Registro de Imóveis – Retificação registral – Alteração de medidas perimetrais com ampliação da área do imóvel – Loteamento informal implantado sob a vigência do Decreto-lei nº 58/1937 – Aprovação do loteamento indemonstrada – Registro não ocorrente – Vias de circulação e praças convertidas em domínio público pela afetação ao uso comum resultante de fato administrativo – Transferência para o domínio público que se operou nos termos em que de fato estabelecido o loteamento – Inaplicabilidade da teoria do concurso voluntário – Falta de razoabilidade da impugnação oposta pelo ente municipal – Questionamento fundado em fatos inidôneos para fins de transmissão de bens para a dominialidade pública – Ofensa à propriedade descartada – Devolução dos autos ao Registrador para que dê prosseguimento à retificação administrativa – Recurso provido.


  
 

Número do processo: 189503

Ano do processo: 2015

Número do parecer: 103

Ano do parecer: 2016

Parecer

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

CORREGEDORIA GERAL DA JUSTIÇA

Processo CG n° 2015/189503

(103/2016-E)

Registro de Imóveis – Retificação registral – Alteração de medidas perimetrais com ampliação da área do imóvel – Loteamento informal implantado sob a vigência do Decreto-lei nº 58/1937 – Aprovação do loteamento indemonstrada – Registro não ocorrente – Vias de circulação e praças convertidas em domínio público pela afetação ao uso comum resultante de fato administrativo – Transferência para o domínio público que se operou nos termos em que de fato estabelecido o loteamento – Inaplicabilidade da teoria do concurso voluntário – Falta de razoabilidade da impugnação oposta pelo ente municipal – Questionamento fundado em fatos inidôneos para fins de transmissão de bens para a dominialidade pública – Ofensa à propriedade descartada – Devolução dos autos ao Registrador para que dê prosseguimento à retificação administrativa – Recurso provido.

Excelentíssimo Senhor Corregedor Geral da Justiça,

ANNA PAOLA SECCO DE FELICE, LAIS SECCO DE FELICE e NELSON SECCO DE FELICE requereram a retificação da descrição do imóvel objeto da mat. n° 27.291 do 18° RI desta Capital, bem como do estado civil de dois deles.[1]

O MUNICÍPIO DE SÃO PAULO impugnou a retificação, que, afirma, repercutiria, caso acolhida, em área pertencente ao domínio público municipal. Esclareceu que avançaria sobre a rua José Piragibe, de acordo com o plano de arruamento 180, oficializado pela Lei n° 4.371/1953. Além disso, argumentou que implicaria aumento da área titulada.[2]

O profissional de engenharia que assinou a planta e o memorial descritivo prestou esclarecimentos em mais de uma ocasião.[3] A Municipalidade, em seus pronunciamentos, manteve sua posição contrária à retificação.[4] Os requerentes questionaram a impugnação[5], rejeitada pelo Oficial de Registro[6].

Interposto recurso administrativo pelo MUNICÍPIO DE SÃO PAULO, com reiteração de suas considerações anteriores[7], os requerentes apresentaram contrarrazões[8] e, ato contínuo, os autos, com nova manifestação do Oficial de Registro[9], foram enviados à MM Juíza Corregedora Permanente.

Após, com o parecer do Ministério Público[10] e novos pronunciamentos da Municipalidade[11], dos requerentes[12] e do Ministério Público[13] –, o recurso foi acolhido, considerando-se fundamentada a impugnação, e, assim, por se entender que a controvérsia versa sobre direito de propriedade, resolveu-se pela remessa dos requerentes às vias ordinárias[14].

Contra essa r. decisão monocrática da Corregedoria Permanente, os requerentes interpuseram recurso administrativo, quando reafirmaram que a impugnação é infundada e alegaram que a discussão, na realidade, não envolve direito real de propriedade nem se ajusta ao precedente lembrado na sentença combatida[15].

Com o recebimento do recurso[16], o ente municipal ofereceu sua resposta[17] e, em seguida, depois da chegada dos autos a esta Corregedoria, a Procuradoria Geral de Justiça propôs a confirmação da r. decisão recorrida[18].

É o relatório. OPINO.

O imóvel a que se refere a pretendida retificação, objeto da mat. n° 27.291 do 18.° RI desta Capital, que nenhuma alusão faz indicativa de sua derivação de algum loteamento, localiza-se na rua José Piragibe, n° 36, Vila Indiana, Butantã.[19] Por sua vez, conforme o cadastramento municipal, situa-se na quadra 367 do setor fiscal 82.

Trata-se de imóvel anteriormente identificado na transcrição n° 81.410 do 10.° RI desta Capital, que se filia à transcrição n° 37.672 do 1° RI desta Capital. Em nenhuma dessas, consta inscrição de loteamento.[20] Na última delas, há, todavia, averbações de abertura de vias públicas, entre elas a relativa à rua José Piragibe, antiga rua onze, lançada em 13 de agosto de 1956, sem menção a plano de arruamento.[21]

Os requerentes afirmam que as medidas perimetrais do imóvel são diversas das lançadas no assento predial e sua área total é outra, mais ampla. Ou seja, buscam uma retificação (direta, bilateral e administrativa) de fatos constantes do registro, de sorte a resguardar a compatibilidade da realidade registral com a extrarregistral. Porém, para o impugnante, a pretensão implica avanço sobre área pertencente ao domínio público municipal; não respeitaria o plano de arruamento n.° 180, que, observo, todavia, não figura dos arquivos do 1° nem do 18.° RI desta Capital.

Inclusive, apesar de sua afirmação, a Municipalidade não demonstrou a aprovação do plano de arruamento; nem dele nem do plano de loteamento.O assentimento municipal sequer pode ser extraído da Lei Municipal n° 4.371/1953[22], cuja relação com aqueles planos não se estabeleceu. Não se comprovou, com efeito, que a oficialização objeto dessa lei abarcou o arruamento em discussão.

Aliás, a despertar confusão, o impugnante ora alega aprovação de um plano, ora a do outro, mas conforme advertência de José Afonso da Silva,arruamento e loteamento são institutos distintos, malgrado constituam espécies de parcelamento do solo e decorram de operações voluntárias normalmente desenvolvidas por particulares; ou seja, não se confundem, ainda que o último pressuponha o primeiro.[23]

O arruamento, esclarece José Afonso da Silva, “é a divisão do solo mediante a abertura de vias de circulação e a formação de quadras entre elas. … consiste no enquadramento da gleba por sua divisão em quadras. Se se traçarem quatro ruas formando uma quadra, já se pode dizer que houve arruamento; mas a formação de um lote já não basta para caracterizar o loteamento. Este é um tipo de parcelamento do solo que se configura no retalhamento de quadras para a formação de unidades edificáveis (lotes) com frente para via oficial de circulação de veículos.”[24] Assim sendo, oloteamento, em cotejo com o arruamento, vai além da mera intervenção no sistema viário.

Na situação dos autos, de todo modo, e à vista da documentação exibida[25], infere-se que houve apresentação de um plano de loteamento que contemplou o plano de arruamento. A propósito, José Afonso da Silva assinala que “não raro se emprega a expressão ‘plano de loteamento’ com a abrangência do plano de arruamento, como era exemplo a alínea ‘c’ do inciso I do art. ‘1° do Decreto-lei 58/1937, quando dizia que doplano de loteamento … deverá constar o programa de desenvolvimento urbano ou de aproveitamento industrial ou agrícola.”[26]

Nada se demonstrou, entretanto, volto a frisar, a respeito da efetiva aprovação do plano (projeto) de loteamento para a área em apreço, objeto da transcrição n° 37.672 do 1° RI desta Capital, que teria sido idealizado pela Sociedade Civil do Butantã. O impugnante isso não provou. O que se tem, unicamente, é uma planta de loteamento, com plano de arruamento, que, não levada a registro, mantida, portanto, nos arquivos municipais, integraria um suposto (e não exibido) plano (projeto) de loteamento.

Desse modo, quanto às vias públicas e praças que formam o parcelamento (de fato) do solo urbano que contemplou a área identificada na transcrição n° 37.672 do 1° RI desta Capital, executado (no mínimo) irregularmente, não cabe, in concreto, cogitar de ocorrência de transferência de propriedade privada ao domínio público resultante de (indemonstrada) aprovação municipal de um desconhecido projeto de loteamento.

Nessa linha, é inapropriado invocar o instituto do concurso voluntário, mormente nos termos em que compreendido pela Municipalidade, e, assim, sob a ótica – a qual não se acede – de antigos precedentes do E. STF[27], que, de toda forma, ainda que prestigiados por julgamentos mais recentes do C. STJ[28], não servem de paradigma para o caso vertente, porque ausente a demonstração da aprovação do plano de loteamento.

Ressalvo, com todas as vênias, aliás, a discordância quanto à compreensão do concurso voluntário, porque, comungando da justa doutrina de Celso Antônio Bandeira de Mello, “a teoria em causa exige, para formação do concurso, ato posterior, distinto da simples aprovação.”[29] Esse entendimento, inclusive, foi prestigiado pelo E. STF, igualmente em vetusto julgamento, ocorrido no dia 27 de maio de 1969, no RE n° 59.065/SP, rel. Min. Djaci Falcão.

Sob outro prisma, e deixando momentaneamente de lado a questão do concurso voluntário, também não é admissível firmar, aqui, qualquer vínculo entre a incorporação das vias urbanas e praças ao patrimônio público e os comandos emergentes dos arts. 22 da Lei n° 6.766/1979 e 4.° (já revogado) do Decreto-lei n° 271/1967, porquanto não houve inscrição nem, particularmente, regularização do loteamento sob a vigência de qualquer um desses diplomas legais.

Na realidade, esse bens, vias de circulação e praças que compõem o loteamento irregular em foco, consolidado há décadas, foram transferidos ao domínio público por destinação, com respaldo no (à época vigente) art. 66, I, do CC/1916[30] (atual art. 99, I, do CC). Dito de outra forma, foram incorporados à propriedade pública pela afetação ao uso comum, ao uso indistinto de todos, destino natural desses característicos logradouros públicos.

Essa era a regra, àquele tempo – sempre então que inocorrente (a comum) doação à Municipalidade feita pelo loteador –, mesmo para os loteamentos urbanos regulares, porque o Decreto-lei n° 58/1937, em seu art. 3.°, ao cuidar dos efeitos de sua inscrição, previa somente a inalienabilidade das vias e praças que o integravam, da qual não era autorizado retirar – porque não era nem é modo de aquisição de domínio previsto em lei –, a transferência da propriedade privada ao Município.

Enfim, antes da disciplina introduzida pelo Decreto-lei n° 271/1967, sucedida pela da Lei n° 6.766/1979, com expresso regramento do modo e do momento da conversão do domínio privado em público – e mesmo atualmente para loteamentos ilegais, mormente para os irregulares –, a aprovação do loteamento pela Municipalidade, sequer ocorrente, não bastava para que as vias e praças, espaços livres e áreas destinadas a edifícios públicos e outros equipamentos urbanos, constantes do projeto (plano) de loteamento e do memorial descritivo, fossem incorporados ao patrimônio do Município.

Precisas, a esse respeito, as considerações de Celso Antônio Bandeira de Mello, ao abordar o regime jurídico anterior ao Decreto-lei n° 271/1967:

A tese que imputa à aprovação do projeto de loteamento poder instaurador de propriedade pública sobre vias e áreas livres carece de base legal ou principiológica.

De um lado, o Decreto-lei 58 em nada abona esta inteligência. De outro lado, a aprovação é simples ato administrativo de concordância com um projeto. O loteador, ao submetê-lo à Prefeitura, está simplesmente a revelar intento de vir a lotear um bem. Pode não fazê-lo, entretanto. Pode não registrá-lo. Pode não vender lote algum. Pode não executar qualquer arruamento.

Posto que não realize qualquer ato jurídico apto a transferir domínio nem qualquer ato material donde resulte utilização pública, seria um contrassenso que viesse a perder a propriedade das áreas em questão e outro contrassenso que o Poder Público se transformasse em proprietário de ruas que não existem.[31]

Não parece realmente coerente com o texto à época em vigor afirmar que a aprovação do plano de loteamento transferiria a propriedade privada para o domínio público, se, enquanto não inscrito o empreendimento imobiliário, ainda alienáveis, pelo loteador, as vias de comunicação e os espaços livres constantes do memorial e da planta, conforme interpretação a contrario sensu do art. 3.° do Decreto-lei n° 58/1937.

Além disso, o plano de loteamento sequer pode ser qualificado como título translativo de propriedade. Não por outra razão, aliás, era comum, na vigência do Decreto-lei n° 58/1937, que os entes municipais exigissem, dos loteadores, a doação (ou o compromisso de doação) das áreas correspondentes às vias urbanas de circulação e aos demais logradouros públicos, como uma das condições para concordar com o empreendimento imobiliário projetado.

Sob outro ângulo, tampouco, ainda sob a regência do Decreto-lei n° 58/1937, era suficiente, à transmudação da propriedade privada em pública, a inscrição do loteamento. Pontuou-se, acima, que não havia textual disposição legal atribuindo-lhe tal eficácia. E não seria razoável, ademais, cogitar, para a eventualidade da frustração do projeto de loteamento, de uma propriedade pública resolúvel, sujeita, sem base normativa, a uma condição resolutiva.

Alinha-se, nesta senda, à sagaz conclusão de Mário Bernardo Sesta, a lembrar de que a inalienabilidade não é traço absoluto nem exclusivo dadominialidade pública e, por isso, com sua previsão acautelatória no art. 3.° do Decreto-Lei n° 58/1937, apenas se buscou “proteger interesses vinculados condicionadamente a uma realidade que se prenuncia, que é possível mas não necessária”; “tutelar interesses à futura área urbana eventual e possivelmente decorrente do plano de loteamento inscrito, tornando, desde a inscrição, inalienáveis as áreas destinadas ao uso comum.”[32]

Essa inalienabilidade, consequentemente, não traduz nem consubstancia a passagem de bens privados para o domínio público. Até em virtude disso, o Decreto-lei n° 58/1937, em seu art. 6.°, alínea b, permitia o cancelamento da inscrição dos loteamentos urbanos, a pedido do proprietário, e independentemente da anuência da Municipalidade, se ainda não comercializados os lotes mediante compromissos averbados ou caso obtido o consentimento dos promitentes compradores.

Adere-se, assim, à compreensão de Celso Antônio Bandeira de Mello, para quem, “nos loteamentos urbanos anteriores ao Decreto-lei 271 de 28.2.1967, e em quaisquer loteamentos rurais, a dominialidade pública nasce com a concreta afetação fática das vias públicas ao uso da coletividade, seguindo igual destino, por derivação, as demais áreas previstas para fins públicos.”[33] (grifei)

Não destoa Mário Bernardo Sesta, cuja posição, em atenção ao seu lúcido desenvolvimento, merece transcrição:

Ninguém duvida… que vias públicas, praças e logradouros em geral, destinados a uso comum do povo, sejam bens públicos

Cumpre, pois, dentro da perspectiva antes traçada, analisar quando, no regime do Decreto-lei 58/37, sobreviria a dominialidade pública sobre aqueles tratos da terra.

Quando o loteamento deixa de ser projeto e passa a ser realidade; quando o sistema de acesso aos lotes é aberto e logradouros públicos ao menos delineados; quando lotes são compromissados, então o novo trato urbano passa a existir. Naturalmente ocorrerá então a afetação das áreas comuns ao uso comum do povo a que se destinam. Afetadas ao uso comum do povo, passarão então a integrar a dominialidade pública.

O interesse público se atualiza no momento em que o loteamento passa a ser realidade, e a destinação das áreas de uso público vai inseri-los nodomínio público municipal.

O que nos interessa sobremodo… é fixar que, até a afetação, o que existe é tão-somente domínio particular… No regime do Decreto-lei 271/67, a afetação coincide com o registro; no regime do Decreto-lei 58/37 a afetação é posterior ao registro e se dá pelo efetivo uso comum do povo sobre as áreas que forem ao mesmo destinadas e/ou pelo mesmo tomadas.[34] (grifei e sublinhei)

Dentro desse contexto, na situação examinada nestes autos, impõe reconhecer que a implementação do loteamento, a envolver a execução do arruamento, ocorrida há mais de cinco décadas, marcou a incorporação à dominialidade pública das vias de circulação e praças, em suma, dos logradouros públicos então contemplados no empreendimento imobiliário.

Aliás, em se tratando de loteamento informal, não antecedido de (comprovada) aprovação pelo ente municipal nem de inscrição na serventia predial, a conclusão se impõe com mais força, pois, embora acima descartada, sequer é possível associar a conversão do domínio particular em público a um desses fatos. Esse o pensamento de José Afonso da Silva: “se as vias foram abertas em loteamento irregular, ou clandestino, elas se tornarão bens de uso comum do povo por destinação…”[35].

Complementa Celso Antônio Bandeira de Mello, ao focar o fato da afetação oriundo da utilização de vias postas em público em situação relacionada com loteamentos ilegais: “…é dever jurídico do Poder Público embargar operações de retalhamento do solo, se procedidas contra a lei. Se omitiu-se no dever de embaraçar e frustrar retalhamento ilegítimo do solo municipal e à sombra desta omissão surgiram, medraram e se desenvolveram interesses de munícipes, se foram abertas e postas em público vias de circulação, não lhe cabe, ao depois, erigir-se no poder de renegá-las, pois tais vias já serão vias coletivas, isto é, do Município.”[36]

Ou seja, a transferência dessas áreas para o domínio público se operou, no caso, nos termos em que de fato implantado o loteamento. O arruamento e o alinhamento (“limite entre a propriedade privada e o domínio público”[37]) persistem, aliás, sem oposição da Municipalidade, há mais de cinquenta anos.

Ao longo desses anos, não se revelou, em particular, que outro, de fato, foi o traçado da rua José Piragibe (antiga rua onze), via pública que entesta o imóvel objeto da pretendida retificação. Não se embargou a tempo as obras (há décadas consolidadas) de urbanificação. Não se exigiu, em momento oportuno, a regularização do loteamento, também não assumida pelo impugnante.

Por outro lado, é de rigor sublinhar que a afetação, instituto típico do direito administrativo, definido por J. Cretella Júnior como “o fato ou o pronunciamento do Estado que incorpora uma coisa à dominialidade da pessoa jurídica pública”[38], não é necessariamente expressa; não deriva forçosamente de ato administrativo ou normativo.

Quanto a isso, Floriano de Azevedo Marques Neto é categórico: “a afetação advém de um fato jurídico, podendo corresponder ou não a um ato jurídico ou legislativo.”[39] (grifei) Maria Sylvia Zanella Di Pietro compartilha desse entendimento.[40] E sobre o tema ainda vale reproduzir o escólio de José dos Santos Carvalho Filho:

deve destacar-se que a afetação e a desafetação constituem fatos administrativos, ou seja, acontecimentos ocorridos na atividade administrativa independentemente da forma com que se apresentem. …O fato administrativo tanto pode ocorrer mediante a prática de ato administrativo formal, como através de fato jurídico de diversa natureza. Significa que, até mesmo tacitamente, é possível que determinada conduta administrativa produza a afetação ou a desafetação, bastando, para tanto, verificar-se no caso o real intento da Administração.[41](grifei)

Aperfeiçoou-se, no caso, há décadas e por força da concretização do loteamento, uma relação de afetação natural; afetação (automática) resultante do uso das vias urbanas e praças integrantes do empreendimento, entregues e vocacionadas ao atendimento de finalidade pública, em suma, consagradas a uma utilização de interesse geral da coletividade.

Logo, infundamentada a impugnação do Município de São Paulo, que se escora, para afirmar que a retificação avança sobre bem público, em plano de loteamento imobiliário que (não registrado e cuja aprovação sequer foi comprovada) não foi estabelecido consoante inicialmente planejado.

A planta de loteamento apresentada não se presta a demonstrar – nem a sugerir – a interferência alegada. Por meio dela – ou mesmo mediante sua aprovação (indemonstrada) –, nenhum bem foi incorporado ao patrimônio público. A dominialidade pública surgiu da execução do loteamento, da forma como efetivado. Assim, não há que se cogitar de controvérsia sobre direito de propriedade. E o decidido no processo CG n° 73.299/2015 não serve de parâmetro para a hipótese em debate.

Procedeu com acerto, enfim, e respaldo no subitem 138.19, I, do Cap. XX das NSCGJ, o Oficial, ao rejeitar a impugnação. A propriedade alegada pelo Município de São Paulo, hipoteticamente atingida pela invasão assinalada na planta exibida[42], ficou no plano ideal, no campo das intenções. Não transpôs a planta do loteamento. Limitou-se ao projeto. Não passou de uma quimera; uma ficção. E para isso foi determinante o beneplácito do impugnante, que tacitamente concordou com as vias urbanas e praças que foram, de fato, destinadas, no plano fenomênico, ao patrimônio público.

Em momento algum, a Municipalidade de São Paulo demonstrou que a implantação do loteamento, em sua origem, foi outra. Lançou somente suspeitas, dúvidas, que antes, isso sim, favorecem os requerentes. Com efeito, pondera que, em 1958, “a praça em frente ao imóvel (retificando) não estava implantada e a maioria dos lotes defronte a praça estavam vazios, com limites imprecisos.”[43] Disso, contudo, não se extrai que a execução do empreendimento imobiliário observou a planta de loteamento em poder do impugnante. Ao contrário, permite deduzir que houve implantação parcialmente diversa, consoante afirmam os requerentes.

Isso, além do mais, é reforçado por outra declaração da Municipalidade, de acordo com quem as plantas existentes em seus arquivos “registram a existência de espaço livre próximo ao imóvel retificando, bem como uma praça defronte à área retificanda, hoje denominada Capitão Santana, que foi implantada com tamanho menor que o projetado, o que implicou em ganhos expressivos de áreas aos lotes lindeiros.”[44] Ora, essa afirmação deixa claro que a implantação do loteamento não se orientou, em sua plenitude, pelo perspectivado. Dá amparo à tese dos requerentes.

Dessa maneira – considerado o momento em que, à época dos acontecimentos, dava-se a passagem dos bens privados para o domínio público, então sob o regramento do Decreto-lei n° 58/1937 –, justifica-se a posição assumida pelo Oficial de Registro, pois, na situação em discussão, operou-se nos termos em que realizado o arruamento, com sua disponibilização ao uso comum, e, por conseguinte, na forma em que perfectibilizado o loteamento.

Agora, não há razão alguma para lançar mão aqui da desnecessária teoria do concurso voluntário, de origem francesa (offre de concours),invocada, aliás, mas com conclusões distintas, tanto pelos requerentes, acompanhados pelo Oficial de Registro, como pelo ente municipal. Penso que em nada contribui para a segurança jurídica – em atenção, especialmente, às controvérsias sobre sua correta apreensão e aplicação aos casos de loteamento –, além de ser prescindível, valoradas a prevalência e a suficiência do instituto da afetação.

Na oportuna crítica de Celso Antônio Bandeira de Mello, essa construção teórica “presume necessário um ato onde já pode existir um ‘fato’ de afetação ocorrido – ora com a explícita aquiescência do Poder Público, quando se trata de loteamento aprovado e registrado, ora propiciado pela inércia do Poder Público, quando se trata de loteamento clandestino.[45] (grifei)

Interessa ainda salientar que as diversas averbações de vias urbanas na transcrição n° 37.672 do 1° RI desta Capital[46] – realizadas sem amparo em planta de arruamento, mas com base em certidões expedidas pelo ente municipal, de que é exemplo a pertinente à rua José Piragibe[47] –, nada beneficia a tese do impugnante. Antes, ao reverso, indica a falta de aprovação e de registro do loteamento, sua informalidade, expressa em prática comum ao tempo do Decreto-lei n° 58/1937[48], e, logo, substancia o caráter infundado da impugnação.

Em arremate, é necessário realçar que ora se analisa unicamente a impugnação oposta pela Municipalidade de São Paulo, rechaçada, porque ausente o direito de propriedade declarado, jamais existente, à luz das informações e dos documentos expostos. Isto é, a retificação pretendida não interfere na propriedade do impugnante, no conteúdo de seu direito; não importa indevida aquisição (então por via oblíqua) de propriedade pertencente ao ente municipal.

De toda maneira, cabe destacar que, nada obstante não se preste à aquisição ou à perda de propriedade (com ressalva das situações do art. 213, II, §§ 6° e 9°, da Lei n° 6.015/1973), a retificação administrativa (não contenciosa) pode envolver alteração de medidas perimetrais e ampliação ou redução da área do bem imóvel identificado no registro retificando, caso não coloque em risco direitos de terceiros.

Segundo José Marcelo Tossi Silva, “também erros relativos à descrição da área e dos limites perimetrais do imóvel, quando originados em equivocada descrição contida na escritura pública, são passíveis de correção mediante retificação direta do registro imobiliário, na esfera administrativa, desde que cabalmente comprovados e que não causem qualquer espécie de prejuízo aos alienantes do imóvel e demais terceiros.”[49] (grifei)

Em resumo: à vista do exposto, admitida a falta de razoabilidade da impugnação apresentada pela Municipalidade de São Paulo, impõe-se, provido o recurso, a devolução dos autos ao Oficial de Registro, a quem competirá, nos termos do subitem 138.20. do Cap. XX das NSCGJ, dar prosseguimento à retificação.

Cabe, com efeito, ao Registrador, uma vez superado o questionamento em exame, aferir a presença dos demais requisitos exigidos para fins de retificação administrativa. Avaliar, em particular, mediante deliberação recorrível, se a retificação, já descartada a invasão agitada pela Municipalidade de São Paulo, não desborda os limites intra muros, se respeita “os limites tabulares do imóvel objeto do registro a ser retificado e dos imóveis confinantes contidos em seus respectivos registros … e, igualmente, os limites dos direitos registrados”[50], com socorro, sempre que necessário, a diligências e vistorias externas, bem como a livros e documentos que compõem o acervo de sua serventia.

Pelo todo aduzido, o parecer que respeitosamente submeto à elevada apreciação de Vossa Excelência propõe o provimento do recurso no sentido de rejeitar a impugnação oposta pelo Município de São Paulo, ora considerada infundada, e, com isso, devolver os autos ao Oficial do 18.° RI desta Capital, para que dê regular prosseguimento à retificação administrativa.

Sub censura.

São Paulo, 4 de maio de 2016.

Luciano Gonçalves Paes Leme

Juiz Assessor da Corregedoria

DECISÃO: Aprovo o parecer do MM. Juiz Assessor da Corregedoria e, por seus fundamentos, que adoto, dou provimento ao recurso para rejeitar a impugnação oposta pelo Município de São Paulo, considerada infundada, e devolver os autos ao Oficial do 18.º RI desta Capital, para que dê regular prosseguimento à retificação administrativa. Publique-se. São Paulo, 05 de maio de 2016. (a) MANOEL DE QUEIROZ PEREIRA CALÇAS, Corregedor Geral da Justiça. Advogados: ZULMIRA MONTEIRO DE ANDRADE LUZ, OAB/SP 62.145 e DANIEL MESQUITA DE PAULA SALLES, OAB/SP 288.510.

Diário da Justiça Eletrônico de 16.05.2016

Decisão reproduzida na página 52 do Classificador II – 2016

Notas:

[1] Fls. 7-124.

[2] Fls. 167-169.

[3] Fls. 184-194; 216-219.

[4] Fls. 212-215; 227-229;

[5] Fls. 237-244.

[6] Fls. 246-248.

[7] Fls. 252-260.

[8] Fls. 264-275.

[9] Fls. 1-6.

[10] Fls. 283-284.

[11] Fls. 287-291.

[12] Fls. 294-298.

[13] Fls. 302.

[14] Fls. 303-307.

[15] Fls. 314-325.

[16] Fls. 326.

[17] Fls. 328-343.

[18] Fls. 354-357.

[19] Fls. 59-64.

[20] Fls. 65-72 e 366.

[21] Av. 08-Fls. 67.

[22] Fls. 242.

[23] Direito urbanístico brasileiro. 7ª ed. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 326-327.

[24] Direito urbanístico brasileiro. 7ª ed. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 326-327.

[25] Fls. 169.

[26] Direito urbanístico brasileiro. 7ª ed. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 328.

[27] RE n° 84.327/SP, rel. Min. Cordeiro Guerra, j. 28.9.1976; e RE n° 89.252-4/SP, rel. Min. Thompson Flores, j. 8.5.1979.

[28] REsp n° 76.784/PR, rel. Min. Carlos Menezes Direito, j. 27.5.1997; REsp n° 900.873/SP, rel. Min. Mauro Campbell Marques, j. 28.9.2010; e REsp n° 1.137.710/PR, rel. Min. Castro Meira, j. 6.6.2013.

[29] Loteamento – Momento em que as áreas previstas como públicas se incorporam ao domínio público antes do Decreto-lei 271, de 28.2.1967 (e depois do Decreto-lei 58, de 10.12.1937): Com a inscrição no registro imobiliário? Com a aprovação do loteamento? Com o concurso voluntário? Ou em decorrência de evento diverso? In: Pareceres de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 89.

[30] Art. 66. Os bens públicos são: I. Os de uso comum do povo, tais como os mares, rios, estradas, ruas e praças.

[31] Loteamento – Momento em que as áreas previstas como públicas se incorporam ao domínio público antes do Decreto-lei 271, de 28.2.1967 (e depois do Decreto-lei 58, de 10.12.1937): Com a inscrição no registro imobiliário? Com a aprovação do loteamento? Com o concurso voluntário? Ou em decorrência de evento diverso? In Pareceres de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 92.

[32] Loteamentos e vias públicas. In: Revista de direito público. São Paulo: Revista dos Tribunais. n°s 45-46, ano IX, p. 55.

[33] Loteamento – Momento em que as áreas previstas como públicas se incorporam ao domínio público antes do Decreto-lei 271, de 28.2.1967 (e depois do Decreto-lei 58, de 10.12.1937): Com a inscrição no registro imobiliário? Com a aprovação do loteamento? Com o concurso voluntário? Ou em decorrência de evento diverso? Pareceres de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 98.

[34] Loteamentos e vias públicas. In: Revista de direito público. São Paulo: Revista dos Tribunais. n.°s 45-46, ano IX, p. 55-56.

[35] Direito urbanístico brasileiro. 7.ª ed. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 202.

[36] Loteamento – Momento em que as áreas previstas como públicas se incorporam ao domínio público antes do Decreto-lei 271, de 28.2.1967 (e depois do Decreto-lei 58, de 10.12.1937): Com a inscrição no registro imobiliário? Com a aprovação do loteamento? Com o concurso voluntário? Ou em decorrência de evento diverso? In: Pareceres de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 94.

[37] Hely Lopes Meirelles. Direito municipal brasileiro. 12.ª ed. Atualizada por Célia Marisa Prendes e Márcio Schneider Reis. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 409.

[38] Bens públicos. 2.ª ed. São Paulo: EUD, 1975, p. 122.

[39] Regime jurídico e utilização dos bens públicos. In: Tratado de direito administrativo. Adilson de Abreu Dallari, Carlos Valder do Nascimento, Ives Gandra da Silva Martins (coords.). São Paulo: Saraiva, 2013, p. 415. v. 2.

[40] Direito Administrativo. 10.ª ed. São Paulo: Atlas, 2001, p. 534-535.

[41] Manual de Direito Administrativo. 30.ª ed. São Paulo: Atlas, 2016, p. 1.216.

[42] Fls. 169.

[43] Fls. 258, primeiro parágrafo, e 335, penúltimo parágrafo.

[44] Fls. 213, item 3, 257, item 5, e 335, antepenúltimo parágrafo.

[45] Loteamento – Momento em que as áreas previstas como públicas se incorporam ao domínio público antes do Decreto-lei 271, de 28.2.1967 (e depois do Decreto-lei 58, de 10.12.1937): Com a inscrição no registro imobiliário? Com a aprovação do loteamento? Com o concurso voluntário? Ou em decorrência de evento diverso? In: Pareceres de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 95.

[46] Fls. 65-72.

[47] Fls. 67, av. 08, e 367.

[48] Cf. Vicente Celeste Amadei e Vicente de Abreu Amadei. Como lotear uma gleba: o parcelamento do solo urbano em seus aspectos essenciais (loteamento e desmembramento). 4.ª ed. Campinas: Millennium, 2014, p. 44.

[49] O procedimento de retificação de registro imobiliário no direito brasileiro. In: Direito imobiliário brasileiro: novas fronteiras na legalidade constitucional. Alexandre Guerra; Marcelo Benacchio (coords.). São Paulo: Quartier Latin, 2011, p. 1.108.

[50] José Marcelo Tossi Silva. O procedimento de retificação de registro imobiliário no direito brasileiro. In: Direito imobiliário brasileiro: novas fronteiras na legalidade constitucional. Alexandre Guerra; Marcelo Benacchio (coords.). São Paulo: Quartier Latin, 2011, p. 1.114.

Fonte: INR Publicações.

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Publicação: Portal do RI (Registro de Imóveis) | O Portal das informações notariais, registrais e imobiliárias!

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