Recurso Especial – Direito civil e processual civil – Ação de reconhecimento e dissolução de união estável – Post mortem – Herdeiros colaterais – Determinação de emenda da petição inicial para a inclusão de litisconsortes necessários – Inconstitucionalidade do art. 1.790 do CC/2002 reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal em sede de repercussão geral – Pedido de reconhecimento de união estável – Presença dos parentes colaterais – Necessidade – Vocação hereditária – Companheiro – Exclusividade – Afastamento dos colaterais – Conforme previsão legal – 1. Controvérsia em torno da necessidade, ou não, da inclusão dos herdeiros colaterais no polo passivo de demanda de reconhecimento e dissolução de união estável “post mortem” cumulada com pedido de concessão da totalidade de bens da companheira – 2. Alegação do recorrente de que (a) os herdeiros colaterais não concorrem na herança em razão da flagrante inconstitucionalidade do art. 1.790, do Código Civil; (b) os herdeiros colaterais não possuem interesse direto na formação do convencimento do juízo quanto à existência da união estável invocada; (c) a legitimidade dos herdeiros colaterais deve ser discutida nos autos do inventário – 3. Reconhecimento pelas instâncias de origem de que os parentes colaterais da falecida possuem interesse direto na formação do convencimento daquele juízo quanto à existência da união estável invocada na própria demanda em que é postulada a sua declaração – 4. O Supremo Tribunal Federal, ao julgar os Recursos Extraordinários nº 646721/RS e 878694/MG, ambos com repercussão geral reconhecida, fixou a de que “é inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros prevista no art. 1.790 do CC/2002, devendo ser aplicado, tanto nas hipóteses de casamento quanto nas de união estável, o regime do art. 1.829 do CC/2002.” – 5. Analisando hipótese semelhante, o Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, no julgamento do Recurso Especial nº 1.357.117/MG, em sede de petição de herança, após afirmar ser inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros, destacou o entendimento no sentido de que os parentes colaterais, tais como irmãos, tios e sobrinhos, são herdeiros de quarta e última classe na ordem de vocação hereditária, herdando apenas na ausência de descendentes, ascendentes e cônjuge ou companheiro, em virtude da ordem legal de vocação hereditária – 5. Correto o posicionamento das instâncias de origem no sentido da necessidade de inclusão no polo passivo da demanda de reconhecimento e dissolução de união estável dos possíveis herdeiros da falecida em face de seu evidente interesse jurídico no desenlace da presente demanda – 6. Na hipótese de não reconhecimento da união estável, serão eles os herdeiros legítimos da falecida (art. 1829, IV, c/c o art. 1839 do CC) – 7. Litisconsórcio passivo necessário caracterizado, confirmando a necessidade de inclusão dos herdeiros colaterais no polo passivo da demanda – 8. Recurso especial desprovido.

RECURSO ESPECIAL Nº 1.759.652 – SP (2018/0203243-2)

RELATOR : MINISTRO PAULO DE TARSO SANSEVERINO

RECORRENTE : J G

ADVOGADO : LEONARDO DE GÊNOVA – SP167749

RECORRIDO : B T DOS S – ESPÓLIO

EMENTA

RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO DE RECONHECIMENTO E DISSOLUÇÃO DE UNIÃO ESTÁVEL. POST MORTEM. HERDEIROS COLATERAIS. DETERMINAÇÃO DE EMENDA DA PETIÇÃO INICIAL PARA A INCLUSÃO DE LITISCONSORTES NECESSÁRIOS. INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 1.790 DO CC/2002 RECONHECIDA PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL EM SEDE DE REPERCUSSÃO GERAL. PEDIDO DE RECONHECIMENTO DE UNIÃO ESTÁVEL. PRESENÇA DOS PARENTES COLATERAIS. NECESSIDADE. VOCAÇÃO HEREDITÁRIA. COMPANHEIRO. EXCLUSIVIDADE. AFASTAMENTO DOS COLATERAIS. CONFORME PREVISÃO LEGAL.

1. Controvérsia em torno da necessidade, ou não, da inclusão dos herdeiros colaterais no polo passivo de demanda de reconhecimento e dissolução de união estável “post mortem” cumulada com pedido de concessão da totalidade de bens da companheira.

2. Alegação do recorrente de que (a) os herdeiros colaterais não concorrem na herança em razão da flagrante inconstitucionalidade do art. 1.790, do Código Civil; (b) os herdeiros colaterais não possuem interesse direto na formação do convencimento do juízo quanto à existência da união estável invocada; (c) a legitimidade dos herdeiros colaterais deve ser discutida nos autos do inventário.

3. Reconhecimento pelas instâncias de origem de que os parentes colaterais da falecida possuem interesse direto na formação do convencimento daquele juízo quanto à existência da união estável invocada na própria demanda em que é postulada a sua declaração.

4. O Supremo Tribunal Federal, ao julgar os Recursos Extraordinários n.º 646721/RS e 878694/MG, ambos com repercussão geral reconhecida, fixou a de que “é inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros prevista no art. 1.790 do CC/2002, devendo ser aplicado, tanto nas hipóteses de casamento quanto nas de união estável, o regime do art. 1.829 do CC/2002.”

5. Analisando hipótese semelhante, o Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, no julgamento do Recurso Especial n.º 1.357.117/MG, em sede de petição de herança, após afirmar ser inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros, destacou o entendimento no sentido de que os parentes colaterais, tais como irmãos, tios e sobrinhos, são herdeiros de quarta e última classe na ordem de vocação hereditária, herdando apenas na ausência de descendentes, ascendentes e cônjuge ou companheiro, em virtude da ordem legal de vocação hereditária.

5. Correto o posicionamento das instâncias de origem no sentido da necessidade de inclusão no polo passivo da demanda de reconhecimento e dissolução de união estável dos possíveis herdeiros da falecida em face de seu evidente interesse jurídico no desenlace da presente demanda.

6. Na hipótese de não reconhecimento da união estável, serão eles os herdeiros legítimos da falecida (art. 1829, IV, c/c o art. 1839 do CC).

7. Litisconsórcio passivo necessário caracterizado, confirmando a necessidade de inclusão dos herdeiros colaterais no polo passivo da demanda.

8. RECURSO ESPECIAL DESPROVIDO.

ACÓRDÃO 

Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da TERCEIRA TURMA do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, negar provimento ao recurso especial, nos termos do voto do(a) Sr(a). Ministro(a) Relator(a). Os Srs. Ministros Ricardo Villas Bôas Cueva, Marco Aurélio Bellizze, Moura Ribeiro (Presidente) e Nancy Andrighi votaram com o Sr. Ministro Relator.

Brasília, 23 de junho de 2020(data do julgamento)

MINISTRO PAULO DE TARSO SANSEVERINO

Relator

RELATÓRIO

O EXMO. SR. MINISTRO PAULO DE TARSO SANSEVERINO (Relator):

Trata-se de recurso especial, com pedido de efeito suspensivo, interposto por JOSÉ GIROTTO com arrimo no art. 105, inciso III, alíneas “a” e “c” da Constituição da República contra acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (fl. 43):

AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECONHECIMENTO E DISSOLUÇÃO DE UNIÃO ESTÁVEL POST MORTEM DETERMINAÇÃO DE EMENDA DA INICIAL PARA A INCLUSÃO DE LITISCONSORTES NECESSÁRIOS (HERDEIROS DA FALECIDA) O AUTOR (AGRAVANTE) ALEGA INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 1790 DO CC O C. ÓRGÃO ESPECIAL DESTE E. TJ DECIDIU EM ARGUIÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE QUE O DISPOSITIVO LEGAL É CONSTITUCIONAL – O STF AINDA NÃO DECIDIU SOBRE EVENTUAL INCONSTITUCIONALIDADE DESSE DISPOSITIVO LEGAL. CONFIRMA-SE DECISÃO. NEGA-SE PROVIMENTO AO RECURSO.

Consta dos autos que J. G. interpôs agravo de instrumento contra a decisão do juízo de primeiro grau que, nos autos da ação de reconhecimento e dissolução de união estável post mortem, proposta em desfavor de B. T. dos S., determinou a emenda da petição inicial para a inclusão de litisconsortes necessários – parentes colaterais da falecida.

O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo negou provimento ao agravo de instrumento conforme a ementa acima transcrita.

Em suas razões de recurso especial, o recorrente asseverou pela desnecessidade de inclusão dos herdeiros colaterais na presente demanda de reconhecimento e dissolução de união estável sob os seguintes fundamentos: a) os herdeiros colaterais não concorrem na herança em razão da flagrante inconstitucionalidade do art. 1.790, do Código Civil; b) os herdeiros colaterais não possuem interesse direto na formação do convencimento do juízo quanto à existência da união estável invocada; c) a legitimidade dos herdeiros colaterais deve ser discutida nos autos do inventário.

Acenou pela ocorrência de dissídio jurisprudencial, requerendo o provimento do recurso especial para afastar a inclusão no polo passivo da demanda os herdeiros colaterais e, por fim, a concessão da totalidade dos bens da falecida.

Não houve apresentação de contrarrazões ao recurso especial.

O Ministério Público Federal ofertou parecer às fls. 300/302, pelo provimento do recurso especial.

É o relatório.

VOTO

O EXMO. SR. MINISTRO PAULO DE TARSO SANSEVERINO (Relator):

Eminentes Colegas. A questão processual devolvida ao conhecimento do Superior Tribunal de Justiça situa-se em torno da necessidade de inclusão dos herdeiros colaterais da falecida acerca de ação de reconhecimento e dissolução de união estável post mortem movida por seu alegado ex-companheiro e a possibilidade de concessão a ele da totalidade dos bens da falecida.

O Juízo de primeiro grau, ao analisar a petição inicial, entendeu que, apesar de a discussão do direito hereditário não ser objeto do pedido inicial, necessária a emenda da petição inicial para a inclusão no polo passivo dos parentes colaterais da falecida sob os seguintes fundamentos (fls. 141/142):

Em que pese a discussão do direito hereditário não ser alvo do presente feito, tenho que os herdeiros colaterais da Sra. Benedita Timóteo dos Santos possuem interesse direto na formação do convencimento deste juízo quanto à existência da união instável invocada.

A meu aviso, há um verdadeiro litisconsórcio passivo necessário e unitário (arts. 114 e 116 do NCPC). É necessário pela natureza da relação que diretamente influencia o direito de herança dos interessados. E também é unitário, pois o efeito que decorrerá da coisa julgada afetará a todos de forma unitária.

Desta feita, a inclusão dos aludidos herdeiros na presente demanda é medida de rigor, de modo legitimar a imposição da coisa julgada a todos os afetados.

Lado outro, poder-se-ia invocar a desnecessidade de tal diligência em face da inconstitucionalidade do art. 1790 do Código Civil.

Contudo, o Órgão Especial do Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo já se manifestou quanto à sua constitucionalidade, conforme se denota do seguinte aresto: “União estável. Direito sucessório. Sucessão do companheiro. Inconstitucionalidade do art. 1.790 do CC/02. Disparidade de tratamento entre união estável e casamento e ou das distintas entidades familiares. Inocorrência de violação a preceitos e princípios constitucionais. Incidente desprovido” (Arguição de Inconstitucionalidade n° 0434423-72.2010.8.26.0000, Rel. Des. Cauduro Padin, J. 14.9.2011).

Ainda sobre a regularidade da petição inicial, destaca-se que a falecida companheira do requerente não possui personalidade jurídica e capacidade processual para figurar no polo passivo da demanda, sendo necessária a emenda à inicial para fazer constar o seu espólio.

Isso posto, determino que o requerente emende à inicial, no prazo de 10 (dez) dias, para: i) incluir no polo passivo da demanda todos os herdeiros colaterais da Sra. Benedita Timóteo dos Santos (fls. 34); e ii) fazer constar o espólio da Sra. Benedita Timóteo dos Santos ao invés da própria de cujus (g.n.).

O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, por sua vez, manteve o julgado singular nos seguintes termos (fls. 44/45):

O agravante impugna apenas a determinação de inclusão dos herdeiros colaterais da falecida no polo passivo.

As razões deste recurso não colocam em dúvida o resulta o do julgamento da Arguição de Inconstitucionalidade n. 0434423-72.2010.8.26.0000 pelo c. Órgão Especial d este e. TJ (acórdão relatado pelo e. Des. Cauduro Padim e proferido em 14/09/2011) sobre a constitucionalidade do art. 1790 do CC.

O STF ainda não decidiu sobre eventual inconstitucionalidade desse dispositivo legal.

O Recurso Extraordinário n. 878.694 distribuído ao Ministro Luis Roberto Barroso está ainda em julgamento (em 31/08/2016) o Ministro Dias Toffoli pediu vista dos autos, conforme andamento disponível no site do STF).

Assim, o art. 1790 do CC está vigente e, consequentemente, os herdeiros de Benedita Timóteo dos Santos são litisconsortes necessários.

Por fim, a Súmula 380 do STF, que trata da partilha do patrimônio adquirido pelo esforço comum entre “concubinos”, não afasta o litisconsórcio passivo necessário dos sucessores da falecida.

Verifica-se, portanto, que o juízo de primeiro grau entendeu que os parentes colaterais da falecida possuem interesse direto na formação do convencimento quanto à existência da união instável invocada, bem como destacou a existência de litisconsórcio passivo necessário unitário, além de afirmar a constitucionalidade do art. 1.790, do Código Civil.

O Tribunal de Justiça se ateve à inexistência de inconstitucionalidade do dispositivo previsto no ordenamento civil ao argumento de que, no julgamento da Arguição de Inconstitucionalidade n.º 0434423-72.2010.8.26.0000, perante o Órgão Especial daquele Tribunal de Justiça, fora afastada a tese de inconstitucionalidade do art. 1790, do Código Civil, além de o Supremo Tribunal Federal ainda não ter concluído, na época, o julgamento sobre eventual inconstitucionalidade do referido dispositivo legal.

Em suas razões de recurso especial, o recorrente asseverou que: a) os herdeiros colaterais não concorrem na herança em razão da flagrante inconstitucionalidade do art. 1.790, do Código Civil; b) os herdeiros colaterais não possuem interesse direto na formação do convencimento do juízo quanto à existência da união estável invocada; c) a legitimidade dos herdeiros colaterais deve ser discutida nos autos do inventário.

No entanto, em que pese a farta fundamentação do recurso especial, a irresignação recursal não merece acolhida.

Em relação à inconstitucionalidade do art. 1.790, do Código Civil, assiste razão ao recorrente, pois efetivamente o Supremo Tribunal Federal, ao julgar os Recursos Extraordinários n.º 646721/RS e 878694/MG, ambos com repercussão geral reconhecida, declarou a sua inconstitucionalidade, fixando a seguinte tese:

É inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros prevista no art. 1.790 do CC/2002, devendo ser aplicado, tanto nas hipóteses de casamento quanto nas de união estável, o regime do art. 1.829 do CC/2002.

Eis a ementa dos precedentes do STF:

DIREITO CONSTITUCIONAL E CIVIL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO. REPERCUSSÃO GERAL. APLICAÇÃO DO ARTIGO 1.790 DO CÓDIGO CIVIL À SUCESSÃO EM UNIÃO ESTÁVEL HOMOAFETIVA. INCONSTITUCIONALIDADE DA DISTINÇÃO DE REGIME SUCESSÓRIO ENTRE CÔNJUGES E COMPANHEIROS.

1. A Constituição brasileira contempla diferentes formas de família legítima, além da que resulta do casamento. Nesse rol incluem-se as famílias formadas mediante união estável, hetero ou homoafetivas. O STF já reconheceu a “inexistência de hierarquia ou diferença de qualidade jurídica entre as duas formas de constituição de um novo e autonomizado núcleo doméstico”, aplicando-se a união estável entre pessoas do mesmo sexo as mesmas regras e mesas consequências da união estável heteroafetiva (ADI 4277 e ADPF 132, Rel. Min. Ayres Britto, j. 05.05.2011)

2. Não é legítimo desequiparar, para fins sucessórios, os cônjuges e os companheiros, isto é, a família formada pelo casamento e a formada por união estável. Tal hierarquização entre entidades familiares é incompatível com a Constituição de 1988. Assim sendo, o art. 1790 do Código Civil, ao revogar as Leis nº 8.971/1994 e nº 9.278/1996 e discriminar a companheira (ou o companheiro), dando-lhe direitos sucessórios bem inferiores aos conferidos à esposa (ou ao marido), entra em contraste com os princípios da igualdade, da dignidade humana, da proporcionalidade como vedação à proteção deficiente e da vedação do retrocesso.

3. Com a finalidade de preservar a segurança jurídica, o entendimento ora firmado é aplicável apenas aos inventários judiciais em que não tenha havido trânsito em julgado da sentença de partilha e às partilhas extrajudiciais em que ainda não haja escritura pública. 4. Provimento do recurso extraordinário. Afirmação, em repercussão geral, da seguinte tese: “No sistema constitucional vigente, é inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros, devendo ser aplicado, em ambos os casos, o regime estabelecido no art. 1.829 do CC/2002”.

DIREITO CONSTITUCIONAL E CIVIL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO. REPERCUSSÃO GERAL. INCONSTITUCIONALIDADE DA DISTINÇÃO DE REGIME SUCESSÓRIO ENTRE CÔNJUGES E COMPANHEIROS.

1. A Constituição brasileira contempla diferentes formas de família legítima, além da que resulta do casamento. Nesse rol incluem-se as famílias formadas mediante união estável.

2. Não é legítimo desequiparar, para fins sucessórios, os cônjuges e os companheiros, isto é, a família formada pelo casamento e a formada por união estável. Tal hierarquização entre entidades familiares é incompatível com a Constituição de 1988.

3. Assim sendo, o art. 1790 do Código Civil, ao revogar as Leis nºs 8.971/94 e 9.278/96 e discriminar a companheira (ou o companheiro), dando-lhe direitos sucessórios bem inferiores aos conferidos à esposa (ou ao marido), entra em contraste com os princípios da igualdade, da dignidade humana, da proporcionalidade como vedação à proteção deficiente, e da vedação do retrocesso.

4. Com a finalidade de preservar a segurança jurídica, o entendimento ora firmado é aplicável apenas aos inventários judiciais em que não tenha havido trânsito em julgado da sentença de partilha, e às partilhas extrajudiciais em que ainda não haja escritura pública.

5. Provimento do recurso extraordinário. Afirmação, em repercussão geral, da seguinte tese: “No sistema constitucional vigente, é inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros, devendo ser aplicado, em ambos os casos, o regime estabelecido no art. 1.829 do CC/2002”.

Por sua vez, o Ministério Público Federal, no parecer de lavra do eminente Subprocurador-Geral da República, Dr. Sady d’Assumpção Torres Filho, asseverou não pode prevalecer o disposto no art. 1.790, do Código Civil, por conferir tratamento injustificadamente díspar entre os institutos do casamento e da união estável (fls. 301/302):

(…)

Verifica-se, de imediato,que a presente controvérsia limita-se a discutir a possibilidade ou não de se aplicar as regras do regime sucessório dos cônjuges ao dos companheiros.

Quanto ao tema, impõe-se reconhecer que, de fato, não pode prevalecer o que disposto no art. 1.790 do Código Civil, por conferir tratamento injustificadamente díspar entre os institutos do casamento e da união estável.

A tortuosidade do ora combatido art. 1.790 é tal que, a depender do contexto fático, a situação legal do companheiro sobrevivente se revela mais vantajosa que a do cônjuge sobrevivente ou, como no caso dos autos, deveras prejudicial.

Destarte, a interpretação literal de seus incisos não se harmoniza, a toda evidência, ao que preceituado no art. 226, § 3°, da Constituição da República, sendo que a melhor exegese quanto ao tema resulta no entendimento de que companheiros e cônjuges fazem jus, em igual medida, aos direitos eventualmente decorrentes da sucessão.

Analisando hipótese semelhante à dos autos, o Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, no julgamento do Recurso Especial n.º 1.357.117/MG, em sede de petição de herança, após afirmar ser inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros, destacou o entendimento no sentido de que os parentes colaterais, tais como irmãos, tios e sobrinhos, são herdeiros de quarta e última classe na ordem de vocação hereditária, herdando apenas na ausência de descendentes, ascendentes e cônjuge ou companheiro, em virtude da ordem legal de vocação hereditária.

A propósito:

RECURSO ESPECIAL. CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. DIREITO DE FAMÍLIA E DAS SUCESSÕES. UNIÃO ESTÁVEL. ART. 1.790 DO CC/2002. INCONSTITUCIONALIDADE. ART. 1.829 DO CC/2002. APLICABILIDADE. VOCAÇÃO HEREDITÁRIA. PARTILHA. COMPANHEIRO. EXCLUSIVIDADE. COLATERAIS. AFASTAMENTO. ARTS. 1.838 E 1.839 DO CC/2002. INCIDÊNCIA.

1. Recurso especial interposto contra acórdão publicado na vigência do Código de Processo Civil de 1973 (Enunciados Administrativos nºs 2 e 3/STJ).

2. No sistema constitucional vigente, é inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros, devendo ser aplicado em ambos os casos o regime do artigo 1.829 do CC/2002, conforme tese estabelecida pelo Supremo Tribunal Federal em julgamento sob o rito da repercussão geral (Recursos Extraordinários nºs 646.721 e 878.694).

3. Na falta de descendentes e ascendentes, será deferida a sucessão por inteiro ao cônjuge ou companheiro sobrevivente, ressalvada disposição de última vontade.

4. Os parentes colaterais, tais como irmãos, tios e sobrinhos, são herdeiros de quarta e última classe na ordem de vocação hereditária, herdando apenas na ausência de descendentes, ascendentes e cônjuge ou companheiro, em virtude da ordem legal de vocação hereditária.

5. Recurso especial não provido. (REsp 1.357.117/MG, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 13/3/2018, DJe 26/3/2018).

Dessa forma, não resta qualquer dúvida de que, na falta de descendentes e ascendentes, será deferida a sucessão por inteiro ao cônjuge ou companheiro sobrevivente, ressalvada eventual disposição de última vontade.

Entretanto, a questão processual posta nos presentes autos, como já aludido, situa-se em torno da necessidade de inclusão, no polo passivo da demanda de reconhecimento e dissolução de união estável, dos parentes colaterais da falecida como seus possíveis herdeiros para a hipótese de não reconhecimento da união estável alegada.

Relembre-se a ordem de vocação hereditária para a sucessão legítima definida pelos artigos 1829 e seguintes do Código Civil:

Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte: (Vide Recurso Extraordinário nº 646.721 e Recurso Extraordinário nº 878.694)

I – aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares;

II – aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge;

III – ao cônjuge sobrevivente;

IV – aos colaterais.

Art. 1.830. Somente é reconhecido direito sucessório ao cônjuge sobrevivente se, ao tempo da morte do outro, não estavam separados judicialmente, nem separados de fato há mais de dois anos, salvo prova, neste caso, de que essa convivência se tornara impossível sem culpa do sobrevivente.

Art. 1.838. Em falta de descendentes e ascendentes, será deferida a sucessão por inteiro ao cônjuge sobrevivente.

Art. 1.839. Se não houver cônjuge sobrevivente, nas condições estabelecidas no art. 1.830, serão chamados a suceder os colaterais até o quarto grau.

Ora, na hipótese de não reconhecimento da união estável entre o recorrente e a falecida, serão os seus parentes colaterais os seus herdeiros legítimos (art. 1829, IV, c/c o art. 1839 do CC).

Com isso, fica patente a existência de um litisconsórcio passivo necessário, confirmando a necessidade de inclusão dos herdeiros colaterais no polo passivo da demanda.

Portanto, nesse aspecto, não assiste razão ao recorrente.

Relembre-se, finalmente, a necessidade de demonstração da existência da união estável na época do falecimento (art. 1830), conforme definida pelo Código Civil, em seu art. 1.723, como entidade familiar entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família, verbis:

Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família.

No caso dos autos, o julgador de primeiro grau destacou que os parentes colaterais da falecida possuem interesse direto na formação do convencimento daquele juízo quanto à existência da união instável invocada.

Ademais, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça reconhece a legitimidade dos sucessores para pleitearem direitos transmitidos pelo falecido antes mesmo de inaugurado o inventário, considerando que o direito patrimonial perseguido é transmissível aos herdeiros.

A propósito:

PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO ORDINÁRIA EM FASE DE CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. SUBSTITUIÇÃO DOS FALECIDOS POR SEUS SUCESSORES. ABERTURA DE INVENTÁRIO. DESNECESSIDADE.

1. A jurisprudência do STJ reconhece a legitimidade dos sucessores para pleitearem direitos transmitidos pelo falecido antes mesmo de inaugurado o inventário, considerando que o direito patrimonial perseguido é transmissível aos herdeiros.

2. Acórdão recorrido em dissonância com a orientação firmada pelo STJ.

3. Recurso Especial provido. (REsp 1715839/SP, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 17/04/2018, DJe 25/05/2018)

Além disso, conforme noticiado pelo próprio recorrente, tramita na mesma Comarca de Paraguaçu Paulista/SP, ação de inventário sob o n.º 100150393.2016.8.26.0417, para a definir a sucessão dos bens deixados pela falecida.

Enfim, deve ser reconhecido o interesse dos parentes colaterais da falecida em participar do polo passivo da demanda em que o recorrente pleiteia o reconhecimento da existência de união estável.

Ante o exposto, com arrimo no art. 932, inciso IV, do Código de Processo Civil, voto no sentido de negar provimento ao recuso especial.

É o voto. – – /

Dados do processo:

STJ – REsp nº 1.759.652 – São Paulo – 3ª Turma – Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino – DJ 18.08.2020

Fonte: INR Publicações

Publicação: Portal do RI (Registro de Imóveis) | O Portal das informações notariais, registrais e imobiliárias

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Registro Público – Recurso em Mandado de Segurança – Recurso manejado sob a égide do NCPC – Cancelamento de procedimento do pedido de loteamento – Adquirente do terreno loteado – Aquisição de todos os lotes do empreendimento – Sub-rogação nos direitos do loteador – Legitimidade para o pedido de cancelamento do procedimento – Recurso provido – Ordem concedida – 1. De plano, vale pontuar que o presente agravo interno foi interposto contra decisão publicada na vigência do novo Código de Processo Civil, razão pela qual devem ser exigidos os requisitos de admissibilidade recursal na forma nele prevista, nos termos do Enunciado Administrativo nº 3 aprovado pelo Plenário do STJ na sessão de 9/3/2016: Aos recursos interpostos com fundamento no CPC/2015 (relativos a decisões publicadas a partir de 18 de março de 2016) serão exigidos os requisitos de admissibilidade recursal na forma do novo CPC – 2. O pedido de cancelamento do procedimento de registro do loteamento pode ser requerido pelo loteador, ou quem por ele se sub-rogou e vedada a pretensão nos casos de comprovado inconveniente para o desenvolvimento urbano ou quando realizado algum melhoramento na área loteada e adjacências – 3. Hipótese de empresa incorporadora e administradora de negócios imobiliários que adquiriu todos os lotes do loteamento e se sub-rogou nos direitos do loteador, possuindo legitimidade para requerer o cancelamento do procedimento do registro do loteamento – 4. Cancelar o procedimento do pedido de registro de loteamento é diferente de pedir o cancelamento do registro do loteamento, hipótese em que a tradição para a Municipalidade já se operou; naquela outra não – 5. Recurso provido, para conceder a ordem de mandado de segurança.

RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA Nº 60.343 – SP (2019/0072435-1)

RELATOR : MINISTRO MOURA RIBEIRO

RECORRENTE : CAMPER EMPREENDIMENTOS LTDA

ADVOGADOS : FERNANDO BRANDÃO ESCUDERO – SP303073

MARCO ANTONIO BATISTA DE MOURA ZIEBARTH – SP296852

DEUANY BERG FONTES – SP350245

RECORRIDO : MUNICÍPIO DE SÃO PAULO

PROCURADOR : EDUARDO MIKALAUSKAS E OUTRO(S) – SP179867

EMENTA

REGISTRO PÚBLICO. RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA. RECURSO MANEJADO SOB A ÉGIDE DO NCPC. CANCELAMENTO DE PROCEDIMENTO DO PEDIDO DE LOTEAMENTO. ADQUIRENTE DO TERRENO LOTEADO. AQUISIÇÃO DE TODOS OS LOTES DO EMPREENDIMENTO. SUB-ROGAÇÃO NOS DIREITOS DO LOTEADOR. LEGITIMIDADE PARA O PEDIDO DE CANCELAMENTO DO PROCEDIMENTO. RECURSO PROVIDO. ORDEM CONCEDIDA.

1. De plano, vale pontuar que o presente agravo interno foi interposto contra decisão publicada na vigência do novo Código de Processo Civil, razão pela qual devem ser exigidos os requisitos de admissibilidade recursal na forma nele prevista, nos termos do Enunciado Administrativo nº 3 aprovado pelo Plenário do STJ na sessão de 9/3/2016: Aos recursos interpostos com fundamento no CPC/2015 (relativos a decisões publicadas a partir de 18 de março de 2016) serão exigidos os requisitos de admissibilidade recursal na forma do novo CPC.

2. O pedido de cancelamento do procedimento de registro do loteamento pode ser requerido pelo loteador, ou quem por ele se sub-rogou e vedada a pretensão nos casos de comprovado inconveniente para o desenvolvimento urbano ou quando realizado algum melhoramento na área loteada e adjacências.

3. Hipótese de empresa incorporadora e administradora de negócios imobiliários que adquiriu todos os lotes do loteamento e se sub-rogou nos direitos do loteador, possuindo legitimidade para requerer o cancelamento do procedimento do registro do loteamento.

4. Cancelar o procedimento do pedido de registro de loteamento é diferente de pedir o cancelamento do registro do loteamento, hipótese em que a tradição para a Municipalidade já se operou; naquela outra não.

5. Recurso provido, para conceder a ordem de mandado de segurança.

ACÓRDÃO 

Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Senhores Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, em dar provimento ao recurso para conceder a ordem de mandado de segurança, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator.

Os Srs. Ministros Nancy Andrighi, Ricardo Villas Bôas Cueva e Marco Aurélio Bellizze votaram com o Sr. Ministro Relator.

Ausente, justificadamente, o Sr. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino.

Dr(a). MARCO ANTONIO BATISTA DE MOURA ZIEBARTH, pela parte RECORRENTE: CAMPER EMPREENDIMENTOS LTDA.

Brasília (DF), 18 de agosto de 2020(Data do Julgamento)

MINISTRO MOURA RIBEIRO

Relator

RELATÓRIO

O EXMO. SR. MINISTRO MOURA RIBEIRO (Relator):

Os autos noticiam que no ano de 1982 foi postulado o registro do loteamento do imóvel matriculado sob o nº 100.360, do 11º Cartório de de Imóveis de São Paulo. Diante disso, a municipalidade de São Paulo pediu a averbação de área de passagem particular, uma praça e faixa sanitária.

Por escritura de venda e compra a CAMPER EMPREENDIMENTOS LTDA (CAMPER) adquiriu a gleba, que foi desmembrada em 14 áreas de 129,50 m², uma de 146,85 m² e outra de 378,05 m², que passaram a ter matrículas próprias, de nºs. 135.782 a 135.797.

Diante do seu desinteresse em manter o empreendimento, a CAMPER solicitou perante o 11º Cartório de Registro de Imóveis de São Paulo o cancelamento do procedimento de registro do loteamento, o que não foi acolhido.

Contra essa rejeição do Cartório de Registro de Imóveis, a CAMPER apresentou pedido de providência perante a 1ª Vara de Registro Público pretendendo o cancelamento do registro do loteamento existente na matrícula n° 100.360.

O pedido foi julgado procedente, determinando o cancelamento do loteamento (e-STJ, fl. 344).

Em recurso administrativo do Município de São Paulo, o Corregedor Geral de Justiça, Desembargador Pereira Caldas, deu provimento a irresignação para impedir o cancelamento do loteamento (e-STJ, fls. 390/397).

Contra esse ato, a CAMPER impetrou mandado de segurança, sob o argumento de que a decisão proferida no pedido de providência viola direito líquido e certo previsto nos artigos 23 e 29, ambos da Lei nº 6.766/79, que expressamente permitem ao loteador, ou àquele sub-rogado a essa condição, requerer o cancelamento do registro do loteamento enquanto nenhum lote houver sido objeto de contrato, só podendo o Poder Público se opor ao cancelamento se demonstrado inconveniente para o desenvolvimento urbano ou se já tiver realizado melhoramento na área loteada ou adjacências, circunstancias não observadas no caso concreto.

Alegou que adquiriu o imóvel como um todo, efetuando dois pagamentos: um referente a totalidade dos lotes e outro sobre terreno independente, que corresponderia a futura área pública do loteamento a ser implementado, e acrescentou que a escritura de compra e venda apontou a negociação de um único terreno, qual seja, aquele destinado ao empreendimento. Sustentou que, diante do seu objetivo social e pela forma como foi realizada a compra e venda, a intenção foi a de assumir a qualidade de loteador, em sub-rogação. Defendeu que o cancelamento não acarretará enriquecimento ilícito pela reversão de bens públicos para o seu patrimônio, porque o espaço destinado a praça, rua e faixa sanitária ainda não teriam sido passado ao Poder Público. Por fim, asseverou inexistir fundamento legal para Municipalidade discordar do pretendido cancelamento.

Ao apreciar a pretensão, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, por maioria, denegou a ordem, cujo acórdão encontra-se assim ementado:

REGISTRO DE IMÓVEIS – Pretendido cancelamento de registro de loteamento regularizado pela municipalidade — Lei n° 6.766/79, artigo 23 — Efetiva impugnação do município – Pedido de cancelamento formulado pela compradora dos lotes – Ausente sub-rogação de direitos – Pedido que deve ser formulado pela empreendedora contando com anuência da municipalidade – Áreas públicas incorporadas – Ausente direito de incorporação – Empreendimento, por sinal, regularizado por ação do município – Ausente direito líquido e certo quanto à pretensão – Pressupostos da ação constitucional não atendidos e, referente ao mérito, pretensão sem amparo na lei 6.766/79 – Legalidade da decisão atacada – Cancelamento que não se justifica – SEGURANÇA DENEGADA (e-STJ, fl. 542).

Irresignada, a CAMPER interpôs recurso ordinário, defendendo seu direito líquido e certo para pleitear o cancelamento do registro loteamento, na qualidade de loteador, considerando que adquiriu o empreendimento, a totalidade do imóvel, sub-rogando-se nos direitos e deveres, à luz dos arts. 23 e 29 da Lei n° 6.766/79. Ressaltou que com o cancelamento não haverá reversão de bens públicos para o seu patrimônio, pelo fato da rua, praça e faixa sanitária do empreendimento não terem sido ainda revertidos para o domínio público. Por fim, asseverou que esse ato não terá impacto sobre o desenvolvimento urbano, tampouco interesse da Municipalidade, porque nenhuma obra ou melhoramento foi ali realizado ou nas suas redondezas.

O Município de São Paulo apresentou contrarrazões defendendo a inviabilidade do mandado de segurança, seja por inexistir direito líquido e certo a ser amparado, assim como por não deter legitimidade para o pedido de cancelamento do registro do loteamento, cuja capacidade é exclusiva do loteador.

Instado a se manifestar, o Ministério Púbico Federal, representado pelo Subprocurador-Geral da República ANTONIO CARLOS MARTINS SOARES, ofertou parecer pelo provimento do recurso, apontando que comprovada a compra e venda e ausente o interesse público, é perfeitamente possível a reversão do bem público em favor do particular, nos termos do artigo 23 da Lei 6.766/79 sem que o Município de São Paulo precise autorizar qualquer operação (e-STJ, fl. 633).

É o relatório.

VOTO

O EXMO. SR. MINISTRO MOURA RIBEIRO (Relator):

De plano, vale pontuar que o recurso ora em análise foi interposto na vigência do NCPC, razão pela qual devem ser exigidos os requisitos de admissibilidade recursal na forma nele prevista, nos termos do Enunciado Administrativo nº 3, aprovado pelo Plenário do STJ na sessão de 9/3/2016: Aos recursos interpostos com fundamento no CPC/2015 (relativos a decisões publicadas a partir de 18 de março de 2016) serão exigidos os requisitos de admissibilidade recursal na forma do novo CPC.

A pretensão recursal está no reconhecimento da legitimidade do adquirente de todos os lotes de um loteamento, não implementado, para requerer o cancelamento do procedimento do seu registro.

A ordem merece acolhimento.

O artigo 23 da Lei nº 6.766/79 disciplina as hipóteses admitidas para se cancelar do registro do loteamento:

Art. 23. O registro do loteamento só poderá ser cancelado:

I – por decisão judicial;

II – a requerimento do loteador, com anuência da Prefeitura, ou do Distrito Federal quando for o caso, enquanto nenhum lote houver sido objeto de contrato;

III – a requerimento conjunto do loteador e de todos os adquirentes de lotes, com anuência da Prefeitura, ou do Distrito Federal quando for o caso, e do Estado.

§ 1º – A Prefeitura e o Estado só poderão se opor ao cancelamento se disto resultar inconveniente comprovado para o desenvolvimento urbano ou se já se tiver realizado qualquer melhoramento na área loteada ou adjacências.

§ 2º – Nas hipóteses dos incisos Il e III, o Oficial do Registro de Imóveis fará publicar, em resumo, edital do pedido de cancelamento, podendo este ser impugnado no prazo de 30 (trinta) dias contados da data da última publicação. Findo esse prazo, com ou sem impugnação, o processo será remetido ao juiz competente para homologação do pedido de cancelamento, ouvido o Ministério Público.

§ 3º – A homologação de que trata o parágrafo anterior será precedida de vistoria judicial destinada a comprovar a inexistência de adquirentes instalados na área loteada.

O pedido de cancelamento do procedimento do registro do loteamento pode ser requerido pelo loteador, ou quem por ele se sub-rogou, vedada a pretensão nos casos de comprovado inconveniente para o desenvolvimento urbano ou quando realizado algum melhoramento na área loteada e adjacências.

Observa-se que a legitimidade para o pedido de cancelamento procedimento do registro do loteamento necessita da anuência de todos aqueles que detêm direito sobre o terreno no qual se implementará o empreendimento: se não comercializado nenhum lote, basta o loteador, proprietário da totalidade do terreno; ou se alienada alguma fração, o seu adquirente deve anuir no pedido.

VICENTE CELESTE AMADEI e VICENTE DE ABREU AMADEI esclarecem:

Consensual é o cancelamento por concurso de vontade, i.e. Por consenso entre o loteador, a Municipalidade e os adquirentes de lotes quando houver unidades objeto de contrato.

[…]

Só pela vontade unilateral do loteador não há cancelamento de loteamento; todavia, sem a manifestação expressa de sua vontade, também não há que se falar em cancelamento voluntário de loteamento.

O loteador é o primeiro interessado no loteamento; se loteamento há, é em primeiro lugar , pela vontade empreendedora de fracionamento imobiliário do loteador. Logo, em campo de cancelamento consensual de parcelamento urbano, a manifestação de vontade do loteador é o primeiro pressuposto (in Como Lotear uma Glebaed. Millennium, 4ª ed., Campinas: 2014, p.363)

Colhe-se dos autos que o imóvel objeto do loteamento, matriculado no 11º Registro de Imóveis de São Paulo sob o nº 100.360, foi desmembrado em 16 unidades independentes, com matrículas próprias (e-STJ, fls. 195/199).

Essas 16 unidades foram a adquiridas pela CAMPER, como faz prova a escritura de venda e compra e as respectivas certidões de ônus, juntadas às e-STJ, fls. 201/232 e 297/305. As averbações realizadas apontam, inclusive, que todos os lotes constam do pedido de loteamento, cuja planta AU/16/2623/81 foi aprovada pela Municipalidade.

Nas suas informações, o Oficial Registrador apontou que os desmembramentos se deram em virtude da alienação de terreno então matriculado sob o nº 100.360, que já estava em processo de regularização do loteamento e de acordo com a planta AU/16/2623/81, aprovada pela municipalidade.

Veja-se:

Esclareça-se, por oportuno, que as matrículas 135.782 a 135.797 não foram ensejadas em função da regularização do loteamento como afirmado pelo interessado, mas sim como decorrência do registro da compra e venda definitiva dos lotes levada a efeito em 18 de maio de 1982, conforme registro nº 5 da matrícula 100.360 (e-STJ, fl. 193).

Diante disso, fica comprovado que a CAMPER adquiriu a totalidade do terreno no qual seria implementado o loteamento. E mais, o desmembramento dos lotes, nos termos da planta AU/16/2623/81, do processo administrativo de regularização, não dá ensejo a outra conclusão, a não ser a de que ela comprou o imóvel e o empreendimento.

Não foi a simples compradora da totalidade dos lotes para depois revendê-los, mas assumiu a implementação do loteamento.

Merece destaque, por oportuno, que a CAMPER tem por objeto social a administração, incorporação,venda e permuta de imóveis próprios, conforme contrato social juntado a e-STJ, fl. 56.

Dessa forma, a CAMPER se sub-rogou nos direitos do loteador, tal como define o art. 29 da Lei nº 6.766/79:

Art. 29 Aquele que adquirir a propriedade loteada mediante ato inter vivos, ou por sucessão causa mortis, sucederá o transmitente em todos os seus direitos e obrigações, ficando obrigado a respeitar os compromissos de compra e venda ou as promessas de cessão, em todas as suas cláusulas, sendo nula qualquer disposição em contrário, ressalvado o direito do herdeiro ou legatário de renunciar à herança ou ao legado.

Por conseguinte, nos termos do disposto inciso II do art. 23 da Lei nº 6.766/79, a CAMPER tem legitimidade para requerer o cancelamento do procedimento do registro do loteamento:

Art. 23. O registro do loteamento só poderá ser cancelado:

[…]

II – a requerimento do loteador, com anuência da Prefeitura, ou do Distrito Federal quando for o caso, enquanto nenhum lote houver sido objeto de contrato;

[…]

É certo que o art. 22 da Lei nº 6.766/79 estabelece que desde a data de registro do loteamento, passam a integrar o domínio do Município as vias e praças, os espaços livres e as áreas destinadas a edifícios públicos e outros equipamentos urbanos, constantes do projeto e do memorial descritivo.

Ocorre que, in casu, pelo que consta das matrículas juntadas aos autos, não houve o registro do loteamento, que se encontra na fase de aprovação dos projetos perante a Municipalidade de São Paulo, razão pela qual não há que se falar que a passagem particular, a praça e a faixa sanitária tenham passado para o domínio público.

Não se operou a tradição, a transmissão da propriedade.

Na fase em que se encontra o procedimento administrativo, é aplicável o art. 17 da referida legislação, pelo qual a destinação dos espaços públicos descritos no projeto do loteamento poderão ser alterados em caso de cancelamento do registro loteamento.

Veja-se:

Art. 17 Os espaços livres de uso comum, as vias e praças, as áreas destinadas a edifícios públicos e outros equipamentos urbanos, constantes do projeto e do memorial descritivo, não poderão ter sua destinação alterada pelo loteador, desde a aprovação do loteamento, salvo as hipóteses de caducidade da licença ou desistência do loteador, sendo, neste caso, observadas as exigências do art. 23 desta Lei.

Sobre a questão, ARNALDO RIZZARDO aponta:

Uma vez cancelado o registro, em tese, as vias e os espaços públicos voltam a integrar o domínio do proprietário, mesmo no caso de lotes prometidos vender ou já vendidos ficarem encravados em área maior, pois, consoante o art.22, integram a propriedade do Município enquanto registrado o loteamento (in Promessa de Compra e Venda e Parcelamento do Solo Urbano10ª ed., São Paulo: RT, 2014, p. 91).

Ficou constatado nos autos que não houve nenhum tipo de obra ou melhoramento no imóvel objeto do loteamento ou nos seus arredores, tampouco ação do Poder do Público, ou seja, o terreno encontra-se da mesma forma tal como na época do início do procedimento, razão pela qual a municipalidade não teria motivação para obstar o pedido de cancelamento, pois o § 1º do art. 25 da Lei 6.766/79 limita esse ato da administração pública se houver inconveniente comprovado para o desenvolvimento urbano ou se já se tiver realizado qualquer melhoramento na área loteada ou adjacências.

Não se pode olvidar, por fim, que a propriedade deve atender a sua função social, defina no § 2º do art. 182 da Constituição Federal quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor.

Nas lições de Bernardo Gonçalves Fernandes:

Nesse sentido, a função social da propriedade é elemento integrador do conceito de propriedade como seu objeto constitutivo, não se confundindo com os elementos limitadores do direito de propriedade. Isto é, não poderá ser juridicamente considerado proprietário aquee que não der ao bem uma destinação compatível e harmoniosa ao exercício do bem, fixando condutas que podem, até mesmo, colidir com os interesses do proprietário, mas que se não atendidas, desnaturam a sua própria condição. (in Curso de Direito Constitucional, 11ª ed., Salvador:Ed. JusPodivm, 2019, p. 545)

O parcelamento de imóvel projetado nos anos 80 não deve atender as necessidades urbanísticas ou possa garantir o bem-estar dos habitantes da cidade de São Paulo nos dias atuais, razão pela qual não se justifica o impedimento para o loteador cancelar o empreendimento idealizado há quase 40 anos, que não foi registrado, tal como pretende a municipalidade.

Cancelar o procedimento do pedido de registro de loteamento é diferente de pedir o cancelamento do registro do loteamento, hipótese em que a tradição para a Municipalidade já se operou; naquela outra não.

Assim, deve ser restabelecida a sentença da lavra da Juíza TANIA MARA AHUALLI, de e-STJ, fls. 340/344.

Por essas razões, CONHEÇO do recurso em mandado de segurança e a DOU PROVIMENTO, para CONCEDER A ORDEM, reconhecendo a legitimidade da CAMPER para requerer o cancelamento do procedimento do registro do loteamento objeto do imóvel cuja matrícula mãe é de nº 100.360, do 11º Registro de Imóveis de São Paulo.

É como voto. – – /

Dados do processo:

STJ – RMS nº 60.343 – São Paulo – 3ª Turma – Rel. Min. Moura Ribeiro – DJ 26.08.2020

Fonte: INR Publicações

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De meu bem a meus bens: a discussão sobre partilha do patrimônio ao fim da comunhão parcial

Ninguém se casa pensando em separação. Salvo nas hipóteses em que o casal define previamente o regime de bens em um contrato – o chamado pacto antenupcial –, as relações conjugais normalmente não começam com uma discussão clara e precisa sobre o patrimônio comum que será formado e sua futura destinação.

A extinção da sociedade conjugal traz a necessidade de fazer a partilha, etapa frequentemente dolorosa – especialmente no regime de comunhão parcial de bens, em que tudo o que é conquistado durante a convivência pertence a ambos, mas aquilo que cada um já tinha antes da união continuou sendo o patrimônio particular de cada um.

Esse regime é o que prevalece quando o casal não define outro no pacto antenupcial, ou quando o regime eleito é declarado nulo por qualquer motivo.

Na hora da separação, o conhecimento das regras aplicáveis a cada regime patrimonial nem sempre basta para evitar conflitos sobre o que entra ou não entra na divisão. A jurisprudência dos colegiados de direito privado do Superior Tribunal de Justiça (STJ) cobre uma enorme variação de aspectos nessa eterna discussão sobre “o que é meu, o que é seu” – ou, em linguagem jurídica, sobre o que se comunica ou não no regime da comunhão parcial.

Legis​​lação

Os artigos 1.658, 1.659 e 1.660 do Código Civil de 2002 (CC/2002) descrevem os bens sujeitos à partilha na comunhão parcial.

Segundo o Código Civil, quando aplicável o regime da comunhão parcial, comunicam-se todos os bens que sobrevierem ao casal, na constância da união (artigo 1.658), excetuando-se, porém, os bens que cada cônjuge possuir ao se casar e os adquiridos individualmente – por exemplo, mediante doação (artigo 1.659).

Já o artigo 1.660 estabelece que entram na comunhão os bens adquiridos na constância do casamento por título oneroso, ainda que só em nome de um dos cônjuges, e também os que forem adquiridos por fato eventual, com ou sem o concurso de trabalho ou despesa anterior.

Em julgamento de 2016, o ministro Luis Felipe Salomão explicou que, na sociedade conjugal, os bens adquiridos durante o casamento são de propriedade exclusiva do cônjuge que os adquiriu, e assim seguirá enquanto perdurar o matrimônio.

No entanto, após a dissolução do casamento, qualquer dos cônjuges tem o direito à meação, e este é um efeito imediato, segundo o ministro, de requerer a partilha dos bens comuns, sobre os quais tinha apenas uma expectativa de direito durante o desenrolar do matrimônio.

“Em regra, o regime da comunhão parcial de bens conduz à comunicabilidade dos adquiridos onerosamente na constância do casamento, ficando excluídos da comunhão aqueles que cada cônjuge possuía ao tempo do enlace, ou os que lhe sobrevierem na constância dele por doação, sucessão ou sub-rogação de bens particulares”, destacou o ministro.

Salomão acrescentou que tal entendimento é exatamente o que se depreende do artigo 1.658 do CC/2002: “No regime de comunhão parcial, comunicam-se os bens que sobrevierem ao casal, na constância do casamento, com as exceções dos artigos seguintes”.

Para o ministro, esse artigo exterioriza exatamente o princípio segundo o qual são comuns os bens adquiridos durante o casamento, a título oneroso, tendo em vista a aquisição por cooperação dos cônjuges.

“Assim, excluem-se aqueles levados por qualquer dos cônjuges para o casamento e os adquiridos a título gratuito, além de certas obrigações”, acrescentou, destacando que a enumeração das situações está no artigo 1.659 do CC/2002.

Verbas trabal​​histas

Para o STJ, as indenizações referentes a verbas trabalhistas nascidas e pleiteadas na constância do casamento comunicam-se entre os cônjuges e integram a partilha de bens.

Seguindo o entendimento firmado na jurisprudência da corte, a Terceira Turma confirmou acórdão do Tribunal de Justiça de Mato Grosso que consignou que os créditos adquiridos na constância do casamento – ainda que decorrentes do trabalho pessoal de um dos cônjuges – são partilháveis com a decretação do divórcio.

No caso julgado, as verbas trabalhistas originaram-se de precatório no valor de quase R$ 1 milhão, e o tribunal entendeu que o crédito trabalhista foi gerado durante o período da constância do casamento; por isso, integraria o conjunto de bens adquiridos durante a união matrimonial, sendo passível de partilha.

“A orientação firmada nesta corte é no sentido de que, nos regimes de comunhão parcial ou universal de bens, comunicam-se as verbas trabalhistas correspondentes a direitos adquiridos na constância do casamento, devendo ser partilhadas quando da separação do casal”, destacou o ministro Moura Ribeiro, relator do caso.

Crédito prev​​idenciário  

O crédito previdenciário decorrente de aposentadoria pela previdência pública, ainda que tenha sido recebido apenas após o divórcio, também integra o patrimônio comum a ser partilhado, nos limites dos valores correspondentes ao período em que o casal ainda permanecia em matrimônio sob o regime da comunhão parcial de bens.

Com base nesse entendimento, a Terceira Turma reformou acórdão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS) segundo o qual, no regime de comunhão parcial, não seria cabível a partilha de valores decorrentes de ação previdenciária, nos termos do artigo 1.659 do CC/2002.

“Tal qual nas hipóteses de indenizações trabalhistas e de recebimento de diferenças salariais em atraso, a eventual incomunicabilidade dos proventos do trabalho geraria uma injustificável distorção, em que um dos cônjuges poderia possuir inúmeros bens reservados, frutos de seu trabalho, e o outro não poderia tê-los porque reverteu, em prol da família, os frutos de seu trabalho”, afirmou a relatora do recurso especial, ministra Nancy Andrighi.

Ela apontou a existência de consenso entre as turmas de direito privado do STJ no sentido da comunhão e da partilha de indenizações trabalhistas correspondentes a direitos adquiridos na constância do vínculo conjugal, ainda que a quantia tenha sido recebida após a dissolução do casamento ou da união estável.

De acordo com a ministra, é preciso dar à aposentadoria pelo regime geral o mesmo tratamento dispensado pelo STJ às indenizações trabalhistas, às verbas salariais recebidas em atraso e ao FGTS – ou seja, devem ser objeto de partilha ao fim do vínculo conjugal.

Imóv​eis

Para o STJ, na separação e no divórcio, sob pena de gerar enriquecimento sem causa, o fato de certo bem comum ainda pertencer indistintamente aos ex-cônjuges, por não ter sido formalizada a partilha, não representa empecilho automático ao pagamento de indenização pelo uso exclusivo do bem por um deles, desde que a parte que toca a cada um tenha sido definida por qualquer meio inequívoco.

O entendimento foi confirmado pela Segunda Seção em julgamento de processo que envolveu pedido de fixação de aluguel pelo uso exclusivo do único imóvel do casal por um dos ex-cônjuges.

Segundo o relator, ministro Raul Araújo, o Código Civil de 2002 buscou proteger a pessoa nas relações privadas à luz dos princípios basilares da socialidade, operabilidade e eticidade, abandonando a visão excessivamente patrimonialista e individualista do código anterior.

“Exige-se, por meio do princípio da boa-fé objetiva – cláusula geral do sistema –, um comportamento de lealdade e cooperação entre as partes, porquanto aplicável às relações familiares. Impõe-se, dessa forma, o dever de os cônjuges cooperarem entre si, o que deve ser entendido também no sentido de não impedirem o livre exercício das faculdades alheias”, observou.

Para Raul Araújo, uma vez homologada a separação judicial do casal, a mancomunhão, antes existente entre os ex-cônjuges, transforma-se em condomínio, regido pelas regras comuns da compropriedade, e que admite a indenização.

“Admitir a indenização antes da partilha tem o mérito de evitar que a efetivação desta seja prorrogada por anos a fio, relegando para um futuro incerto o fim do estado de permanente litígio que pode haver entre os ex-cônjuges, senão, até mesmo, aprofundando esse conflito, com presumíveis consequências adversas para a eventual prole”, destacou o ministro.

FG​​TS

Ao analisar partilha decorrente da dissolução de casamento celebrado sob o regime da comunhão parcial, a Segunda Seção estabeleceu tese sobre a inexistência de direito à meação dos valores depositados em conta vinculada ao Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) anteriormente ao matrimônio.

No julgamento do recurso, o colegiado também definiu que os valores depositados em conta do FGTS na constância do casamento sob o regime da comunhão parcial integram o patrimônio comum do casal, ainda que não sejam sacados imediatamente após a separação.

De acordo com o relator do caso, ministro Luis Felipe Salomão, pertencem ao patrimônio individual do trabalhador os valores recebidos a título de fundo de garantia em momento anterior ou posterior ao casamento.

Contudo, durante a vigência da relação conjugal, o ministro entendeu que os proventos recebidos pelos cônjuges – independentemente da ocorrência de saque – “compõem o patrimônio comum do casal, a ser partilhado na separação, tendo em vista a formação de sociedade de fato, configurada pelo esforço comum, independentemente de ser financeira a contribuição de um dos consortes e do outro não”.

Salomão lembrou que o titular do FGTS não tem a faculdade de utilizar livremente os valores depositados na conta ativa, estando o saque submetido às possibilidades previstas na Lei 8.036/1990 ou estabelecidas em situações excepcionais pelo Judiciário.

Segundo o ministro, os valores a serem repartidos devem ser “destacados para conta específica, operação que será realizada pela Caixa Econômica Federal, agente operador do FGTS, centralizadora de todos os recolhimentos, mantenedora das contas vinculadas em nome dos trabalhadores, para que num momento futuro, quando da realização de qualquer das hipóteses legais de saque, seja possível a retirada do numerário e, consequentemente, providenciada sua meação”.

Previdênci​​a privada

Por outro lado, segundo o STJ, o benefício de previdência privada fechada é excluído da partilha em dissolução de união estável regida pela comunhão parcial.

Isso porque, segundo o colegiado, o benefício de previdência privada fechada faz parte do rol das exceções do artigo 1.659, VII, do CC/2002 e, portanto, é excluído da partilha em virtude da dissolução da união estável, que observa, em regra, o regime da comunhão parcial dos bens.

O entendimento foi firmado pela Terceira Turma em julgamento de recurso especial interposto contra acórdão que negou a ex-companheira a partilha de montante investido pelo ex-companheiro em previdência privada fechada.

Para o relator, ministro Villas Bôas Cueva, a legislação exclui da comunhão pensões, meios-soldos, montepios e outras rendas semelhantes. Segundo o ministro, a previdência privada fechada se enquadra no conceito de “renda semelhante”, por se tratar de uma espécie de pecúlio, bem personalíssimo.

O ministro destacou também que o resgate antecipado poderia comprometer o equilíbrio financeiro e atuarial do plano de previdência.

Segundo ele, “tal verba não pode ser levantada ou resgatada ao bel-prazer do participante, que deve perder o vínculo empregatício com a patrocinadora ou completar os requisitos para tanto, sob pena de violação de normas previdenciárias e estatutárias”.

Villas Bôas Cueva consignou ainda que, caso o regime de casamento fosse acrescentado ao cálculo, haveria um desequilíbrio do sistema como um todo, “criando a exigência de que os regulamentos e estatutos das entidades previdenciárias passassem a considerar o regime de bens de união estável ou casamento dos participantes no cálculo atuarial, o que não faz o menor sentido, por não se estar tratando de uma verba tipicamente trabalhista, mas, sim, de pensão, cuja natureza é distinta”.

Os números dos processos mencionados não são divulgados em razão de segredo judicial.

Fonte: INR Publicações

Publicação: Portal do RI (Registro de Imóveis) | O Portal das informações notariais, registrais e imobiliárias

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