As alterações do estado da pessoa natural e os negócios jurídicos


* Marcelo Salaroli de Oliveira

estado civil, que não se limita a situação da pessoa perante o instituto do casamento, mas envolve um complexo de relações jurídicas da pessoa em seu contexto familiar, político e individual, também pode ser denominado por estado da pessoa natural, que é expressão mais técnica.

Detalhando esse três aspectos do estado da pessoa natural, temos: 1) o estado político, que diz respeito à nacionalidade, à naturalidade e à cidadania; 2) o estado individual, que está relacionado ao sexo, à idade e à capacidade civil da pessoa natural; 3) o estado familiar, que diz respeito às relações de parentesco da pessoa e à sua situação conjugal.

As questões de estado não são relevantes apenas para a pessoa titular dos direitos e deveres inerentes, mas também para toda a sociedade e para as demais pessoas, que manterão entre si as mais diversas relações jurídicas. Ademais, as questões de estado tem repercussão direta na validade e eficácia dos negócios jurídicos, interferindo nos direitos pessoais e patrimoniais.

Assim surge a necessidade social e jurídica de um sistema de publicidade do estado da pessoa natural, para que todos tenham à sua disposição o conhecimento das situações jurídicas que irão interferir na órbita dos seus direitos e deveres. Atente-se que esse sistema deve dar publicidade à situação jurídica, mas manter protegido pelo sigilo as causas e motivos, muitas vezes vexatórios, que dizem respeito apenas a intimidade e privacidade das pessoas. Por exemplo, dá-se publicidade que determinada mãe ou pai perdeu o poder familiar, mas não se expõe os motivos que levaram a perda do poder familiar. Dá-se publicidade sobre o fim de um casamento, mas não se expõe os motivos que levaram ao fim do casamento.

Esse sistema de publicidade de atos e fatos jurídicos que compõe o estado civil da pessoa natural são os registros públicos, mais especificamente, o registro civil das pessoas naturais. Qualquer pessoa, independentemente de declarar ou comprovar o motivo, poderá solicitar certidões do registro civil das pessoas naturais e, assim, tomar conhecimento da situação jurídica, ou seja, do estado da pessoa natural com quem pretende se casar, de quem pretende comprar um imóvel, com quem pretende contratar uma sociedade.

Estando disponível a todos esse conhecimento, decorre um efeito jurídico típico do sistema de registros públicos: a presunção do conhecimento. Não é possível alegar desconhecimento de um ato ou fato que está inscrito nos registros públicos. Assim, aquele que se omite e deixa de inscrever nos registros públicos os atos e fatos referentes à sua pessoa, está em falta com a boa-fé objetiva, pois descumpre o dever de informação. Por outro lado, faz prova de sua boa-fé e beneficia-se da segurança jurídica aquele que se utiliza do sistema de registros públicos, seja registrando os atos e fatos pertinentes a sua pessoa, seja buscando informações jurídicas sobre as outras pessoas por meio das certidões, ainda que negativas.

Nesse sentido, importante ressaltar a necessidade de que as certidões sejam atualizadas. Se algumas décadas atrás a família era estável (ou pelo menos cultivava a aparência de estabilidade e solidez, protegida pelo sistema legal), atualmente os indivíduos, a sociedade e o direito de família são extremamente dinâmicos. Já não há apenas um tipo de família, mas diversos, em constante mutação. Casamentos, divórcios e recasamentos são frequentes e rápidos, sequer há prazos mínimos para o divórcio. O direito a buscar a sua origem familiar é imprescritível e, assim, a filiação está em constante mutação, seja pela declaração da existência ou da inexistência da paternidade ou maternidade. Aliás, estas já não são apenas biológicas, mas também podem ter origem na socioafetividade.

Inúmeras são as alterações que constarão no Registro Civil, além das já mencionadas, outros exemplos são a perda da nacionalidade brasileira, a alteração de sexo, a interdição. Aliás, esta é relevante e frequente alteração da capacidade da pessoa, que implica diretamente na validade dos negócios jurídicos. É a certidão atualizada, ainda, que irá fornecer com segurança jurídica o nome da pessoa natural, afinal, o nome é passível de diversas hipóteses de alteração (casamento, divórcio, retificações, acréscimos pelo reconhecimento da paternidade).

Antes de celebrar um contrato, lavrar uma escritura pública, prolatar uma sentença é importante obter uma certidão atualizada do registro civil das pessoas naturais. Caso contrário, existirá o risco, que ofende a segurança jurídica, de se decretar o divórcio de quem já era divorciado; de vender imóvel rural para estrangeiro, supondo que era brasileiro; de fazer compra e venda ou doação entre pai e filho, desconhecendo a filiação recém estabelecida; contratar com pessoa incapaz, pois se desconhecia a interdição.

Somente a certidão atualizada fornecerá a devida segurança jurídica, pois conterá todas as alterações do estado da pessoa natural, bem como as alterações do nome, que são atos jurídicos que ganham publicidade e plena eficácia no registro civil das pessoas naturais. Aquele que deixa de buscar essas informações poderá sofrer as consequências de sua negligência ou imperícia, pois não poderá alegar desconhecimento e que estava de boa-fé, pois o ato era público.

Nesse sentido, assoma a importância da CRC (Central de Informações do Registro Civil), que interliga os cartórios de registro civil do Estado de São Paulo e outros Estados conveniados, em fase de expansão para todo o Brasil, resultado de um trabalho de eficiência na prestação do serviço público desenvolvido pela ArpenSP e AnoregSP. Com essa ferramenta eletrônica, potencializou-se a abrangência das informações registrais e facilitou-se a vida do cidadão, que poderá pesquisar e obter certidões dos mais diversos Estados brasileiros, sem necessidade de se deslocar até o cartório de origem. Quer saber mais, visite www.cartoriosp.org.br e www.registrocivil.org.br.

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* Marcelo Salaroli de Oliveira é Registrador Civil em Jacareí-SP, Mestre em Direito (Unesp), Diretor da Arpen/SP.

Fonte: Anoreg/SP I 04/11/2013.

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O óbvio na alienação fiduciária de imóveis


* Renato Berger

Dizem que é mais difícil explicar o óbvio. Sempre me recordo disso quando um aspecto crucial da alienação fiduciária de imóveis é colocado em discussão. O objetivo deste artigo é exatamente enfrentar a dura missão de explicar o óbvio. Espero que a explicação ajude a afastar um fantasma desnecessário que foi criado no mercado.

A questão refere-se à cobrança do saldo devedor de uma determinada dívida garantida por alienação fiduciária de imóvel quando, após o inadimplemento do devedor, o imóvel é levado a dois leilões sem que apareçam interessados em comprá-lo. Nesse caso, a solução dada pela lei 9.514/97 é a permanência do imóvel na propriedade do credor.

Até aqui nenhuma questão. Se ninguém aparece para comprar o imóvel, o jeito é deixá-lo na propriedade do credor. Paralelamente, a lei estipula que o credor não precisará devolver "o que sobejar" ao devedor, ficando a dívida extinta.

Quando a lei menciona que o credor não tem a obrigação de devolver "o que sobejar", ficando a dívida extinta, é óbvio que está se referindo à hipótese de a dívida ser menor e não maior do que o valor de avaliação do imóvel.

Por exemplo, se a dívida não paga é de R$ 80 mil e o imóvel foi avaliado em R$ 90 mil, mas ninguém quis comprá-lo nos leilões, o credor ficará com a propriedade do imóvel, a dívida de R$ 80 mil será considerada extinta e o credor não precisará devolver "o que sobejar", ou seja, R$ 10 mil, ao devedor. Afinal, os R$ 10 mil são teóricos, pois ninguém quis comprar o imóvel nos leilões.

A solução acima, dada pela lei 9.514/97, por óbvio não se refere à hipótese de a dívida ser maior do que a avaliação do imóvel. Por exemplo, se a dívida não paga é de R$ 2 milhões e o imóvel foi avaliado em R$ 90 mil, o credor ficará com a propriedade do imóvel se não houver interessados nos leilões. Mas não será aplicável a regra de que o credor fica desobrigado de devolver "o que sobejar", ficando extinta a dívida. Afinal, não existe nenhum valor que sobejou após a permanência do imóvel com o credor. Muito pelo contrário, a dívida continua existindo pelo valor de R$ 1.910.000, já que o valor de R$ 90 mil do imóvel deve ser abatido do valor total da dívida de R$ 2 milhões.

Naturalmente, assim como em qualquer outra modalidade de garantia, após a excussão da alienação fiduciária que não foi suficiente para a liquidação integral do crédito, a dívida remanescente continua existindo e o credor pode continuar sua cobrança normalmente.

Dizer que a dívida ficaria extinta, além de não fazer sentido, representaria evidente enriquecimento sem causa do devedor. É importante repetir que a lei 9.514/97 não menciona em nenhum momento que a dívida fica extinta nessas condições. Aliás, nem poderia fazer isso, pois não poderia trazer uma hipótese de enriquecimento sem causa.

A lei 9.514/97 apenas trata da extinção da dívida no contexto da devolução, pelo credor ao devedor, "do que sobejar" após os leilões. Esse contexto só existe se: (i) o imóvel foi vendido em leilão por um valor maior do que a dívida; ou (ii) não apareceram interessados nos leilões quando o valor de avaliação do imóvel era maior do que o valor da dívida. Assim, a situação só é matematicamente possível se o valor da dívida é menor do que o valor do imóvel.

Infelizmente, alguns autores tratam a questão de maneira genérica concluindo que a dívida ficaria extinta em qualquer hipótese, ou seja, ainda que a dívida fosse maior do que o valor de avaliação do imóvel.

Essa conclusão não se sustenta em nenhum critério de interpretação. Ela não está baseada na finalidade da lei, nem na sistemática da lei. Ela não está baseada sequer na literalidade da lei, como alguns poderiam confundir ao ler apressadamente a lei 9.514/97. Mais do que isso, nenhum critério de interpretação poderia levar ao enriquecimento sem causa do devedor.

Felizmente, essa interpretação genérica ainda não chegou à jurisprudência. Na verdade, a esperança é que o judiciário seja mais criterioso e separe as hipóteses quando for chamado a analisar a questão. Mas a mera existência de tal interpretação criou uma insegurança enorme no mercado.

Com receio de ver o seu crédito desaparecer na medida do enriquecimento sem causa do devedor, vários credores têm medo de utilizar a alienação fiduciária de imóveis. Assim, acabam optando pela hipoteca, que é uma garantia menos eficaz. Isso leva os credores a aumentarem as taxas de juros cobradas e, como resultado, todos os bons devedores são prejudicados.

A situação acaba sendo um ótimo exemplo de como a insegurança jurídica afeta a economia. O caso é ainda mais curioso porque a insegurança jurídica decorre de uma interpretação nada razoável disseminada quase na forma de um mito.

Ora, não faz sentido que o mecanismo da alienação fiduciária de imóveis seja distorcido e mal aproveitado em função de tal interpretação. Esse fantasma precisa ser dissipado.

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* Renato Berger é sócio do TozziniFreire Advogados.

Fonte: Migalhas I 05/12/2013.

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