Recurso Especial – Direito civil e processual civil – Ação de reconhecimento e dissolução de união estável – Post mortem – Herdeiros colaterais – Determinação de emenda da petição inicial para a inclusão de litisconsortes necessários – Inconstitucionalidade do art. 1.790 do CC/2002 reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal em sede de repercussão geral – Pedido de reconhecimento de união estável – Presença dos parentes colaterais – Necessidade – Vocação hereditária – Companheiro – Exclusividade – Afastamento dos colaterais – Conforme previsão legal – 1. Controvérsia em torno da necessidade, ou não, da inclusão dos herdeiros colaterais no polo passivo de demanda de reconhecimento e dissolução de união estável “post mortem” cumulada com pedido de concessão da totalidade de bens da companheira – 2. Alegação do recorrente de que (a) os herdeiros colaterais não concorrem na herança em razão da flagrante inconstitucionalidade do art. 1.790, do Código Civil; (b) os herdeiros colaterais não possuem interesse direto na formação do convencimento do juízo quanto à existência da união estável invocada; (c) a legitimidade dos herdeiros colaterais deve ser discutida nos autos do inventário – 3. Reconhecimento pelas instâncias de origem de que os parentes colaterais da falecida possuem interesse direto na formação do convencimento daquele juízo quanto à existência da união estável invocada na própria demanda em que é postulada a sua declaração – 4. O Supremo Tribunal Federal, ao julgar os Recursos Extraordinários nº 646721/RS e 878694/MG, ambos com repercussão geral reconhecida, fixou a de que “é inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros prevista no art. 1.790 do CC/2002, devendo ser aplicado, tanto nas hipóteses de casamento quanto nas de união estável, o regime do art. 1.829 do CC/2002.” – 5. Analisando hipótese semelhante, o Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, no julgamento do Recurso Especial nº 1.357.117/MG, em sede de petição de herança, após afirmar ser inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros, destacou o entendimento no sentido de que os parentes colaterais, tais como irmãos, tios e sobrinhos, são herdeiros de quarta e última classe na ordem de vocação hereditária, herdando apenas na ausência de descendentes, ascendentes e cônjuge ou companheiro, em virtude da ordem legal de vocação hereditária – 5. Correto o posicionamento das instâncias de origem no sentido da necessidade de inclusão no polo passivo da demanda de reconhecimento e dissolução de união estável dos possíveis herdeiros da falecida em face de seu evidente interesse jurídico no desenlace da presente demanda – 6. Na hipótese de não reconhecimento da união estável, serão eles os herdeiros legítimos da falecida (art. 1829, IV, c/c o art. 1839 do CC) – 7. Litisconsórcio passivo necessário caracterizado, confirmando a necessidade de inclusão dos herdeiros colaterais no polo passivo da demanda – 8. Recurso especial desprovido.


  
 

RECURSO ESPECIAL Nº 1.759.652 – SP (2018/0203243-2)

RELATOR : MINISTRO PAULO DE TARSO SANSEVERINO

RECORRENTE : J G

ADVOGADO : LEONARDO DE GÊNOVA – SP167749

RECORRIDO : B T DOS S – ESPÓLIO

EMENTA

RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO DE RECONHECIMENTO E DISSOLUÇÃO DE UNIÃO ESTÁVEL. POST MORTEM. HERDEIROS COLATERAIS. DETERMINAÇÃO DE EMENDA DA PETIÇÃO INICIAL PARA A INCLUSÃO DE LITISCONSORTES NECESSÁRIOS. INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 1.790 DO CC/2002 RECONHECIDA PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL EM SEDE DE REPERCUSSÃO GERAL. PEDIDO DE RECONHECIMENTO DE UNIÃO ESTÁVEL. PRESENÇA DOS PARENTES COLATERAIS. NECESSIDADE. VOCAÇÃO HEREDITÁRIA. COMPANHEIRO. EXCLUSIVIDADE. AFASTAMENTO DOS COLATERAIS. CONFORME PREVISÃO LEGAL.

1. Controvérsia em torno da necessidade, ou não, da inclusão dos herdeiros colaterais no polo passivo de demanda de reconhecimento e dissolução de união estável “post mortem” cumulada com pedido de concessão da totalidade de bens da companheira.

2. Alegação do recorrente de que (a) os herdeiros colaterais não concorrem na herança em razão da flagrante inconstitucionalidade do art. 1.790, do Código Civil; (b) os herdeiros colaterais não possuem interesse direto na formação do convencimento do juízo quanto à existência da união estável invocada; (c) a legitimidade dos herdeiros colaterais deve ser discutida nos autos do inventário.

3. Reconhecimento pelas instâncias de origem de que os parentes colaterais da falecida possuem interesse direto na formação do convencimento daquele juízo quanto à existência da união estável invocada na própria demanda em que é postulada a sua declaração.

4. O Supremo Tribunal Federal, ao julgar os Recursos Extraordinários n.º 646721/RS e 878694/MG, ambos com repercussão geral reconhecida, fixou a de que “é inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros prevista no art. 1.790 do CC/2002, devendo ser aplicado, tanto nas hipóteses de casamento quanto nas de união estável, o regime do art. 1.829 do CC/2002.”

5. Analisando hipótese semelhante, o Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, no julgamento do Recurso Especial n.º 1.357.117/MG, em sede de petição de herança, após afirmar ser inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros, destacou o entendimento no sentido de que os parentes colaterais, tais como irmãos, tios e sobrinhos, são herdeiros de quarta e última classe na ordem de vocação hereditária, herdando apenas na ausência de descendentes, ascendentes e cônjuge ou companheiro, em virtude da ordem legal de vocação hereditária.

5. Correto o posicionamento das instâncias de origem no sentido da necessidade de inclusão no polo passivo da demanda de reconhecimento e dissolução de união estável dos possíveis herdeiros da falecida em face de seu evidente interesse jurídico no desenlace da presente demanda.

6. Na hipótese de não reconhecimento da união estável, serão eles os herdeiros legítimos da falecida (art. 1829, IV, c/c o art. 1839 do CC).

7. Litisconsórcio passivo necessário caracterizado, confirmando a necessidade de inclusão dos herdeiros colaterais no polo passivo da demanda.

8. RECURSO ESPECIAL DESPROVIDO.

ACÓRDÃO 

Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da TERCEIRA TURMA do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, negar provimento ao recurso especial, nos termos do voto do(a) Sr(a). Ministro(a) Relator(a). Os Srs. Ministros Ricardo Villas Bôas Cueva, Marco Aurélio Bellizze, Moura Ribeiro (Presidente) e Nancy Andrighi votaram com o Sr. Ministro Relator.

Brasília, 23 de junho de 2020(data do julgamento)

MINISTRO PAULO DE TARSO SANSEVERINO

Relator

RELATÓRIO

O EXMO. SR. MINISTRO PAULO DE TARSO SANSEVERINO (Relator):

Trata-se de recurso especial, com pedido de efeito suspensivo, interposto por JOSÉ GIROTTO com arrimo no art. 105, inciso III, alíneas “a” e “c” da Constituição da República contra acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (fl. 43):

AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECONHECIMENTO E DISSOLUÇÃO DE UNIÃO ESTÁVEL POST MORTEM DETERMINAÇÃO DE EMENDA DA INICIAL PARA A INCLUSÃO DE LITISCONSORTES NECESSÁRIOS (HERDEIROS DA FALECIDA) O AUTOR (AGRAVANTE) ALEGA INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 1790 DO CC O C. ÓRGÃO ESPECIAL DESTE E. TJ DECIDIU EM ARGUIÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE QUE O DISPOSITIVO LEGAL É CONSTITUCIONAL – O STF AINDA NÃO DECIDIU SOBRE EVENTUAL INCONSTITUCIONALIDADE DESSE DISPOSITIVO LEGAL. CONFIRMA-SE DECISÃO. NEGA-SE PROVIMENTO AO RECURSO.

Consta dos autos que J. G. interpôs agravo de instrumento contra a decisão do juízo de primeiro grau que, nos autos da ação de reconhecimento e dissolução de união estável post mortem, proposta em desfavor de B. T. dos S., determinou a emenda da petição inicial para a inclusão de litisconsortes necessários – parentes colaterais da falecida.

O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo negou provimento ao agravo de instrumento conforme a ementa acima transcrita.

Em suas razões de recurso especial, o recorrente asseverou pela desnecessidade de inclusão dos herdeiros colaterais na presente demanda de reconhecimento e dissolução de união estável sob os seguintes fundamentos: a) os herdeiros colaterais não concorrem na herança em razão da flagrante inconstitucionalidade do art. 1.790, do Código Civil; b) os herdeiros colaterais não possuem interesse direto na formação do convencimento do juízo quanto à existência da união estável invocada; c) a legitimidade dos herdeiros colaterais deve ser discutida nos autos do inventário.

Acenou pela ocorrência de dissídio jurisprudencial, requerendo o provimento do recurso especial para afastar a inclusão no polo passivo da demanda os herdeiros colaterais e, por fim, a concessão da totalidade dos bens da falecida.

Não houve apresentação de contrarrazões ao recurso especial.

O Ministério Público Federal ofertou parecer às fls. 300/302, pelo provimento do recurso especial.

É o relatório.

VOTO

O EXMO. SR. MINISTRO PAULO DE TARSO SANSEVERINO (Relator):

Eminentes Colegas. A questão processual devolvida ao conhecimento do Superior Tribunal de Justiça situa-se em torno da necessidade de inclusão dos herdeiros colaterais da falecida acerca de ação de reconhecimento e dissolução de união estável post mortem movida por seu alegado ex-companheiro e a possibilidade de concessão a ele da totalidade dos bens da falecida.

O Juízo de primeiro grau, ao analisar a petição inicial, entendeu que, apesar de a discussão do direito hereditário não ser objeto do pedido inicial, necessária a emenda da petição inicial para a inclusão no polo passivo dos parentes colaterais da falecida sob os seguintes fundamentos (fls. 141/142):

Em que pese a discussão do direito hereditário não ser alvo do presente feito, tenho que os herdeiros colaterais da Sra. Benedita Timóteo dos Santos possuem interesse direto na formação do convencimento deste juízo quanto à existência da união instável invocada.

A meu aviso, há um verdadeiro litisconsórcio passivo necessário e unitário (arts. 114 e 116 do NCPC). É necessário pela natureza da relação que diretamente influencia o direito de herança dos interessados. E também é unitário, pois o efeito que decorrerá da coisa julgada afetará a todos de forma unitária.

Desta feita, a inclusão dos aludidos herdeiros na presente demanda é medida de rigor, de modo legitimar a imposição da coisa julgada a todos os afetados.

Lado outro, poder-se-ia invocar a desnecessidade de tal diligência em face da inconstitucionalidade do art. 1790 do Código Civil.

Contudo, o Órgão Especial do Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo já se manifestou quanto à sua constitucionalidade, conforme se denota do seguinte aresto: “União estável. Direito sucessório. Sucessão do companheiro. Inconstitucionalidade do art. 1.790 do CC/02. Disparidade de tratamento entre união estável e casamento e ou das distintas entidades familiares. Inocorrência de violação a preceitos e princípios constitucionais. Incidente desprovido” (Arguição de Inconstitucionalidade n° 0434423-72.2010.8.26.0000, Rel. Des. Cauduro Padin, J. 14.9.2011).

Ainda sobre a regularidade da petição inicial, destaca-se que a falecida companheira do requerente não possui personalidade jurídica e capacidade processual para figurar no polo passivo da demanda, sendo necessária a emenda à inicial para fazer constar o seu espólio.

Isso posto, determino que o requerente emende à inicial, no prazo de 10 (dez) dias, para: i) incluir no polo passivo da demanda todos os herdeiros colaterais da Sra. Benedita Timóteo dos Santos (fls. 34); e ii) fazer constar o espólio da Sra. Benedita Timóteo dos Santos ao invés da própria de cujus (g.n.).

O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, por sua vez, manteve o julgado singular nos seguintes termos (fls. 44/45):

O agravante impugna apenas a determinação de inclusão dos herdeiros colaterais da falecida no polo passivo.

As razões deste recurso não colocam em dúvida o resulta o do julgamento da Arguição de Inconstitucionalidade n. 0434423-72.2010.8.26.0000 pelo c. Órgão Especial d este e. TJ (acórdão relatado pelo e. Des. Cauduro Padim e proferido em 14/09/2011) sobre a constitucionalidade do art. 1790 do CC.

O STF ainda não decidiu sobre eventual inconstitucionalidade desse dispositivo legal.

O Recurso Extraordinário n. 878.694 distribuído ao Ministro Luis Roberto Barroso está ainda em julgamento (em 31/08/2016) o Ministro Dias Toffoli pediu vista dos autos, conforme andamento disponível no site do STF).

Assim, o art. 1790 do CC está vigente e, consequentemente, os herdeiros de Benedita Timóteo dos Santos são litisconsortes necessários.

Por fim, a Súmula 380 do STF, que trata da partilha do patrimônio adquirido pelo esforço comum entre “concubinos”, não afasta o litisconsórcio passivo necessário dos sucessores da falecida.

Verifica-se, portanto, que o juízo de primeiro grau entendeu que os parentes colaterais da falecida possuem interesse direto na formação do convencimento quanto à existência da união instável invocada, bem como destacou a existência de litisconsórcio passivo necessário unitário, além de afirmar a constitucionalidade do art. 1.790, do Código Civil.

O Tribunal de Justiça se ateve à inexistência de inconstitucionalidade do dispositivo previsto no ordenamento civil ao argumento de que, no julgamento da Arguição de Inconstitucionalidade n.º 0434423-72.2010.8.26.0000, perante o Órgão Especial daquele Tribunal de Justiça, fora afastada a tese de inconstitucionalidade do art. 1790, do Código Civil, além de o Supremo Tribunal Federal ainda não ter concluído, na época, o julgamento sobre eventual inconstitucionalidade do referido dispositivo legal.

Em suas razões de recurso especial, o recorrente asseverou que: a) os herdeiros colaterais não concorrem na herança em razão da flagrante inconstitucionalidade do art. 1.790, do Código Civil; b) os herdeiros colaterais não possuem interesse direto na formação do convencimento do juízo quanto à existência da união estável invocada; c) a legitimidade dos herdeiros colaterais deve ser discutida nos autos do inventário.

No entanto, em que pese a farta fundamentação do recurso especial, a irresignação recursal não merece acolhida.

Em relação à inconstitucionalidade do art. 1.790, do Código Civil, assiste razão ao recorrente, pois efetivamente o Supremo Tribunal Federal, ao julgar os Recursos Extraordinários n.º 646721/RS e 878694/MG, ambos com repercussão geral reconhecida, declarou a sua inconstitucionalidade, fixando a seguinte tese:

É inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros prevista no art. 1.790 do CC/2002, devendo ser aplicado, tanto nas hipóteses de casamento quanto nas de união estável, o regime do art. 1.829 do CC/2002.

Eis a ementa dos precedentes do STF:

DIREITO CONSTITUCIONAL E CIVIL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO. REPERCUSSÃO GERAL. APLICAÇÃO DO ARTIGO 1.790 DO CÓDIGO CIVIL À SUCESSÃO EM UNIÃO ESTÁVEL HOMOAFETIVA. INCONSTITUCIONALIDADE DA DISTINÇÃO DE REGIME SUCESSÓRIO ENTRE CÔNJUGES E COMPANHEIROS.

1. A Constituição brasileira contempla diferentes formas de família legítima, além da que resulta do casamento. Nesse rol incluem-se as famílias formadas mediante união estável, hetero ou homoafetivas. O STF já reconheceu a “inexistência de hierarquia ou diferença de qualidade jurídica entre as duas formas de constituição de um novo e autonomizado núcleo doméstico”, aplicando-se a união estável entre pessoas do mesmo sexo as mesmas regras e mesas consequências da união estável heteroafetiva (ADI 4277 e ADPF 132, Rel. Min. Ayres Britto, j. 05.05.2011)

2. Não é legítimo desequiparar, para fins sucessórios, os cônjuges e os companheiros, isto é, a família formada pelo casamento e a formada por união estável. Tal hierarquização entre entidades familiares é incompatível com a Constituição de 1988. Assim sendo, o art. 1790 do Código Civil, ao revogar as Leis nº 8.971/1994 e nº 9.278/1996 e discriminar a companheira (ou o companheiro), dando-lhe direitos sucessórios bem inferiores aos conferidos à esposa (ou ao marido), entra em contraste com os princípios da igualdade, da dignidade humana, da proporcionalidade como vedação à proteção deficiente e da vedação do retrocesso.

3. Com a finalidade de preservar a segurança jurídica, o entendimento ora firmado é aplicável apenas aos inventários judiciais em que não tenha havido trânsito em julgado da sentença de partilha e às partilhas extrajudiciais em que ainda não haja escritura pública. 4. Provimento do recurso extraordinário. Afirmação, em repercussão geral, da seguinte tese: “No sistema constitucional vigente, é inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros, devendo ser aplicado, em ambos os casos, o regime estabelecido no art. 1.829 do CC/2002”.

DIREITO CONSTITUCIONAL E CIVIL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO. REPERCUSSÃO GERAL. INCONSTITUCIONALIDADE DA DISTINÇÃO DE REGIME SUCESSÓRIO ENTRE CÔNJUGES E COMPANHEIROS.

1. A Constituição brasileira contempla diferentes formas de família legítima, além da que resulta do casamento. Nesse rol incluem-se as famílias formadas mediante união estável.

2. Não é legítimo desequiparar, para fins sucessórios, os cônjuges e os companheiros, isto é, a família formada pelo casamento e a formada por união estável. Tal hierarquização entre entidades familiares é incompatível com a Constituição de 1988.

3. Assim sendo, o art. 1790 do Código Civil, ao revogar as Leis nºs 8.971/94 e 9.278/96 e discriminar a companheira (ou o companheiro), dando-lhe direitos sucessórios bem inferiores aos conferidos à esposa (ou ao marido), entra em contraste com os princípios da igualdade, da dignidade humana, da proporcionalidade como vedação à proteção deficiente, e da vedação do retrocesso.

4. Com a finalidade de preservar a segurança jurídica, o entendimento ora firmado é aplicável apenas aos inventários judiciais em que não tenha havido trânsito em julgado da sentença de partilha, e às partilhas extrajudiciais em que ainda não haja escritura pública.

5. Provimento do recurso extraordinário. Afirmação, em repercussão geral, da seguinte tese: “No sistema constitucional vigente, é inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros, devendo ser aplicado, em ambos os casos, o regime estabelecido no art. 1.829 do CC/2002”.

Por sua vez, o Ministério Público Federal, no parecer de lavra do eminente Subprocurador-Geral da República, Dr. Sady d’Assumpção Torres Filho, asseverou não pode prevalecer o disposto no art. 1.790, do Código Civil, por conferir tratamento injustificadamente díspar entre os institutos do casamento e da união estável (fls. 301/302):

(…)

Verifica-se, de imediato,que a presente controvérsia limita-se a discutir a possibilidade ou não de se aplicar as regras do regime sucessório dos cônjuges ao dos companheiros.

Quanto ao tema, impõe-se reconhecer que, de fato, não pode prevalecer o que disposto no art. 1.790 do Código Civil, por conferir tratamento injustificadamente díspar entre os institutos do casamento e da união estável.

A tortuosidade do ora combatido art. 1.790 é tal que, a depender do contexto fático, a situação legal do companheiro sobrevivente se revela mais vantajosa que a do cônjuge sobrevivente ou, como no caso dos autos, deveras prejudicial.

Destarte, a interpretação literal de seus incisos não se harmoniza, a toda evidência, ao que preceituado no art. 226, § 3°, da Constituição da República, sendo que a melhor exegese quanto ao tema resulta no entendimento de que companheiros e cônjuges fazem jus, em igual medida, aos direitos eventualmente decorrentes da sucessão.

Analisando hipótese semelhante à dos autos, o Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, no julgamento do Recurso Especial n.º 1.357.117/MG, em sede de petição de herança, após afirmar ser inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros, destacou o entendimento no sentido de que os parentes colaterais, tais como irmãos, tios e sobrinhos, são herdeiros de quarta e última classe na ordem de vocação hereditária, herdando apenas na ausência de descendentes, ascendentes e cônjuge ou companheiro, em virtude da ordem legal de vocação hereditária.

A propósito:

RECURSO ESPECIAL. CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. DIREITO DE FAMÍLIA E DAS SUCESSÕES. UNIÃO ESTÁVEL. ART. 1.790 DO CC/2002. INCONSTITUCIONALIDADE. ART. 1.829 DO CC/2002. APLICABILIDADE. VOCAÇÃO HEREDITÁRIA. PARTILHA. COMPANHEIRO. EXCLUSIVIDADE. COLATERAIS. AFASTAMENTO. ARTS. 1.838 E 1.839 DO CC/2002. INCIDÊNCIA.

1. Recurso especial interposto contra acórdão publicado na vigência do Código de Processo Civil de 1973 (Enunciados Administrativos nºs 2 e 3/STJ).

2. No sistema constitucional vigente, é inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros, devendo ser aplicado em ambos os casos o regime do artigo 1.829 do CC/2002, conforme tese estabelecida pelo Supremo Tribunal Federal em julgamento sob o rito da repercussão geral (Recursos Extraordinários nºs 646.721 e 878.694).

3. Na falta de descendentes e ascendentes, será deferida a sucessão por inteiro ao cônjuge ou companheiro sobrevivente, ressalvada disposição de última vontade.

4. Os parentes colaterais, tais como irmãos, tios e sobrinhos, são herdeiros de quarta e última classe na ordem de vocação hereditária, herdando apenas na ausência de descendentes, ascendentes e cônjuge ou companheiro, em virtude da ordem legal de vocação hereditária.

5. Recurso especial não provido. (REsp 1.357.117/MG, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 13/3/2018, DJe 26/3/2018).

Dessa forma, não resta qualquer dúvida de que, na falta de descendentes e ascendentes, será deferida a sucessão por inteiro ao cônjuge ou companheiro sobrevivente, ressalvada eventual disposição de última vontade.

Entretanto, a questão processual posta nos presentes autos, como já aludido, situa-se em torno da necessidade de inclusão, no polo passivo da demanda de reconhecimento e dissolução de união estável, dos parentes colaterais da falecida como seus possíveis herdeiros para a hipótese de não reconhecimento da união estável alegada.

Relembre-se a ordem de vocação hereditária para a sucessão legítima definida pelos artigos 1829 e seguintes do Código Civil:

Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte: (Vide Recurso Extraordinário nº 646.721 e Recurso Extraordinário nº 878.694)

I – aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares;

II – aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge;

III – ao cônjuge sobrevivente;

IV – aos colaterais.

Art. 1.830. Somente é reconhecido direito sucessório ao cônjuge sobrevivente se, ao tempo da morte do outro, não estavam separados judicialmente, nem separados de fato há mais de dois anos, salvo prova, neste caso, de que essa convivência se tornara impossível sem culpa do sobrevivente.

Art. 1.838. Em falta de descendentes e ascendentes, será deferida a sucessão por inteiro ao cônjuge sobrevivente.

Art. 1.839. Se não houver cônjuge sobrevivente, nas condições estabelecidas no art. 1.830, serão chamados a suceder os colaterais até o quarto grau.

Ora, na hipótese de não reconhecimento da união estável entre o recorrente e a falecida, serão os seus parentes colaterais os seus herdeiros legítimos (art. 1829, IV, c/c o art. 1839 do CC).

Com isso, fica patente a existência de um litisconsórcio passivo necessário, confirmando a necessidade de inclusão dos herdeiros colaterais no polo passivo da demanda.

Portanto, nesse aspecto, não assiste razão ao recorrente.

Relembre-se, finalmente, a necessidade de demonstração da existência da união estável na época do falecimento (art. 1830), conforme definida pelo Código Civil, em seu art. 1.723, como entidade familiar entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família, verbis:

Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família.

No caso dos autos, o julgador de primeiro grau destacou que os parentes colaterais da falecida possuem interesse direto na formação do convencimento daquele juízo quanto à existência da união instável invocada.

Ademais, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça reconhece a legitimidade dos sucessores para pleitearem direitos transmitidos pelo falecido antes mesmo de inaugurado o inventário, considerando que o direito patrimonial perseguido é transmissível aos herdeiros.

A propósito:

PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO ORDINÁRIA EM FASE DE CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. SUBSTITUIÇÃO DOS FALECIDOS POR SEUS SUCESSORES. ABERTURA DE INVENTÁRIO. DESNECESSIDADE.

1. A jurisprudência do STJ reconhece a legitimidade dos sucessores para pleitearem direitos transmitidos pelo falecido antes mesmo de inaugurado o inventário, considerando que o direito patrimonial perseguido é transmissível aos herdeiros.

2. Acórdão recorrido em dissonância com a orientação firmada pelo STJ.

3. Recurso Especial provido. (REsp 1715839/SP, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 17/04/2018, DJe 25/05/2018)

Além disso, conforme noticiado pelo próprio recorrente, tramita na mesma Comarca de Paraguaçu Paulista/SP, ação de inventário sob o n.º 100150393.2016.8.26.0417, para a definir a sucessão dos bens deixados pela falecida.

Enfim, deve ser reconhecido o interesse dos parentes colaterais da falecida em participar do polo passivo da demanda em que o recorrente pleiteia o reconhecimento da existência de união estável.

Ante o exposto, com arrimo no art. 932, inciso IV, do Código de Processo Civil, voto no sentido de negar provimento ao recuso especial.

É o voto. – – /

Dados do processo:

STJ – REsp nº 1.759.652 – São Paulo – 3ª Turma – Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino – DJ 18.08.2020

Fonte: INR Publicações

Publicação: Portal do RI (Registro de Imóveis) | O Portal das informações notariais, registrais e imobiliárias

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