Matrícula – cancelamento, encerramento, fusão. Itens 73 – 77.2. NSCGJSP em discussão

Revisão das Normas da Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo – reunião do dia 04/09/14

Nesta edição, publicamos a íntegra das discussões das Normas de Serviço com a inovação de reproduzir, diretamente, os pronunciamentos do coordenador, des. Ricardo Dip, e dos participantes nos debates. Com isso registramos, de modo natural, o transcurso dos trabalhos, limitando, ao máximo, a pós-edição.

Matrículas – cancelamento e encerramento

RICARDO DIP – Iniciaremos hoje com o exame dos itens 73 e 74, que são mais fecundos do que podem parecer a uma primeira leitura e que tratam do cancelamento e do encerramento da matrícula.

Na doutrina registral brasileira, não há um tratamento aprofundado dessa matéria à luz das normas existentes e com a riqueza de variações que o tema sugere.

O cancelamento da matrícula é uma espécie que advém de um gênero próximo, que é o do cancelamento do registro em geral. Este, por sua vez, é subgênero das causas de extinção do registro. Há uma série de causas extintivas do registro – dentre as quais o cancelamento.

Assim e apenas para ilustrar o ponto, outra causa extintiva do registro é a perempção. A perempção leva ao cancelamento tácito do registro, ainda que não haja a inscrição do cancelamento.

Renúncia, perempção, caducidade, usucapião, todas são formas de extinção que têm de ser vistas à luz do artigo 252 da Lei de Registros Públicos, dispositivo do direito brasileiro que altera um tanto a possibilidade de empréstimo da doutrina estrangeira. Prevê esse dispositivo que o registro, enquanto não cancelado, produz todos os efeitos legais ainda que, por outra maneira, se prove que o título está desfeito, anulado, extinto ou rescindido. Essa norma dá um tempero específico ao cancelamento no direito brasileiro.

Cancelamento e encerramento – distinções

RD. Passemos a analisar as diferenças existentes entre o cancelamento e o encerramento do registro.

O encerramento consiste num entrave à escrituração sucessiva, mas o registro tal como até então praticado persevera em seus efeitos. Já o cancelamento é efetivamente uma forma extintiva dos efeitos do registro, não sendo exato, todavia, considerar que, uma vez já expresso o registro anterior, este, cancelado, desaparecerá como se nunca tivesse existindo.

O cancelamento opera-se de maneira formal. No entanto, conforme dispõe o art. 252 da Lei de Registros Públicos, seu efeito publicitário deve persistir retroativamente para salvaguardar a boa-fé daqueles que confiaram na aparente validade do registro. Não se pode pretender, entrementes, com base numa certidão expedida posteriormente pelo registro, que esses efeitos de publicidade se estendam, para efeitos de prova inclusive, para além de sua desregistração. Há, pois, importante distinção entre os efeitos produzidos até o marco cancelatório −e que, de algum modo, ainda devem subsistir (quando menos, no domínio da boa-fé de terceiros)− e os que se almejem recolher depois de expresso o cancelamento.

Matrícula – cancelamento somente pela via judicial?

73. A matrícula só será cancelada por decisão judicial.

RD – O cancelamento do registro pode ser pleiteado por diversas formas, por exemplo, mediante renúncia abdicativa. No caso da matrícula, porém, o cancelamento só poderá efetuar-se por meio de título judicial.

Hipóteses cerebrinas, a propósito, não deixam de aparecer de vez em quando. Ainda ontem proferi, no Tribunal, voto de terceiro juiz, num caso curiosíssimo, que não dizia respeito diretamente ao registro, mas mostrava o surgimento de hipóteses práticas que escapam àquilo que se entende no comum dos problemas e na ortodoxia das soluções.

Uma determinada pessoa jurídica – que goza de isenção tributária – é proprietária de dois lotes em um terreno onde há outros quatro lotes de proprietário diverso. A pessoa jurídica, titular dos dois lotes, resolveu dá-los em locação para o outro referido proprietário, que ali construiu um único imóvel sobre os vários terrenos (os próprios e os alheios), com a autorização da Prefeitura local. Com a unificação do cadastro na Administração, receando a cobrança tributária, aquela pessoa jurídica ajuizou de ação de cancelamento da inscrição cadastral administrativa. Esse caso nos mostra que aquilo que parece somente exemplo de escola, nem sempre o é. Pense-se, por exemplo, na possibilidade de alguém querer renunciar a uma dada matrícula.

No caso da abertura de uma matrícula em duplicidade, os registradores terão de depender de uma decisão judicial para proceder ao cancelamento da matrícula sobreposta?

GEORGE TAKEDA – Já vi acontecer um caso em que a pessoa já havia aberto a matrícula, mas, por algum motivo, talvez por falha do indicador pessoal, foi aberta nova matrícula e o registro efetuado na nova. Quando se descobre o erro, o correto é fazer o cancelamento da segunda matrícula e transportar o registro para a primeira.

RICARDO DIP – Mas o senhor faria o cancelamento de ofício ou dependeria de decisão judicial?

GEORGE TAKEDA – Quando não há prejuízo a terceiro, o cancelamento pode ser feito ex officio.

ADEMAR FIORANELLI – Eu já tive um caso de compromisso de venda e compra registrado em uma matrícula e a escritura definitiva registrada em outra que foi aberta posteriormente. Nesse caso, também não houve prejuízo a ninguém. Em situações como essa, dou prevalência à primeira matrícula.

RICARDO DIP – A discussão central é saber se o registrador pode cancelar a matrícula de ofício, quando o item 73 diz que a matrícula só poderá ser cancelada por decisão judicial. É por isso que comecei dizendo que uma regra, tão ostensivamente pequena como essa, pode ser mais fecunda e cheia de problemas do que parece. Falar que só se pode fazer o cancelamento por decisão judicial é, na verdade, uma forma de defender o objeto imobiliário e os registros que nele se encontra, na expectativa de que se trate de matrícula de larga data. Não penso que a norma se refira a um caso de mera sobreposição ou duplicidade. Talvez a palavra “só” do item 73 seja excessiva.

Durante correições em cartórios do litoral paulista, descobri situações que colocam com especial cuidado o problema do cancelamento. Em dado cartório foi encontrado um imóvel com cinco matrículas. A primeira reação foi manter a primeira matrícula e cancelar todas as subsequentes. Quando vazou a informação de que havia correição no registro de imóveis da cidade, os adquirentes de lotes, informados de que suas matrículas poderiam ser canceladas, compareceram ao cartório, dizendo que a quinta matrícula é que era a correspondente à realidade dominial do imóvel. E todos concordaram, assinando um termo de compromisso e responsabilidade nesse sentido.

Eis aqui o primeiro problema. Mediante um mero consentimento formal do suposto legitimado tabular, impediu-se o cancelamento das matrículas anteriores. Há outras hipóteses em que não se pode dizer pura e simplesmente que o cancelamento levaria à desregistração.

Como se procede no caso de ser aberta uma matrícula para o registro de um compromisso de compra e venda e outra para o registro de uma cessão desse mesmo compromisso de compra e venda? Cancela-se pura e simplesmente ou procede-se à averbação por transporte?

Sérgio Jacomino: havendo segurança absoluta, consolidam-se os registros e se encerra uma das matrículas (geralmente a segunda).

A norma do item 73 refere-se aos casos em geral. É preciso ter cautela e evitar os cancelamentos o mais possível porque, ao contrário do encerramento, o cancelamento efetivamente desregistra, principalmente quando se considera a possibilidade da preservação de uma matrícula posterior que, embora tenha sido objeto da sobreposição, é a que verdadeiramente retrata a realidade.

Matrícula – cancelamento parcial.

Embora não esteja referido no texto das normas, há também a possibilidade de cancelamento parcial das matrículas. Não sei se convém a prática de cancelamentos parcelares, mas, teoricamente, é perfeitamente possível. Cancela-se a matrícula quanto aos imóveis B e C e mantém-se o registro do imóvel A. Também é perfeitamente possível a repristinação do cancelamento do cancelamento.  Há muitos problemas envolvendo a questão da nulidade e da anulabilidade, ou da nulidade absoluta e da nulidade relativa e o seus reflexos para o registro.

O cancelamento pode dar-se por diversos motivos. Pode ser por erro do título, por estar em dissonância com a realidade, ou também por erro do cartório. É o caso, por exemplo, da abertura de matrícula com duplicidade de registros.

Repristinação de cancelamento

No caso de inexatidão registral, o erro pode estar no cancelamento. É perfeitamente possível e bastante corriqueiro o registrador trocar a ordem dos algarismos da matrícula. Assim, ao receber um mandado judicial para o cancelamento da matrícula 20.020, ele pode cancelar, por equívoco, a matrícula 20.200. Esse é um caso de nulidade absoluta por erro do registro. Eis aí que caiba o cancelamento do cancelamento.

Nós precisamos distinguir os casos em que o cancelamento do registro ocorre por erro registral em vista de nulidade absoluta, e o cancelamento do registro cujo erro advém do título, uma sobreposição parcial do imóvel etc.

No primeiro caso, não há dúvida de que o cancelamento do cancelamento tem efeito repristinatório, ou seja, desregistra-se o cancelamento; o registro retorna com todo vigor, como se nunca tivesse desaparecido.

Na hipótese de equívoco cometido pelo registrador que cancela indevidamente um título, deve constar na matrícula a seguinte informação:

  • R1 – compra e venda.
  • AV2 – cancelamento do R1.
  • AV3 – cancelamento do cancelamento [vg. da av. 2].

Aquele primeiro registro continuará em vigor como se nunca tivesse sido considerado inválido, inexistente, nulo etc. [1]

Além da repristinação, outra situação bastante interessante envolve o tema da publicidade. O cancelamento também precisa ser analisado sob a óptica do art. 252 da LRP. Dá-se, aqui, por exemplo, a circunstância da duplicidade de matrículas com duas linhas filiatórias.

O Conselho Superior da Magistratura paulista adotou durante algum tempo o entendimento de que a duplicidade de matrículas neutraliza os efeitos da presunção resultante do registro. Ou seja, se houvesse duas matrículas referentes ao mesmo imóvel, cada uma delas apontando um titular diferente, não prevaleceria nenhuma, porque seria, então, necessário considerar a data da prenotação. E, se assim se fizesse, estaríamos dando à prenotação um efeito persistente, que a prenotação não possui.

Houve decisões em dois sentidos na Corregedoria Geral de São Paulo: em alguns casos, prevaleceu o entendimento da prioridade reportada à prenotação, mantendo-se a matrícula anterior. Quando houve o antes referido episódio no cartório do litoral paulista, a posição que, em contrário, se defendia, foi reforçada porque se descobriu que a realidade confirmava muitas vezes que o registro posterior é que poderia estar de acordo com a realidade. Optou-se, com isso, por encaminhar a decisão à via jurisdicional.

GEORGE TAKEDA – Esse controle não era feito nas transcrições antes de 1976, e também não existia o princípio da continuidade anteriormente ao ano de 1928. Há muitas escrituras antigas, com descrição precária, que devem ter várias sobreposições.

Cancelamento X encerramento

RICARDO DIP – Além do cancelamento existe o fenômeno do encerramento. A abertura da matrícula encerra todas as possibilidades de escrituração ou textualização da transcrição. Isso se deve a Afrânio de Carvalho, o primeiro que projetou a ideia do cancelamento implícito ou indireto em uma página perdida de seu livro (livro que deveria ter merecido um índice adequado [2]). Segundo Afrânio de Carvalho, uma vez aberta a matrícula, cancela-se indiretamente o registro anterior.

Essa ideia de desregistração automática, isto é, do afastamento de todos os efeitos do registro anterior, vai até certo ponto, pois somente dali para frente é que não produzirá mais efeitos.

Além disso, a causa do cancelamento também deve ser observada, ou seja, se se trata de nulidade absoluta, anulabilidade, ou se é, na verdade, uma questão de deslocamento do registro.

ADEMAR FIORANELLI – Com relação ao entendimento da antiga e atual jurisprudência acerca da duplicidade, atualmente têm-se mantido as duas correntes filiatórias e a discussão deve ser levada às vias ordinárias.desembargador Ricardo Dip trouxe um elemento importante para a nossa reflexão. Sem a dilação probatória, não há como verificar as circunstâncias que podem fazer preponderar uma ou outra inscrição. É arriscado proceder-se ao cancelamento administrativo da matrícula, mesmo quando, aparentemente, não se divise claramente um conflito.  

RICARDO DIP – Parece excessiva a disposição de que a matrícula só será cancelada por decisão judicial. O artigo 249 da LRP dispõe que o cancelamento poderá ser total ou parcial e referir-se a qualquer dos atos do registro, o que certamente abrange a matrícula. Em seguida, o artigo 250 traz três hipóteses em que se poderá efetuar o cancelamento, entre as quais a reportada ao requerimento unânime das partes e a relativa ao requerimento dos interessados. Embora haja nessa norma uma vocação de ampla proteção das situações construídas – para se evitar justamente a destruição, pela via administrativa, dos direitos constituídos –, ainda assim, o advérbio “só” parece excessivo.

Cancelamento de matrícula: decisão judicial administrativa?

Mas a qual decisão judicial está a referir-se o dispositivo, à decisão judicial simples ou somente à decisão jurisdicional? Entendo perfeitamente possível, por exemplo, que a Juíza Tania Mara Ahualli, na Primeira Vara de Registros Públicos, possa determinar o cancelamento da matrícula, independentemente do contraditório, desde que observada a absoluta falta de eventuais prejuízos a terceiros. Se houver, no entanto, algum interesse potencialmente infringido por esse cancelamento, necessariamente terá de resguardar-se o contraditório, mas isso ainda não discrimina a via judicial-administrativa.

GEORGE TAKEDA – O artigo 5º, inciso LIV, da Constituição diz que ninguém será privado de seus bens sem o devido processo legal. O que acontece muitas vezes é que o processo é entre A e B e a decisão jurisdicional manda cancelar a inscrição de C. Às vezes aparece para registro uma arrematação trabalhista quando já existia registrada uma primeira carta de arrematação comum. Qualificado negativamente o segundo título, o juiz manda cancelar a primeira e registrar a segunda por conta do privilégio do crédito trabalhista. Como fica o direito daquele que arrematou primeiro?

RICARDO DIP – São dois aspectos a considerar: um, o administrativo; outro, o jurisdicional. Sempre, em todo o caso, é preciso respeitar o contraditório. Ainda que o erro do registro seja patente.

Depois da Constituição de 1988, essa solução tem sido frequentemente visitada pelo Supremo Tribunal Federal, que tem anulado decisões, não apenas considerando a falta do contraditório em termos jurisdicionais, mas também a falta de observância do contraditório na via administrativa. Em São Paulo, uma entidade previdenciária cancelou todas as pensões supostamente ilegais por meio de um único processo. Os pensionistas foram avisados de que o benefício havia sido cancelado e que eventuais reclamações teriam de ser feitas por meio de reclamação administrativa. Ou seja, as posições foram invertidas, e o Tribunal tem entendido que o contraditório tem que acontecer antes e não depois da decisão administrativa.

Não sei até que ponto esse entendimento tem sido respeitado em todo o Brasil. Conforme eu já havia mencionado em outras reuniões, a única solução viável para resolver, o melhor possível, a polaridade de soluções no plano dos registros, é atribuir ao processo de dúvida caráter jurisdicional e determinar uma competência originária única para as decisões que envolvam questões de registro. Do contrário, teremos cada vez mais soluções múltiplas, algumas vezes sem resguardo do direito de terceiro e contra as quais, incidentais embora, não se pode resistir, à conta de sua origem jurisdicional.

O artigo 250, inciso I, diz que far-se-á o cancelamento em cumprimento de decisão judicial transitada em julgado. Essa decisão, como já dissemos, pode ser administrativa ou contenciosa.

Cancelamentos de registro por decisões interlocutórias

Um problema bastante recorrente são as decisões de cancelamentos adotadas em via interlocutória. Já houve ocasião de eu examinar decisão de cancelamento de tutela antecipada cujo caráter é nitidamente provisório. Esse problema deve ocorrer em todo o Brasil, mas no que diz respeito especificamente a São Paulo, não temos condições de certificar o trânsito em julgado.

É preciso encontrar uma solução para esse problema tendo-se em vista que a ausência do trânsito em julgado pode trazer riscos inclusive para o registrador, pois nada impede que haja um agravo em andamento, desconhecido pelo cartório, e o Tribunal concede uma liminar determinando o cancelamento da matrícula, com a consequente suspensão da eficácia dos atos praticados.

GEORGE TAKEDA – Já houve caso de reforma da decisão, mandando cancelar o cancelamento…

Matrícula – encerramento

74. A matrícula será encerrada:

a) quando, em virtude de alienações parciais, o imóvel for inteiramente transferido a outros proprietários;

b) pela fusão.

Diversamente do cancelamento, o encerramento da matrícula não implica desregistração.

SJ – O encerramento da matrícula impediria a prática de outros atos supervenientes?

RICARDO DIP – Seguramente, o único ato cuja prática não estaria impedida seria a averbação do cancelamento do encerramento. Imaginemos uma situação de desdobro de um imóvel em dois e ao invés de se proceder à averbação na matrícula mãe a averbação é feita em matrícula errada…

ADEMAR FIORANELLI – Nas instituições de condomínio é muito comum surgir uma retificação da instituição depois do encerramento da matrícula mãe e da abertura das matrículas das unidades. Nesse caso é preciso reabrir a matrícula encerrada para a prática do ato modificativo da instituição. No trabalho que escrevi sobre a matrícula, faço uma advertência nesse sentido. Sustento que as matrículas nunca devem ser encerradas, basta apenas fazer uma ficha auxiliar para informar a abertura das matrículas das unidades.

VOZ NÃO IDENTIFICADA – Com relação à instituição de condomínio edilício, o doutor Narciso Orlandi Neto, em seu livro Retificação de Registro de Imóveis,refere-se à averbação do esgotamento da disponibilidade e não do encerramento.

RICARDO DIP – O esgotamento é a causa do encerramento. Desde que se proceda à averbação de todos destaques de área, o encerramento formal é desnecessário.

SJ – O artigo 234 da Lei 6.015/73 dispõe que quando dois ou mais imóveis contíguos pertencentes ao mesmo proprietário, constarem de matrículas autônomas, pode ele requerer a fusão destas em uma só, de novo número, encerrando-se as primitivas. 

RICARDO DIP – O fato de encerrar-se a matrícula primitiva não significa que a averbação tem de ser expressa. Há um encerramento tácito.

SJ – Talvez tenha faltado uma regulação sistemática e tópica que indicasse as hipóteses em que se daria o cancelamento, o encerramento, o esgotamento e o cancelamento parcial das matrículas.

RICARDO DIP – Foi o que mencionamos há pouco sobre a exaustão do objeto disponível segundo a matrícula. O cancelamento, ainda que expresso, pode ser de ofício e a requerimento.

Unificação X fusão – distinções

SJ – Há uma hipótese que não está mencionada: a unificação.

GEORGE TAKEDA – Na verdade é feita uma distinção que não existe, quando se menciona a unificação para os casos de transcrição e fusão para os casos de matrícula.

RICARDO DIP – Sem êxito, tentei mudar a designação para agregação de imóveis, justamente à conta desse problema que surge da unificação de imóveis e da fusão de matrículas, um sistema misto da unificação de transcrição e matrícula.

GEORGE TAKEDA – Não faz sentido essa distinção.

Fusão de frações ideais

VOZ NÃO IDENTIFICADA – Talvez esteja no fato de haver frações ideais provenientes de várias transcrições de um mesmo imóvel. Não se pode falar em fusão quando essas frações ideais se juntam.

RICARDO DIP – É uma hipótese bem lembrada, muito embora não seja comum, porque na maioria dos casos a transcrição é uma só. O sistema é dúbio. Ao mesmo tempo em que utiliza a expressão unificação de imóveis, faz essa distinção desnecessária, para dizer que, quando houver abertura de matrícula, tratar-se-á de fusão, e quando for o caso de transcrição e matrícula, dar-se-á a unificação. Algumas questões terminológicas são oportunas; outras, nem tanto.

Em 1987, a primeira edição do trabalho Do controle da disponibilidade na segregação imobiliária  saiu com o título Do controle da disponibilidade no parcelamento do solo, não por incerteza minha: o próprio editor fez a alteração, porque entendeu melhor “parcelamento” do que “segregação”.

O item 74 é exemplificativo num certo sentido; é razoável supor que haja outras hipóteses. Outro exemplo de encerramento é quando há mudança de competência territorial do imóvel.

GEORGE TAKEDA – Mas existem pessoas que entendem melhor fazer todas as averbações na matrícula de origem. Enquanto não são feitas todas as averbações, não se faz a abertura de nova matrícula no atual cartório.

Item 75. Quando 2 (dois) ou mais imóveis contíguos, pertencentes ao mesmo proprietário, constarem de matrículas autônomas, pode ele requerer a fusão destas em uma só, de novo número, encerrando-se as primitivas.

Unitariedade da matrícula – princípio postulado

RICARDO DIP – A unitariedade da matrícula é um princípio que se adota ao modo de um postulado. É muito comum, principalmente no interior, a abertura de estradas que cortam o imóvel. Tratando-se de uma mesma fazenda, uma unidade de exploração econômica ou social, não há razão para obrigar-se o proprietário à abertura de duas matrículas. Não faz sentido a quebra de uma situação real em favor de uma situação instrumental. Como bem observado pelo doutor Sérgio Jacomino, embora aqui seja o caso de continuidade física, temos de pensar também na continuidade econômica ou social do imóvel, até mesmo numa unidade de caráter administrativo, imaginando-se que um dia possa surgir interesse por parte da Administração em manter o imóvel de maneira unitária. A unidade do imóvel não é apenas geográfica, ela pode ser vista de outro modo. A Lei de Registros Públicos propende a considerar a continuidade física, ou seja, a extensão não fracionada de um polígono.

Item 76. Podem, ainda, ser unificados com abertura de matrícula única:

a) dois ou mais imóveis constantes de transcrições anteriores à Lei dos Registros Públicos, à margem das quais será averbada a abertura de matrícula que os unificar;

b) dois ou mais imóveis registrados por ambos os sistemas, caso em que, nas transcrições, será feita a averbação prevista na alínea anterior, e as matrículas serão encerradas.

RICARDO DIP – Esse dispositivo faz referência à identificação real do imóvel, e não se adota ao modo de mera técnica para a descrição que vai constar da matrícula. A unificação se dará tanto no caso de dois ou mais imóveis constantes de transcrições quanto no caso de dois ou mais imóveis no sistema misto. Essa distinção já está na lei, desnecessária a meu ver.

SJ – as transcrições estão abrangendo as inscrições porque podem se originar de imóveis loteados… é claro que é preciosismo, mas pode se originar de inscrições.

RICARDO DIP – Por mais que seja preciosismo de textualização, não é preciosismo conceitual. Temos que explorar as disposições legais o mais possível. A única coisa que observo é que o legislador, no que se refere ao inciso II do art. 235 da LRP, propende para um encerramento expresso.

Unificação – restrições urbanísticas convencionais

GEORGE TAKEDA – Neste ponto, também cabe uma observação quanto à qualificação do título pelo registrador. Em São Paulo não se exige autorização municipal para a unificação de terreno, mas há legislações municipais que exigem a aprovação da planta de unificação, sem contar os casos de loteadores que impõem cláusulas proibindo expressamente a unificação de lotes.

SJ – Recentemente a Corregedoria Geral da Justiça voltou atrás e reformou o entendimento tradicional de que as restrições urbanísticas convencionais, quando mais gravosas que a legislação urbanística, devem prevalecer[3]. O que tem acontecido é que alguns municípios autorizam a unificação ou o desmembramento dos lotes em contrariedade com as disposições do contrato-padrão, do próprio projeto do parcelamento. Afinal, em termos de segurança jurídica, o que deve prevalecer? A autorização urbanística em contraste com as disposições contratuais que ostentam o caráter de obrigações propter rem?

RICARDO DIP – Corre no Tribunal de Justiça de São Paulo um caso que aconteceu em uma cidade do interior, qual o  de um escritório de advocacia que obteve uma licença para construir em uma avenida onde já existe um comércio bastante estendido, mas que fazia parte de um parcelamento a cujo propósito havia o estabelecimento de cláusulas proibindo o exercício de comércio. Houve uma primeira ação julgada extinta. Em seguida, houve a propositura de uma demanda popular, negando-se, na origem, acolhimento à tutela inaugural. Tirou-se agravo, e o Tribunal, em decisão liminar monocrática, ordenou o embargo da construção.

O caso é interessante, até porque o critério principal utilizado foi o interesse público prevalecente sobre o particular. Essa regra, na prática, sofre um duplo ataque. O primeiro é o de que tudo se tornou de interesse público. A Administração cresceu de tal modo que o excesso de atividade administrativa fez com que diminuísse sua própria autoridade. Antes se entendia que a prevalência estava moderadamente justificada, mas no momento em que tudo passa a ser de interesse público, perde-se muito esse amparo fundacional.

O segundo ataque está no fato de que a Administração estava de acordo com a construção, mas, antes, se postava em favor das restrições. Sendo assim, de um lado, os proprietários dos lotes alegam ter direito adquirido à manutenção da situação registral. De outro, alega-se a superveniência de novo interesse público…

SJ – Existem certos interesses comunitários que precisam ser tutelados em face do que se pretende ser o interesse do Estado. Quando se implanta um parcelamento, baseado em regras claras e pré-estabelecidas, aprovados todos os requisitos urbanísticos, essa regra não pode ser desprezada, sob pena de se ferir um interesse coletivo, a não ser que haja uma legislação urbanística superveniente que disponha de maneira diversa e de modo específico. Voltando ao item 75, gostaria de chamar atenção para a palavra proprietário, do trechoquando 2 (dois) ou mais imóveis contíguos, pertencentes ao mesmo proprietário…. Tratando-se de imissão provisória na posse, que atualmente tem acontecido em qualquer modalidade e não apenas para fins de regularização fundiária, não se pode falar em proprietário[4]…

ADEMAR FIORANELLI – Essa questão foi enfrentada numa decisão administrativa para permitir a fusão (ou unificação) de imóveis em que há imissão de posse. Se não se a admitisse, também não o seriam os atos posteriores, como as instituições de condomínios para construção de casas populares etc.[5]

Fusão de matrículas – requisitos

Item 77 – No caso de fusão de matrículas, deverá ser adotada rigorosa cautela na verificação da área, medidas, características e confrontações do imóvel que dela poderá resultar, a fim de se evitarem, a tal pretexto, retificações sem o devido procedimento legal, ou efeitos só alcançáveis mediante processo de usucapião.

RICARDO DIP – São recomendações básicas. Todos os atos de registro devem ser feitos com cautela, agindo o registrador como deve.

SJ – Esse dispositivo é uma reminiscência de um trabalho pedagógico da Corregedoria na década de 1970. São recomendações redundantes que já perderam completamente o sentido.

RICARDO DIP – Sua observação é muito interessante. Cada vez que se faz uma norma, criam-se novos problemas compreensivos e interpretativos. O Capítulo XX traz 407 itens somente para o registro de imóveis. É preciso chegar a uma concisão, se quisermos a aprovação de uma normativa nacional mínima para os serviços extrajudiciais.

77.1. Além disso, para esse propósito, será recomendável que o requerimento seja instruído com prova de autorização da Prefeitura Municipal, que poderá ser a aprovação de planta da edificação a ser erguida no imóvel resultante da fusão.

RICARDO DIP – Vejam que o próprio item 77.1 usa a expressão recomendável. Em São Paulo não se exige isso.

GEORGE TAKEDA – Mas há muitos municípios do interior que o registrador não faz sem o alvará, em obediência a legislações urbanísticas municipais.

RICARDO DIP – Creio que a redação não está adequada, uma vez que não se pode dizer que é recomendável algo que é dispensado na lei municipal. E se a lei exige, então não é recomendável, é exigível…

GEORGE TAKEDA – Talvez fosse necessário incluir uma observação excepcionando em caso de legislação urbanística local…

SJ – Essas normas são expressão de uma época anterior à Constituição de 1988. Em alguns casos específicos, com competência dos municípios para legislar sobre regras urbanísticas, muitas prefeituras acabaram criando requisitos ou exigências complementares para a aprovação de desdobro, de unificação, de remembramento, etc. Essas mutações urbanísticas podem depender de prévia aprovação urbanística. A própria expressão licença urbanística não é encontrada nas normas de serviço. Uma questão muito interessante seria: A legislação urbanística municipal pode criar exigências de caráter formal de observância obrigatória pelos cartórios?

Unificação – legitimidade para requerê-la

77.2. Para a unificação de diversas transcrições e matrículas, não deve ser aceito requerimento formulado por apenas 1 (um) dos vários titulares de partes ideais;

RICARDO DIP – Esse dispositivo é prudente. O problema é que está em confronto com o Código civil, art.1.324, que dispõe de forma diversa, ao dizer que o condômino que administrar sem oposição dos outros se presume representante comum.

ADEMAR FIORANELLI – Assim acontece com o desdobro, que não pode ser requerido por apenas um proprietário, havendo necessidade da concordância de todos os titulares.

RICARDO DIP – Eu já enfrentei um caso semelhante a esse. Em um dado processo ambiental, um dos condôminos faz um ajustamento de conduta com o Ministério público, sem o conhecimento dos demais condôminos, e resolve não cumprir o acordo. O Ministério público pleiteou, então, a demolição, e os condôminos opuseram embargos de terceiro, alegando que não foram citados e não firmaram nenhum acordo. Por força de regra normal de processo, os embargos foram acolhidos na origem. Mantivemos a sentença. O Ministério público opôs embargos de declaração, observando o disposto no aludido art. 1.324 do Código civil. Entendemos no Tribunal que o acordo não poderia estender-se aos demais condôminos, alheios ao ajuste, porque não se tratava de caso de mera administração.

GEORGE TAKEDA – Há um caso que pode ser ponderado. Imagine dois imóveis contíguos, dos mesmos proprietários, mas que foi construída uma casa só. Ou seja, o imóvel já está unificado, só terá que ajustar o registro a uma situação já existente de fato.

RICARDO DIP – É exatamente a solução que se adota na Espanha. E, com efeito, se a realidade for dissonante da situação registral, o registro é que terá de adaptar-se à realidade. Ou, então, negaríamos a instrumentalidade e a secundariedade do registro, que está a serviço da realidade das coisas.

TANIA AHUALLI – Quando estava na Vara, o doutor Venício já falava isso. Há inclusive um provimento dele dizendo que a realidade é que deve prevalecer[6].

RICARDO DIP – Vamos analisar como se daria no registro aquela situação que mencionei no início desta nossa reunião, referente à pessoa jurídica que resolve locar seus dois lotes ao outro proprietário, que, por sua vez, constrói um único prédio sobre os seis lotes, com autorização municipal. E há uma cláusula curiosa no contrato de locação que determina que a construção pertencerá ao locador ao final do contrato. É possível averbar essa construção?

GEORGE TAKEDA – Se a prefeitura aprovou uma só construção em seis lotes de proprietários distintos, a matéria é de competência da prefeitura, não do registro. Eu averbo…

SJ – A construção sobre vários lotes distintos e com matrícula própria… são temas que certamente voltarão aos nossos debates. Um exemplo curioso é a ponte que liga o o prédio da Faculdade de Direito do Largo São Francisco ao que foi adquirido ao lado. Aquela ponte sobre o logradouro público, pertence a quem?

GEORGE TAKEDA – Também o túnel da Santa Casa, a Galeria Lafaiete …

RICARDO DIP – O hospital do Coração… essas situações existem em vários lugares. É preciso saber como se procede no exterior em termos de abertura de matrícula. Quem passa pelo Estádio Vicente Calderón, na Espanha, encontra exatamente essa situação, as pessoas passam por baixo das arquibancadas. Deve abrir-se matrícula para o imóvel público?

VOZ NÃO IDENTIFICADA – Entra como área construída…

RICARDO DIP – A frase que se pode usar para finalizar é vivendo e aprendendo. Muito obrigado a todos.

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NOTAS

[1] NE: Acerca do tema de cancelamento de cancelamento e repristinação de registro, indico: Processo CG 46/1987, São Paulo, j. 30/04/1987, juiz Ricardo Henry Marques Dip; Processo 889/1988, São Paulo, j. 03/02/1989, Dr. Ricardo Henry Marques Dip; Processo CG 66/89, São Paulo, parecer de 17/05/1989, Dr. Geraldo Francisco Pinheiro Franco; Processo CG 195/1991, São Paulo, parecer de 01/10/1991, juiz Ricardo Mair Anafe; Processo CG 196/2002, Avaré, parecer de 05/02/2002, Dr. Cláudio Luiz Bueno de Godoy; Ap. Civ. 882-6/6, Cotia, j. 14/04/2009, DJ 23/06/2009, rel. des. Ruy Camilo. Processo CG 273/1991, j. 3.12.1991, decisão do Des. Onei Raphael. Vide, finalmente, o voto do des. Arthur Marques da Silva Filho nos ED 9000004-02.2013.8.26.0462/50000, Poá, j. 07/10/2014, rel. des. Elliot Akel.

[2] NE: Afrânio de Carvalho registrou: “Assim como a constituição de direitos reais por atos entre vivos se dá pela inscrição, a extinção desses direitos se opera pelo cancelamento, que é a inscrição negativa. A não ser por esse modo direto, a extinção dos direitos reais imobiliários dá-se também por modo indireto, isto é, por transferência desses direitos a outra pessoa, quando então aparece como a face negativa da aquisição desta. Nesse modo indireto a inscrição subsequente é naturalmente extintiva da antecedente, desempenhando assim o papel do cancelamento. O cancelamento não é a destruição ou truncamento material da inscrição. Não há desfazimento material, mas apenas jurídico, da inscrição, pois apenas se opõe ao assento positivo dela o assento negativo do cancelamento. Assim como a inscrição declara que o direto inscrito existe, o cancelamento declara que deixou de existir. A declaração positiva da inscrição, constante de um assento, é anulada pela declaração negativa do cancelamento, constante de outro”. Pode-se consultar a passagem aqui: CARVALHO. Afrânio. Registro de Imóveis. 3ª ed. 1982, Rio de Janeiro: Forense, p. 184 et seq.

[3] NE: Baseado em antigo precedente da 1ª Vara de Registros Públicos de SP, em que se enfrentava a questão relativa à fiscalização das restrições urbanísticas convencionais pelo Oficial de Registro de Imóveis (Processo 1VRP 7/82), a CGJSP imprimiria uma nova orientação: a aprovação municipal de desdobro ou de unificação presume-se em conformidade com a lei. Não é possível o controle, na esfera administrativa, do ato administrativo de aprovação urbanística municipal. Cfr. Processo CG 65264/2012, Marília, dec. de 01/10/2012, DJe 25/10/2012, des. José Renato Nalini. A orientação foi reiterada no Processo CG 189.863/2013, Urupês, dec. 15/04/2014, DJe 25/04/2014, des. Elliot Akel.

[4] NE: O Decreto-Lei 3.365, de 21 de junho de 1941, teve o seu art. 15, § 4º, alterado: “Art. 15. Se o expropriante alegar urgência e depositar quantia arbitrada de conformidade com o art. 685 do Código de Processo Civil, o juiz mandará imiti-lo provisoriamente na posse dos bens”. O § 4º prevê: “A imissão provisória na posse será registrada no registro de imóveis competente”. O quadro se completa com a previsão de registro da imissão provisória no art. 167, I, 36: [Registro] “da imissão provisória na posse, quando concedida à União, aos Estados, ao Distrito Federal, aos Municípios ou às suas entidades delegadas, e respectiva cessão e promessa de cessão”.

[5] NE: No Processo CG 9.882/2010, São Paulo, dec. de 15/12/2010, DJ de 29/12/2010, des. Munhoz Soares, a CGJSP admitiu: “(1), ajuizada a ação de desapropriação, seja a imissão na posse registrada junto à matrícula do imóvel, não cabendo ao registrador imobiliário exigir (2) qualquer “declaração de irrevogabilidade do propósito expropriatório”. Além disso, decidiu-se ser possível a fusão de matrículas nesse caso. Cfr. tb. Processo 1VRPSP000.03.044447-0, São Paulo (18º SRI). j. 11/11/2003, Dr. Venício Antonio de Paula Salles. Em sentido contrário: Processo CG 3.444/2010, Santos, dec. 22/04/2010, DJ de 13/05/2010, des. Antonio Carlos Munhoz Soares.

[6] NE: Cfr., p. ex. a Ordem de serviço n. 1/2003 da Primeira Vara de Registros Públicos de São Paulo, que estabeleceu “regras práticas para a regularização fundiária de ocupações consolidadas”. Do texto se extrai: “Em áreas de parcelamento não regularizado, poderá a Municipalidade promover a regularização registral da GLEBA integral, para ajustar os dados tabulares à realidade física existente no local, através de procedimento administrativo junto a esta 1ª V.R.P. Para este efeito, poderá apresentar levantamento aerofotogramétrico ou topográfico que atenda aos padrões registrais”. [v. OS 2/2002].

Fonte: iRegistradores | 04/11/2014.

Publicação: Portal do RI (Registro de Imóveis) | O Portal das informações notariais, registrais e imobiliárias!

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Artigo: Da Impossibilidade de Aplicação do Código de Defesa do Consumidor aos Serviços Notariais e de Registros – Por Moacyr Petrocelli de Ávila Ribeiro

* Moacyr Petrocelli de Ávila Ribeiro

O direito do consumidor surgiu no contexto jurídico contemporâneo como reflexo das profundas mudanças sociais e econômicas vividas e pautadas na intensificação dos mercados de produção, distribuição e consumo. Com o desenrolar das novas relações jurídicas verificou-se que o direito material tradicional, arquitetado sob pilastras romanistas, tais como a autonomia da vontade, o pacta sunt servanda e a própria responsabilidade subjetiva, ficou ultrapassado, revelando-se ineficaz para dar proteção efetiva ao consumidor. Nesse caminhar, a finalidade do direito do consumidor consagrou-se como sendo a proteção jurídica desse novo agente econômico, vulnerável, mediante a eliminação da injusta desigualdade existente entre ele e o fornecedor, desaguando no restabelecimento do equilíbrio da denominada “relação jurídica de consumo”. 

Com esse espírito, o Código de Defesa do Consumidor (CDC), veiculado pela Lei nº 8.078/1990, elevou-se no ordenamento brasileiro como um dos mais avançados e evoluídos diplomas legais. Sua magnitude jurídica é tal que a doutrina mais abalizada eleva o direito do consumidor a disciplina jurídica autônoma, falando inclusive, no pós 1988, em um novo direito privado, tripartite, composto pelo direito civil, pelo direito comercial (hoje direito empresarial) e pelo novo direito do consumidor. 1Aliás, o Código de Defesa do Consumidor brasileiro buscou inspiração em vários modelos legislativos estrangeiros, merecendo destaque, segundo os autores do “anteprojeto”, o direito francês, em especial o Projet de Cod de La Consommation, redigido sob a presidência do professor Jean Calais-Auloy. 2  Em enxuta análise, pode-se dizer que o direito do consumidor atualmente no Brasil é um verdadeiro microssistema jurídico, por possuir princípios e regras que lhe são próprios, reunidos num mesmo diploma legal, todos eles coordenados entre si e orientados para finalidade constitucional de proteção do mais fraco na relação de consumo.

Superado este destaque inicial, faz-se necessário ponderar que o Código de Defesa do Consumidor não pode ser aplicado indistintamente a toda e qualquer relação jurídica. Sua incidência deve ocorrer apenas e tão somente à chamada “relação jurídica de consumo”, assim considerada aquela formada entre consumidor e fornecedor, tendo como objeto a aquisição ou utilização de produtos e serviços pelo primeiro.

Imperioso destacar, de plano, que a relação jurídica que admite a aplicação do CDC – frise-se – é a estrita relação de consumo, eis que se trata de uma situação excepcional do universo jurídico, sob pena de banalização e desconfiguração desse microssistema protetivo. Nessa linha de raciocínio, a aplaudida jurista gaúcha Cláudia Lima Marques alerta que “(…) efetivamente, se a todos considerarmos ‘consumidores’, a nenhum trataremos diferentemente, e o direito especial de proteção imposto pelo Código de Defesa do Consumidor passaria a ser um direito comum, que já não mais serve para reequilibrar o desequilíbrio e proteger o não-igual”. 3

Às avessas dessa imprescindível interpretação restritiva, que deve lastrear a análise sobre eventual enquadramento de uma relação jurídica aos efeitos da norma consumerista, não raro, em ações movidas contra os tabeliães e registradores, os demandantes têm postulado em seu benefício – desarrazoadamente, diga-se – a aplicação da Lei Protetiva dos Consumidores.

Nunca é demais lembrar que os serviços notariais e de registros públicos estão constitucionalmente consagrados como serviços públicos delegados, ou seja, são exercidos em caráter privado, mediante delegação do Poder Público (CF/88, art. 236, caput). Nesse novo cenário constitucional, diante da histórica dificuldade do Estado prestar esses serviços com a qualidade necessária, a atual Constituição da República houve por bem delegar a atividade notarial e registral a particulares.

Nesse ambiente, é patente que a prestação dos serviços registrais e notariais é revestida de intenso caráter público. O notário e o registrador são profissionais do direito, dotados de fé pública, a quem é delegado pelo Poder Público o exercício da atividade notarial e de registro (Lei nº 8.935/1994, art. 3º). Em realidade, de per si, este regime de delegação atesta a natureza pública dos serviços extrajudiciais, afinal, o Estado somente pode delegar a atividade da qual é titular.

Absorvida esta premissa, cumpre rememorar, ainda que en passant, que os serviços públicos podem sim ser objetos de uma relação de consumo. Obtempere-se, inclusive, que a própria dogmática jurídica consumerista está a indicar isso, já que o CDC em diversas passagens aponta expressamente nesse sentido (v.g., no art. 3º, caput, ao dispor que a pessoa jurídica de direito público pode ser fornecedora; no art. 6º, X, o CDC fixa como direito básico do consumidor a adequada e eficaz prestação dos serviços públicos em geral; no art. 22 o CDC fixa uma série de deveres aos fornecedores de serviços públicos, etc.).

Se por um lado não se discute que os serviços públicos podem ser objeto de uma relação de consumo, também não há qualquer dúvida que não são todos eles que estão sujeitos à aplicação do Código de Defesa do Consumidor. Vale dizer, para que um serviço público possa se sujeitar à aplicação da Lei Consumerista é necessário observar alguns filtros essenciais.

Primeiramente, encontra-se assentado na doutrina e jurisprudência nacionais que somente os serviços públicos divisíveis e mensuráveis (uti singuli), oferecidos no mercado de consumo mediante remuneração, podem ser objetos de uma relação jurídica de consumo. Em palavras outras, só se sujeitam ao CDC os serviços públicos oferecidos no mercado a usuários determinados ou determináveis, com possibilidade de aferição do quantum utilizado por cada consumidor. Desse modo, de pronto, pode-se concluir que não se cogita de aplicar o CDC aos serviços públicos prestados pelo Estado a grupamentos indeterminados (uti universi), custeados pelo esforço geral, por meio de tributação, sem possibilidade de mensuração individualizada. Tais serviços, diferentemente dos serviços uti singuli, não permitem o estabelecimento da necessária correlação entre o pagamento e o serviço prestado (por exemplo, serviço de iluminação pública).       

Em um segundo momento, é indispensável analisar – para aplicação do CDC aos serviços públicos – a natureza jurídica da remuneração que é percebida em razão do serviço prestado. Prevalece o entendimento de que somente se admite a aplicação do Código de Defesa do Consumidor para os serviços públicos remunerados mediante tarifa ou preço público. 4 Dessa forma, os serviços públicos remunerados por meio de taxa não são abarcados pela tutela consumerista. Na verdade, esta exclusão da relação jurídica de consumo dá-se porque, neste último caso, os usuários não têm qualquer liberdade de escolha – um dos pressupostos para o reconhecimento da condição de consumidor –, travando-se entre eles e o Poder Público uma relação jurídica de natureza administrativo-tributária.

Nesse ponto, colhe-se valorosa explicação dos autores do “anteprotejo” do Código de Defesa do Consumidor Consumidor.  Com a palavra, os “pais da matéria”: “E, efetivamente, fala o §2º do art. 3º do Código Brasileiro de Defesa do Consumidor em ‘serviço’ como sendo ‘qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, (..) Importante salientar-se, desde logo, que aí não se inserem os ‘tributos’, em geral, ou ‘taxas’ e ‘contribuições de melhoria’, especialmente, que se inserem no âmbito das relações de natureza tributária. Não se há de confundir, por outro lado, referidos tributos com as ‘tarifas’, estas, sim, inseridas no contexto dos ‘serviços’ ou, mais particularmente, ‘preço público’, pelos ‘serviços’ prestados diretamente pelo Poder Público, ou então mediante sua concessão ou permissão pela iniciativa privada. O que se pretende dizer é que o ‘contribuinte’ não se confunde com ‘consumidor’, já que no primeiro caso o que subsiste é uma relação de Direito Tributário, (..)  Quando aqui se tratou do conceito de fornecedor, ficou consignado que também o Poder Público, enquanto produtor de bens ou prestador de serviços, remunerados não mediante a atividade tributária em geral (impostos, taxas e contribuições de melhoria), mas por tarifas ou ‘preço público’, se sujeitará às normas ora estatuídas, em todos os sentidos e aspectos versados pelos dispositivos do novo Código do Consumidor, sendo, aliás, categórico o seu art. 22.”  5

Inspirando-se nessas ideias, sem maiores dificuldades, ao focar a análise especificamente para os serviços notariais e de registros, conclui-se pela absoluta impossibilidade de aplicação do Código de Defesa do Consumidor.

De proêmio, é importante analisar a natureza jurídica da remuneração percebida pelos notários e registradores. Compreender esta questão é conditio sine qua non para entendimento da natureza da relação jurídica existente entre os usuários dos serviços notariais e de registro e os titulares das delegações.

O Supremo Tribunal Federal – já não é de hoje –, em sua pacífica e consolidada jurisprudência, definiu que os emolumentos recebidos pela prestação da atividade notarial e registral têm natureza tributária, qualificando-se como “taxas remuneratórias de serviços públicos”. Dada a clareza do raciocínio, vale transcrever passagem do voto do ministro José Celso de Mello Filho: “A jurisprudência do Supremo tribunal Federal firmou orientação no sentido de que as custas judiciais e os emolumentos concernentes aos serviços notariais e registrais possuem natureza tributária, qualificando-se como taxas remuneratórias de serviços públicos, sujeitando-se (…) ao regime jurídico constitucional pertinente a essa especial modalidade de tributo vinculado, notadamente aos princípios fundamentais que proclamam, dentre outras, as garantias essenciais da reserva de competência impositiva, da legalidade, da isonomia e da anterioridade. A atividade notarial e registral, ainda que executada no âmbito de serventias extrajudiciais não oficializadas, constitui,  em decorrência de sua própria natureza, função revestida de estatalidade, sujeitando-se, por isso mesmo, a um regime estrito de direito público. A possibilidade constitucional de a execução dos serviços notariais e de registro ser efetivada ‘em caráter privado’, por delegação do poder público” (CF, art. 236), não descaracteriza a natureza essencialmente estatal dessas atividades de índole administrativa” (STF – ADI 1.378-MC/ES, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 30.05.1997).

Em razão desse regime jurídico especial da atividade, avalizado pela Suprema Corte, não se pode negar que aquele que utiliza dos serviços notariais e registrais não é consumidor – nos termos do art. 2º do CDC –, mas sim contribuinte, que remunera o serviço mediante pagamento de um tributo. A relação jurídica existente entre o notário e o registrador e o utente de seus serviços é naturalmente peculiar,sui generis, e, ineludivelmente, encontra-se fora do âmbito de aplicação do CDC.

Diga-se de passagem, os notários e registradores sequer têm liberdade para fixar os emolumentos, cujos valores são estabelecidos em lei estadual, que, por sua vez, deve obedecer as normas gerais da Lei Federal nº 10.169/2000 e do Código Tributário Nacional, dada sua natureza tributária.

Na oportunidade em que o Superior Tribunal de Justiça manifestou-se sobre o tema em testilha – concluindo pela inaplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor aos serviços notariais e de registros – o ministro Humberto Gomes de Barros, em voto primoroso, sedimentou que “do ponto de vista tributário, os tabeliães e registradores não estipulam sua remuneração tendo em vista a concorrência de seus colegas, mas o preço pago é um tributo, na espécie de taxa, pré-fixado pelo Poder Legislativo e fiscalizado pelo Poder Judiciário” (STJ – REsp 625.144/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, 3ª T., julgado em 14/03/2006).

Em outra lente, para espancar qualquer tipo de dúvida, deve-se sublinhar que os serviços notariais e de registros públicos, muito embora prestados em caráter privado, são serviços públicos próprios de Estado, ou seja, sua essência tipicamente estatal – com regime jurídico próprio, regulado em lei especial – coloca a atividade notarial e registral em status diferenciado, de modo que a relação jurídica existente entre o notário e/ou registrador, a atividade por eles exercida e o utente desses serviços não pode ser enquadrada como relação jurídica de consumo.

Em didático paralelo, pode-se dizer que assim como não se pode enquadrar a prestação da atividade jurisdicional – ou seja, a relação envolvendo o Estado-juiz, a atividade própria do Poder Judiciário e o jurisdicionado – como sendo uma relação jurídica de consumo, por sua própria natureza, a atividade extrajudicial, prestada por notários e registradores, por sua essência estatal, trafega juridicamente fora do campo de incidência da Lei Consumerista.

De mais a mais, saliente-se que os serviços notariais e de registros não são, a toda evidência, fornecidos no espaço ideal denominado “mercado de consumo”. Sob este ângulo, portanto, as serventias extrajudiciais não podem ser enquadradas no elemento subjetivo da relação jurídica de consumo (art. 3º CDC).

Mencione-se, por oportuno, que o § 2° do art. 3º do CDC define o “serviço” objeto da relação de consumo como sendo “qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista”.

Com efeito, a noção de “mercado de consumo” pressupõe a existência de vários prestadores, que colocam à disposição dos consumidores bens ou serviços, de modo que esses últimos são os que elegem o serviço ou bem que melhor lhes aprouver, pelos mais variados critérios, tais como qualidade, preço, etc.. Ora, a partir desse pensamento, é de clareza solar que, do ponto de vista econômico, os notários e registradores não formam um mercado de consumo de serviços registrais e notariais. É evidente, pois, que na atividade notarial e registral não prevalecem os princípios da oferta e da procura, até porque todas as atribuições e competências dos notários e registradores são fixadas em leis específicas. Em palavras mais singelas, os serviços notariais e de registros não podem ser fornecidos de outro modo além daquele descrito nas leis vetoras da atividade (Lei nº 8.935/1994, Lei nº 6.015/1973, etc.).

Devido a este regime peculiar e a própria natureza jurídica da atividade, os usuários dos serviços notariais e de registros não têm alternativa de realização do direito fundamental à segurança nos atos e negócios jurídicos. Trata-se, assim, de uma atividade exercida estritamente sob os ditames legais e que não oferece qualquer opção ao utente desses serviços em realizá-los de modo diverso, ex voluntate.

Para melhor compreensão desse ponto, vale rápida visita a alguns dos serviços notariais e de registros públicos.

Observe-se, por exemplo, que o cidadão que pretende adquirir um bem imóvel deve registrar a compra no cartório imobiliário. E mais, o registro não poderá ser realizado em qualquer serventia registral imobiliária, mas apenas no ofício competente, nos termos da lei, para atuar naquela determinada circunscrição em que se encontra situado o imóvel objeto do negócio jurídico. Veja que este cidadão não tem a faculdade de se valer desse serviço público, mas o faz por força legal (ope legis), já que a transferência da propriedade imobiliária no direito brasileiro dá-se apenas e tão somente por meio do registro predial (art. 1.245 do Código Civil).

Nessa mesma sinergia, os registros de nascimento ou de óbito só podem ser feitos no cartório de registro civil das pessoas naturais. Desse modo, conforme previsto por lei, caso uma pessoa faleça em determinada cidade, em razão do princípio da territorialidade, a competência para lavratura do respectivo assento de óbito será naquela municipalidade onde ocorreu o evento morte, não cabendo aos familiares do falecido cogitar de levar o fato a registro em qualquer outra serventia.

No mesmo quadro, o apontamento da inadimplência de um título de crédito ou documento de dívida só pode ser levado a efeito no cartório de protestos. Em comarcas em que existe apenas um tabelionato de protesto, o usuário não tem escolha, deve apontar o título não pago na serventia extrajudicial ali existente. Nas comarcas em que há mais de um tabelionato desta natureza, a Lei nº 9.492/1997 (art. 7º) determina que seja criada, pelos próprios tabeliães, uma central de títulos, que fará a distribuição harmônica dos títulos entre os tabelionatos existentes, obedecendo aos critérios de quantidade e qualidade.

De sua vez, pretendendo a lavratura de escrituras públicas o usuário apenas poderá socorrer-se dos tabelionatos de notas. Ainda que para os serviços notariais a lei atribua às partes liberdade de escolha, qualquer que seja o seu domicílio ou o lugar de situação dos bens objeto do ato ou negócio (Lei nº 8.935/1994, art. 8º), deve-se ressaltar que os tabeliães de notas exercem a função pública nos limites do município para o qual receberam a delegação do Poder Público (Lei nº 8.935/1994, art. 9º). Por isso, na atividade notarial não há que se falar em concorrência mercadológica entre as serventias, não havendo sequer esboço de atividade empresarial, ainda que do ponto de vista econômico.

Para as cidades com mais de um tabelionato de notas, ainda que se cogite de eventual disputa por usuários dos serviços, a questão concentra-se em simples competição de delegatários, que exercem uma função pública de forma particular. Assim, essa situação jamais pode ser equiparada a uma concorrência de empresas insertas no mercado de consumo, até porque os notários devem seguir o que determina a Lei vetora de sua atividade. A rigor, não é correto nem mesmo classificar os usuários de determinado serviço extrajudicial como “clientela”, já que a relação existente entre aqueles e o titular da unidade de serviço notarial ou registral é formada pelo caráter de autoridade, além de ser revestida de estatalidade, decorrente do poder certificante do Estado (fé pública). Eis a exegese da norma constitucional, consagradora da essência jurídica da atividade notarial e registral. 5   

Feita esta breve incursão em algumas das especialidades das serventias extrajudiciais, para amputar qualquer discussão acerca da não inserção dos serviços notariais e de registros no mercado de consumo, recorde-se que, nos termos do permissivo constitucional (art. 236, § 1º, da CF/88), há intensa atividade de orientação, disciplina e fiscalização exercidas pelo Poder Judiciário, a bem do interesse público, que não permite se transforme a atividade notarial em mercado, desvinculada dos mandamentos da ética e da segurança jurídica.

Cite-se, a propósito, ilustrativo precedente da 2ª Vara de Registros Públicos de São Paulo/SP que, em razão do regime jurídico ao qual estão submetidos os serviços notariais e de registros, seus titulares atuam apenas nos termos da lei, estando limitados, inclusive, no que se refere à eventual divulgação comercial dos seus serviços, in verbis: “(…) há necessidade de absoluto respeito à ordem ética e a exigência de se evitar o aliciamento de clientes, o que inadmissível, de modo que a divulgação dos serviços deverá ficar submetida a critérios de equilíbrio e sensatez, autorizadas veiculações publicitárias não ostensivas, (…) vedada propaganda mediante anúncios em placas sensacionalistas ou veiculações os tensivas em jornais e outros meios de comunicação” (2ªVRP/SP Capital – Processo PP 99/2001, Juiz Márcio Martins Bonilha Filho, julgado em 22.02.2002).

Há mais.

É cediço que os serviços registrais e notariais – todos eles – garantem a publicidade, autenticidade, segurança e eficácia aos atos e negócios jurídicos (art. 1º da Lei nº 8.935/1994). Nesse viés, exsurge com vigor um anseio social legítimo que reclama a necessidade da existência e bom funcionamento de tais serviços. Em realidade, as serventias notariais e registrais realizam importante função social. São instrumentos de satisfação do direito fundamental à segurança jurídica (CF/88, art. 5º, caput).

Nessa linha de pensamento, o festejado professor Walter Ceneviva, ao comentar a Lei de Registros Públicos, consignou: “Apesar do amplo espectro abarcado pela lei do consumo, meu entendimento é o de que não se aplica aos registradores. Sendo embora delegados do Poder Público e prestadores de serviço, sua relação não os vincula ao ‘mercado de consumo’ ao qual se destinam os serviços definidos pelo Código do Consumidor (art. 3º, §2º). Mercado de consumo é o complexo de negócios realizados no País com vistas ao fornecimento de produtos e serviços adquiridos voluntariamente por quem os considere úteis ou necessários. O serviço registrário, sendo em maior parte compulsório e sempre de predominante interesse geral, de toda sociedade, não se confunde com as condições próprias do contrato de consumo e a natureza do mercado que lhe corresponde”. 5

É exatamente nesta moldura que se concentra a diferença substancial entre um serviço de natureza essencialmente estatal e a atividade econômica. Enquanto os serviços públicos obrigatórios visam à satisfação imediata e direta de direitos fundamentais, a atividade econômica visa o lucro. Nesse sentido, é esclarecedora a lição de Marçal Justen Filho: “Sempre que uma necessidade humana for uma manifestação direta e imediata os direitos fundamentais (em especial, a dignidade humana), sua satisfação será imposta ao Estado como serviço público. Não é possível deixar que a satisfação da necessidade seja subordinada à livre iniciativa e às leis de mercado.(…) Em contrapartida, cogita-se de atividade econômica propriamente dita quando a necessidade a ser satisfeita  não envolver de modo imediato e direto os direitos fundamentais, tal como ocorre com as atividades empresariais conhecidas (comercialização de comestíveis, prestação de serviços não essenciais, etc.)”. 6

Coloca-se em evidência, assim, a curial diferença entre os serviços notariais e de registros – que diretamente satisfazem a necessidade dos usuários, realizando direitos fundamentais – e uma atividade empresarial qualquer, que apenas indiretamente realizam interesses dos cidadãos, pautando-se primordialmente no lucro.

Ainda nesta ótica, não é novidade que a defesa do consumidor é princípio constitucional da ordem econômica (CF/88, art. 170, V) e que se funda na liberdade de iniciativa e de concorrência (CF/88, art. 170, caput e IV). Assim, o extenso catálogo de direitos e todo o regime jurídico posto à disposição do consumidor são um verdadeiro contraponto à livre iniciativa e à livre concorrência assegurada aos exploradores da atividade econômica. Por isso, a ratio essendi do direito do consumidor é trazer balizas de contenção para a proteção do vulnerável contra abusos, reequilibrando a relação jurídica.

Ademais, o direito do consumidor foi teleologicamente construído para a defesa daquele que se encontra subordinado ao explorador de atividades econômicas, organizadas empresarialmente para a produção e apropriação do lucro, e não ao prestador de um serviço estatal, obrigatório e essencial à satisfação de direitos fundamentais da pessoa humana.

Em palavras diversas, aplicar o Código de Defesa do Consumidor aos serviços notariais e de registros é desvirtuar o microssistema jurídico de tutela consumerista e desconsiderar que tais serviços são prestados para a satisfação de interesse coletivo (uti universi). Nesse aspecto, enfatize-se que os efeitos jurídicos decorrentes do serviço prestado pelos notários e registradores não se encerram na pessoa do usuário que os procurou, mas, na verdade, são pulverizados para toda coletividade, como consectário da fé pública indissociável ao serviço prestado e à publicidade intrínseca do ato realizado. Grife-se, inclusive, que o serviço prestado pelo titular da delegação de notas ou de registros não gera nenhum vínculo contratual entre ele e o usuário do serviço, fato que torna ainda mais evidente a inaplicabilidade das normas de consumo.   

Em passo seguinte, rememore-se ainda que os serviços notariais e de registros (cartórios) não possuem personalidade jurídica própria. São meras divisões administrativas nas quais os notários e registradores exercem o seu mister, em razão da delegação estatal. Assim, é evidente que não há atos praticados pelos serviços notariais e de registro. As serventias extrajudiciais não praticam atos. Quem os pratica são as pessoas físicas, os notários e registradores e seus prepostos. Diante disso, todo sistema de responsabilização civil, criminal, administrativa e tributária é concentrado nos titulares das delegações, tudo conforme regramento específico da Lei nº 8.935/1994. Em resumo, a responsabilidade do titular do serviço notarial e de registro é regulada em legislação especial, dotada de regras específicas, que – pelo princípio hermenêutico da especialidade – tende a afastar a aplicação de normas gerais, como, in casu, a legislação consumerista.   

Por derradeiro, importa esclarecer que a temática ora investigada já foi criteriosamente apreciada pelo Superior Tribunal de Justiça, tendo concluído aquela Corte pela impossibilidade de aplicação do CDC aos serviços notariais e de registros. Trata-se do julgamento do Recurso Especial n. 625.144/SP, da Terceira Turma, de relatoria da ministra Nancy Andrighi, ocorrido em 14/03/2006, por maioria, vencidos a ministra relatora e o ministro Castro Filho.

É de se ressalvar, entretanto, que em algumas oportunidades têm sido possível observar algumas manifestações (seja pelas partes em juízo, seja em algumas obras de cunho doutrinário) no sentido de que o Superior Tribunal de Justiça teria mudado sua posição em razão de indigitados julgados, posteriores àquele retromencionado. De fato, alguns julgados (por exemplo, o Recurso Especial 1.163.652/PE, rel. min. Herman Benjamin, 2ª T., julgado 01.02.2012), têm tido suas ementas editadas com a seguinte assertiva: “O Código de Defesa do Consumidor aplica-se à atividade notarial”. Ocorre, porém, que se for analisado o teor do julgamento, mediante a leitura atenta dos votos dos julgadores, perceber-se-á que sequer o tema foi abordado. Digno de nota, pois, que, infelizmente, alguns operadores do direito têm propalado este ementário de forma equivocada, inclusive afirmando ser esta a posição atual do Superior Tribunal de Justiça. Fica aqui o registro deste fato, consignando-se com destaque que na oportunidade em que o Superior Tribunal de Justiça efetivamente debruçou-se sobre o tema, concluiu pela inaplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor aos serviços notariais e de registros públicos. 

Diante do que se expôs, foi possível verificar que no atual cenário jurídico o Código de Defesa do Consumidor é inaplicável aos serviços notariais e de registros, sendo possível arrolar as seguintes conclusões:

1. O Código de Defesa do Consumidor é um diploma juridicamente evoluído a ser aplicável em prol da correção da desigualdade existente na relação de consumo, não sendo legítimo banalizar a sua aplicação para toda e qualquer relação jurídica.

2. O CDC não pode ser aplicado a todos os serviços públicos, mas apenas aos que sejam uti singuli e remunerados mediante tarifa ou preço público.

3. A natureza jurídica da remuneração recebida pelos notários e registradores, conforme pacificado pelo Supremo Tribunal Federal, é de “taxa remuneratória de serviço público”, de modo que a relação existente entre os titulares das delegações e os usuários dos serviços não é de consumo, mas de natureza administrativo-tributária,  derivada da natureza tributária da remuneração percebida e do poder certificante emergente da fé pública estatal.

4. Os serviços notariais e de registros estão constitucionalmente consagrados como verdadeira função pública delegada, de natureza peculiar, naturalmente estatal, exercida no interesse da sociedade e que tem por escopo garantir a segurança jurídica, a paz social e o bem comum, não sendo, assim, possível considerá-los como serviços públicos ordinários sujeitos à disciplina do CDC.

5. Há uma função social intrínseca na prestação dos serviços notariais e de registros, que existem para satisfazer a interesses coletivos, de caráter geral (uti universi), lastreados principalmente na segurança jurídica e nos efeitos publicitários dos atos praticados;

6. Serviços notariais e de registros não são atividades econômicas pautadas na livre concorrência e livre iniciativa, razão pela qual não estão inseridos no chamado “mercado de consumo”, espaço ideal previsto no CDC como necessário à caracterização do elemento objetivo da relação de consumo.

7. Seja qual for a especialidade de serviço notarial ou registral a ser levada em consideração, o regime jurídico-constitucional a que se submete a atividade extrajudicial, especialmente pela submissão à estrita legalidade, está arquitetado no ordenamento jurídico com estrutura tal que não concede liberdade ao usuário para escolher qual serviço utilizar, nem mesmo a forma de sua prestação.

8. As serventias extrajudiciais carecem de personalidade jurídica própria, concentrando toda a prestação dos serviços notariais e de registros nas pessoas físicas dos delegatários. Por isso, sob os próprios notários e registradores é que recai todo sistema de responsabilidades previsto na Lei nº 8.935/1994. Lei esta de caráter especial, com normas específicas regulamentadoras de toda a atividade extrajudicial, que, na melhor hermenêutica, não pode ser afastada para aplicação de leis de caráter geral, como o CDC.

9. O Superior Tribunal de Justiça, quando efetivamente se manifestou sobre o tema, concluiu pela impossibilidade da aplicação do CDC aos serviços notariais e de registros.

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Referências

1. MARQUES, Claudia Lima. Manual de direito do consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.

2. GRINOVER, Ada Pellegrini; BENJAMIN, Antônio Herman V. Código brasileiro de defesa do consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. 7ª Ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001.

3. PASQUALOTTO, Adalberto; PFEIFFER, Roberto Augusto Castellanos (coord). Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil de 2002: convergências e assimetrias. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 142.

4. É a posição sustentada, dentre outros, por Cláudio Bonatto, Paulo Valério Dal Pai Moraes e Sérgio Cavalieri Filho. Nesse sentido também é o atual posicionamento do Superior Tribunal de Justiça (videREsp 793.422/RS, Rel. Min. Eliana Calmon, julgado em 03.09.2006; AgRg no AREsp 372.327/RJ, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, julgado em 05/06/2014).

5. GRINOVER, Ada Pellegrini, et. all. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor – Comentado pelos Autores do Anteprojeto. 8ª Eedição. Rio de Janeiro: Ed. Forense Universitária, 2004, p. 49 e 153. Estão entre os autores do anteprojeto do CDC: Ada Pellegrini Grinover, Antônio Herman de Vasconcellos e Benjamin, Daniel Roberto Fink, José Geraldo Brito Filomeno, Kazuo Watanabe, Nelson Nery Júnior e Zelmo Denari.

5. FANTI, Guilherme. A inaplicabilidade do código de defesa do consumidor aos serviços notariais e registrais. Disponível em www.irib.org.br/html/biblioteca-detalhe.php?obr=47

5. CENEVIVA, Walter. Lei dos Registros Públicos Comentada. 15ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 57.

6. JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 458.

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Fonte: Notariado | 03/11/2014.

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CGJ/SP: PRETENSÃO DE TRANSCRIÇÃO DE CERTIDÃO DE CASAMENTO REALIZADO NA CALIFÓRNIA E DE AVERBAÇÃO DE REGIME DE BENS CONSTANTE DE PACTO ANTENUPCIAL REALIZADO NO BRASIL – PACTO PÓS NUPCIAL REALIZADO NA SUÍÇA – NÃO DEMONSTRAÇÃO, PELO DIREITO INTERNACIONAL APLICÁVEL, DE QUE O PACTO BRASILEIRO ESTARIA EM VIGOR, EM DETRIMENTO DO PACTO SUÍÇO – AVERBAÇÃO NEGADA – RECURSO IMPROVIDO.

Clique aqui e leia o parecer na íntegra.

Fonte: TJ/SP.

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