca do prenome e respectiva documentação, situação essencial para a sua melhoria de vida em sociedade. E como será visto adiante, embora ainda de forma não uníssona, os Tribunais Pátrios evoluíram nos seus julgados, não mais exigindo a realização da cirurgia mencionada.

O direito ao nome e à dignidade da pessoa humana distingue a pessoa na sua vida em sociedade, tutelando o seu nome, a sua filiação, o seu sexo, dentre outros, distinguindo, individualizando e permitindo a constituição de sua personalidade, maneira individual de cada ser humano. E a identidade sexual constitui aspecto importante da identidade pessoal, pois, é cediço, está a sexualidade presente nas manifestações inerentes ao ser humano. E para o transexual, a sua identidade não é coincidente com o sexo anatômico, apontando, em verdade, para o sexo psicossocial.

A Constituição Federal em seu artigo 1º, III, estabelece a dignidade da pessoa humana como fundamento, baseada na Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Senhores Desembargadores, alega José Alberto que o nome masculino não retrata sua identidade social, que é feminina, afirmando ser reconhecidamente por todas as pessoas como Safira. Afirma ainda sofrer constrangimentos os mais diversos sempre que precisa se identificar com o nome que lhe foi dado.

Cumpre nesse momento transcrever o que diz a médica, psicanalista e antropóloga Profa. Elizabeth Zambrano (in Lima, Antônio Carlos de Souza (org.), Antropologia e Direito: Bases Para um Diálogo Interdisciplinar; Brasília, Associação Brasileira de Antropologia, 2007), extraído do acórdão da Apelação Cível nº 2001.71.00.026279-9/RS, da Relatoria do Juiz Federal Roger Raupp Rios, Tribunal Regional Federal da 4º Região, julgada em 14/08/2007:

“O senso comum considera que uma pessoa, ao ser classificada como homem ou mulher (sexo biológico), terá, naturalmente, o sentimento e o comportamento masculino ou feminino (identidade/papel de gênero) e o seu desejo sexual será dirigido para pessoas do sexo e/ou gênero diferente do seu (orientação heterossexual). Esses três elementos – sexo, gênero e orientação – são pensados, em nossa cultura, como estando sempre combinados de uma mesma maneira – homem masculino heterossexual ou mulher feminina heterossexual. É possível, entretanto, inúmeras combinações entre eles.

“Uma delas é a homossexualidade, termo referente a pessoas que praticam sexo com pessoas do mesmo sexo. Essas pessoas têm orientação sexual diferente da esperada para o seu sexo e gênero, mas isso, não necessariamente, indica uma mudança de ’identidade de gênero’. Elas não se percebem nem são percebidas pelos outros como de um gênero (masculino ou feminino) diferente do seu sexo (homem ou mulher), mesmo com comportamentos considerados ambíguos (homem afeminado ou mulher masculinizada).

“Já homens que fazem uso de roupas e modificações corporais para se parecer com uma mulher, sem buscar uma troca de sexo cirúrgica são considerados travestis. Travestis, aceitando seu corpo biológico de homem (embora modificado, às vezes, pelo uso de hormônios femininos e/ou implantes de silicone) e se percebendo como mulheres, reivindicam a manutenção dessa ambigüidade corporal, considerando-se, simultaneamente, homens e mulheres; ou se veem ’entre os dois sexos’ nem homens, nem mulheres. Todos, porém, se percebem como tendo uma identidade de gênero feminina.

“Outra combinação possível diz respeito aos transexuais, pessoas que afirmam ser de um sexo diferente do seu sexo corporal e fazem demanda de ’mudança de sexo’ dirigida ao sistema médico e judiciário.

“É muito comum homossexuais, travestis e transexuais serem percebidos como fazendo parte de um mesmo grupo, numa confusão entre a orientação sexual (homossexualidade, heterossexualidade, bissexualidade) e as ’identidades de gênero’ (homens masculinos, mulheres femininas, travestis, transexuais femininos e masculinos, entre outras).

“Todos os indivíduos que reivindicam um gênero que não apoiado no seu sexo podem ser chamados de ’transgênero’. Estariam incluídos aí, além de transexuais que realizaram cirurgia de troca de sexo, travestis que reconhecem seu sexo biológico, mas têm o seu gênero identificado como feminino; travestis que dizem pertencer a ambos os sexos/gêneros e transexuais masculinos e femininos que se percebem como homens ou mulheres mas não querem fazer cirurgia. A classificação de suas práticas sexuais como homo ou heterossexuais estará na dependência da categoria que estiver sendo considerada pelo indivíduo como a definidora de sua identidade (o sexo ou o gênero)”.

Segundo consta na inicial e no recurso de apelação bem elaborados por Defensor Público, José Alberto é transexual. Não se pretende aqui definir o que é transexual, travesti, homossexual, não é atribuição da ciência do direito defini-los ou diferenciá-los, mas se deve voltar os olhos para critérios que igualem a todos e sejam capazes de permitir o exercício de sua condição de pessoa humana, sobrelevando-se o direito à liberdade e à dignidade humana.

O judiciário não pode se quedar inerte e permanecer estático e insensível a esse aspecto social relevante, deixando indefinida uma situação que exige e reclama solução.

A manutenção em registro de nascimento e em seus documentos de identificação da indicação de prenome que não corresponde ao modo pelo qual a parte recorrente aparece em suas relações com a sociedade, equivale a deixá-la em uma situação incômoda, de incertezas, de conflitos, de retração, de angústia, o que causa abalos e embaraços múltiplos. É negar-lhe o direito de exercer a cidadania em sua forma mais plena, de alçada constitucional. Ressalte-se que a alteração do prenome não acarreta prejuízos à sociedade e nem a terceiros, e apenas suplantará transtornos que está ela a suportar.

Não se pode permitir ou chancelar tratamento discriminatório, sendo explicitamente vedadas as que objetivem prejudicar, restringir ou até acabar com o exercício de direitos e liberdades, quer por motivo de sexo, raça, etnia, cor, idade, origem, religião.

Não se pode olvidar que no exercício de sua mais ampla e irrestrita liberdade, o Sr. José Alberto tem direito de buscar melhor qualidade de vida por meio da satisfação de suas aspirações, e sua pretensão está representada, nesse momento, pela alteração de seu prenome, o que, segundo consta em seu recurso, ficará ela plenamente satisfeita com a mudança do prenome.

De fato, o que se verifica é que sua satisfação é sentir-se bem com a sua condição expressada por meio do seu nome e o que ele representa para si e para a coletividade, concretizando o seu direito à liberdade e à dignidade. É a identificação social e psicológica, conformação social entre o nome e sua aparência, reconhecimento de sua condição de ser humano digno.

Suas ações, modo de vida e opção pessoal não podem ser meio de discriminação, mas são motivos que revelam sua verdadeira identidade.

José Alberto, além de se apresentar com características físicas e psíquicas femininas, trajando-se como tal, deixa certo que o nome que melhor lhe identifica e que satisfaz os seus anseios é o nome Safira.

Os recortes de jornais apresentados com a exordial indicam que José Alberto há mais de 34 (trinta e quatro) anos é conhecida como Safira, apresentando-se como mulher, e são datados a partir de 1979, de diversas cidades, além de Teresina-PI, como São Paulo-SP, Brasília-DF, Caxias do Sul-RS. As fotos constantes dos seus documentos de identificação, RG, carteira profissional e carteira sindical indicam que se apresenta como mulher.

É de conhecimento público e notório, não circunscrito apenas aos limites de Teresina, do Estado do Piauí, mas sim de vários Estados do nosso país, que o autor José Alberto é conhecido como Safira Bengell.

Destarte, ao meu sentir, a solução é diversa da sentença recursada, e não pode ser outra que não o atendimento do pedido da autora, não importando se ele fez ou fará cirurgia de transgenitalização.

O art. 58 da Lei n. 6.015/73, com a nova redação dada pela Lei n. 9.807/99, dispõe o seguinte:

Art. 58 – O prenome será definitivo, admitindo-se, todavia, a sua substituição por apelidos públicos notórios.

Parágrafo único – A substituição do prenome será ainda admitida em razão de fundada coação ou ameaça decorrente de colaboração com a apuração de crime, por determinação, em sentença, de juiz competente, ouvido o Ministério Público.

A mesma Lei de Registros Públicos estabelece, em seu art. 55, a possibilidade de o prenome ser modificado quando expuser seu titular ao ridículo. No caso em análise, José Alberto, convicto de seu anseio, portando-se e vestindo-se como mulher, fica exposto a situações vexatórias ao ser chamado em público pelo nome constante no registro.

A interpretação conjugada dos arts. 55 e 58 da Lei de Registros Públicos confere amparo legal para que o recorrente obtenha autorização judicial para a alteração de seu prenome, substituindo-o pelo apelido público e notório pelo qual é conhecido no meio em que vive, qual seja, “Safira”.

Reproduzo a seguir decisões que se amoldam ao caso em discussão:

APELAÇÃO. RETIFICAÇÃO DE REGISTRO CIVIL. TRANSEXUALISMO. TRAVESTISMO. ALTERAÇÃO DE PRENOME INDEPENDENTEMENTE DA REALIZAÇÃO DE CIRURGIA DE TRANSGENITALIZAÇÃO. DIREITO À IDENTIDADE PESSOAL E À DIGNIDADE. CONFIRMAÇÃO DE SENTENÇA DE PRIMEIRO GRAU. ACOLHIMENTO DE PARECER DO MINISTÉRIO PÚBLICO DE SEGUNDO GRAU.

A demonstração de que as características físicas e psíquicas do indivíduo, que se apresenta como mulher, não estão em conformidade com as características que o seu nome masculino representa coletiva e individualmente são suficientes para determinar a sua alteração.

A distinção entre transexualidade e travestismo não é requisito para a efetivação do direito à dignidade. Tais fatos autorizam, mesmo sem a realização da cirurgia de transgenitalização, a retificação do nome da requerente para conformá-lo com a sua identidade social.

Pronta indicação de dispositivos legais e constitucionais que visa evitar embargo de declaração com objetivo de prequestionamento.

REJEITADAS AS PRELIMINARES, NEGARAM PROVIMENTO. UNÂNIME. (Apelação Cível Nº 70022504849, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Rui Portanova, Julgado em 16/04/2009).

RETIFICAÇÃO DE REGISTRO CIVIL. TRANSEXUALISMO. ALTERAÇÃO DE PRENOME INDEPENDENTEMENTE DA REALIZAÇÃO DE CIRURGIA DE TRANSGENITALIZAÇÃO. DIREITO À IDENTIDADE PESSOAL E À DIGNIDADE. CONFIRMAÇÃO DE SENTENÇA DE PRIMEIRO GRAU. ACOLHIMENTO DE PARECER DO MINISTÉRIO PÚBLICO DE SEGUNDO GRAU. A demonstração de que as características físicas e psíquicas do indivíduo, que se apresenta como mulher, não estão em conformidade com as características que o seu nome masculino representa coletiva e individualmente são suficientes para determinar a sua alteração. A distinção entre transexualidade e travestismo não é requisito para a efetivação do direito à dignidade. Tais fatos autorizam, mesmo sem a realização da cirurgia de transgenitalização, a retificação do nome da requerente para conformá-lo com a sua identidade social. NEGARAM PROVIMENTO. (Apelação Cível Nº 70030772271, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Rui Portanova, Julgado em 16/07/2009).

Registro civil. Alteração de prenome e sexo da requerente em virtude de sua condição de transexual. Admissibilidade. Hipótese em que provada, pela perícia multidisciplinar, a desconformidade entre o sexo biológico e o sexo psicológico da requerente. Registro civil que deve, nos casos em que presente prova definitiva do transexualismo, dar prevalência ao sexo psicológico, vez que determinante do comportamento social do indivíduo. Aspecto secundário, ademais, da conformação biológica sexual, que torna despicienda a prévia transgenitalização. Observação, contudo, quanto à forma das alterações que devem ser feitas mediante ato de averbação com menção à origem da retificação em sentença judicial. Ressalva que não só garante eventuais direitos de terceiros que mantiveram relacionamento com a requerente antes da mudança, mas também preserva a dignidade da autora, na medida em que os documentos usuais a isso não farão qualquer referência. Decisão de improcedência afastada. Recursos providos, com observação. (TJSP, AC 0008539-56.2004.8.26.0505, 6ª C. Dir. Priv., Rel. Des. Vitor Guglielmi j. 18/10/2012).

Registro civil. Transexualidade. Prenome. Alteração. Possibilidade. Apelido público e notório. O fato de o recorrente ser transexual e exteriorizar tal orientação no plano social, vivendo publicamente como mulher, sendo conhecido por apelido, que constitui prenome feminino, justifica a pretensão já que o nome registral é compatível com o sexo masculino. Diante das condições peculiares, nome de registro está em descompasso com a identidade social, sendo capaz de levar seu usuário à situação vexatória ou de ridículo. Ademais, tratando-se de um apelido público e notório justificada está a alteração. Inteligência dos arts. 56 e 58 da Lei n. 6015/73 e da Lei n. 9708/98. Recurso provido." (TJRS,  AC 70001010784, 7ª C. Cív., Rel. Des. Luis Felipe Brasil Santos, j. 14/06/2000).

É de registrar ainda que mesmo quando inexistente norma legal, deve ser suprida a lacuna por meio de integração, devendo o julgador adotar a decisão que melhor se alinhe com os valores do ordenamento jurídico, tal como a dignidade da pessoa humana.

E como os documentos públicos devem ser fidedignos aos fatos da vida, e que deve haver segurança nos registros públicos, no livro cartorário, à margem do registro da alteração do prenome do recorrente, deve ficar averbado que a modificação procedida decorre de decisão judicial em ação de modificação de registro. Isso decorre da imperiosa necessidade de salvaguardar os atos jurídicos já praticados, e objetiva manter a segurança das relações jurídicas e, por fim, visa solucionar eventuais questões que sobrevierem no âmbito do direito. Entretanto, assim como decidido no REsp 737.993/MG, da relatoria do Ministro João Otávio de Noronha, julgado em 10/11/2009, “tal averbação deve constar apenas do livro de registros, não devendo constar nas certidões do registro público competente nenhuma referência de que a aludida alteração é oriunda de decisão judicial, …, sob pena de manter a exposição do indivíduo a situações constrangedoras e discriminatórias”.

Em face do exposto, conheço e dou provimento ao recurso de apelação, para julgar procedente o pedido da ação, para autorizar a modificação do nome que consta do registro civil de “José Alberto Bringel Sousa” para “Safira Bringel Sousa”, de acordo com o parecer ministerial superior.

Desembargador Luiz Gonzaga Brandão de Carvalho

Decano e Presidente da Academia de Letras da Magistratura Piauiense

Fonte: TJ/PI I 05/12/2013.

Publicação: Portal do RI (Registro de Imóveis) | O Portal das informações notariais, registrais e imobiliárias!

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