Artigo – Necessidade de regulamentação sobre a data do casamento na conversão administrativa da união estável em casamento – Por Letícia Franco Maculan Assumpção

* Letícia Franco Maculan Assumpção

A conversão da união estável em casamento, procedimento no qual a celebração é dispensada, tem por fundamento legal o disposto no art. 226, § 3º, da Constituição da República 1, segundo o qual, para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável como entidade familiar2, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento. A determinação constitucional foi regulamentada pelo art. 8º da Lei nº 9.278/963 e pelo art. 1.726 do Código Civil4.

A forma administrativa de conversão da união estável em casamento, que se dá mediante requerimento feito pelos conviventes ao Oficial do Registro Civil, não foi disciplinada pelo Código Civil, mas a Lei nº 9.278/96 não foi revogada no que se refere ao procedimento administrativo, razão pela qual permanece a opção.

Tanto é assim que os Códigos de Normas do Extrajudicial5 da maioria dos estados da federação têm regido a questão de forma muito semelhante, estabelecendo a possibilidade da conversão da união estável em casamento tanto judicialmente quanto mediante procedimento administrativo, idêntico ao processo de habilitação para casamento comum, dispensando apenas a celebração6.

Nos referidos Códigos de Normas, a diferença entre o procedimento judicial e o administrativo de conversão de união estável em casamento é que, na forma administrativa, tem havido vedação do reconhecimento da data de início da união estável, o que somente pode ser feito no procedimento judicial. É o que ocorre nos Códigos de Normas de Minas Gerais, de São Paulo, do Espírito Santo, da Bahia, do Distrito Federal e do Rio Grande do Sul. Cabe questionar essa restrição, que não tem fundamento legal e que não está de acordo com a tendência de desjudicialização. O Oficial de Registro Civil poderia atuar da mesma forma que o Juiz de Direito atua, tomando por termo as declarações das testemunhas e dos nubentes sobre a data do início da união estável. Não se justifica afastar essa importante tarefa do Oficial de Registro Civil. A restrição é ainda mais absurda se considerado que o Notário, nas escrituras declaratórias de união estável e de sua dissolução, faz constar de forma expressa na escritura a data de início da convivência7.

Uma exceção é o Código de Normas do Paraná, segundo o qual, no requerimento apresentado pelos conviventes, haverá a indicação da data do início da união estável, devendo constar a referida data na certidão de casamento8. Sugere-se que seja novamente analisada a questão nos diversos estados da federação para que o procedimento do Paraná passe a ser adotado.

A conversão administrativa da união estável em casamento é um procedimento célere que prestigia o que foi previsto no texto constitucional, ou seja, facilita o casamento, mas há um grave problema: a falta de segurança jurídica no que tange à data que deve ser considerada como de realização do casamento. Nos casamentos em que há celebração, o casamento se realiza no momento em que os nubentes manifestam, perante o juiz de paz, a sua vontade de estabelecer vínculo conjugal, e o juiz de paz os declara casados, nos termos do art. 1.514 do Código Civil9. Assim, a data relevante é a da celebração, quando os nubentes passam ao estado civil de casados, mas na conversão da união estável em casamento não há celebração e não há lei disciplinando qual seria a data considerada como de realização do casamento. Portanto, pode-se indagar: na conversão de união estável em casamento administrativa seriam os conviventes considerados casados na data em que foi feito o requerimento de conversão ao Oficial de Registro ou na data em que foi feito o registro do casamento, após decorridos os prazos legais para a habilitação sem a constatação de impedimento?

A resposta a essa pergunta gera repercussões sérias. Examine-se um caso concreto em que os conviventes apresentam o requerimento de conversão ao Oficial, mas, antes expedida a certidão de habilitação ou mesmo antes do registro da conversão, um deles falece. Estarão eles casados ou não? Se o entendimento for no sentido de que os efeitos da conversão retroagem à data do requerimento, sim, estarão casados. Já se o entendimento for no sentido de que estarão casados apenas na data do registro, não terá havido casamento. Outra situação: se os conviventes apresentam hoje o requerimento de habilitação e a lei vigente estabelece que o regime legal para aqueles que se casam sendo maiores de 70 (setenta) anos é o da separação de bens. Se a lei vier a ser alterada no curso da habilitação, passando o limite de idade a ser de 80 (oitenta) anos, qual será o regime aplicável? Analisando a Lei nº 9.278/96, defende-se neste trabalho que, no procedimento administrativo de conversão da união estável em casamento, devem os conviventes, uma vez habilitados, ser considerados casados desde a data em que apresentaram o requerimento, gerando o registro efeitos retroativos. Isso porque a referida lei determina:

Art. 8° Os conviventes poderão, de comum acordo e a qualquer tempo, requerer a conversão da união estável em casamento, por requerimento ao Oficial do Registro Civil da Circunscrição de seu domicílio. (sem grifos no original)

Observe-se que a lei exige o requerimento ao Oficial e nada mais. E é no requerimento, feito ao Oficial de Registro, que as partes capazes manifestam a sua livre e espontânea vontade de que a união estável seja convertida em casamento, apresentando duas testemunhas, conforme têm sido regulamentado nos diversos códigos de normas. Não há outra oportunidade para tanto, já que nesse procedimento não há celebração. Apresentado o requerimento por ambos os conviventes ao Oficial de Registro Civil, o requisito previsto em lei para a conversão já terá sido observado. Outro argumento, de ordem prática, é que, por não haver celebração, o único momento em que o Oficial de Registro tem contato com os conviventes é na data do requerimento. O processo terá seu curso e, expedida a certidão de habilitação, em seguida será registrado o casamento. Portanto, o Oficial sequer terá conhecimento de falecimento ocorrido durante o processo de habilitação ou antes do registro. Mas, repita-se, na interpretação ora defendida, isso não importa, a manifestação de vontade foi feita pelos conviventes quando do requerimento ao Oficial e os efeitos do casamento, pois, devem ser dados a partir do requerimento. 

Situação muito semelhante, em que é admitido efeito retroativo, é o casamento religioso celebrado sem prévio processo de habilitação para casamento. O Código Civil10, nesse caso, retroage os efeitos à data da celebração religiosa, admitindo que, requerida pelo casal a habilitação posteriormente, a qualquer tempo, e não sendo encontrado impedimento, seja registrado o casamento civil. Para a conversão da união estável em casamento, no entanto, faltou regulamentação no Brasil no sentido de que a data de realização do casamento, após o curso do processo de habilitação, é aquela em que houve o requerimento ao Oficial.

A Corregedoria Geral de São Paulo, no processo nº CG 747/200411, decidiu, com força normativa, de acordo com a interpretação ora defendida, de que seja considerada a data do requerimento como data de realização do casamento, em caso concreto no qual havia sido requerida a conversão da união estável em casamento, mas um dos requerentes veio a falecer antes do registro. A ementa está abaixo reproduzida:
 
REGISTRO CIVIL – Conversão da união estável em casamento – Requerimento regularmente subscrito por ambos os conviventes – Posterior falecimento do varão – Processo de habilitação concluído, com expedição do correspondente certificado – Desnecessidade de celebração e, conseqüentemente, de assinatura dos cônjuges no assento – Possibilidade de sua lavratura – Ato do Oficial – Pedido submetido, de resto, ao crivo do Juiz Corregedor Permanente – Inteligência do art. 226, § 3º, da Constituição da República e do art. 1.726 do Código Civil – Análise do item 91, com os subitens 91.1 a 91.5, do capítulo XVII das Normas de Serviço da E. Corregedoria Geral da Justiça – Recurso provido – Força normativa, inclusive para que pleitos quejandos sejam sempre submetidos ao Juiz Corregedor Permanente, sem prejuízo do disposto naqueles subitens, enquanto não sobrevier ampla modificação das Normas de Serviço para adaptá-las à nova legislação. 
 
Do inteiro teor da referida decisão reproduz-se os seguintes excertos, pela pertinência:

Para correto enfoque do tema proposto, cumpre trazer à colação o texto que rege a matéria no plano constitucional e deve servir de norte à interpretação dos dispositivos ordinários que possam ser invocados. Cogita-se da orientação insculpida no parágrafo 3º do  artigo 226 da Magna Carta, segundo a qual, "para efeito de proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento".

O emprego do vocábulo facilitar induz, por óbvio, no que diz respeito às normas concernentes à comentada conversão, ao entendimento menos oneroso para os conviventes, assim como tão consentâneo à singeleza procedimental quanto possível.

[…]

Não faz sentido exigir que os conviventes, transmudados em cônjuges, assinem o assento, uma vez que a legislação pertinente, tratando da conversão da união estável em matrimônio, exige um único e apropriado momento para a manifestação da vontade de ambos: o da apresentação do pedido formal nesse sentido. Desse teor o artigo 8º da Lei nº 9.278/96 e, agora, o artigo 1.726 do Código Civil.

Eis o que basta. Esta – e não outra – a correta interpretação que merecem as disposições legais e normativas e apreço, por harmoniosa em relação ao comando do parágrafo 3º do artigo 226 da Constituição da República, segundo o qual, já se sabe, dita conversão será facilitada pelo ordenamento.

[…]

Aqui o alvo colimado é de constitucional limpidez: facilitar a transformação da união firme em casamento. Daí a exegese que se impõe, com o reconhecimento de que a formulação conjunta do pedido basta para espelhar a vontade, prescindindo-se de solenidade ou celebração e, ipso facto, de comparecimento dos interessados (assim como de testemunhas) para assinatura do assento. Firmará o registrador, tão-somente, ao lavrá-lo como ato de ofício.

O próprio Código Civil, em hipótese semelhante, qual seja a do casamento religioso informalmente celebrado, prevê expressamente a possibilidade de enunciação do consentimento antes da habilitação, ao admitir que, realizada esta a qualquer tempo, registre-se tal matrimônio, com o reconhecimento de efeitos civis (art. 1.516).

Voltando, porém, à hipótese concreta ora em análise, convém observar que em nada altera as conclusões expostas o perecimento do varão. 
 
Aperfeiçoada a manifestação de vontade pela manifestação do requerimento de fls. 08 (devidamente subscrito pelo falecido, que também assinou as declarações de fls. 10 e 11), já cumpridas as providências necessárias à habilitação, com expedição do correspondente certificado (fls. 15), e submetido o pedido ao Juiz (bem como, agora, a esta Corregedoria Geral, concluindo-se pela viabilidade), basta que o Oficial, independentemente de quaisquer solenidades ou formalidades adicionais, pratique o ato administrativo que exclusivamente lhe compete, lavrando e firmando o respectivo assento. Neste deverá, dada peculiaridade do caso, ser anotado o falecimento, nos termos dos artigos 106 e 107 da Lei nº 6.015/73, observando-se reciprocidade m relação ao assento de óbito, para que lá passe a constar a conversão da união estável em matrimônio.

CONCLUSÃO

O entendimento ora defendido, de que, se não for constatado impedimento no processo de habilitação, consideram-se casados os conviventes na data em que foi feito o requerimento ao Oficial, parece ser o melhor tanto por preservar a vontade das partes em caso de eventual falecimento no curso da habilitação quanto por observar o pouco que a Lei nº 9.278/96 determinou. No entanto, a dúvida pode gerar sérios transtornos, pelo que é essencial que haja regulamento nacional sobre o tema.

Na situação atual, se no caso concreto houver alguma questão que cause dúvidas, como aquelas acima exemplificadas, a decisão final quanto à data em que se realizou o casamento não caberá ao Oficial de Registro, mas sim ao Judiciário. Sugere-se, apenas, que o Oficial de Registro faça incluir, tanto no livro quanto na certidão respectiva, a data em que o requerimento foi apresentado. Tal procedimento em nada prejudica as partes e pode facilitar a análise da questão quando de eventual discussão judicial.

____________ 

1. Estabelece o mencionado art. 226, § 3º: Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento. 

2. Não houve alteração da redação do art. 226, § 3º da Constituição da República, que continua mencionando a união estável “entre o homem e a mulher”, mas o Supremo Tribunal Federal – STF, aio de 2011, deu interpretação constitucional no sentido de que há união estável na convivência contínua e duradoura entre pessoas do mesmo sexo, com o objetivo de constituição de família. Ver Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF nº 132 e Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI nº 4277.

3. O art. 8º da Lei nº 9.278/96 assim determina: Os conviventes poderão, de comum acordo e a qualquer tempo, requerer a conversão da união estável em casamento, por requerimento ao Oficial do Registro Civil da Circunscrição de seu domicílio.

4. O art. 1.726 do Código Civil tem a seguinte redação: Art. 1.726. A união estável poderá converter-se em casamento, mediante pedido dos companheiros ao juiz e assento no Registro Civil.

5. Os Códigos de Normas do Extrajudicial são consolidações de resoluções, provimentos e orientações oriundos das Corregedorias-Gerais de Justiça dos Estados relacionados aos serviços prestados por notários e registradores.

6. A questão é tratada da seguinte forma pelo Código de Normas do Extrajudicial de Minas Gerais, Provimento nº 260/CGJ/2013: 
 
Art. 522. A conversão da união estável em casamento será requerida pelos conviventes ao oficial de registro civil das pessoas naturais da sua residência.

§ 1º Para verificar a superação dos impedimentos e o regime de bens a ser adotado no casamento, será promovida a devida habilitação e lavrado o respectivo assento nos termos deste título.

§ 2º Uma vez habilitados os requerentes, será registrada a conversão de união estável em casamento no Livro “B”, de registro de casamento, dispensando-se a celebração e as demais solenidades previstas para o ato.

§ 3º Não constará do assento data de início da união estável, não servindo este como prova da existência e da duração da união estável em período anterior à conversão. 
 
Art. 523. Para conversão em casamento com reconhecimento da data de início da união estável, o pedido deve ser direcionado ao juízo competente, que apurará o fato de forma análoga à justificação prevista nos arts. 861 e seguintes do Código de Processo Civil. Parágrafo único. Após o reconhecimento judicial, o oficial de registro lavrará no Livro “B”, mediante apresentação do respectivo mandado, o assento da conversão de união estável em casamento, do qual constará a data de início da união estável apurada no procedimento de justificação.

Art. 524. O disposto nesta seção aplica-se, inclusive, à conversão de união estável em casamento requerida por pessoas do mesmo sexo.

7. Nesse sentido o Código de Normas do Extrajudicial de Minas Gerais, art. 229, § 3º: Na escritura de dissolução de união estável, deverá constar a data, ao menos aproximada, do início da união estável, bem como a data da sua dissolução, podendo dela constar também qualquer declaração relevante, a critério dos interessados e do tabelião, sendo a escritura pública considerada ato único independentemente do número de declarações nela contidas. 

8. Estabelece o Código de Normas do Paraná (sem grifos no original): 

CONVERSÃO DA UNIÃO ESTÁVEL EM CASAMENTO

· Ver arts. 1.723 a 1.727 do Código Civil.

Art. 280. A conversão da união estável em casamento deverá ser requerida pelos conviventes ao oficial do registro civil das pessoas naturais de seu domicílio.

Art. 281. Será admitido o processamento do pedido de conversão da união estável em casamento apresentado por pessoas do mesmo sexo.

. Ver ADPF 132 e ADI 4277 do STF;

. Ver Procedimento nº 2011.0251229-0/000;

Art. 282. O requerimento será apresentado pelos conviventes e será acompanhado de declaração de que mantêm união estável, que têm perfeita ciência de todos os efeitos desta declaração e que não estão impedidos para o casamento. 

· Ver art. 8.º da Lei nº 9.278, de 10.05.1996.

Parágrafo único. No requerimento haverá a indicação da data do início da união estável. 
 
Art. 283. O requerimento e os documentos serão autuados como habilitação, observando-se o disposto na seção 6 deste capítulo.

Art. 284. Nos editais haverá expressa indicação de que se trata de conversão de união estável em casamento.

Art. 285. Decorrido o prazo legal do edital e observadas as disposições do item anterior, será lavrado o assento da conversão da união estável em casamento, independentemente de qualquer solenidade, prescindindo o ato da celebração do matrimônio.

Art. 286. O assento da conversão da união estável em casamento será lavrado no Livro "B", exarando-se o determinado nos arts. 70, 1º ao 8º e 10 da Lei de Registros Públicos.

Art. 287. Os espaços próprios do nome e assinatura do celebrante do ato serão inutilizados, anotando-se no respectivo termo que se trata de conversão de união estável em casamento, tal como exigido no art. 8º da Lei nº 9.278, de 10.05.1996.

Art. 288. A conversão da união estável dependerá da superação dos impedimentos legais para o casamento e sujeitará os companheiros a todas as normas de ordem pública pertinentes ao casamento

Art. 289. A ausência de indicação de regime de bens específico, instrumentalizado em contrato escrito, obrigará os conviventes, no que couber, ao regime de comunhão parcial de bens, conforme exigência do art. 1.725 do Código Civil.
 
· Ver art. 1.725 do Código Civil.

Art. 290. Constará da certidão de casamento por conversão da união estável o termo inicial da convivência.

9. Código Civil: Art. 1.514. O casamento se realiza no momento em que o homem e a mulher manifestam, perante o juiz, a sua vontade de estabelecer vínculo conjugal, e o juiz os declara casados.

10. Código Civil: art. 1.516, § 2º. O casamento religioso, celebrado sem as formalidades exigidas neste Código, terá efeitos civis se, a requerimento do casal, for registrado, a qualquer tempo, no registro civil, mediante prévia habilitação perante a autoridade competente e observado o prazo do art. 1.532.

11. Publicado no Diário Oficial do Poder Judiciário de São Paulo, Caderno 1, Parte I, em 24 de novembro de 2004.

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* Letícia Franco Maculan Assumpção é graduada em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (1991), pós-graduada e mestre em Direito Público. Foi Procuradora do Município de Belo Horizonte e Procuradora da Fazenda Nacional. Aprovada em concurso, desde 1º de agosto de 2007 é Oficial do Cartório do Registro Civil e Notas do Distrito de Barreiro, em Belo Horizonte, MG. É autora de diversos artigos na área de Direito Tributário, Direito Administrativo, Direito Civil e Direito Notarial, publicados em revistas jurídicas, e do livro Função Notarial e de Registro. É Presidente do Colégio do Registro Civil de Minas Gerais e do CNB/MG

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O novo Código de Processo Civil: o usucapião administrativo e o processo de desjudicialização – Por Vitor Frederico Kumpel

* Vitor Frederico Kümpel

Como abordado na coluna anterior, dentro de uma realidade cambiante, temos uma sociedade pós-moderna marcada pela tecnologia e pela extrema celeridade da informação, fontes legítimas dá a sensação de aceleração da passagem do tempo, fazendo inclusive muitos crerem tratar-se de um fenômeno físico, a redução de horas e minutos ao longo do dia. Daí uma das necessidades da criação de um novo Código de Processo Civil para substituir o atual Código da década de 70, que primava pela cognição em detrimento da efetivação dos direitos substantivos. O Projeto vem ao encontro do clamor pela celeridade e eficiência. É nesse sentido, que deveria ser inserida uma ampliação funcional da atividade notarial e registral em socorro ao Poder Judiciário. Geneticamente pautada pela eficiência e celeridade, as atividades extrajudiciais potencializaram-se, ao longo dos últimos anos recebendo, cada vez mais, novas atribuições recebendo, cada vez mais, novos encargos em atendimento à desjudicialização, em consonância com a EC 45/04.

Nesse contexto, é impressionante como o usucapião, instituto de origem romana, já de grande relevância desde a Lei das XII Tábuas e do direito Justinianeu – momento da fusão em um único instituto da usucapio e da praescriptio (meio de defesa processual concedido ao possuidor contra quem lhe exigisse a coisa por meio de ação reivindicatória) – adaptou-se à mudança do tempo, passando hoje a proteger muito mais do que a simples tutela da posse, passou a ser meio de regularização formal dos imóveis dentro da tábula registral, que por si só apresenta uma série de exigências formais muitas vezes incontornáveis e o próprio processo de regularização fundiária. Sem sobra de dúvida, a usucapião passou a ser um dos mecanismos de regularização fundiária. Dentro dessa evolução, o novo Código de Processo Civil passou a regular o “usucapião administrativo”, buscando efetivar a celeridade e a desjudicialização

Por regularização fundiária, entendemos o processo conduzido em parceria pelo poder Público em conjunto com a população beneficiária, envolvendo sempre as dimensões jurídicas, físicas e social, tendo em mente a legalização da permanência dos moradores de áreas urbanas irregularmente ocupadas, para fins de moradia, com melhorias acessórias no ambiente urbano, bem como na qualidade de vida do assentamento, com grandes incentivos ainda no plano de exercício da cidadania pela comunidade, sujeito do projeto1. Dentro do fenômeno da desjudicialização, por sua vez, a ideia saudável é retirar da esfera exclusiva do judiciário a questão da regularização de posse e usucapião. É bom lembrar que o processo de desjudicialização de modo algum mitiga a importância do Poder Judiciário, muito pelo contrário, pois mantém apenas questões de alta indagação que devem, ser decididas pelo magistrado, passando questões burocráticas à Administração Pública.

É bem verdade que o Usucapião Administrativo já foi implementado no ordenamento jurídico brasileiro desde 2009 com o Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV). Aliás, o histórico sequencial de leis oriundas da tendência da desjudicialização vem desde 2004, partindo da lei 10.931/04, com a Retificação Administrativa que alterou a LRP em seus artigos 212 e 213, passando pelas leis 11.441/2007 (Inventário, Partilha, Separação, Divórcio, Consensuais por via administrativa) e lei 11.481/2007 (Regularização Fundiária para Zonas especiais de interesse social), chegando por fim, à lei 11.977/2009, modificada pela lei 12.424/2011, com disposições sobre o PMCMV.

Todavia, a implementação do Usucapião Administrativo pelo PMCMV teve efeitos bastante limitados, pois (i) foi prevista exclusivamente para regularização fundiária urbana, (ii) envolvendo procedimento administrativo bastante complexo, (iii) a contagem do prazo usucapional se atrela ao prévio registro do título de legitimação de posse (art. 60 lei 11.977/2009). Portanto, compete ao Registrador de Imóveis o reconhecimento extrajudicial do usucapião, a partir do registro da legitimação de posse convertida em propriedade após a passagem de um lustro de tempo (Cinco anos).

Interessante lembrar que no Brasil o Registro de Imóveis surgiu justamente com a figura da legitimação de posse no direito brasileiro. Em 1850, a lei 601 (lei de Terras) e seu regulamento 1.318 de 1854 separaram posse privada e domínio público. Na época, foi determinado que todas as demais posses, que não fossem de domínio público, seriam registradas no livro da Paróquia Católica, o famoso registro do vigário. Pelo art. 91 do regulamento 1.318 de 1854, todos os possuidores de terras, qualquer que fosse o título de sua propriedade, ou possessão, ficaram obrigados a fazer registrar as terras que possuíam. Todos os possuidores de terras devolutas foram então obrigados a registrar suas posses nos livros dos vigários o que, por conseguinte, definiu a competência dos primeiros registradores brasileiros como atrelada à situação do imóvel. A competência dos registradores restringia-se à propriedade pública de posse do particular, na época esta era situação do imóvel que poderia ser levado ao registro. A função essencial do registro paroquial era a legitimação da posse para posterior prova do tempo para efeitos de usucapião. Desse modo, com o povoamento, após os latifúndios das sesmarias, surgiram os minifúndios das posses legitimadas. Para a legitimação bastava: (i) a cultura efetiva e (ii) a morada habitual. Com a legitimação prevista tanto na lei como no regulamento, o domínio privado se ampliou ainda mais, em detrimento do domínio público. O processo prosseguiu, desordenadamente, como consequência da insuficiência dos recursos oficiais providos para medição perimetral das terras e das irregularidades processuais, fatores estes que subsistiram em matéria imobiliária brasileira. Todo esse contexto impediu que a realidade fática dos imóveis correspondesse à realidade jurídica, causando além do apartheid social, a inefetividade do sistema registral, que deixou de atender à sua principal função: dar publicidade, a terceiros, dos titulares dos imóveis.

A legitimação de posse funda-se no princípio da inviolabilidade da propriedade e da sua função social (art. 5º, inc. XXIII CF), operacionalizada nas diretrizes gerais de política urbana (arts. 182 e 183) e de política agrária (arts. 184 a 191 CF). Temos, portanto, na Legitimação de Posse um instituto verdadeiramente nacional, assim determinado no art. 5º da Lei de Terras "serão legitimadas as posses mansas e pacíficas adquiridas por ocupação primária, ou havidas de primeiro ocupante, que se acharem cultivadas ou com princípio de culturas, e moradia habitual do respectivo posseiro, ou de quem o represente (…)". Nesse sentido, podemos definir a legitimação de posse como "a outorga de título de domínio aos posseiros ou ocupantes de áreas devolutas, tanto em zona urbana quanto rural".

Ainda antes da vigência da lei 601/50, a lei 514 de 28 outubro de 1848, reportava-se às legitimações sem mencionar a espécie ou forma, autorizando a cobrança tributária sobre imóveis então legitimados. A lei imperial de terras foi efetivamente a primeira que se preocupou com a regularização fundiária e com a invasão de terras, e autorizou a permanência nos imóveis decorrentes de concessões sesmariais. A circular 260 de 1863 mandou dar preferência aos posseiros, cujas posses tivessem sido anuladas, para adquirirem por compra as terras correspondentes, sendo esta a pedra basilar da estrutura jurídico-agrária implantada no Brasil. O tempo de posse necessário para a referida regularização era de cincos anos antes da medição, e, depois da mesma, pelo prazo de dez anos. Já na época, era indispensável a posse mansa e pacífica, a ocupação primária cultivada e a moradia habitual do posseiro ou preposto e, por fim, o não incurso em comisso (perda da propriedade pelo não cumprimento de exigências legais). Essas mesmas bases relacionais foram mantidas pela lei 6383/76 e pela Lei do PMCMV.

Na atualidade, a Lei PMCMV introduziu a legitimação de posse apenas no Sistema Registral brasileiro, vez que a história do instituto remonta na verdade ao processo de ocupação de terras brasileiro. O instituto foi introduzido no artigo 167, inciso I, itens 41 e 42, da Lei de Registros Públicos. O Novo Código de Processo civil nada menciona sobre a legitimação. Prescindir-se-ia, então, da legitimação da posse e consequente conversão em propriedade, na esfera do usucapião extrajudicial? O projeto lograria abandono do instituto de gênese originária do processo de ocupação do território brasileiro? Provavelmente não.

Retomando o usucapião administrativo do PMCMV, após a decorrência de cinco anos do registro da legitimação de posse do imóvel, o possuidor poderá requerer ao registrador imobiliário a conversão do título de legitimação em propriedade. Para tanto, basta a documentação apropriada: (i) certidões do Cartório Distribuidor demonstrando a inexistência de ações em andamento, que versem sobre a posse ou a propriedade do imóvel; (ii) Declaração de que não possui outro imóvel urbano ou rural; [assim como (i) deve ser relativa à totalidade da área e fornecida pelo poder público]; (iii) Declaração de que o imóvel é utilizado para sua moradia ou de sua família; (iv) Declaração de que não teve reconhecido anteriormente o direito à usucapião de imóveis em áreas urbanas; (v) área urbana com mais de 250m2, o prazo para requerimento da conversão do título de legitimação de posse em propriedade será o estabelecido na legislação pertinente sobre usucapião.

No Novo Código de Processo Civil, o artigo 1.085 (versão mais recente aprovada pela câmara) prevê o reconhecimento extrajudicial do Usucapião também diretamente no Registro de Imóveis da Comarca em que se situa o imóvel usucapiendo. Para tanto, introduz o artigo 616-A na LRP, que exige: a) ata notarial: lavrada pelo Tabelião da Circunscrição de localização do Imóvel, contendo (i) o tempo de posse do requerente; (ii) a depender do caso, o tempo de posse dos antecessores e (iii) circunstâncias; b) Planta e Memorial descritivo do profissional legalmente habilitado, com reponsabilidade técnica e registro no respectivo Conselho de Fiscalização profissional, e pelos confinantes, titulares de domínio. c) Certidões Negativas dos Distribuidores da Comarca da Situação do Imóvel e do domicílio do requerente; d) Justo Título ou outra documentação que comprove: (i) origem da posse, (ii) continuidade, (iii) natureza e tempo; ex.: pagamento de impostos e taxas.

Conferida a documentação, o pedido de usucapião será autuado pelo Registrador e o prazo para a prenotação do registro pode ser prorrogado até o acolhimento ou a rejeição deste pedido. O registrador deverá notificar os confinantes e titulares de domínio ou direito real que não assinaram a planta, que possuem prazo máximo de 15 dias para manifestação. A notificação poderá ser pessoal pelo próprio registrador ou por meio dos Correios com AR. O oficial dará ciência à União, ao Estado, DF e município para manifestação em 15 dias sobre o pedido, neste caso a comunicação poderá se dar pessoalmente, por meio do correio com AR ou ainda do Registro de Títulos e Documentos.

Em seguida, proceder-se-á à publicação de Edital em Jornal de Grande Circulação e terceiros interessados poderão manifestar-se em 15 dias. O oficial poderá manter diligências para a elucidação de dúvidas e o registro do imóvel com suas descrições e a possibilidade de abertura de matrícula se dará após o prazo da última diligência. O interessado sempre poderá suscitar a dúvida registral, e em caso de problemas com a documentação o pedido de usucapião também poderá ser rejeitado pelo oficial. Neste caso, o requerente poderá ainda ajuizar a ação de usucapião. Do mesmo modo, em caso de qualquer impugnação do processo por terceiros, o oficial remeterá os autos ao juízo da comarca do imóvel e o requerente deverá emendar a inicial para adequá-la. O projeto, portanto só prevê a judicialização do procedimento se houver lide, ou seja, se o terceiro impugnar o ingresso do imóvel no fólio rela, passando então a seguir ao procedimento comum.

Interessante ressaltar que, ao contrário do projeto do Novo Código, a lei do PMCMV, embora também tenha privilegiado a via extrajudicial de resolução de conflitos, em momento algum mencionou a participação da figura do Tabelião de Notas na regularização fundiária. O projeto de reforma do Código de Processo amplia a figura do usucapião, desjudicializa e insere o tabelião de notas, o qual deverá aferir o tempo de posse por meio de ata notarial, passando obviamente a gerar uma série de consectários, inclusive responsabilidade administrativa, além da responsabilidade civil e penal decorrentes do reconhecimento temporal. Inclusive, passará ao tabelião a missão de aferir a acessio temporis ou exceptio proprietatis, ou seja, a soma do tempo na contagem do lastro para fins de usucapião.

Interessante traçar aqui breve paralelo com direito alienígena, dada a sua influência. Em Portugal, embora o procedimento como um todo também seja majoritariamente gerido na Conservatória Imobiliária pelo registador, o notário atua diretamente no usucapião administrativo por meio da lavratura da Escritura Pública de Justificação Notarial. A opção se justifica em torno da competência notarial para a recepção da vontade das partes, expressando-as em termos jurídicos para o aperfeiçoamento e a segurança do ato pretendido.

De toda sorte, remanesce a discussão se o procedimento do novo CPC irá agilizar ou simplesmente criar uma fase prévia, preliminar á jurisdição. Por ora, só o tempo dirá.

Após esse breve arrazoado, em que foi possível verificar que o usucapião é adaptação histórica antropológica da realidade social no sistema jurídico formal da propriedade imobiliária, é possível concluir que tanto o direito material quanto o processual vêm numa busca incessante em transformar a posse em propriedade, a fim de garantir uma inclusão social tão necessária para efetuar a dignidade em seu viés da propriedade.

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1. B. Alfonsin, Direito à moradia: instrumentos e experiências de regularização fundiária nas cidades brasileiras, Rio de Janeiro, Observatório de Políticas Públicas, FASE, IPPUR, 1997

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* Vitor Frederico Kümpel é juiz de Direito em São Paulo, doutor em Direito pela USP e coordenador da pós-graduação em Direito Notarial e Registral Imobiliário na EPD – Escola Paulista de Direito.

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Artigo: Inventário – Por Arthur Del Guércio Neto

* Arthur Del Guércio Neto

O inventário é o procedimento pelo qual se apuram bens, direitos e dívidas do falecido, atribuindo-os aos herdeiros.

Até alguns anos atrás, podia ser feito somente no Poder Judiciário, fato que mudou em 2007, com lei federal que possibilitou a realização em cartórios de notas, por intermédio da escritura pública. 

A grande vantagem da utilização da via extrajudicial é o tempo, extremamente mais rápido que o Poder Judiciário; um inventário extrajudicial pode ser concluído em poucos dias, dependendo da complexidade do caso; além disso, o custo é totalmente condizente com a qualidade do serviço prestado.

Não são todos os casos de inventário que admitem a escritura pública. Em regra, as partes devem ser capazes, estarem de pleno acordo quanto ao plano de partilha e não pode existir testamento do falecido. Inobservados os requisitos cumulativos, os quais vêm sendo flexibilizados, o caminho a seguir é o Poder Judiciário.

A figura do advogado é imprescindível, visando conferir ainda mais segurança jurídica ao procedimento. As partes podem ter advogados individualizados, ou ainda nomearem um patrono comum. Dúvida frequente é quanto à necessidade de petição para o procedimento, sendo ela totalmente dispensável. 

As pessoas normalmente associam escrituras públicas a bens imóveis. No entanto, o campo de sua utilização, incluindo as de inventário, é muito mais amplo. Os mais variados bens podem ser objeto de inventário e partilha: automóveis, contas bancárias, direitos de compromissário comprador, joias, ações etc. A única limitação é que esses bens estejam localizados no Brasil.

Em uma das colunas anteriores, abordamos o tema "desjudicialização", sendo as escrituras públicas de inventário parte importante desse fenômeno, pois retiram do Poder Judiciário a necessidade de analisar casos em que as partes estejam concordes, as quais são premiadas por sua conduta com um procedimento rápido, economicamente viável, seguro juridicamente e dotado da fé-pública inerente à atividade notarial.

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* Arthur Del Guércio Neto é tabelião de Notas e Protesto de Itaquá, escreve todo último domingo do mês.

Fonte: Site DAT | 31/08/2014.

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