Emolumentos – Ministério Público do Trabalho – Tabelionatos de Protestos – Depósito prévio e cancelamento do protesto – Requerimento de dispensa de pagamento – Impossibilidade de norma administrativa deferindo isenção tributária – Indeferimento do pedido.

Número do processo: 241292

Ano do processo: 2017

Número do parecer: 219

Ano do parecer: 2018

Parecer

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

CORREGEDORIA GERAL DA JUSTIÇA

Processo CG n° 2017/241292

(219/2018-E)

Emolumentos – Ministério Público do Trabalho – Tabelionatos de Protestos – Depósito prévio e cancelamento do protesto – Requerimento de dispensa de pagamento – Impossibilidade de norma administrativa deferindo isenção tributária – Indeferimento do pedido.

Excelentíssimo Senhor Corregedor Geral da Justiça,

O Ministério Público do Trabalho, pela Procuradoria Regional do Trabalho da 15ª Região, tendo a intenção de firmar convênio com o Instituto de Estudos de Protestos de Títulos do Brasil – IEPTB/SP, solicita seja avaliada a possibilidade de ser dispensado do pagamento de custas, despesas e emolumentos aos Tabelionatos de Protesto no Estado de São Paulo nas hipóteses de exigência de depósito prévio e nas desistências e cancelamentos de protesto. Alega que, embora a Lei Estadual n° 11.331/02 não contenha expressamente a previsão de isenção, o pedido está fundamentado no texto constitucional, eis que ao Ministério Público do Trabalho incumbe a defesa judicial e extrajudicial da ordem jurídica trabalhista e dos interesses sociais, coletivos, difusos, individuais indisponíveis e homogêneos dos trabalhadores, nos termos do art. 127, caput, e do art. 129 da Constituição Federal. Ressalta o interesse público existente na promoção da racionalização, efetivação e otimização da cobrança extrajudicial dos créditos advindos tanto dos TACs – Termos de Ajustamento de Condutas firmados e não honrados a tempo e modo, bem como das sentenças proferidas nas ações coletivas ajuizadas pela Procuradoria Regional do Trabalho da 15ª Região.

O Instituto de Estudos de Protestos de Títulos do Brasil – IEPTB/SP manifestou-se favoravelmente ao pedido[1].

É o relatório.

Opino.

Em parecer da lavra do ilustre Juiz Assessor desta E. Corregedoria Geral da Justiça, Dr. José Marcelo Tossi Silva, nos autos do Processo n° 2018/00069174[2], o tema relativo aos emolumentos foi amplamente tratado, ficando consignado que:

“A Constituição Federal de 1988, alterando o sistema legal anterior, dispõe em seu art. 236, caput, que os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público.

A Lei Federal n° 8.935/94, em conformidade com a Constituição Federal, atribui aos Notários e Registradores o gerenciamento administrativo e financeiro da unidade do serviço extrajudicial (art. 21):

“Art. 21. O gerenciamento administrativo e financeiro dos serviços notariais e de registro é da responsabilidade exclusiva do respectivo titular, inclusive no que diz respeito às despesas de custeio, investimento e pessoal, cabendo-lhe estabelecer normas, condições e obrigações relativas à atribuição de funções e de remuneração de seus prepostos de modo a obter a melhor qualidade na prestação dos serviços”.

Por sua vez, a remuneração pelos serviços extrajudiciais de notas e de registro é feita mediante recebimento de emolumentos, com natureza tributária de taxa segundo foi decidido pelo Egrégio Supremo Tribunal Federal (ADI 3694, Relator: Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Tribunal Pleno, julgado em 20/09/2006, DJ 06-11-2006 PP– 00030 EMENT VOL-02254-01 PP-00182 RTJ VOL-00201-03 PP-00942 RDDT n. 136, 2007, p. 221).

No Estado de São Paulo, os valores e o rateio dos emolumentos aos diferentes credores estão previstos na Lei Estadual n° 11.331/2002, editada em conformidade com as regras gerais da Lei n° 10.169/2000.

Além da parcela que constitui a remuneração do titular da delegação do serviço extrajudicial, os emolumentos são compostos por outras parcelas que na forma da Lei Estadual n° 11.331/2002 são distribuídas da seguinte forma:

“Artigo 19 – Os emolumentos correspondem aos custos dos serviços notariais e de registro na seguinte conformidade:

I – relativamente aos atos de Notas, de Registro de Imóveis, de Registro de Títulos e Documentos e Registro Civil das Pessoas Jurídicas e de Protesto de Títulos e Outros Documentos de Dívidas:

a) 62,5% (sessenta e dois inteiros e meio por cento) são receitas dos notários e registradores;

b) 17,763160% (dezessete inteiros, setecentos e sessenta e três mil, cento e sessenta centésimos de milésimos percentuais) são receita do Estado, em decorrência do processamento da arrecadação e respectiva fiscalização;

c) 9,157894% (nove inteiros, cento e cinquenta e sete mil, oitocentos e noventa e quatro centésimos de milésimos percentuais) são contribuição à Carteira de Previdência das Serventias Não Oficializadas da Justiça do Estado;

d) 3,289473% (três inteiros, duzentos e oitenta e nove mil, quatrocentos e setenta e três centésimos de milésimos percentuais) são destinados à compensação dos atos gratuitos do registro civil das pessoas naturais e à complementação da receita mínima das serventias deficitárias;

e) 4,289473% (quatro inteiros, duzentos e oitenta e nove mil, quatrocentos e setenta e três centésimos de milésimos percentuais) são destinados ao Fundo Especial de Despesa do Tribunal de Justiça, em decorrência da fiscalização dos serviços;

f) 3% (três por cento) são destinados ao Fundo Especial de Despesa do Ministério Público do Estado de São Paulo, em decorrência da fiscalização dos serviços;

II – relativamente aos atos privativos do Registro Civil das Pessoas Naturais:

a) 83,3333% (oitenta e três inteiros, três mil e trezentos e trinta e três centésimos de milésimos percentuais) são receitas dos oficiais registradores;

b) 16,6667% (dezesseis inteiros, seis mil seiscentos e sessenta e sete centésimos de milésimos percentuais) são contribuição à Carteira de Previdência das Serventias não Oficializadas da Justiça do Estado.

Parágrafo único – São considerados emolumentos, e compõem o custo total dos serviços notariais e de registro, além das parcelas previstas neste artigo:

1 – a parcela dos valores tributários incidentes, instituídos pela lei do município da sede da serventia, por força de lei complementar federal ou estadual;

2 – a parcela destinada à Carteira de Previdência das Serventias Notariais e de Registro – Carteira das Serventias em montante correspondente a 4,8% (quatro inteiros e oito décimos percentuais) sobre o valor da parcela prevista na alínea “a” do inciso I deste artigo.

Artigo 20 – A receita do Estado, prevista na alínea “b” do inciso I do artigo 19, será destinada:

I – 74,07407% (setenta e quatro inteiros, sete mil e quatrocentos e sete centésimos de milésimos percentuais) ao Fundo de Assistência Judiciária;

II – 7,40742% (sete inteiros, quarenta mil, setecentos e quarenta centésimos de milésimos percentuais) ao custeio das diligências dos oficiais de justiça incluídas na taxa judiciária;

III – 18,51851% (dezoito inteiros, cinquenta e um mil, oitocentos e cinquenta e um centésimos de milésimos percentuais) à Fazenda do Estado”.

Ainda sobre o rateio dos emolumentos, a referida Lei Estadual prevê:

“Artigo 11 – O pagamento dos emolumentos será efetuado pelo interessado em cartório ou em estabelecimento de crédito indicado pelo notário ou registrador.

Artigo 12 – Caberá ao notário ou registrador efetuar os recolhimentos das parcelas previstas no artigo 19, observados os seguintes critérios:

I – em relação às parcelas previstas nas alíneas “b” e “c ” do inciso I, na alínea “b” do inciso II e no item “2” do parágrafo único, à Secretaria da Fazenda, na forma por ela disciplinada, até o 1º (primeiro) dia útil subsequente ao da semana de referência do ato praticado;

II – em relação à parcela prevista na alínea “d” do inciso I, diretamente à entidade gestora dos recursos, a que se refere o artigo 21, “caput”, desta lei, até o 5º (quinto) dia útil subsequente ao do mês de referência, ou mediante depósito em estabelecimento de crédito autorizado pela respectiva entidade;

III – em relação à parcela prevista na alínea “e” do inciso I, diretamente ao Fundo Especial de Despesa do Tribunal de Justiça, na forma a ser estabelecida pelo Tribunal de Justiça, até o 1º (primeiro) dia útil subsequente ao da semana de referência do ato praticado;

IV – em relação à parcela prevista na alínea “f” do inciso I  diretamente ao Fundo de Despesa do Ministério Público do Estado de São Paulo, na forma a ser estabelecida pelo Procurador-Geral de Justiça até o 1º (primeiro) dia útil subsequente ao da semana de referência do ato praticado.

§ 1º – A Secretaria da Fazenda entregará aos respectivos destinatários, na forma regulamentar, a parcela prevista na alínea ‘b’ do inciso I do artigo 19 desta lei.

§ 2° – As parcelas previstas na alínea ‘c’ do inciso I e na alínea ‘b’ do inciso II do artigo 19 serão arrecadadas pelo Estado, a título de receita extraorçamentária, e repassadas ao liquidante à ordem da Carteira das Serventias, reduzidos os custos de processamento da arrecadação”.

Verifica-se, desse modo, que os emolumentos têm natureza tributária e que não pertencem integralmente aos responsáveis pelas delegações do serviço extrajudicial de notas e de registro que devem, com periodicidades distintas, promover em favor dos demais credores os repasses das parcelas que lhes pertencerem.”

A propósito do tema versado nos autos, o art. 8º da Lei Estadual n° 11.331, de 26 de dezembro de 2002, assegura aos Municípios e também à União, Estados, Distrito Federal e respectivas autarquias, isenção parcial, que abrange o “pagamento das parcelas dos emolumentos destinados aos Estados, à Carteira de Previdência das Serventias não Oficializadas da Justiça do Estado, ao custeio dos atos gratuitos de registro civil e ao Fundo Especial de Despesa do Tribunal de Justiça”.

Subsiste, pois, a parte dos emolumentos que são receitas dos notários e registradores, que exercem, em caráter privado e por delegação, os respectivos serviços públicos, de forma que não se mostra possível a isenção dos emolumentos fora das hipóteses previstas em lei.

Por essa razão, a gratuidade de emolumentos é tratada da seguinte forma no Capítulo XIII do Tomo II das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça:

“75. A União, os Estados, o Distrito Federal, os Municípios, e as respectivas autarquias, são isentos do pagamento das parcelas dos emolumentos destinadas ao Estado, à Carteira de Previdência das Serventias não Oficializadas da Justiça do Estado, ao custeio dos atos gratuitos de registro civil e ao Fundo Especial de Despesa do Tribunal de Justiça.

75.1. O Estado de São Paulo e suas respectivas autarquias são isentos do pagamento de emolumentos.

76. São gratuitos os atos previstos em lei e os praticados em cumprimento de mandados judiciais expedidos em favor da parte beneficiária da justiça gratuita, sempre que assim for expressamente determinado pelo Juízo”.

Especificamente em relação às ordens judiciais relativas aos protestos, está previsto nas Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça, em seu Capítulo XV do Tomo II, que:

“63. O cumprimento dos mandados de sustação definitiva do protesto, ou de seus efeitos, e de cancelamento do protesto fica condicionado ao prévio pagamento das custas e dos emolumentos.

63.1. O cumprimento independerá do prévio pagamento das custas e dos emolumentos quando do mandado constar ordem expressa nesse sentido ou que a parte interessada é beneficiária da assistência judiciária gratuita.

63.2. Ausente menção expressa à isenção em favor da parte interessada ou à gratuidade da justiça, o mandado judicial será devolvido sem cumprimento, caso não recolhidos os emolumentos e as custas, com observação da regra do art. 1.206-A do Tomo I das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça, se o processo tramitar em ambiente eletrônico”.

De seu turno, o Código de Processo Civil somente isenta os emolumentos devidos aos notários e registradores para a prática de ato necessário à efetivação de decisão judicial ou à continuidade de processo judicial em que concedido o benefício da gratuidade:

“Art. 98. A pessoa natural ou jurídica, brasileira ou estrangeira, com insuficiência de recursos para pagar as custas, as despesas processuais e os honorários advocatícios tem direito à gratuidade da justiça, na forma da lei.

§ 1º. A gratuidade da justiça compreende:

(…) IX – os emolumentos devidos a notários ou registradores em decorrência da prática de registro, averbação ou qualquer outro ato notarial necessário à efetivação de decisão judicial ou à continuidade de processo judicial no qual o beneficio tenha sido concedido”.

Como se vê, para a hipótese de emolumentos decorrentes de cancelamento de protesto em virtude de ordem judicial, há que ser observado o quanto disposto a respeito da matéria nas Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça e na lei processual vigente.

Já no que diz respeito aos emolumentos devidos aos Tabeliães de Protesto nas hipóteses de exigência de depósito prévio e nas desistências e cancelamentos dos protestos dos TACs – Termos de Ajustamento de Conduta e das sentenças proferidas em ações coletivas, requeridos pelo Ministério Público do Trabalho, cumpre ressaltar que, diante da natureza da delegação outorgada para a prestação dos serviços extrajudiciais de notas e de registro, da autonomia para o gerenciamento administrativo e financeiro das unidades pelo titular de delegação, da natureza dos emolumentos e de seu rateio, o pretendido deferimento de isenção do pagamento, nesta esfera administrativa, não se mostra possível.

Com efeito, a orientação adotada por esta Egrégia Corregedoria Geral da Justiça[3] é no sentido de que os emolumentos possuem natureza tributária de taxa, razão pela qual sua isenção apenas pode se dar em virtude de lei. Por conseguinte, não se mostra razoável impor aos Tabeliães de Protesto que abrissem mão da parcela dos emolumentos que lhe é destinada.

Diante do exposto, o parecer que respeitosamente submeto à elevada apreciação de Vossa Excelência é no sentido de que não é possível o deferimento de isenção integral para o Ministério Público do Trabalho – Procuradoria Regional do Trabalho da 15º Região, em relação à integralidade dos emolumentos devidos aos Tabeliães de Protesto nas hipóteses de exigência de depósito prévio e nas desistências e cancelamentos dos protestos dos TACs – Termos de Ajustamento de Conduta e das sentenças proferidas em ações coletivas.

Sub censura.

São Paulo, 29 de maio de 2018.

STEFÂNIA COSTA AMORIM REQUENA

Juíza Assessora da Corregedoria

DECISÃO: Aprovo, pelas razões expostas, o parecer da MM. Juíza Assessora. Oficie-se ao Instituto de Estudos de Protestos de Títulos do Brasil – IEPTB/SP, comunicando. Publique-se. São Paulo, 4 de junho de 2018 – (a) – GERALDO FRANCISCO PINHEIRO FRANCO – Corregedor Geral da Justiça.

Diário da Justiça Eletrônico de 08.06.2018

Decisão reproduzida na página 104 do Classificador II – 2018

Fonte: INR Publicações

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Recurso Especial – Civil – Registro público – Direito de família – Casamento – Alteração do nome – Sobrenome – Retificação de registro civil – Acréscimo – Data de celebração do casamento – Escolha posterior – Possibilidade – Identidade familiar – Justo motivo – Segurança jurídica – Preservação – 1. Recurso especial interposto contra acórdão publicado na vigência do Código de Processo Civil de 1973 (Enunciados Administrativos nºs 2 e 3/STJ) – 2. O art. 1.565, § 1º, do Código Civil de 2002 não impõe limitação temporal para a retificação do registro civil e o acréscimo de patronímico do outro cônjuge por retratar manifesto direito de personalidade – 3. A inclusão do sobrenome do outro cônjuge pode decorrer da dinâmica familiar e do vínculo conjugal construído posteriormente à fase de habilitação dos nubentes – 4. Incumbe ao Poder Judiciário apreciar, no caso concreto, a conveniência da alteração do patronímico à luz do princípio da segurança jurídica – 5. Recurso especial provido.

RECURSO ESPECIAL Nº 1.648.858 – SP (2017/0011893-3)

RELATOR : MINISTRO RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA

RECORRENTE : K R C G

ADVOGADO : RODRIGO KARPAT E OUTRO(S) – SP211136

EMENTA

RECURSO ESPECIAL. CIVIL. REGISTRO PÚBLICO. DIREITO DE FAMÍLIA. CASAMENTO. ALTERAÇÃO DO NOME. SOBRENOME. RETIFICAÇÃO DE REGISTRO CIVIL. ACRÉSCIMO. DATA DE CELEBRAÇÃO DO CASAMENTO. ESCOLHA POSTERIOR. POSSIBILIDADE. IDENTIDADE FAMILIAR. JUSTO MOTIVO. SEGURANÇA JURÍDICA. PRESERVAÇÃO.

1. Recurso especial interposto contra acórdão publicado na vigência do Código de Processo Civil de 1973 (Enunciados Administrativos nºs 2 e 3/STJ).

2. O art. 1.565, § 1º, do Código Civil de 2002 não impõe limitação temporal para a retificação do registro civil e o acréscimo de patronímico do outro cônjuge por retratar manifesto direito de personalidade.

3. A inclusão do sobrenome do outro cônjuge pode decorrer da dinâmica familiar e do vínculo conjugal construído posteriormente à fase de habilitação dos nubentes.

4. Incumbe ao Poder Judiciário apreciar, no caso concreto, a conveniência da alteração do patronímico à luz do princípio da segurança jurídica.

5. Recurso especial provido.

ACÓRDÃO – Decisão selecionada e originalmente divulgada pelo INR –

Vistos e relatados estes autos, em que são partes as acima indicadas, decide a Terceira Turma, por unanimidade, dar provimento ao recurso especial, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Marco Aurélio Bellizze, Moura Ribeiro (Presidente), Nancy Andrighi e Paulo de Tarso Sanseverino votaram com o Sr. Ministro Relator.

Brasília (DF), 20 de agosto de 2019(Data do Julgamento)

Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA

Relator

RELATÓRIO

O EXMO. SR. MINISTRO RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA (Relator): Trata-se de recurso especial interposto por K. R. C. G., fundamentado no artigo 105, inciso III, alíneas “a” e “c”, da Constituição Federal, contra acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo assim ementado:

“REGISTRO CIVIL. Retificação de dados constantes de assento de casamento. Sentença de improcedência. Irresignação da autora. Pedido de inclusão de parte do patronímico do marido que foi precedido de outro pedido de retorno ao nome de solteira. Alegação de erro na lavratura do registro. Ausência de consentimento. Não verificação. Opção feita livremente pela autora no momento da constituição do matrimônio. Prevalência do princípio da imutabilidade do nome. Art. 57 da Lei de Registros Públicos. Sentença mantida. Aplicação do art. 252 do Regimento Interno deste E. Tribunal de Justiça. Recurso desprovido” (e-STJ fl. 198 – grifou-se).

Consta dos autos que Karina Rinco Cau ajuizou uma primeira ação de retificação de registro civil alegando, em síntese, que, em 15.11.2007, casou com Renato Gonçalves Cesar. Nesse primeiro momento, acreditando ser obrigatório acrescer o patronímico do marido quando da habilitação do casamento, requereu a inclusão do sobrenome Gonçalves ao seu (e-STJ fl. 13). Todavia, posteriormente requereu a supressão do Gonçalves em seu nome “sob a justificativa de que desconhecia, quando de seu casamento, não ser obrigatório o uso do mesmo” (e-STJ fl. 119).

O primeiro pedido foi julgado improcedente pela 2ª Vara Cível do Foro Regional VIII da Comarca de Tatuapé/SP por inexistir justificativa apta para a retirada de seu nome o patronímico do marido incluído quando do casamento (e-STJ fls. 119-120).

Em uma segunda oportunidade, a autora interpôs outra ação de retificação de assentamento civil, calcada em fundamentos diversos daqueles postos anteriormente.

Da inicial ora em análise observa-se que:

“(…) A Requerente contraiu matrimônio com o Sr. Renato Gonçalves César, em 15/11/2007 (doc. I – certidão de casamento anexo), ocasião pela qual seu nome passou de ‘KARINA RINCO CAU DA SILVA’ para ‘KARINA RINCO CAU GONÇALVES’, após inclusão parcial do patronímico do esposo.

Ocorre que, após casada, a Requerente pleiteou a retificação do seu assentamento civil, pedindo que seu nome voltasse a ser como de solteira, demanda que tramitou na 2ª Vara Cível – Foro Regional VIII – Tatuapé sob número 1037513-88.2014.8.26.0100, alegando vício de consentimento, juntou à baila todas as certidões negativas de débitos e a carta de consentimento do marido. Restou Julgado improcedente o pedido, ao qual fez coisa julgada para aquela causa de pedir (doc. II – processo digital anexo).

Assim, a Requerente, consentida com a decisão judicial, pleiteia agora a INCLUSÃO do patronímico ‘César’ como nome de família, no final do seu nome. Portanto, retificando seu assentamento civil e passando a chamar-se ‘KARINA RINCO CAU GONÇALVES CÉSAR’. Uma vez que o patronímico ‘Cesar’ é conhecido no convívio social da Requerida e inclusive como assinatura do esposo (doc. III e-mails corporativos anexos), invocando o reconhecimento da família da Requerida e seus futuros descendentes.

Diante disso, a Requerida de boa-fé, pelos motivos aptos apresentados, demanda para que seu nome seja retificado.

Para tanto, junta o consentimento do seu marido com a retificação do assentamento civil” (e-STJ fls. 1-2 – grifou-se).

A pedido do Ministério Público estadual, Renato Gonçalves Cesar foi incluído no polo ativo da demanda (e-STJ fl. 77).

O segundo pedido também foi julgado improcedente pelo Juízo primevo, o qual adotou idêntica fundamentação para a negativa do pleito, a saber: inexistência de justificativa e consagração da imutabilidade dos sobrenomes.

Por sua vez, o Tribunal de origem negou provimento à apelação da autora, nos termos da supracitada ementa, acrescentando à decisão do Juízo de primeira instância os seguintes fundamentos:

“(…) Realmente, como se nota deve prevalecer o princípio consagrado na Lei de Registros Públicos da imutabilidade do nome. Este princípio procura proteger não apenas seu detentor, mas também terceiros.

Carreando-se os autos, não se vislumbra qualquer hipótese de erro por parte do Oficial de Registro Civil (fls. 13), o que leva à conclusão de que o assento de casamento em questão refletiu a adoção apenas do patronímico ‘Gonçalves’ do marido, pela mulher, como reflexo da livre opção da apelante.

Ademais, ressalta-se, não há elementos sérios e convincentes que ensejem o acolhimento do pleito, uma vez que a alteração do registro civil não pode ocorrer por mera liberalidade da parte, mas deve, sim, ser motivada, de acordo com o comando legal que rege a matéria.

Outros fundamentos são dispensáveis. A sentença, portanto, deve ser confirmada pelos seus próprios e bem deduzidos fundamentos, os quais ficam inteiramente adotados como razão de decidir, nos termos do art. 252 do Regimento Interno deste E. Tribunal de Justiça.

O referido artigo estabelece que ‘Nos recursos em geral, o relator poderá limitar-se a ratificar os fundamentos da decisão recorrida, quando, suficientemente motivada, houver de mantê-la’ (…)” (e-STJ fls. 202-203 – grifou-se).

Os embargos de declaração opostos foram rejeitados (e-STJ fls. 213-217).

Nas razões recursais, a ora recorrente aponta contrariedade aos arts. 1.565, § 1º, do Código Civil de 2002 e 57 e 109 da Lei nº 6.015/1973, que teriam sido aplicados em discordância com seu espírito. Sustenta inexistir disposição legal que limite a inclusão do sobrenome de um nubente pelo outro à data da celebração do casamento e que incluir o patronímico “Cesar” de seu marido justifica-se pela notoriedade social e familiar do termo, fundamentação razoável a autorizar o acréscimo.

Registra que

“(…) tal pedido teve como fundamento o fato de o patronímico ‘Cesar’ ser aquele conhecido no convívio social da requerida e inclusive como assinatura do esposo, invocando o reconhecimento da família da requerida, das pessoas do convívio social do casal e, ainda, para que se evite eventuais problemas com esta diferença nos sobrenomes com os seus futuros descendentes” (e-STJ fl. 222).

Ao final, conclui que o entendimento exarado pelo Tribunal de origem destoar de precedentes desta Corte, citando, dentre outros, a conclusão adotada no Recurso Especial nº 910.094, da Quarta Turma, de relatoria do Ministro Raul Araújo, no sentido de que, “quando presente alguma circunstância da vida, que são múltiplas”, é possível “pedir a inclusão do sobrenome de um dos nubentes no nome de outro” sob pena de se obrigar o divórcio do casal para que, em novas núpcias, seja realizada nova opção de adesão do nome, o que não é razoável.

O Ministério Público Federal, instado a se manifestar, por meio do seu representante legal, o Subprocurador-Geral da República Renato Brill de Góes, opinou pelo não conhecimento do recurso especial, nos termos da ementa que ora se transcreve:

“RECURSO ESPECIAL. ART. 105, III, ALÍNEAS ‘A’ e ‘C’, DA CF. DIREITO CIVIL. AÇÃO DE RETIFICAÇÃO DE REGISTRO CIVIL. INCLUSÃO DO SOBRENOME DO CÔNJUGE APÓS A CELEBRAÇÃO DO CASAMENTO. JUSTA CAUSA NÃO DEMONSTRADA. REVISÃO. NECESSIDADE DE INCURSÃO NO ACERVO FÁTICO-PROBATÓRIO. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA 7/STJ.

– Parecer pelo não conhecimento do recurso especial” (e-STJ fl. 266).

Sem as contrarrazões, o recurso foi admitido (e-STJ fls. 250-252), ascendendo os autos a esta instância especial.

É o relatório.

VOTO

O EXMO. SR. MINISTRO RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA (Relator): O acórdão impugnado pelo recurso especial foi publicado na vigência do Código de Processo Civil de 1973 (Enunciados Administrativos nºs 2 e 3/STJ).

A irresignação merece prosperar.

Na hipótese dos autos, KARINA RINCO CAU GONÇALVES ajuizou, em 25 de março de 2015, ação de retificação de patronímico, pela segunda vez, perante a 2ª Vara Cível do Foro Regional VIII de Tatuapé, em São Paulo, alegando, em síntese, que teria contraído núpcias em 15.11.2007, com RENATO GONÇALVES CESAR, ocasião em que optou por adicionar ao seu nome de solteira apenas o sobrenome GONÇALVES de seu marido. Atualmente requer o acréscimo do patronímico “Cesar” ao seu nome.

Os artigos 109 e 57 da Lei nº 6.015/1973 (Lei dos Registros Públicos) respaldam o pedido ora formulado:

“Art. 109. Quem pretender que se restaure, supra ou retifique assentamento no Registro Civil, requererá, em petição fundamentada e instruída com documentos ou com indicação de testemunhas, que o Juiz o ordene, ouvido o órgão do Ministério Público e os interessados, no prazo de cinco dias, que correrá em cartório”.

“Art. 57. A alteração posterior de nome, somente por exceção e motivadamente, após audiência do Ministério Público, será permitida por sentença do juiz a que estiver sujeito o registro, arquivando-se o mandado e publicando-se a alteração pela imprensa, ressalvada a hipótese do art. 110 desta Lei”.

As instâncias ordinárias entenderam pela improcedência do pedido, deixando de autorizar o acréscimo do segundo patronímico do marido ao nome da mulher, com quem é casado há mais de uma década.

Não se desconhece que a princípio, o propósito de alteração do sobrenome se revela mais apropriada na habilitação para o futuro casamento, quando o exercício do direito é a regra. Contudo, não há vedação legal expressa para que, posteriormente, o acréscimo de outro patronímico seja requerido ao longo do relacionamento, por meio de ação de retificação de registro civil, conforme a legislação já mencionada, especialmente se o cônjuge busca uma confirmação expressa de como é reconhecido socialmente, invocando, ainda, motivos de ordem íntima e familiar, como, por exemplo, a identificação social de futura prole (e-STJ fl. 2).

Na hipótese em apreço, a alteração do sobrenome da mulher conta com o apoio do marido e está abarcada no campo do direito personalíssimo, pois retrata a própria identidade familiar após 7 (sete) anos de casados. Ademais, o ordenamento jurídico não veda aludida providencia, pois o artigo 1.565, §1°, do Código Civil não estabelece prazo para que o cônjuge adote o apelido de família do outro em se tratando, no caso, de mera complementação, e não alteração do nome.

Nesse sentido:

“RECURSO ESPECIAL. CIVIL. REGISTRO PÚBLICO. DIREITO DE FAMÍLIA. CASAMENTO. ALTERAÇÃO DO NOME. ATRIBUTO DA PERSONALIDADE. ACRÉSCIMO DE SOBRENOME DE UM DOS CÔNJUGES POSTERIORMENTE À DATA DE CELEBRAÇÃO DO CASAMENTO E DA LAVRATURA DO RESPECTIVO REGISTRO CIVIL. VIA JUDICIAL. POSSIBILIDADE. RECURSO DESPROVIDO.

1. O art. 1.565, § 1º, do Código Civil de 2002 autoriza a inclusão do sobrenome de um dos nubentes no nome do outro, o que se dá mediante solicitação durante o processo de habilitação, e, após a celebração do casamento, com a lavratura do respectivo registro. Nessa hipótese, a alteração do nome de um ou de ambos os noivos é realizada pelo oficial de registro civil de pessoas naturais, sem a necessidade de intervenção judicial.

2. Dada a multiplicidade de circunstâncias da vida humana, a opção conferida pela legislação de inclusão do sobrenome do outro cônjuge não pode ser limitada, de forma peremptória, à data da celebração do casamento. Podem surgir situações em que a mudança se faça conveniente ou necessária em período posterior, enquanto perdura o vínculo conjugal. Nesses casos, já não poderá a alteração de nome ser procedida diretamente pelo oficial de registro de pessoas naturais, que atua sempre limitado aos termos das autorizações legais, devendo ser motivada e requerida perante o Judiciário, com o ajuizamento da ação de retificação de registro civil prevista nos arts. 57 e 109 da Lei 6.015/73. Trata-se de procedimento judicial de jurisdição voluntária, com participação obrigatória do Ministério Público.

3. Recurso especial a que se nega provimento” (REsp nº 910.094/SC, Rel. Ministro RAUL ARAÚJO, QUARTA TURMA, julgado em 04/09/2012, DJe 19/06/2013 – grifou-se).

Em tese, se não fosse permitida tal alteração, o casal, cuja relação conta com mais de 11 (onze) anos, deveria se divorciar para, então, formalizar, por meio de novas núpcias, e consequentemente de novo processo de habilitação, o pedido de adesão pela mulher do integral sobrenome do marido (Gonçalves César), o que, notoriamente, não é razoável.

A requerida juntou aos autos certidões negativas demonstrando estar de boa-fé junto a terceiros, o que retrata que a alteração não se afasta da desejada segurança jurídica (e-STJ fls. 14-30 e 97-110).

Não se desconhece que a regra geral no Direito pátrio é a imutabilidade do nome civil. Porém, à luz dos artigos 57 e 109 da Lei de Registros Públicos, admitem-se exceções.

Interessante julgado da lavra da Ministra Nancy Andrighi concluiu que a lei sequer exige a

“(…) observância de uma determinada ordem no que tange aos apelidos de família, seja no momento do registro do nome do indivíduo, seja por ocasião da sua posterior retificação. Também não proíbe que a ordem do sobrenome dos filhos seja distinta daquela presente no sobrenome dos pais” (REsp nº 1.323.677/MA, Terceira Turma, DJe 15/2/2013).

No caso dos autos, a primeira ação de alteração registral não foi bem sucedida, já que a autora não logrou êxito no pleito de retornar a usar o nome de solteira, mantendo-se incólume o sobrenome de casada, qual seja, Gonçalves. Faz sentido que, em um segundo momento, deseje o acréscimo integral do sobrenome do marido ao seu patronímico, o que permitirá que a família seja melhor identificada.

A propósito, cita-se abalizada doutrina ao comentar o art. 1.565 do Código Civil de 2002:

“(…) 4. Nome de família. O nome empresta para o sujeito uma identidade individual e familiar; por isso se diz que é um atributo da personalidade. Quando, entretanto, serve de veículo para a memória da família, ele compõe um dos elementos da potência afetiva de nossa humanidade e, por isso, passa a ter um valor de objeto do direito de personalidade. O uso do nome de família de um cônjuge pelo outro é tema que pode perfeitamente conviver, na modernidade, da maneira como os nubentes entenderem consultar a seus interesses permitindo que um adote o nome do outro, ou que formem, em conjunto, um nome de família, que será adotado por todos, cônjuges e filhos, ou somente pelos filhos (Rosa Nery. Instituições DC, V., parte II, cap. VIII, n. 61, p. 230)”. (Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery, Código Civil Comentado, 12ª Edição, Editora Revista dos Tribunais, pág. 2.047)

Assim, “mesmo durante a convivência matrimonial, é possível a mudança, uma vez que se trata de direito de personalidade, garantindo o direito à identificação de cada pessoa. Afinal, acrescer ou não o sobrenome é ato inerente à liberdade de cada um, não podendo sofrer restrições” (Conrado Paulino da Rosa, Curso de Direito de Família Contemporâneo, Editora Jus Podivm, 5ª Edição, pág. 106). No mesmo sentido é a conclusão de Arnaldo Rizzardo, pois “se não constar no registro do casamento a adoção do nome do outro cônjuge, a todo tempo é autorizado o acréscimo” (Direito de Família, 10ª Edição, Editora Forense, pág. 171).

Ao se casar, cada cônjuge pode manter o seu nome de solteiro, sem alteração do sobrenome, ou substituir seu sobrenome pelo sobrenome do outro, ou modificar seu sobrenome com adição do sobrenome do outro. Esses arranjos são livres, de acordo com a cultura de cada comunidade. Nesse sentido, decidiu o STJ (REsp 662.799) que, desde que não haja prejuízo à ancestralidade ou à sociedade, é possível a supressão de um sobrenome, pelo casamento, “pois o nome civil é direito da personalidade” (Paulo Lobo, Direito Civil, Famílias, Volume 5, 9ª edição, 2019, Saraiva, pág. 135).

A tutela jurídica relativa ao nome precisa ser balizada pelo direito à identidade pessoal, especialmente porque o nome representa a própria identidade individual e, ao fim e ao cabo, o projeto de vida familiar, escolha na qual o Poder Judiciário deve se imiscuir apenas se houver insegurança jurídica ou se houver intenção de burla à verdade pessoal e social.

Assim, reputa-se possível a retificação do assentamento civil da requerente determinando-se o acréscimo do sobrenome “Cesar” ao seu nome, que passa a ser “Karina Rinco Cau Gonçalves Cesar”. As certidões de nascimento e casamento deverão averbar tal alteração, sempre respeitando a segurança jurídica dos atos praticados até a data da mudança.

Ante o exposto, dou provimento ao recurso especial.

É o voto. – – /

Dados do processo:

STJ – REsp nº 1.648.858 – São Paulo – 3ª Turma – Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva – DJ 28.08.2019

Fonte: INR Publicações

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Direito das Sucessões – Recurso Especial – Sucessão aberta na vigência do Código Civil de 1916 – Cônjuge sobrevivente – Direito real de habitação – Art. 1.611, § 2º, do Código Civil de 1916 – Extinção – Constituição de nova entidade familiar – União estável – Recurso especial provido – 1. O recurso especial debate a possibilidade de equiparação da união estável ao casamento, para fins de extinção do direito real de habitação assegurado ao cônjuge supérstite – 2. Em sucessões abertas na vigência do Código Civil de 1916, o cônjuge sobrevivente tem direito real de habitação enquanto permanecer viúvo – 3. A atribuição do direto real de habitação consiste em garantia do direito de moradia por meio da limitação do direito de propriedade de terceiros, uma vez que herdeiros e legatários adquirem o patrimônio do acervo hereditário desde a abertura da sucessão, por força do princípio da saisine – 4. Conquanto o marco para extinção fizesse referência ao estado civil, o qual somente se alteraria pela contração de novas núpcias, não se pode perder de vista que apenas o casamento era instituição admitida para a constituição de novas famílias – 5. Após a introdução da união estável no sistema jurídico nacional, especialmente com o reconhecimento da família informal pelo constituinte originário, o direito e a jurisprudência paulatinamente asseguram a equiparação dos institutos quanto aos efeitos jurídicos, especialmente no âmbito sucessório, o que deve ser observado também para os fins de extinção do direito real de habitação – 6. Tendo em vista a novidade do debate nesta Corte Superior, bem como a existência de um provimento jurisdicional que favorecia o recorrido e o induzia a acreditar na legitimidade do direito real de habitação exercido até o presente julgamento, deve o aluguel ser fixado com efeitos prospectivos em relação à apreciação deste recurso especial – 7. Recurso especial provido.

RECURSO ESPECIAL Nº 1.617.636 – DF (2016/0202048-0)

RELATOR : MINISTRO MARCO AURÉLIO BELLIZZE

RECORRENTE : MILENE FERREIRA DO SACRAMENTO LIMA

RECORRENTE : MAURICIO FERREIRA DO SACRAMENTO

RECORRENTE : MILSON FERREIRA DO SACRAMENTO

ADVOGADOS : FABRICIO COUTINHO PETRA DE BARROS – DF023012

MARCELO BATISTA DE SOUZA – DF030893

RODRIGO D’ANGELO CAVALLARI – DF031247

MAURO FERREIRA DO SACRAMENTO E OUTRO(S) – DF040520

RECORRIDO : MILTON PORTELA DO SACRAMENTO

ADVOGADO : JULIANA NUNES ESCORCIO LIMA MOURA – DF034507

INTERES. : MAURO FERREIRA DO SACRAMENTO

INTERES. : MARIANA FERREIRA DO SACRAMENTO

EMENTA

DIREITO DAS SUCESSÕES. RECURSO ESPECIAL. SUCESSÃO ABERTA NA VIGÊNCIA DO CÓDIGO CIVIL DE 1916. CÔNJUGE SOBREVIVENTE. DIREITO REAL DE HABITAÇÃO. ART. 1.611, § 2º, DO CÓDIGO CIVIL DE 1916. EXTINÇÃO. CONSTITUIÇÃO DE NOVA ENTIDADE FAMILIAR. UNIÃO ESTÁVEL. RECURSO ESPECIAL PROVIDO.

1. O recurso especial debate a possibilidade de equiparação da união estável ao casamento, para fins de extinção do direito real de habitação assegurado ao cônjuge supérstite.

2. Em sucessões abertas na vigência do Código Civil de 1916, o cônjuge sobrevivente tem direito real de habitação enquanto permanecer viúvo.

3. A atribuição do direto real de habitação consiste em garantia do direito de moradia por meio da limitação do direito de propriedade de terceiros, uma vez que herdeiros e legatários adquirem o patrimônio do acervo hereditário desde a abertura da sucessão, por força do princípio da saisine.

4. Conquanto o marco para extinção fizesse referência ao estado civil, o qual somente se alteraria pela contração de novas núpcias, não se pode perder de vista que apenas o casamento era instituição admitida para a constituição de novas famílias.

5. Após a introdução da união estável no sistema jurídico nacional, especialmente com o reconhecimento da família informal pelo constituinte originário, o direito e a jurisprudência paulatinamente asseguram a equiparação dos institutos quanto aos efeitos jurídicos, especialmente no âmbito sucessório, o que deve ser observado também para os fins de extinção do direito real de habitação.

6. Tendo em vista a novidade do debate nesta Corte Superior, bem como a existência de um provimento jurisdicional que favorecia o recorrido e o induzia a acreditar na legitimidade do direito real de habitação exercido até o presente julgamento, deve o aluguel ser fixado com efeitos prospectivos em relação à apreciação deste recurso especial.

7. Recurso especial provido.

ACÓRDÃO – Decisão selecionada e originalmente divulgada pelo INR –

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, dar provimento ao recurso especial, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator.

Os Srs. Ministros Moura Ribeiro (Presidente), Nancy Andrighi, Paulo de Tarso Sanseverino e Ricardo Villas Bôas Cueva votaram com o Sr. Ministro Relator.

Brasília, 27 de agosto de 2019 (data do julgamento).

MINISTRO MARCO AURÉLIO BELLIZZE, Relator

RELATÓRIO

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO BELLIZZE:

Cuida-se de recurso especial interposto por Milene Ferreira do Sacramento Lima e outros fundamentado na alínea a do permissivo constitucional.

Depreende-se dos autos que Milton Portela do Sacramento interpôs agravo de instrumento, no qual impugnava decisão interlocutória que declarou não ter o recorrido direito real de habitação sobre o imóvel de propriedade do casal, em virtude de ter contraído união estável, e determinou o pagamento de aluguéis aos filhos do casal, ora recorrentes.

O Tribunal de origem deu provimento ao referido agravo, nos termos da seguinte ementa (e-STJ, fls. 369-372):

AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE INVENTÁRIO. DIREITO REAL DE HABITAÇÃO DE CÔNJUGE SUPÉRSTITE. INVENTARIANTE QUE ERA CASADO COM INVENTARIADA, SOB O REGIME DA COMUNHÃO UNIVERSAL DE BENS, COM QUEM CONSTITUIU FAMÍLIA, TEVE 5 (CINCO) FILHOS E JUNTOS ADQUIRIRAM, EM 30 DE OUTUBRO DE 1981, O IMÓVEL OBJETO DO LITÍGIO. ARTIGO 1.611, § 2°, do CC/1916. ABERTURA DA SUCESSÃO NA VIGÊNCIA DO CC/16. POSTERIOR CONSTITUIÇÃO DE UNIÃO ESTÁVEL. IRRELEVÂNCIA. TEMPUS REGIT ACTUM.

AGRAVO PROVIDO.

1. Trata-se de agravo de instrumento contra decisão, em ação de inventário, que determinou ao recorrente o pagamento de aluguéis em razão de ocupação exclusiva de imóvel integrante do espólio. 1.1. O recorrente sustenta fazer jus a direito real de habitação sobre o bem, nos termos do art. 1.611 do CC/1916, apesar de ter constituído união estável após o óbito de sua esposa.

2. Restou incontroverso, até porque expressamente reconhecido pela decisão recorrida, que o inventariante, ora agravante, ocupa o imóvel, com exclusividade, há quase 24 (vinte e quatro) anos. 2.1 Imóvel este adquirido pelo inventariante e sua finada esposa no dia 30 de outubro de 1981, portanto, há 34 (trinta e quatro) anos.

3. Deve o caso ser examinado à luz do Código Civil de 1916, porquanto era a legislação vigente à data da abertura da sucessão (arts. 1.787 do CC/2002 e 1.577 do CC/1916). 3.1 Aplicação do princípio tempus regit actum.

4. O Direito Real de Habitação constitui vertente dos direitos de fruição sobre o bem imóvel alheio, com a particularidade de apresentar exclusiva finalidade de moradia, em caráter personalíssimo e a título gratuito. No âmbito sucessório, o instituto apresenta notório propósito humanitário, ao conferir maior estabilidade econômica e emocional ao cônjuge sobrevivente, autorizando-o a permanecer na antiga morada do casal, mesmo após o falecimento do consorte e ainda que existam outros herdeiros do bem.

5. Atualmente, por força do disposto no artigo 1831 do CC/2002, assegura-se a vitaliciedade de tal benesse, independentemente do regime de bens estabelecido no matrimônio, sob a condição de que o imóvel em questão seja o único da herança destinado à residência familiar. 5.1. Na codificação anterior, aplicável à presente lide, o direito real de habitação não apresentava tamanha abrangência, sua concessão restringia-se àqueles casados sob regime de comunhão universal, e apenas enquanto permanecessem em estado de viuvez. (art. 1611 § 2° do CC/1916). 5.2 Destarte, “No Código Civil de 1916, o cônjuge sobrevivente, além de figurar na terceira classe da ordem à vocação hereditária, tinha a proteção complementar do usufruto vidual e do direito real de habitação (art. 1611, §§ 1° e 2°). O direito real de habitação era assegurado ao cônjuge casado pela comunhão universal de bens, em caráter vitalício e enquanto permanedesse viúvo, tendo por objeto o imóvel residencial da família, desde que o único dessa natureza. O usu fruto vidual era conferido aos cônjuges casados por outros regimes de bens, que não o da comunhão universal, correspondendo ao usufruto da quarta parte dos bens deixados pelo de cujus, se houvesse filhos, e metade, no caso de herdeiros descendentes” (in Código Civil Comentado, 6a edição, Manole, Coordenador Ministro Cezar Peluso, pág. 2213), havendo ainda a necessidade de se proceder ao registro imobiliário, porque deriva do direito sucessório e não no de família (art. 167, 1, “g”, Lei 6.015/73).

6. Ficou incontroverso, neste feito, que a casa conserva finalidade habitacional, bem como que o agravante contraiu matrimônio com a de cujus sob o regime de comunhão universal de bens.

7. O Estado civil corresponde à situação da pessoa natural com relação ao matrimônio ou à sociedade conjugal, apresentando-se sob as espécies: solteiro, casado, separado, divorciado e viúvo. 7.1 “Não sendo definida a união estável como estado civil, quem assim vive não é obrigado a identificar-se como tal. Não falta com a verdade ao se declarar solteiro, separado, divorciado ou viúvo.” (DIAS, Maria Berenice Dias, Direito das Famílias. São Paulo: RT, 2008, p. 162). 7.2 O projeto de Lei 1.779/2003, com a finalidade de definir o estado civil para “conviventes” continua em trâmite no Parlamento, não podendo o seu teor surtir efeitos jurídicos.

8. Quando o direito real de habitação foi introduzido no Código Civil de 1916, pela Lei 4.121/1962, nem mesmo era reconhecida a união estável como entidade familiar, o que passou a ocorrer apenas após vigência das Leis 8971/1994, 9278/1996 e do art. 226, § 3° da Constituição Federal de 1988.

8.1 Não cumpre ao intérprete ampliar conceitos restritivos de direitos, atribuindo significação extensiva às expressões normativas “viver e permanecer viúvo”, porquanto à época equivaliam, unicamente, a não constituir novo casamento.

9. Causa estranheza e também perplexidade a exigência por parte dos filhos agravados de que o pai arque com “aluguéis” para permanecer na casa que ele mesmo adquiriu e onde a família reside desde 1981, não se podendo olvidar, também, que “É obrigação da família, da comunidade, da sociedade e do Poder Público assegurar ao idoso, com absoluta prioridade, a efetivação do direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária” (art. 3° Lei 10.741/03). 9.1 Cabe ao Poder Judiciário fazer cumprir a lei neste pais.

10. Aliás, o fato de os agravados supostamente passarem por dificuldades financeiras não representa argumento hábil a justificar a imposição da aludida contraprestação pecuniária ao genitor.

11. Decisão reformada. Agravo de instrumento provido.

No presente recurso especial, os recorrentes alegam violação dos arts. 1.611, § 2º, do CC/1916. Asseveram que o Tribunal de origem, ao reconhecer que o estado de viuvez não cessa pela união estável, mas tão somente por novo casamento, contrariou o sentido da norma. Sustentam que a regra legal se refere à constituição de nova família, o que, à época, era equivalente a não contrair novas núpcias, uma vez que a união estável não era admitida como entidade familiar.

Contrarrazões apresentadas (e-STJ, fls. 506-515).

É o relatório.

VOTO

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO BELLIZZE (RELATOR):

Cinge-se a controvérsia a definir se a constituição de união estável após a abertura da sucessão, ocorrida sob a vigência do revogado Código Civil, era suficiente para fazer cessar o direito real de habitação.

1. Circunstâncias fáticas dos autos

Conforme consta da decisão de primeiro grau de jurisdição, o recorrido foi casado em regime de comunhão universal de bens com Harcilene Ferreira do Sacramento. Desse casamento, nasceram os ora recorrentes.

Em 2/8/1990, Harcilene Ferreira do Sacramento faleceu, dando ensejo à abertura da sucessão, cujo inventário se processa nos autos de origem do agravo de instrumento, cujo acórdão é impugnado pelo presente recurso especial.

Após deferido o direito real de habitação ao recorrido, na condição de cônjuge sobrevivente, ainda no curso da ação de inventário, este constituiu união estável lavrada em escritura pública em 1º/9/2000. Desde então, o recorrido permanece habitando o imóvel do casal extinto, agora com sua nova companheira.

Em 17/10/2013, os recorrentes peticionaram ao Juízo da ação de inventário, ainda em curso, requerendo que fosse arbitrado aluguel, em razão da ocupação do imóvel, mesmo porque o direito real de habitação teria cessado, em virtude da constituição da união estável.

2. O direito real de habitação e seus limites no CC/1916

De início, ressalta-se que os limites do direito real de habitação devem aqui ser sopesados à luz do CC/1916, uma vez que a sucessão se rege pela legislação vigente no momento de sua abertura e tanto o direito real de habitação do cônjuge supérstite como o usufruto vidual eram institutos típicos de direito sucessório.

Nesse sentido (sem destaques no original):

DIREITO DAS SUCESSÕES. RECURSO ESPECIAL. SUCESSÃO ABERTA NA VIGÊNCIA DO CÓDIGO CIVIL DE 1916. CÔNJUGE SOBREVIVENTE. DIREITO DE USUFRUTO PARCIAL. ART. 1.611, § 1º. DIREITO REAL DE HABITAÇÃO. ART. 1.831 DO CÓDIGO CIVIL DE 2002. INAPLICABILIDADE. VEDAÇÃO EXPRESSA DO ART. 2.041 DO NOVO DIPLOMA. ALUGUÉIS DEVIDOS PELA VIÚVA À HERDEIRA RELATIVAMENTE A 3/4 DO IMÓVEL.

1. Em sucessões abertas na vigência do Código Civil de 1916, a viúva que fora casada no regime de separação de bens com o de cujus, tem direito ao usufruto da quarta parte dos bens deixados, em havendo filhos (art. 1.611, § 1º, do CC/16). O direito real de habitação conferido pelo Código Civil de 2002 à viúva sobrevivente, qualquer que seja o regime de bens do casamento (art. 1.831 do CC/02), não alcança as sucessões abertas na vigência da legislação revogada (art. 2.041 do CC/02).

2. No caso, não sendo extensível à viúva o direito real de habitação previsto no art. 1.831 do atual Código Civil, os aluguéis fixados pela sentença até 10 de janeiro de 2003 – data em que entrou em vigor o Estatuto Civil -, devem ser ampliados a período posterior.

3. Recurso especial provido.

(REsp n. 1.204.347/DF, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, DJe 2/5/2012)

RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE COBRANÇA DE COTAS CONDOMINIAIS. SUCESSÃO. ABERTURA. CÓDIGO CIVIL DE 1916. DESCENDENTES. EXISTÊNCIA. CÔNJUGE SOBREVIVENTE. HERDEIRA. NÃO CONFIGURAÇÃO. IMÓVEL. AQUISIÇÃO. ANTERIOR AO CASAMENTO. PROPRIEDADE EXCLUSIVA DO FALECIDO. MEAÇÃO. INEXISTÊNCIA. PARCELAS VINCENDAS DEVIDAS. CURSO DO PROCESSO. FINAL DA RELAÇÃO OBRIGACIONAL. ART. 557 DO CPC/1973. OFENSA. NÃO CARACTERIZAÇÃO.

1. Recurso especial interposto contra acórdão publicado na vigência do Código de Processo Civil de 1973 (Enunciados Administrativos nºs 2 e 3/STJ).

2. A controvérsia a ser dirimida no recurso especial reside em verificar se (i) em ação de cobrança de cotas condominiais o cônjuge sobrevivente é parte legítima para figurar no polo passivo da demanda, porquanto não ostenta a qualidade de herdeira do falecido, proprietário do imóvel em discussão, e (ii) se são devidas as parcelas vencidas no curso do processo, inclusive aquelas em data posterior à prolação da sentença.

3. Na hipótese, o imóvel foi adquirido exclusivamente pelo falecido em data anterior ao casamento contraído sob o regime de separação parcial de bens com o cônjuge supérstite. Nessa condição, a viúva não possui direito à meação do bem, que não se comunica entre os nubentes.

4. A questão sucessória deve ser dirimida pela lei vigente à época da abertura da sucessão, no caso, o Código Civil de 1916.

5. Pelo princípio da saisine (artigo 1.572 do Código Civil de 1916), com a morte do titular do direito, transmitem-se imediatamente a posse e propriedade de seus bens aos herdeiros, independentemente da abertura de inventário.

6. Nos termos do Código Civil de 1916, o cônjuge sobrevivente só ostenta a qualidade de herdeiro na hipótese de inexistência de descendentes e ascendentes do titular da herança, de acordo com a ordem de vocação hereditária prevista no art. 1.603 do referido diploma legal, situação não configurada no caso dos autos.

7. Não cabendo à viúva nenhum quinhão na herança do falecido, não pode ser ela obrigada a responder pelo inadimplemento das cotas condominiais de imóvel do titular da herança ainda não submetido ao processo de inventário, sendo de rigor sua exclusão do polo passivo da lide.

8. O Superior Tribunal de Justiça possui entendimento consolidado no sentido que, na ação de cobrança de cotas condominiais, são devidas todas as parcelas que se vencerem no curso do processo, durante todo o período que perdurar a relação obrigacional, por se tratarem de prestações periódicas, nos termos do art. 290 do Código de Processo Civil de 1973.

9. Recurso especial conhecido e parcialmente provido.

(REsp n. 1.704.579/RJ, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, DJe 7/12/2018)

No caso dos autos, a sucessão foi aberta sob a vigência do CC/1916, com os acréscimos da Lei n. 4.121/1962, o qual estabeleceu o usufruto vidual e o direito real de habitação em favor do cônjuge supérstite.

Assim, estabelecia o texto legal então vigente (sem destaques no original):

Art. 1.611. Em falta de descendentes e ascendentes, será deferida a sucessão ao cônjuge sobrevivente, se, ao tempo da morte do outro, não estavam desquitados.

§ 1º O cônjuge viúvo se o regime de bens do casamento não era o da comunhão universal, terá direito, enquanto durar a viuvez, ao usufruto da quarta parte dos bens do cônjuge falecido, se houver filho dêste ou do casal, e à metade se não houver filhos embora sobrevivam ascendentes do “de cujus”.

§ 2º Ao cônjuge sobrevivente, casado sob o regime da comunhão universal, enquanto viver e permanecer viúvo será assegurado, sem prejuízo da participação que lhe caiba na herança, o direito real de habilitação relativamente ao imóvel destinado à residência da família, desde que seja o único bem daquela natureza a inventariar.

Da leitura do texto legal percebe-se, portanto, que ambos os institutos tinham por destinatário o viúvo do autor da herança, além de sujeitar os referidos benefícios a uma condição resolutiva, porquanto o benefício somente seria assegurado enquanto perdurasse o estado de viuvez.

Nota-se ainda que, conquanto o direito real de propriedade tenha adquirido novos contornos no atual Código Civil, o direito real de habitação é um limite imposto ao exercício da propriedade alheia sobre o bem. Constitui-se em favor legal ou convencional, por meio do qual se assegura ao beneficiário o direito limitado de uso do bem, para moradia com sua família, não podendo alugar, tampouco emprestar a terceiros, resultando, por outra via, em óbice à utilização e fruição do bem pelo proprietário. Esses eram seus contornos genéricos estabelecidos no art. 747 do CC/1916.

De outro lado, seja na vigência do Código Civil revogado, seja no atual, o proprietário tem, em regra, o poder de usar, fruir e dispor da coisa, além do direito de reavê-la do poder de quem a detenha ou possua injustamente. Estas faculdades inerentes ao direito de propriedade, passam a integrar o patrimônio dos herdeiros legítimos e testamentários no exato momento em que aberta a sucessão, conforme preceitua o princípio da saisine (art. 1.572 do CC/1916 e 1.784 do CC/2002), ainda que de forma não individualizada.

Portanto, não se pode perder de vista que a própria regra do art. 1.611, § 2º, do CC/1916, ao estipular direito real de habitação legal, restringe, inequivocamente, o exercício do direito de propriedade, de modo que a aplicação do benefício previsto no dispositivo deve respeitar uma interpretação restritiva.

Com essas lentes, deve-se perquirir se a constituição de união estável superveniente à abertura da sucessão é fato equiparado ao casamento, apto, por isso, a afastar o estado de viuvez eleito pelo legislador como condição resolutiva do direito real de habitação do cônjuge supérstite.

Nesse diapasão, resta-nos ainda enfatizar que a referida união estável, no caso concreto, foi constituída por escritura pública no ano de 2000, quando já plenamente vigentes a Constituição Federal de 1988 e a Lei n. 9.278/1996. À vista desse arcabouço legal, que sucedeu à edição da Lei n. 4.121/1962 no tempo, esta Corte Superior, por diversas vezes, laborou no sentido de reconhecer a plena equiparação entre casamento e união estável, numa via de mão dupla.

No que se refere especificamente ao direito real de habitação é de se rememorar que o referido benefício foi estendido também para os companheiros com nítido intuito de equiparação entre os institutos do casamento e da união estável. Todavia, ao estendê-lo, a Lei n. 9.278/1996 deixou de subordinar o direito real ao regime de bens adotado na união estável – correlação que ainda era exigida para o casamento. Diante dessa situação, esta Terceira Turma entendeu por abolir a exigência do regime de bens também para os cônjuges, antecipando a reforma da lei civil, que somente entraria em vigor em 2003.

Nesse sentido:

DIREITO CIVIL. SUCESSÕES. DIREITO REAL DE HABITAÇÃO DO CÔNJUGE SUPÉRSTITE. EVOLUÇÃO LEGISLATIVA. SITUAÇÃO JURÍDICA MAIS VANTAJOSA PARA O COMPANHEIRO QUE PARA O CÔNJUGE. EQUIPARAÇÃO DA UNIÃO ESTÁVEL.

1.– O Código Civil de 1916, com a redação que lhe foi dada pelo Estatuto da Mulher Casada, conferia ao cônjuge sobrevivente direito real de habitação sobre o imóvel destinado à residência da família, desde que casado sob o regime da comunhão universal de bens.

2.– A Lei nº 9.278/96 conferiu direito equivalente aos companheiros e o Código Civil de 2002 abandonou a postura restritiva do anterior, estendendo o benefício a todos os cônjuges sobreviventes, independentemente do regime de bens do casamento.

3.– A Constituição Federal (artigo 226, § 3º) ao incumbir o legislador de criar uma moldura normativa isonômica entre a união estável e o casamento, conduz também o intérprete da norma a concluir pela derrogação parcial do § 2º do artigo 1.611 do Código Civil de 1916, de modo a equiparar a situação do cônjuge e do companheiro no que respeita ao direito real de habitação, em antecipação ao que foi finalmente reconhecido pelo Código Civil de 2002.

4.– Recurso Especial improvido.

(REsp n. 821.660/DF, Rel. Min. Sidnei Beneti, Terceira Turma, DJe 17/6/2011)

É verdade que essa extensão se deu para beneficiar aqueles que sobreviveram ao óbito de seu companheiro ou cônjuge, resultando em inegável ampliação das hipóteses legais de limitação ao direito de propriedade dos filhos havidos do casal ou unilateralmente do de cujus. Contudo, o que é relevante para a hipótese dos autos é se notar que a união estável, mesmo antes do atual Código Civil, foi sendo paulatinamente equiparada ao casamento para fins de reconhecimento de benefícios inicialmente restritos a um ou outro dos casos. A despeito da origem de matizes divergentes – o formalismo do casamento e o informalismo da união estável –, a proteção é dirigida notadamente à entidade familiar, de modo que a origem de sua constituição passa a ser absolutamente irrelevante do ponto de vista jurídico (TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil, 4ª Ed. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2008, p. 408).

Coerente com esse movimento legislativo e jurisprudencial, portanto, é a equiparação plena entre as consequências jurídicas advindas do casamento e da união estável também para os fins de caracterizar a efetiva implementação da condição resolutiva do direito, nos termos em que eram estabelecidos no CC/1916. Desse modo, não se sustenta a fundamentação do acórdão recorrido que, apoiando-se em premissas de interpretação literal e restritiva, afasta a união estável, reconhecendo que o direito do cônjuge supérstite somente se extinguiria por meio da contração de novas núpcias, uma vez que a união estável não altera o estado civil do viúvo.

É preciso que se compreenda de forma clara que o objeto de proteção do legislador não tem nenhuma correlação com o estado civil daqueles que sobrevivem ao seus cônjuges e companheiros. Noutros termos, não é intuito do legislador desincentivar a constituição de novas famílias após a extinção natural do vínculo conjugal, mas tão somente assegurar o direito fundamental à moradia associado ao presumido afeto do autor da herança e seu parceiro (cônjuge ou companheiro).

De outro lado, a lei revogada estabelecia um limite a esse direito real ex lege, impondo sua extinção em decorrência automática da constituição de uma nova famíli a pelo sobrevivente, o que à época da redação do dispositivo equivalia à contração de novas núpcias. Ao fim e ao cabo, o dispositivo legal tem apenas a finalidade de assegurar aos herdeiros e legatários a consolidação da propriedade plena, ainda que parcial sobre o bem. Atualmente, não há mais esse marco temporal, contudo, ele era expresso e deve ser observado pelo Judiciário.

Com esses fundamentos, dou provimento ao recurso especial para restabelecer integralmente a decisão interlocutória proferida pelo juízo de primeiro grau.

É como voto.

ADITAMENTO AO VOTO

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO BELLIZZE:

Apresentado o recurso especial a esta Terceira Turma para julgamento, na sessão de 20/8/2019, a Ministra Nancy Andrighi externou sua preocupação com a data de fixação para pagamento de aluguéis decorrente da utilização exclusiva para fins de moradia de imóvel objeto de inventário.

Acerca do ponto convém esclarecer que o recurso especial em questão não foi tirado em nenhuma ação de cobrança de aluguéis, de modo que o referido pedido foi formulado incidentalmente nos autos da própria ação de inventário.

Para melhor compreender as circunstâncias que permeiam o presente debate é ainda de se notar que o debate acerca do direito real de habitação iniciou-se com pedido formulado inicialmente pelo próprio recorrido Milton Portela do Sacramento. Isso porque o recorrido pleiteou que fosse declarado seu direito real de habitação sobre o imóvel que lhe servia de moradia desde o óbito de sua esposa em 1990.

Ao serem consultados os filhos do casal, acerca do pedido, todos se manifestaram no sentido do indeferimento do requerimento postulado, asseverando que a união estável obstaria a pretensão, uma vez que seria ela causa de extinção automática do direito real de habitação. Após, instado o recorrido a se manifestar a respeito da existência de união estável, este deixou de informar, aduzindo que esta questão não deveria ser apreciada pelo Juízo da sucessão.

Daí a superveniência de pedido de arbitramento de aluguéis, juntado aos autos da ação de inventário em 18/10/2013 pelos ora recorrentes, como forma de “compensação financeira pela privação do direito à quota parte do bem herdado que deve no caso ser resolvido mediante o pagamento de aluguel mensal, sob pena de caracterizar-se locupletamento ilícito” (e-STJ, fl. 218), o que foi deferido pelo Juízo de primeiro grau.

Nesse cenário, cabe frisar que o recorrido ocupa o imóvel do casal desde a abertura da sucessão. Além disso, o imóvel é objeto da ação de inventário que tramita desde 2008, e a determinação de pagamento de aluguéis proporcionais à fração-ideal de cada recorrente somente foi estabelecida a partir da data em que juntado aos autos o pedido (e-STJ, fls.16-17).

No entanto, até o momento, ao que consta dos autos, não houve o pagamento pelo recorrido, uma vez que a decisão interlocutória foi reformada pelo acórdão de origem, nutrindo no recorrido a legítima expectativa de que gozava do direito real de habitação. Outrossim, a questão jurídica debatida nos autos é nova nesta Corte Superior e, até o momento, controvertida nas instâncias ordinárias, tanto que o acórdão do Tribunal local está sendo agora reformado.

Portanto, diante dessas considerações, mostra-se razoável que a obrigação de pagar aluguel, a qual decorre da extinção do direito real de habitação, reconhecida nos termos do voto, deverá ser fixada a partir da deste julgamento.

Com essas considerações adicionais, ratifico os fundamentos expostos, reformulando o dispositivo, para dar provimento ao recurso especial, declarando extinto o direito real de habitação e fixando a obrigação de pagar aluguel, nos termos definidos pelo juízo de primeiro grau, a partir do presente julgamento.

É como voto. – – /

Dados do processo:

STJ – REsp nº 1.617.636 – Distrito Federal – 3ª Turma – Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze – DJ 03.09.2019

Fonte: INR Publicações

Publicação: Portal do RI (Registro de Imóveis) | O Portal das informações notariais, registrais e imobiliárias!

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