O novo Código de Processo Civil: o usucapião administrativo e o processo de desjudicialização – Por Vitor Frederico Kumpel

* Vitor Frederico Kümpel

Como abordado na coluna anterior, dentro de uma realidade cambiante, temos uma sociedade pós-moderna marcada pela tecnologia e pela extrema celeridade da informação, fontes legítimas dá a sensação de aceleração da passagem do tempo, fazendo inclusive muitos crerem tratar-se de um fenômeno físico, a redução de horas e minutos ao longo do dia. Daí uma das necessidades da criação de um novo Código de Processo Civil para substituir o atual Código da década de 70, que primava pela cognição em detrimento da efetivação dos direitos substantivos. O Projeto vem ao encontro do clamor pela celeridade e eficiência. É nesse sentido, que deveria ser inserida uma ampliação funcional da atividade notarial e registral em socorro ao Poder Judiciário. Geneticamente pautada pela eficiência e celeridade, as atividades extrajudiciais potencializaram-se, ao longo dos últimos anos recebendo, cada vez mais, novas atribuições recebendo, cada vez mais, novos encargos em atendimento à desjudicialização, em consonância com a EC 45/04.

Nesse contexto, é impressionante como o usucapião, instituto de origem romana, já de grande relevância desde a Lei das XII Tábuas e do direito Justinianeu – momento da fusão em um único instituto da usucapio e da praescriptio (meio de defesa processual concedido ao possuidor contra quem lhe exigisse a coisa por meio de ação reivindicatória) – adaptou-se à mudança do tempo, passando hoje a proteger muito mais do que a simples tutela da posse, passou a ser meio de regularização formal dos imóveis dentro da tábula registral, que por si só apresenta uma série de exigências formais muitas vezes incontornáveis e o próprio processo de regularização fundiária. Sem sobra de dúvida, a usucapião passou a ser um dos mecanismos de regularização fundiária. Dentro dessa evolução, o novo Código de Processo Civil passou a regular o “usucapião administrativo”, buscando efetivar a celeridade e a desjudicialização

Por regularização fundiária, entendemos o processo conduzido em parceria pelo poder Público em conjunto com a população beneficiária, envolvendo sempre as dimensões jurídicas, físicas e social, tendo em mente a legalização da permanência dos moradores de áreas urbanas irregularmente ocupadas, para fins de moradia, com melhorias acessórias no ambiente urbano, bem como na qualidade de vida do assentamento, com grandes incentivos ainda no plano de exercício da cidadania pela comunidade, sujeito do projeto1. Dentro do fenômeno da desjudicialização, por sua vez, a ideia saudável é retirar da esfera exclusiva do judiciário a questão da regularização de posse e usucapião. É bom lembrar que o processo de desjudicialização de modo algum mitiga a importância do Poder Judiciário, muito pelo contrário, pois mantém apenas questões de alta indagação que devem, ser decididas pelo magistrado, passando questões burocráticas à Administração Pública.

É bem verdade que o Usucapião Administrativo já foi implementado no ordenamento jurídico brasileiro desde 2009 com o Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV). Aliás, o histórico sequencial de leis oriundas da tendência da desjudicialização vem desde 2004, partindo da lei 10.931/04, com a Retificação Administrativa que alterou a LRP em seus artigos 212 e 213, passando pelas leis 11.441/2007 (Inventário, Partilha, Separação, Divórcio, Consensuais por via administrativa) e lei 11.481/2007 (Regularização Fundiária para Zonas especiais de interesse social), chegando por fim, à lei 11.977/2009, modificada pela lei 12.424/2011, com disposições sobre o PMCMV.

Todavia, a implementação do Usucapião Administrativo pelo PMCMV teve efeitos bastante limitados, pois (i) foi prevista exclusivamente para regularização fundiária urbana, (ii) envolvendo procedimento administrativo bastante complexo, (iii) a contagem do prazo usucapional se atrela ao prévio registro do título de legitimação de posse (art. 60 lei 11.977/2009). Portanto, compete ao Registrador de Imóveis o reconhecimento extrajudicial do usucapião, a partir do registro da legitimação de posse convertida em propriedade após a passagem de um lustro de tempo (Cinco anos).

Interessante lembrar que no Brasil o Registro de Imóveis surgiu justamente com a figura da legitimação de posse no direito brasileiro. Em 1850, a lei 601 (lei de Terras) e seu regulamento 1.318 de 1854 separaram posse privada e domínio público. Na época, foi determinado que todas as demais posses, que não fossem de domínio público, seriam registradas no livro da Paróquia Católica, o famoso registro do vigário. Pelo art. 91 do regulamento 1.318 de 1854, todos os possuidores de terras, qualquer que fosse o título de sua propriedade, ou possessão, ficaram obrigados a fazer registrar as terras que possuíam. Todos os possuidores de terras devolutas foram então obrigados a registrar suas posses nos livros dos vigários o que, por conseguinte, definiu a competência dos primeiros registradores brasileiros como atrelada à situação do imóvel. A competência dos registradores restringia-se à propriedade pública de posse do particular, na época esta era situação do imóvel que poderia ser levado ao registro. A função essencial do registro paroquial era a legitimação da posse para posterior prova do tempo para efeitos de usucapião. Desse modo, com o povoamento, após os latifúndios das sesmarias, surgiram os minifúndios das posses legitimadas. Para a legitimação bastava: (i) a cultura efetiva e (ii) a morada habitual. Com a legitimação prevista tanto na lei como no regulamento, o domínio privado se ampliou ainda mais, em detrimento do domínio público. O processo prosseguiu, desordenadamente, como consequência da insuficiência dos recursos oficiais providos para medição perimetral das terras e das irregularidades processuais, fatores estes que subsistiram em matéria imobiliária brasileira. Todo esse contexto impediu que a realidade fática dos imóveis correspondesse à realidade jurídica, causando além do apartheid social, a inefetividade do sistema registral, que deixou de atender à sua principal função: dar publicidade, a terceiros, dos titulares dos imóveis.

A legitimação de posse funda-se no princípio da inviolabilidade da propriedade e da sua função social (art. 5º, inc. XXIII CF), operacionalizada nas diretrizes gerais de política urbana (arts. 182 e 183) e de política agrária (arts. 184 a 191 CF). Temos, portanto, na Legitimação de Posse um instituto verdadeiramente nacional, assim determinado no art. 5º da Lei de Terras "serão legitimadas as posses mansas e pacíficas adquiridas por ocupação primária, ou havidas de primeiro ocupante, que se acharem cultivadas ou com princípio de culturas, e moradia habitual do respectivo posseiro, ou de quem o represente (…)". Nesse sentido, podemos definir a legitimação de posse como "a outorga de título de domínio aos posseiros ou ocupantes de áreas devolutas, tanto em zona urbana quanto rural".

Ainda antes da vigência da lei 601/50, a lei 514 de 28 outubro de 1848, reportava-se às legitimações sem mencionar a espécie ou forma, autorizando a cobrança tributária sobre imóveis então legitimados. A lei imperial de terras foi efetivamente a primeira que se preocupou com a regularização fundiária e com a invasão de terras, e autorizou a permanência nos imóveis decorrentes de concessões sesmariais. A circular 260 de 1863 mandou dar preferência aos posseiros, cujas posses tivessem sido anuladas, para adquirirem por compra as terras correspondentes, sendo esta a pedra basilar da estrutura jurídico-agrária implantada no Brasil. O tempo de posse necessário para a referida regularização era de cincos anos antes da medição, e, depois da mesma, pelo prazo de dez anos. Já na época, era indispensável a posse mansa e pacífica, a ocupação primária cultivada e a moradia habitual do posseiro ou preposto e, por fim, o não incurso em comisso (perda da propriedade pelo não cumprimento de exigências legais). Essas mesmas bases relacionais foram mantidas pela lei 6383/76 e pela Lei do PMCMV.

Na atualidade, a Lei PMCMV introduziu a legitimação de posse apenas no Sistema Registral brasileiro, vez que a história do instituto remonta na verdade ao processo de ocupação de terras brasileiro. O instituto foi introduzido no artigo 167, inciso I, itens 41 e 42, da Lei de Registros Públicos. O Novo Código de Processo civil nada menciona sobre a legitimação. Prescindir-se-ia, então, da legitimação da posse e consequente conversão em propriedade, na esfera do usucapião extrajudicial? O projeto lograria abandono do instituto de gênese originária do processo de ocupação do território brasileiro? Provavelmente não.

Retomando o usucapião administrativo do PMCMV, após a decorrência de cinco anos do registro da legitimação de posse do imóvel, o possuidor poderá requerer ao registrador imobiliário a conversão do título de legitimação em propriedade. Para tanto, basta a documentação apropriada: (i) certidões do Cartório Distribuidor demonstrando a inexistência de ações em andamento, que versem sobre a posse ou a propriedade do imóvel; (ii) Declaração de que não possui outro imóvel urbano ou rural; [assim como (i) deve ser relativa à totalidade da área e fornecida pelo poder público]; (iii) Declaração de que o imóvel é utilizado para sua moradia ou de sua família; (iv) Declaração de que não teve reconhecido anteriormente o direito à usucapião de imóveis em áreas urbanas; (v) área urbana com mais de 250m2, o prazo para requerimento da conversão do título de legitimação de posse em propriedade será o estabelecido na legislação pertinente sobre usucapião.

No Novo Código de Processo Civil, o artigo 1.085 (versão mais recente aprovada pela câmara) prevê o reconhecimento extrajudicial do Usucapião também diretamente no Registro de Imóveis da Comarca em que se situa o imóvel usucapiendo. Para tanto, introduz o artigo 616-A na LRP, que exige: a) ata notarial: lavrada pelo Tabelião da Circunscrição de localização do Imóvel, contendo (i) o tempo de posse do requerente; (ii) a depender do caso, o tempo de posse dos antecessores e (iii) circunstâncias; b) Planta e Memorial descritivo do profissional legalmente habilitado, com reponsabilidade técnica e registro no respectivo Conselho de Fiscalização profissional, e pelos confinantes, titulares de domínio. c) Certidões Negativas dos Distribuidores da Comarca da Situação do Imóvel e do domicílio do requerente; d) Justo Título ou outra documentação que comprove: (i) origem da posse, (ii) continuidade, (iii) natureza e tempo; ex.: pagamento de impostos e taxas.

Conferida a documentação, o pedido de usucapião será autuado pelo Registrador e o prazo para a prenotação do registro pode ser prorrogado até o acolhimento ou a rejeição deste pedido. O registrador deverá notificar os confinantes e titulares de domínio ou direito real que não assinaram a planta, que possuem prazo máximo de 15 dias para manifestação. A notificação poderá ser pessoal pelo próprio registrador ou por meio dos Correios com AR. O oficial dará ciência à União, ao Estado, DF e município para manifestação em 15 dias sobre o pedido, neste caso a comunicação poderá se dar pessoalmente, por meio do correio com AR ou ainda do Registro de Títulos e Documentos.

Em seguida, proceder-se-á à publicação de Edital em Jornal de Grande Circulação e terceiros interessados poderão manifestar-se em 15 dias. O oficial poderá manter diligências para a elucidação de dúvidas e o registro do imóvel com suas descrições e a possibilidade de abertura de matrícula se dará após o prazo da última diligência. O interessado sempre poderá suscitar a dúvida registral, e em caso de problemas com a documentação o pedido de usucapião também poderá ser rejeitado pelo oficial. Neste caso, o requerente poderá ainda ajuizar a ação de usucapião. Do mesmo modo, em caso de qualquer impugnação do processo por terceiros, o oficial remeterá os autos ao juízo da comarca do imóvel e o requerente deverá emendar a inicial para adequá-la. O projeto, portanto só prevê a judicialização do procedimento se houver lide, ou seja, se o terceiro impugnar o ingresso do imóvel no fólio rela, passando então a seguir ao procedimento comum.

Interessante ressaltar que, ao contrário do projeto do Novo Código, a lei do PMCMV, embora também tenha privilegiado a via extrajudicial de resolução de conflitos, em momento algum mencionou a participação da figura do Tabelião de Notas na regularização fundiária. O projeto de reforma do Código de Processo amplia a figura do usucapião, desjudicializa e insere o tabelião de notas, o qual deverá aferir o tempo de posse por meio de ata notarial, passando obviamente a gerar uma série de consectários, inclusive responsabilidade administrativa, além da responsabilidade civil e penal decorrentes do reconhecimento temporal. Inclusive, passará ao tabelião a missão de aferir a acessio temporis ou exceptio proprietatis, ou seja, a soma do tempo na contagem do lastro para fins de usucapião.

Interessante traçar aqui breve paralelo com direito alienígena, dada a sua influência. Em Portugal, embora o procedimento como um todo também seja majoritariamente gerido na Conservatória Imobiliária pelo registador, o notário atua diretamente no usucapião administrativo por meio da lavratura da Escritura Pública de Justificação Notarial. A opção se justifica em torno da competência notarial para a recepção da vontade das partes, expressando-as em termos jurídicos para o aperfeiçoamento e a segurança do ato pretendido.

De toda sorte, remanesce a discussão se o procedimento do novo CPC irá agilizar ou simplesmente criar uma fase prévia, preliminar á jurisdição. Por ora, só o tempo dirá.

Após esse breve arrazoado, em que foi possível verificar que o usucapião é adaptação histórica antropológica da realidade social no sistema jurídico formal da propriedade imobiliária, é possível concluir que tanto o direito material quanto o processual vêm numa busca incessante em transformar a posse em propriedade, a fim de garantir uma inclusão social tão necessária para efetuar a dignidade em seu viés da propriedade.

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1. B. Alfonsin, Direito à moradia: instrumentos e experiências de regularização fundiária nas cidades brasileiras, Rio de Janeiro, Observatório de Políticas Públicas, FASE, IPPUR, 1997

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* Vitor Frederico Kümpel é juiz de Direito em São Paulo, doutor em Direito pela USP e coordenador da pós-graduação em Direito Notarial e Registral Imobiliário na EPD – Escola Paulista de Direito.

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Questão esclarece acerca do título hábil para cancelamento de registro de legitimação de posse concedido com base na Lei nº 11.977/2009.

Regularização fundiária de interesse social. Legitimação de posse – registro – cancelamento.

Para esta edição do Boletim Eletrônico a Consultoria do IRIB selecionou questão acerca do título hábil para cancelamento de registro de legitimação de posse concedido com base na Lei nº 11.977/2009. Veja como a Consultoria do IRIB se posicionou acerca do assunto, valendo-se dos ensinamentos de Eduardo Augusto:

Pergunta

No caso de regularização fundiária de interesse social, caso o titular do direito de posse não esteja ocupando o imóvel, nem tenha registrado cessão de seu direito, qual o título hábil para que o poder público cancele o registro da legitimação de posse concedida (art. 60-A, parágrafo único, da Lei nº 11.977/2009)?

Resposta

Vejamos os ensinamentos de Eduardo Augusto:

“Na hipótese de o titular do ‘direito de posse direta para fins de moradia’ não se encontrar na posse do imóvel e de não ter havido registro da cessão de seu direito na matrícula do respectivo lote, poderá o poder público emitente do título de legitimação de posse requerer o cancelamento de seu registro, nos termos do inciso III do artigo 250 da LRP (‘a requerimento do interessado, instruído com documento hábil’). Apesar de a lei não apresentar mais detalhes, o ‘documento hábil’ para tal cancelamento deverá ser, no mínimo, uma certidão da conclusão do processo administrativo (devido processo legal, com contraditório e ampla defesa), que declarou extinto o título de legitimação de posse [395].

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395. Analogia ao inciso IV do artigo 250 da LRP, que trata de hipótese similar, mas referente à regularização fundiária em imóvel rural (assentamentos rurais).”

(AUGUSTO, Eduardo Agostinho Arruda. “Registro de Imóveis, Retificação de Registro e Georreferenciamento: Fundamento e Prática”, Série Direito Registral e Notarial, Coord. João Pedro Lamana Paiva, Saraiva, São Paulo, 2013, p. 445-446).

Recomendamos, para maior aprofundamento no assunto, a leitura da obra acima mencionada.

Finalizando, recomendamos sejam consultadas as Normas de Serviço da Corregedoria-Geral da Justiça de seu Estado, para que não se verifique entendimento contrário ao nosso. Havendo divergência, proceda aos ditames das referidas Normas, bem como a orientação jurisprudencial local.

Fonte: IRIB.

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REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA: Especialização de fração ideal em lote. Atribuição promovida pelo Município.

* Amilton Alvares e George André Alvares

Muitos loteamentos clandestinos ou parcelamentos irregulares originaram-se do expediente fraudulento da venda de frações ideais da gleba bruta. No passado, não muito distante, o dono da gleba elaborou uma planta do parcelamento pretendido e, diante das dificuldades de cumprir os requisitos do procedimento regular de aprovação e registro do loteamento, lançou-se na aventura de vender “lotes” mediante o artifício de transmitir parte ideal da gleba com posse localizada. O instituto do condomínio ordinário do Código Civil foi empregado com fim ilícito e com isso muitas matrículas ostentam, hoje, centenas de registros de vendas de partes ideais. Isso criou um problema de difícil solução nos planos urbanístico e registral. Agora, com o advento da Lei nº. 11.977/2.009 e alterações promovidas pela Lei nº. 12.424/2.011, temos possibilidades reais de regularizar esses assentamentos urbanos e outros parcelamentos irregulares ou informais.

Importa desde logo firmar a premissa de que, em matéria de parcelamento do solo, o Município é o juiz do urbanismo e o seu interesse sobrepuja os interesses dos demais entes federados. Não há outro modo de cumprir a Constituição Federal e afirmar a autonomia municipal, senão mediante o reconhecimento de que o parcelamento do solo está vinculado ao predominante interesse do Município. Portanto, no parcelamento do solo em território do Município, o interesse deste se agiganta diante do interesse de qualquer outro ente político. Acima de qualquer interesse do Estado ou da União está o interesse local (CF, art.30, I e VIII). O Município, no desenvolvimento das políticas urbanas, deve ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes (CF, art.182, “caput”). Por isso, a Lei nº. 11.977/2.009 dotou o Município de poderes para promover a aprovação urbanística e ambiental nas regularizações fundiárias de interesse social (art.53, parágrafo 1º), regularizar parcelamentos em área pública (art.56, § 2º, I) e em APP – Área de Preservação Permanente ocupada até 31/12/2.007 (art.54, § 1º). O legislador foi tímido ao assegurar expressamente a competência que pode ser extraída diretamente da Constituição. Na verdade, não se pode conceber que em qualquer parcelamento urbano esteja o Município em posição de subserviência ao Estado, dependendo de licenças ambientais da CETESB para liberar empreendimentos em seu território. Independentemente desse questionamento quanto às aprovações regulares de loteamentos, certo é que em regularização fundiária está dispensada a licença do Estado se o Município possuir conselho de meio ambiente e órgão ambiental capacitado (art.53, parágrafo 1º, da Lei nº. 11.977/2.009).

As dificuldades com o antigo modelo de regularização fundiária e com a outorga de títulos de propriedade sensibilizaram o legislador, que estabeleceu mudanças profundas com a promulgação da Lei nº. 11.977/2.009. A possibilidade de o poder público expedir Auto de Demarcação Urbanística, que será averbado no Registro de Imóveis, o poder-dever de expedir título de legitimação de posse conferido ao Município e a faculdade concedida ao poder público municipal de determinar especialização de parte ideal em lote determinado constituem o cerne das mudanças, que estão a viabilizar a implementação das regularizações fundiárias. No Estado de São Paulo, podemos ainda mencionar a edição dos Provimentos nº. 18/2.012 e 21/2.013 pela Corregedoria Geral da Justiça como fatores determinantes de grandes avanços em regularizações de parcelamentos irregulares. Neste pequeno estudo pretendemos nos ocupar da especialização de parte ou fração ideal em lote determinado, lote de loteamento regularizado.

Juridicamente, o titular de fração ideal é proprietário de parte ideal da gleba do parcelamento mas não é dono de lote específico. No plano fático, ele ocupou um lote específico e se comporta como dono do lote. O proprietário de parte ideal não tem o reconhecimento jurídico e registral de que é dono daquele lote.

A Lei nº. 11.977/2.009 não disciplinou expressamente a especialização da parte ideal. Limitou-se a estabelecer que o título de legitimação de posse poderá ser concedido ao coproprietário da gleba, titular de cotas ou frações ideais, devidamente cadastrado pelo poder público, desde que exerça seu direito de propriedade em um lote individualizado e identificado no parcelamento registrado (art.59, § 2º da Lei nº. 11.977/2.009, incluído pela nº. 12.424/2.011). Nada mais justo do que assegurar a quem tem título registrado o mesmo direito assegurado a quem não tem título – outorga do título de legitimação de posse. Mas temos de considerar que aquele que tem título registrado e posse deve possuir mais direitos do que o simples possuidor ou morador.

Conquanto natural e lógica a norma que autoriza a outorga do título de legitimação de posse ao proprietário de parte ideal, certo é que a regularização registral via legitimação de posse demanda tempo, com espera de pelo menos 5 (cinco) anos para que a posse seja convertida em propriedade (art.60 da Lei nº. 11.977/2.009). Essa solução pode ser considerada injusta, porquanto dar-se-á o aviltamento da posição jurídica do proprietário de parte ideal, que passará de proprietário a possuidor. A possibilidade de o Município expedir ato de atribuição do lote correspondente à fração ideal foi levantada em São José dos Campos em 08/01/2.010, com apresentação de proposta de outorgar ao Município a faculdade de fazer a atribuição do lote ao proprietário de parte ideal. A suma da proposta foi apresentada no Processo nº. 031/08 – 8ª Vara Cível, nos seguintes termos: “A Lei nº. 6.766/79 e a Lei nº. 11.977/2.009 conferem plenos poderes à Prefeitura para a regularização de loteamentos. Regularizado o loteamento, o compromisso de venda e compra ganha força de título de transmissão da propriedade para fins de registro no Registro de Imóveis (art.41 da Lei nº 6.766/79). Em regularizações de loteamento, a lei não disciplinou como o proprietário de parte ideal, com título já registrado, deve se fazer proprietário de parte certa – lote que ocupa no loteamento regularizado. Por óbvio, o proprietário da parte ideal, com registro na matrícula originária da gleba, não pode ter posição inferior à do promitente comprador que nunca conseguiu registrar o seu título. Resta então encontrar a forma mais prática e econômica para fazer o descerramento de matrícula do lote ocupado pelo proprietário de parte ideal ou seu sucessor, nas regularizações fundiárias promovidas pela Prefeitura. Salvo melhor juízo de V.Exa., a solução mais indicada é a Prefeitura expedir um auto de atribuição ou ato administrativo de atribuição dos lotes, após colher os pedidos de atribuição dos respectivos adquirentes de partes ideais, conforme a ocupação existente na gleba da regularização. Penso que os poderes concedidos por lei à Prefeitura, nas regularizações fundiárias, asseguram que a Municipalidade não está obrigada a exibir os pedidos de atribuição de lotes, mas a Prefeitura tem a responsabilidade e o dever de fazer a atribuição dos lotes em favor dos proprietários de partes ideais, para, assim, completar a regularização fundiária com a entrega dos títulos de propriedade, nos termos da ocupação realizada. Não há previsão legal específica, mas a solução do auto ou ato administrativo de atribuição é encargo da Prefeitura e decorrência natural e lógica da regularização fundiária.

Depois da edição do Provimento nº. 18/2.012, a Corregedoria Geral da Justiça – SP abriu a oportunidade para os registradores de imóveis e outros interessados apresentarem propostas de aperfeiçoamento das Normas dos Serviços Extrajudiciais (NSCGJ) quanto ao procedimento registral de regularização fundiária, o que culminou com a edição do Provimento nº. 21/2.003, cujas prescrições integram as NSCGJ, Tomo II, Capítulo XX, Seção X, itens 273 a 313. Hoje, a especialização de fração ideal em lote, por atribuição promovida pelo Município, tem previsão expressa no subitem 282.4, Capítulo XX, das NSCGJ:

282.4 O Município poderá indicar os respectivos lotes correspondentes às frações ideais registradas, sob sua exclusiva responsabilidade, dispensando-se o procedimento previsto no item 293 e seguintes para a especialização das áreas registradas em comum.

E como o Município deve fazer a atribuição da parte ideal em lote específico, sob sua exclusiva responsabilidade, convêm chamar a atenção dos agentes municipais para os aspectos importantes dessa especialização.

1.   O Município deve verificar se de fato o ocupante do lote é proprietário de parte ideal ou sucessor de proprietário de parte ideal.

2.   O Município deverá expedir termo de atribuição do lote ou documento equivalente, em que certificará que o ocupante do lote é proprietário ou sucessor de proprietário de parte ideal e exerce o seu direito de propriedade naquele lote específico, que está na posse do mesmo.

A rigor, o proprietário de parte ideal não precisa ter moradia no lote, pois o direito à especialização da parte ideal decorre do direito de propriedade em que está investido. Da mesma forma, o proprietário de parte ideal não precisa ter moradia no lote se, eventualmente, fizer a opção por obter o título de legitimação de posse. O art.59 da Lei nº. 11.977/2.009 estabelece a distinção, ao prescrever que a legitimação de posse deve ser outorgada aos moradores cadastrados (parágrafo 1º) e ao coproprietário da gleba, titular de cotas ou frações ideais, devidamente cadastrado pelo poder público, desde que exerça seu direito de propriedade em um lote individualizado e identificado no parcelamento registrado (parágrafo 2º). Veja-se que o proprietário de parte ideal pode até não ter sido cadastrado anteriormente pelo Município. Sem cadastro anterior, não deve o Município outorgar título de legitimação de posse, sob pena de violação da norma do parágrafo 2º do art.59, da Lei nº. 11.977/2.009. No entanto, o Município poderá expedir o termo de atribuição se puder cadastrar e certificar que o titular de parte ideal está na posse do lote e é coproprietário tabular ou sucessor de proprietário de fração ideal da gleba.

É conveniente que o Município estabeleça um procedimento próprio com determinação de rotina para a expedição dos termos de atribuição ou especialização de parte ideal em lote. Expedido o respectivo termo de atribuição, deve o proprietário ser orientado a procurar o Registro de Imóveis para tratar da regularização registral. Não é conveniente que o Município assuma a responsabilidade de requerer a prática dos atos registrais. Convém que o interessado trate disso diretamente no Registro de Imóveis pois, conforme as circunstâncias, o ato registral estará sujeito ou não ao pagamento dos emolumentos previstos no Regimento de Custas do Estado.

Propõe-se o seguinte modelo de termo de atribuição a ser expedido pelo Município:

TERMO DE ATRIBUIÇÃO DE LOTE

ESPECIALIZAÇÃO DE PARTE IDEAL EM PARCELAMENTO REGISTRADO

REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA

A Prefeitura Municipal de …, no exercício das suas atribuições constitucionais e legais, expede o presente Termo de Atribuição do Lote _________ da quadra __________ com a área de ______m2, integrante do parcelamento urbano regularizado sob a denominação de Loteamento ______________________________ em favor do outorgado ___________________________________ (qualificação), atribuição que corresponde à especialização da parte ideal de sua propriedade no imóvel originário do parcelamento regularizado.

Diante da atribuição da propriedade do lote estabelecida neste termo administrativo, conforme levantamento, cadastro, compilação, conferência e verificação de documentos, certificações e serviços técnicos promovidos pelo Município de …, agente promotor da regularização fundiária, deu-se a entrega do lote correspondente à fração ideal registrada na matrícula nº.___________ em nome de ______________________________________ (parte ideal de _____________), e o beneficiário deste termo (outorgado) declara, para todos os fins e efeitos de direito, ter recebido o seu quinhão no imóvel do parcelamento regularizado, prometendo nada mais reclamar ou reivindicar de quem quer que seja ou do Município, a qualquer título, por conta da propriedade e da posse exercidas no imóvel da regularização fundiária.

Local, em………………………………….

 

____________________________________

Prefeitura Municipal de …

 

____________________________________

Proprietário do lote (outorgado)

 

____________________________________

Cônjuge do Proprietário do lote

Para remate, importa ressaltar que se o Município não chamar para si a responsabilidade de fazer a atribuição do lote na especialização da fração ideal, o interessado deverá submeter-se ao procedimento da especialização da parte ideal mediante requerimento próprio apresentado no Registro de Imóveis, sendo necessária a anuência ou a notificação dos confrontantes (itens 279, 293 e 294, Capítulo XX, NSCGJ), procedimento mais oneroso para o beneficiário.

Leia também: LOTE VAGO EM REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA

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* Amilton Alvares é Procurador da República aposentado, Oficial do 2º Registro de Imóveis, Títulos e Documentos e Civil de Pessoa Jurídica da Comarca de São José dos Campos/SP, colaborador do Portal do Registro de Imóveis (www.PORTALdoRI.com.br) e colunista do Boletim Eletrônico, diário e gratuito, do Portal do RI.

* George André Alvares é Advogado e Presidente do Instituto Lares (ONG de regularização fundiária).

Como citar este artigo: ALVARES, Amilton; ALVARES, George André. REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA. ESPECIALIZAÇÃO DE FRAÇÃO IDEAL EM LOTE. ATRIBUIÇÃO PROMOVIDA PELO MUNICÍPIO. Boletim Eletrônico do Portal do RI nº. 085/2014, de 08/05/2014. Disponível em https://www.portaldori.com.br/2014/05/08/regularizacao-fundiaria-especializacao-de-fracao-ideal-em-lote-atribuicao-promovida-pelo-municipio/. Acesso em XX/XX/XX, às XX:XX.

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