CSM/SP: Registro de imóveis – Projeto de regularização fundiária de interesse social – Registro strictu sensu – Competência do C. CSM – Óbices apresentados pelo oficial registrador com fundamento no art. 18 da Lei 6.766/79 – Afastamento pela MM. Juíza Corregedora Permanente – Sentença mantida – Recurso não provido.


  
 

Apelação nº 1052030-64.2015.8.26.0100

Espécie: APELAÇÃO
Número: 1052030-64.2015.8.26.0100
Comarca: CAPITAL

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

CONSELHO SUPERIOR DA MAGISTRATURA

Apelação nº 1052030-64.2015.8.26.0100

Registro: 2018.0000234927

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos do(a) Apelação nº 1052030-64.2015.8.26.0100, da Comarca de São Paulo, em que são partes é apelante MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO, são apelados FERNANDA FERRAZ DAL LAGO e MUNICIPALIDADE DE SÃO PAULO.

ACORDAM, em Conselho Superior de Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: “Negaram provimento ao recurso, v.u.”, de conformidade com o voto do Relator, que integra este Acórdão.

O julgamento teve a participação dos Exmos. Desembargadores PEREIRA CALÇAS (PRESIDENTE TRIBUNAL DE JUSTIÇA) (Presidente), ARTUR MARQUES (VICE PRESIDENTE), XAVIER DE AQUINO (DECANO), EVARISTO DOS SANTOS(PRES. DA SEÇÃO DE DIREITO PÚBLICO), CAMPOS MELLO (PRES. DA SEÇÃO DE DIREITO PRIVADO) E FERNANDO TORRES GARCIA(PRES. SEÇÃO DE DIREITO CRIMINAL).

São Paulo, 28 de março de 2018.

PINHEIRO FRANCO

CORREGEDOR GERAL DA JUSTIÇA E RELATOR

Apelação nº 1052030-64.2015.8.26.0100

Recorrente: Ministério Público do Estado de São Paulo

Recorridos: Fernanda Ferraz Dal Lago e Municipalidade de São Paulo

VOTO Nº PF 37.321

Registro de imóveis – Projeto de regularização fundiária de interesse social – Registro strictu sensu – Competência do C. CSM – Óbices apresentados pelo oficial registrador com fundamento no art. 18 da Lei 6.766/79 – Afastamento pela MM. Juíza Corregedora Permanente – Sentença mantida – Recurso não provido.

Inconformada com a sentença proferida pela MM.ª Juíza Corregedora Permanente do 14º Oficial de Registro de Imóveis da Comarca da Capital, que afastou os óbices apontados pelo registrador e determinou ingresso do projeto de regularização fundiária no fólio real, a representante do Ministério Público interpôs o presente recurso alegando, em síntese, que o loteamento Jardim Imperador está devidamente regularizado no Registro de Imóveis, de forma que não se aplicam ao caso concreto as normas trazidas pela Lei 11.977/09. Entende que devam ser observadas as exigências previstas no art. 18 da Lei 6.766/79, sendo, pois, indispensável a anuência de cada um dos titulares de domínio ou de direito real dos imóveis que integram o loteamento, além de necessária a edição de lei municipal visando a desafetação de áreas públicas que passarão ao domínio privado, bem como a apresentação de instrumento de informação técnica de nº 68/DECONTG/2015 em sua via original. Aduz que o cumprimento de uma das exigências formuladas para ingresso do título na matrícula torna prejudicado o pedido, ressaltando que os interessados deverão se valer da retificação de loteamento, como exigido pelo registrador sob pena de fraude aos procedimentos legais previstos para a hipótese.

A Douta Procuradoria de Justiça opinou pelo provimento do recurso [1].

Nos termos da decisão a fls. 1974/1975, por versar o dissenso sobre recusa de título apresentado para registro em sentido estrito, foi determinada a remessa dos autos ao C. Conselho Superior da Magistratura, competente para apreciar a matéria.

É o relatório.

Desde logo, cumpre lembrar que a interessada, após cumprir uma das exigências feitas pelo registrador, impugnou as demais e deu início ao presente feito, originariamente processado como pedido de providências. Na sentença proferida, a MM. Juíza Corregedora Permanente afastou os óbices impostos pelo Oficial do 14º Registro de Imóveis da Capital ao argumento de que à hipótese aplicam-se as regras da Lei 11.977/09 e posteriores alterações, determinando o ingresso do título no registro imobiliário [2].

Ocorre que, por se tratar de controvérsia relativa à recusa de registro (strictu sensu), foi o recurso redistribuído a este C. Conselho Superior da Magistratura. E muito embora sustente a recorrente que a aceitação, pela apresentante do título, de uma das exigências formuladas pelo Oficial levaria ao não conhecimento da apelação, importa anotar que, no caso concreto, os óbices ao registro foram todos afastados. Por conseguinte, considerando que foi reconhecida a incorreção das exigências apresentadas pelo registrador, melhor que se analise o mérito do recurso, sobretudo porque, como a seguir será exposto, o inconformismo da D. representante do Ministério Público não merece prosperar.

Para melhor compreensão do tema em debate, há que se fazer um breve retrospecto sobre a regularização fundiária urbana. É mais que sabida a existência de problemas habitacionais decorrentes das ocupações irregulares havidas ao longo dos anos em nossas cidades, fazendo com que vários núcleos habitacionais se estabelecessem de forma desordenada por todo os lugares. Esses assentamentos precários e incorretos desenvolveram-se à margem do sistema registral, de maneira irreversível. As pessoas que ali vivem não são proprietárias do imóvel que ocupam, inexistindo garantia de segurança social e jurídica aos envolvidos.

Importa lembrar, por outro lado, que a moradia é direito fundamental previsto na Constituição Federal de 1988 e, como ensina Marcelo Augusto Santana de Melo: “Os elementos do direito à cidade são viver comsegurança, viver em paz, e viver com dignidade, e somente mediante um sistema degarantia de propriedade adequado é que existirá a satisfação plena de seuconteúdo. (…) a propriedade é o fim a ser observado no direito à moradia porquesomente com ela existirá a segurança jurídica plena e a satisfação dos moradoresde baixa renda” [3]. Bem por isso, a busca de solução para a questão habitacional sempre foi relevante aos entes públicos, eis que necessitam ter a real dimensão da população de cada cidade, assim como das moradias existentes e faltantes para que, com base nesses dados, consigam adotar as medidas cabíveis para promoção da qualidade de vida dos cidadãos e proporcionar às famílias o acesso aos serviços públicos.

Nesse cenário, o Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/01) estabeleceu diretrizes gerais para a política urbana que tem no parcelamento do solo um de seus instrumentos. Mais recentemente, objetivando dar efetividade à diretriz constitucional, a Lei nº 11.977/09, que instituiu o programa “Minha Casa Minha Vida”, rompeu paradigmas relativos à regularização fundiária urbana, estabelecendo, para tanto, novos instrumentos e mecanismos. Em seu art. 46, referida lei dispõe que a regularização fundiária “consiste no conjunto de medidas jurídicas, urbanísticas,ambientais e sociais que visam à regularização de assentamentos irregulares e àtitulação de seus ocupantes, de modo a garantir o direito social à moradia, o plenodesenvolvimento das funções sociais da propriedade urbana e o direito ao meioambiente ecologicamente equilibrado”.

E após alguns anos de experiência de regularização fundiária urbana a partir do marco institucional representado pela Lei nº 11.977/09, o Poder Executivo Federal editou a Medida Provisória nº 759, de 22 de dezembro de 2016, convertida na Lei 13.465/17, que expressamente revogou os dispositivos daquele diploma afetos ao assunto.

Atenta à questão, também esta E. Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo envidou os esforços e editou Provimentos indicadores das mudanças havidas no tratamento da regularização fundiária (Provimentos nos 18/2012 e 21/2013 e, no final do último ano, o Provimento nº 51/2017).

Como se vê, o tema vem sendo uma preocupação constante e cada vez maior, na medida em que a perpetuação de ocupações irregulares a ninguém beneficia e tampouco interessa. A respeito, ensina o ilustre Desembargador José Renato Nalini, Corregedor Geral da Justiça paulista no biênio 2012/2013, que existem três dimensões para a regularização fundiária: “(i) dimensãourbanística, com os investimentos necessários para melhoria das condições de vidada população; (ii) dimensão jurídica, com a utilização de instrumentos quepossibilitem a aquisição da propriedade nas áreas privadas e o reconhecimento daposse nas áreas públicas; e (iii) dimensão registrária, com o lançamento nasrespectivas matrículas da aquisição destes direitos, a fim de atribuir eficácia paratodos os efeitos da vida civil” [4]. Sob esse prisma, o objetivo de todo procedimento de regularização fundiária será a titulação de seus ocupantes, respeitadas a legislação urbanística e ambiental.

Na referida dimensão jurídica, a atribuição de um título aquisitivo passível de ingresso no fólio real enseja a pacificação de conflitos e garante o direito à moradia digna, certo que o parcelamento consolidado de modo ilegal ou irregular impede, inclusive, investimentos públicos para implantação de serviços estruturais, como pavimentação de ruas, iluminação pública, sistema de captação de águas pluviais, instalação de escolas, hospitais, creches, entre outros. Por tal razão, a regularização fundiária, no aspecto jurídico, prima pela inclusão das áreas regularizadas nos cadastros imobiliários.

No caso concreto, porém, entende o Oficial Registrador ser indevido o registro do auto de regularização que lhe foi apresentado para ingresso no fólio real, ao argumento de que é incabível a utilização do instituto da regularização fundiária de interesse social para eximir o loteador de cumprir as exigências trazidas pelo art. 18 da Lei 6.766/79.

Ora, ainda que formalmente regularizado o loteamento Jardim Imperador, visto que aprovado e registrado, o fato é que, na realidade, não houve implantação, tampouco execução das obras conforme o cronograma e o projeto aprovados. Ou seja, permanece irregular.

Se assim é, valorosa a lição de Vicente de Abreu Amadei no sentido de que: “(…) ante o significativo aumento quantitativo dassituações imobiliárias à margem da lei, especialmente nos espaços urbanos, bemcomo na multiplicidade de aspectos irregulares (da fala de titulação àsdesordenadas formas de habitações em favelas, passando por inúmeros outros tiposde deficiências), busca-se certa sistematização da matéria. E, nesse esforço desistematização cunhou-se a expressão ‘regularização fundiária’ como categoriamaior ou gênero, que, por sua ampla abrangência, abarca todas as etapas, modos einstrumentos de regularização das informalidades imobiliárias, dentre eles a deparcelamento do solo urbano”. Prossegue o doutrinador lembrando que: “emboranão revogadas e ainda vigentes, as normas específicas de regularização deparcelamento do solo urbano insertas na Lei nº 6.766/79 devem ser interpretadas eaplicadas no contexto das normas que disciplinam a regularização fundiária. Porisso, tocar o ponto da regularização de loteamento exige, hoje, uma compreensãoelementar da regularização fundiária.”. Então, conclui: “para a regularização deinteresse social, não se aplicam as regras procedimentais de regularização deparcelamento do solo urbano previstas nas Lei nº 6.766/79. Aliás, a Lei nº12.424/2011 explicitou que o registro imobiliário do parcelamento do solo urbanodecorrente de regularização imobiliária de interesse social independe doatendimento aos requisitos da Lei nº 6.766/79 (art. 65, parágrafo único, da Lei nº11.977/2009, incluído pela Lei nº 12.424/2011)” [5].

Se antes da citada lei a regularização dos assentamentos informais era analisada apenas com base nos estreitos limites da Lei nº 6.766/79, a partir de então foram introduzidos novos parâmetros para permitir o reconhecimento jurídico dessas formas de ocupação do solo, chancelando situações jurídicas consolidadas.

Nesse cenário, constatada a inércia do loteador ou do titular imobiliário em assumir a regularização fundiária, ou em caso de sua não localização, esse procedimento caberá a qualquer dos entes legitimados pela lei, sem diferenciação. Bem por isso, verificada a existência de um núcleo habitacional informal em seu território, convém ao Município que instaure um procedimento administrativo para análise da situação jurídica, social, urbanística e ambiental da área e, então, que proponha medidas saneadoras das irregularidades encontradas, seja com o desfazimento daquela ocupação irregular, seja com sua legalização. Nessa última hipótese, a fim de dar cumprimento ao seu dever constitucional de promover o adequado ordenamento territorial, deverá o Município realizar estudos preliminares para reconhecimento da ilegalidade e possível consolidação da situação fática, bem como analisar e ponderar a prevalência do interesse social frente a um interesse específico, indicar o agente promotor da regularização, delimitar o perímetro urbano, elaborar projetos e, ao final, aprová-lo, com a emissão do auto de regularização fundiária. Sobre esse procedimento, merecem destaque os indispensáveis ensinamentos trazidos no “Manual da Regularização Fundiária Urbana no Estado de São Paulo” [6].

Aliás, foi exatamente isso que ocorreu no caso em análise.

E muito embora revogada a Lei nº 11.977/09, é certo que todo o procedimento de regularização fundiária foi realizado ainda na sua vigência, de forma que o título apresentado ao 14º Cartório de Registro de Imóveis deve ser mesmo registrado por atender à lei vigente na data da prenotação. Isso porque é pacífico na jurisprudência deste Conselho Superior da Magistratura que a apresentação do título é regida pelo princípio tempus regit actum, ou seja, a qualificação segue as regras vigentes ao tempo do registro.

Ressalte-se que, de conformidade com o ordenamento jurídico aplicável à espécie, presumem-se verdadeiras as informações trazidas a registro pelos Municípios, legítimos os atos praticados pelos órgãos públicos e atendidos os requisitos legais com a emissão do auto de regularização em consonância com as diretrizes técnicas das plantas, projetos e memoriais descritivos apresentados.

Consequentemente, afirmada a anuência dos interessados, a compensação das áreas públicas, a manutenção de áreas verdes e a observância das demais exigências legais, não deveria o conteúdo desses documentos ser objeto de qualificação jurídica do Oficial de Registro de Imóveis por gozar de presunção legal de legitimidade e legalidade, tal como previsto no então vigente item 276 do Capítulo XX das Normas de Serviço da Corregedoria Geral de Justiça (NSCGJ). Apresentado o auto de regularização fundiária urbanístico e ambiental, além da análise formal do título, nenhuma outra exigência deveria ser feita pelo Oficial de Registro de Imóveis.

Por fim, considerando que as matrículas de imóveis, sobre os quais se consolidaram assentamentos irregulares, representam uma situação pretérita que não mais existe no mundo fático e que não atende à função social do registro de imóveis, não há porque negar o ingresso do projeto de regularização fundiária produzido pela Municipalidade junto ao fólio real, de forma a regularizar, de uma vez por todas, a área do denominado Jardim Imperador. Importante lembrar, nesse particular, os ensinamentos de Serpa Lopes: “Um princípio devem todos terem vista, quer Oficial de Registro, quer o próprio juiz: em matéria de Registro deImóveis toda a interpretação deve tender para facilitar e não para dificultar oacesso dos títulos ao Registro, de modo que toda propriedade imobiliária, e todosos direitos sobre ela recaídos fiquem sob o amparo do regime do RegistroImobiliário e participem dos seus benefícios” [7].

Diante do exposto, pelo meu voto, nego provimento ao recurso.

PINHEIRO FRANCO

Corregedor Geral da Justiça e Relator


Notas:

[1] Fls. 1969/1972.

[2] Fls. 1930/1931.

[3] “Regularização Fundiária”, 2014, p. 390.

[4] “Direitos que a Cidade Esqueceu”, 2012, p.167.

[5] “Como lotear uma gleba”; Ed. Millennium; 4ª Edição; p. 402/405.

[6] https://www.extrajudicial.tjsp.jus.br/pexPtl/arquivos/manual-regularizacao-fundiaria.pdf

[7] SERPA LOPES, Miguel Maria. Tratado de Registros Públicos. Vol. II. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1955. p. 346. (DJe de 04.05.2018 – SP)

Fonte: INR Publicações | 11/05/2018.

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