Inventário e Partilha administrativos havendo testamento caduco ou revogado

* Eduardo Pacheco Ribeiro de Souza

1) A controvérsia.

O art. 982 do Código de Processo Civil foi alterado pela Lei 11.441/07, passando a ter a seguinte redação: “Havendo testamento ou interessado incapaz, proceder-se-á ao inventário judicial; se todos forem capazes e concordes, poderá fazer-se o inventário e a partilha por escritura pública, a qual constituirá título hábil para o registro imobiliário”.

Portanto, com o advento da Lei 11.441/07, permitiu-se o inventário e a partilha por escritura pública, a critério dos interessados, desde que todos sejam capazes e concordes, e não haja testamento.

Inicialmente prevaleceu uma interpretação literal, pela qual a existência de testamento, ainda que caduco ou revogado[1], impedia a lavratura de escritura pública de inventário e partilha.

Com o decorrer do tempo, tal interpretação passou a ser questionada. Seria realmente a vontade do legislador impedir a lavratura da escritura no caso de testamentos caducos ou revogados? 

Esta a controvérsia que abordaremos neste breve estudo.

2) A mens legis.

Não podemos nos afastar da mens legis. O Código Civil português, em seu art. 9º, cuida da interpretação da lei nos seguintes termos:

“Artigo 9º – (Interpretação da lei)

1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada. 2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso. 3. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”.

O deputado Maurício Rands[2], ao apresentar seu relatório à Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, quanto ao projeto que deu origen à Lei 11.441/07, afirmou:

“A proposta analisada tem como intuito simplificar a realização da partilha consensual por meio de escritura pública, desde que envolva herdeiros capazes, dispensando esse procedimento da homologação judicial. A atuação do Poder Judiciário nos casos mencionados, via de regra, limita-se à ratificação do acordo previamente firmado entre as partes. Na partilha consensual envolvendo herdeiros capazes inexiste conflito, o que torna a intervenção judicial dispensável, uma vez que os requisitos necessários para a realização de transação entre as partes estão presentes. Assim, ao dispensar a necessidade de homologação judicial nesse procedimento, o ordenamento não prejudica nenhuma das partes, pelo contrário, contribui para que elas formalizem a partilha de modo mais célere e simplificado (…) Dessa forma, recorremos à proposta inserida no ‘Pacto de Estado em Favor de um Judiciário mais Rápido e Republicano’, documento assinado pelos representantes dos três poderes e que contém as diretrizes e projetos que norteiam o processo de reforma do nosso sistema jurisdicional, para formular nova proposta para o projeto analisado, de modo a ampliar as mudanças objetivadas. No substitutivo proposto, a alteração proposta para o artigo 2.015 do Código Civil[3] é substituída pela alteração da redação do artigo 982 do Código de Processo Civil, cujo texto passa a permitir a realização do inventário e da partilha consensuais por escritura pública, desde que os interessados sejam capazes e não haja testamento. Importante explicar que a restrição imposta à realização do procedimento extrajudicial nos casos em que exista testamento, deve-se ao fato de que a prática forense tem demonstrado que a interpretação desses documentos geralmente suscita grandes divergências entre os herdeiros, o que aumenta consideravelmente as chances de uma partilha consensual, posteriormente, transformar-se litigiosa, o que inutilizaria os atos praticados no procedimento extrajudicial”.

Verifica-se que o projeto inicial foi ampliado[4], nascendo a Lei 11.441/07 dentro da proposta inserida no ‘Pacto de Estado em Favor de um Judiciário mais Rápido e Republicano’. A ampliação do projeto inicial não pode ser olvidada, mesmo porque motivada pelos objetivos do referido Pacto. Resta claro que a intenção foi afastar do Poder Judiciário o que pode ser solucionado por outras formas, o que deve ser considerado na interpretação da lei modificadora.

Dessa forma, foram possibilitados o inventário e a partilha administrativos, sem restrições quanto ao monte partível, não havendo incapazes e testamento, justificando o relator Maurício Rands a restrição quanto ao testamento, que reproduzimos por ser o ponto de interesse: “Importante explicar que a restrição imposta à realização do procedimento extrajudicial nos casos em que exista testamento, deve-se ao fato de que a prática forense tem demonstrado que a interpretação desses documentos geralmente suscita grandes divergências entre os herdeiros, o que aumenta consideravelmente as chances de uma partilha consensual, posteriormente, transformar-se litigiosa, o que inutilizaria os atos praticados no procedimento extrajudicial”.

O legislador, portanto, restringiu a lavratura da escritura pública em razão de grandes divergências na interpretação dos testamentos pelos herdeiros. Aqui o ponto nodal: só haverá divergência na interpretação dos testamentos se estivermos diante de um testamento válido e eficaz. Na hipótese de testamento revogado ou caduco, inviável qualquer discussão sobre sua interpretação, posto que o testamento já não estará apto a produzir qualquer efeito, não se justificando qualquer restrição à realização do procedimento administrativo.

O espírito da Lei 11.441/07, no momento histórico em que foi editada, não era outro senão simplificar, tornar mais célere, facilitar o inventário e a partilha. Interpretar literalmente o disposto no art. 982 da lei processual civil não atende à intenção da lei.

O Ministro de Estado da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, ao encaminhar ao Presidente da República o Projeto de Lei que redundou na Lei 11.441/07, afirmou que “sob a perspectiva das diretrizes estabelecidas para a reforma da Justiça faz-se necessária a alteração do sistema processual brasileiro, com o escopo de conferir racionalidade e celeridade ao serviço de prestação jurisdicional, sem, contudo, ferir o direito ao contraditório e à ampla defesa. De há muito surgem propostas e sugestões, nos mais variados âmbitos e setores, de reforma do processo civil. Manifestações de entidades representativas, como o Instituto de Direito Processual Brasileiro, a Associação dos Magistrados Brasileiros, a Associação dos Juízes Federais do Brasil, de órgãos do Poder Judiciário, do Poder Legislativo e do próprio Poder Executivo são acordes em afirmar a necessidade de alteração de dispositivos do Código de Processo Civil e da Lei de Juizados Especiais, para conferir eficiência à tramitação de feitos e evitar a morosidade que atualmente caracteriza a atividade em questão. A proposta prevê a possibilidade de realização de inventário e partilha por escritura pública, nos casos em que somente existam interessados capazes e concordes. Dispõe, ainda, a faculdade de adoção do procedimento citado em casos de separação consensual e de divórcio consensual, quando não houver filhos menores do casal. Entendo não existir nenhum motivo razoável de ordem jurídica, de ordem lógica ou de ordem prática que indique a necessidade de que atos de disposição de bens, realizados entre pessoas capazes – tais como os supracitados, devam ser necessariamente processados em juízo, ainda mais onerando os interessados e agravando o acúmulo de serviço perante as repartições forenses” (grifos nossos)[5].

3) O notário como profissional do direito.

Tive oportunidade de abordar, por ocasião da edição da Lei 11.441/07, a qualidade de profissionais do direito dos notários e registradores.

Naquela oportunidade[6], em texto intitulado “A Lei 11.441/07 e um novo tempo para afirmar a independência jurídica dos tabeliães e registradores, profissionais do direito”, afirmei que:

“A Lei 8.935, de 18 de novembro de 1.994, ao regulamentar o art. 236 da Constituição Federal definiu os tabeliães e registradores como profissionais do direito.

Dispõe o art. 3° da referida lei: 

“Notário, ou tabelião, e oficial de registro, ou registrador, são profissionais do direito, dotados de fé pública, a quem é delegado o exercício da atividade notarial e de registro” (grifo nosso). 

Passados mais de treze anos (à época da publicação do texto) de vigência da lei lamentavelmente ainda vemos alguns tabeliães e registradores agindo como simples amanuenses e, especialmente, uma gama de pessoas que não os vêem como verdadeiros profissionais do direito. Infelizmente dentre tais pessoas muitas vezes nos deparamos com integrantes do Poder Judiciário, incumbido pela Carta Magna da fiscalização dos atos praticados por tabeliães e registradores (§1° do art. 236, in fine), sem que tal poder, contudo, importe em subordinação hierárquica no exercício das funções. O limite do poder de fiscalização dos atos pelo Judiciário é ainda ponto nebuloso no exercício da atividade, agravado pela ausência de regulamentação de normas legais relativas à atividade e pela existência de custos, agregados aos emolumentos, que se destinam ao Poder Judiciário e outras entidades, fazendo vicejar um cipoal de normas administrativas que servem de antolhos aos tabeliães e registradores. 

O momento, no entanto, é de afirmação da qualidade conferida pela Lei 8.935/94. O Poder Legislativo tem reconhecido tal qualidade e cabe aos tabeliães e registradores se fazerem respeitar como profissionais do direito. Não devem aceitar a imposição de fórmulas; devem exercer efetivamente as funções notariais e registrais. Claro que respeitando a fiscalização dos atos pelo Poder Judiciário e suas decisões, mas jamais deixando de analisar sob o foco jurídico os atos em que são chamados a intervir[7].

A independência jurídica dos tabeliães e registradores não é novidade na doutrina internacional, e o ‘modelo da independência jurídica do registrador e do notário, como foi antecipado, ajusta-se, entre nós, ao direito posto: notário e oficial de registro são profissionais do direito, dotados de fé pública (art. 3°, da Lei 8.935/1994), gozando de independência no exercício de suas atribuições’ (art. 28, da Lei cit.).[8]

E em que contexto vem se dando a valorização da qualidade de profissionais do direito? Dentro das medidas legislativas na busca de soluções mais céleres, simples, e menos onerosas para a solução de determinadas questões, antes de exclusiva atuação do Poder Judiciário.

Exemplificando: a Lei 9.492/97, que regulamenta os serviços concernentes ao protesto de títulos e outros documentos de dívida, ao alargar significativamente o rol dos documentos que podem ser apresentados ao tabelionato de protestos; a Lei 9.307/96, que dispõe sobre a arbitragem, que significa a resolução do litígio por meio de árbitros, com a mesma eficácia da sentença judicial; a Lei 9.514/97, ao instituir a alienação fiduciária de coisa imóvel e a solução extrajudicial em caso de descumprimento do contrato (dando mais celeridade à recuperação do crédito e, portanto, mais eficácia à garantia); a Lei 10.931/04, que alterou o art. 213 da Lei 6.015/73 permitindo a retificação administrativa do registro imobiliário; e finalmente a Lei 11.441/07, que alterou o Código de Processo Civil para permitir que o inventário e a partilha, assim como a separação e o divórcio, na inexistência de incapazes, se façam por escritura pública.

Verifica-se, portanto, uma tendência de afastar do Poder Judiciário conflitos que comportem outro meio de solução. A morosidade do Poder Judiciário, já bastante assoberbado, e o custo do acesso à justiça incrementam as atividades que permitem aos interessados ver suas questões decididas sem intervenção do Poder em foco, que deve ser reservado para decidir conflitos em que seu atuar seja imprescindível.

A atuação do tabelião, seja de notas ou de protesto, e do registrador imobiliário, vem se expandindo, como se vê pela evolução legislativa. Reconhece o legislador federal serem os profissionais adequados, em razão de sua tradição e de sua independência jurídica, a colaborar na solução mais célere de diversas questões, sem que se prescinda da segurança jurídica e da eficácia.

Entretanto, editada a Lei 11.441/07, que valorizou enormemente a profissão dos tabeliães e registradores, vivemos momentos de perplexidade. Muitos aguardaram orientações das Corregedorias para aplicação da lei; algumas Corregedorias, extrapolando suas funções, se movimentaram para expedir normas, chegando a do Estado do Acre a criar modelos a serem seguidos.

Como profissionais do direito, com independência jurídica, devem tabeliães e registradores praticar os atos como autorizados pela lei. Não dependem de qualquer orientação ou autorização administrativa, nem a elas estão sujeitos. Em verdade, tabeliães e registradores não podem deixar de praticar os atos solicitados pelos interessados que preencham os requisitos legais, cabendo-lhes dar a correta interpretação jurídica aos dispositivos legais aplicáveis. São ônus do exercício da função. O que devem, e efetivamente fazem, é debater e analisar os avanços legislativos em seus institutos de estudo, para que atuem sempre com mais segurança.

Diante da inexorável conclusão de que as circunstâncias favorecem a afirmação da qualidade de profissionais do direito, como tais devem agir todos os tabeliães e registradores, atuando incontinenti diante de qualquer alteração legislativa que alargue o âmbito de suas atribuições.

Encerro transcrevendo pensamento do Des. Ricardo Dip, em Registro de Imóveis[9]: ‘decidir que futuro haverá para as instituições do registro e das notas é escolher já, como faz quem se adverte responsável pelo tempo que passa, se essas instituições detêm liberdade jurídica para sua atuação profissional. Sem essa liberdade, correm risco de com ela morrerem a autonomia de vontades e a propriedade particular. Nisso há também um risco da decisão, mas esse risco é o que valoriza a liberdade’. E na esteira da Lei 11.441/07 devemos já afirmar e confirmar a independência jurídica dos tabeliães e registradores, profissionais do direito”.

O texto produzido há mais de cinco anos, e parcialmente ora reproduzido, ainda é atual. Tabeliães têm se furtado a lavrar escrituras de inventário e partilha sob alegação de que testamentos revogados e caducos impedem a prática do ato. S.M.J., cuida-se de interpretação equivocada, apenas literal e dissociada do momento que vivemos, dando azo, ainda, a que nos tachem de meros amanuenses, quando somos profissionais do direito amplamente habilitados a verificar se um testamento está revogado ou caducou, no exercício de nossa atividade jurídica.

4) O correto entendimento do Judiciário paulista.

A Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo editou o Provimento CG Nº 40/2012, alterando as Normas de Serviço para manifestar expressamente o entendimento que ora se busca sustentar. 

O mencionado Provimento alterou o Capítulo XIV das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça, que atualmente estabelece: “129. É possível a lavratura de escritura de inventário e partilha nos casos de testamento revogado ou caduco ou quando houver decisão judicial, com trânsito em julgado, declarando a invalidade do testamento. 129.1. Nessas hipóteses, o Tabelião de Notas solicitará, previamente, a certidão do testamento e, constatada a existência de disposição reconhecendo filho ou qualquer outra declaração irrevogável, a lavratura de escritura pública de inventário e partilha ficará vedada e o inventário far-se-á judicialmente” (grifo nosso).

A manifestação da Corregedoria, a meu ver, seria desnecessária, pois ao tabelião cabe interpretar a lei e aplicá-la. Contudo, é muito salutar, pois gera um ambiente de segurança para aqueles que temem assumir os riscos da interpretação, sejam tabeliães ou registradores a quem os títulos vierem a ser apresentados para acesso ao fólio real.

Com efeito, a hipótese de invalidade do testamento, elencada pela Corregedoria paulista, deve ser precedida de decisão judicial, mas no caso de testamento revogado ou caduco, é desnecessária qualquer manifestação judicial, sendo viável a lavratura da escritura, cabendo ao tabelião verificar a ocorrência da revogação ou a caducidade.

A doutrina já se manifesta no mesmo sentido. Christiano Cassettari[10] afirma, com propriedade, que “quando o legislador menciona, ‘havendo testamento’ se procederá ao inventário judicial, isso deverá ocorrer somente quando houver previsão expressa sobre disposição patrimonial que impeça a aplicação da sucessão legítima, alterando as regras de transferência da propriedade aos herdeiros legítimos, sob pena de chegarmos ao cúmulo de impedir que o inventário extrajudicial ocorra, por exemplo, no caso de o testador ter feito um testamento para revogar um anterior, para que em sua sucessão sejam aplicadas as regras da sucessão legítima”. O autor traz à baila situação que já enfrentei na prática notarial: clientes que, tomando conhecimento da Lei 11.441/07, decidiram revogar o testamento para que seus sucessores não precisem recorrer ao Judiciário, para que possam processar a sucessão administrativamente, entendendo que, com a revogação, por ocasião do óbito não terão testamento válido e eficaz a impedir a lavratura de escritura de inventário e partilha.

Conclui Christiano Cassettari, comentando a nova redação das Normas da Corregedoria paulista: “acreditamos que essa regra em breve estará nas normas de serviços de todos os estados brasileiros, para que a população possa se beneficiar dela, permitindo que nesses casos o inventário possa ser feito, também, em cartório”.

Anote-se, por fim, a existência de decisões judiciais admitindo a escritura pública de inventário e partilha ainda que exista testamento válido e eficaz (p. ex., 7ª Vara da Família e Sucessões, Comarca de São Paulo – Proc. nº: 0052432-70.2012.8.26.0100). São decisões de vanguarda que certamente inspirarão o legislador a avançar. Sendo todos capazes e concordes com os termos do testamento, inclusive com eventuais gravames impostos pelo testador, o que justifica impedir o inventário e a partilha administrativos? Vale salientar que muitas pessoas evitam o inventário e a partilha com doações, impondo por vezes cláusulas restritivas, o que não encontra qualquer óbice na legislação. Não deveria haver impedimento, também, que os beneficiários do testamento promovessem o inventário e a partilha administrativamente, como já afirmado.  

5) Conclusão.

Diante de todo o exposto, entendo que a lavratura das escrituras públicas de inventário e partilha não pode ser obstada pela existência de testamento revogado ou caduco, para que não se fira o espírito da lei. Acrescente-se a hipótese relacionada pela Corregedoria paulista: quando houver decisão judicial, com trânsito em julgado, declarando a invalidade do testamento.

Nas hipóteses ventiladas, não faz qualquer sentido remeter os interessados, necessariamente, para a via judicial. Havendo testamento válido e eficaz, o inventário e a partilha judiciais são precedidos do procedimento previsto no art. 1.125 e seguintes do Código de Processo Civil, de abertura, registro e cumprimento do testamento, no qual o magistrado, após oitiva do Ministério Público, mandará cumprir o testamento “se lhe não achar vício externo, que o torne suspeito de nulidade ou falsidade (art. 1.126)”. Se o testamento foi revogado ou caducou, não se aplicará o referido procedimento especial de jurisdição voluntária, pois inexiste testamento a cumprir. O que deverá o magistrado mandar cumprir? Nada a cumprir quanto a disposições de última vontade, pois a sucessão obedecerá às regras da sucessão legítima. Assim, diante de um testamento revogado ou caduco, em juízo somente se processam o inventário e a partilha, como se testamento não houvesse (e efetivamente não há testamento eficaz, apto a produzir efeitos). Portanto, a intervenção judicial somente se dará no processamento do inventário e da partilha e, neste caso, a lei faculta às partes optar pela via administrativa, não havendo incapazes.

Dessa forma, analisando os casos concretos e estando seguros da revogação ou da caducidade, devem os tabeliães lavrar as escrituras independentemente de qualquer autorização das corregedorias, pois o fundamento para a lavratura está na Lei 11.441/07, e não em qualquer ato administrativo, assim como devem os oficiais de registro acolhê-las no fólio real. Não obstante, a edição de normas pelas corregedorias é salutar, pois colabora para a uniformização do entendimento. Ainda vivemos um momento de transição no qual alguns notários e registradores temem assumir o papel reconhecido em lei de profissionais do direito, necessitando de apoio em regras administrativas.

As mudanças legislativas muitas vezes são tímidas, o que certamente impediu que, por ocasião da edição da Lei 11.441/07, se autorizasse a lavratura de escrituras de inventário e partilha mesmo havendo testamento válido e eficaz, na hipótese de herdeiros capazes. Certamente vamos avançar nesse sentido.

__________________________

[1] “A caducidade ocorre quando há um esvaziamento da deixa testamentária ou porque o bem já não mais existe (pouco importando a causa, desaparecimento, alienação, perda), ou porque não existe o sujeito (herdeiro ou legatário) para suceder (…) Do mesmo modo, há caducidade se os herdeiros tiverem falecido antes do testador; se a condição da cláusula frustar-se (não tiver mais possibilidade de implemento) ou se os instituídos sob condição suspensiva falecerem antes do implemento da condição”. Exemplos apresentados por Sílvio de Salvo Venosa, em Direito Civil, Direito das Sucessões, 8ª edição, São Paulo, Atlas, 2.008.

[2] Disponível em http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=386354&filename=PRL+1+CCJC+%3D%3E+PL+6416/2005, acesso em 20/09/13.

[3] A proposta inicial (PL 6416/2005), dispunha: “O art. 2.015 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 – Código Civil, passa a vigorar com a seguinte redação: ‘Art. 2.015. Se os herdeiros forem capazes, poderão fazer partilha amigável: I – por escritura pública, extrajudicialmente, quando existir um único bem a partilhar; II – por termo nos autos do inventário ou escrito particular homologado pelo juiz’.”

[4] A proposta inicial dispensava de homologação judicial a partilha realizada por escritura pública, quando existisse um único bem a partilhar, como se viu, sendo ampliada para permitir o inventário e a partilha administrativos independentemente da composição da herança, desde que os herdeiros fossem capazes, tendo em vista a natureza opcional do procedimento. Segundo Maurício Rands, “diante disso, a proposta teria maior impacto sobre o ordenamento, com conseqüências positivas para a redução da demanda do Poder Judiciário e na melhoria dos procedimentos disponíveis para a população, ao menos para a realização do inventário e da partilha”.

[5] SOUZA, Eduardo Pacheco Ribeiro de Souza. Noções Fundamentais de Direito Registral e Notarial. São Paulo: Saraiva, 2.011.

[6] SOUZA, Eduardo Pacheco Ribeiro de Souza. Noções Fundamentais de Direito Registral e Notarial. São Paulo: Saraiva, 2.011.

[7] Luís Paulo Aliende Ribeiro (RIBEIRO, Luís Paulo Aliende. Regulação da Função Pública Notarial e de Registro. São Paulo: Saraiva, 2.009) afirma, ao abordar a atuação regulatória do Estado, que um cuidado há de ser mantido e se refere ao risco “sempre presente, de que a busca pela uniformização de condutas possa implicar, de qualquer modo, em indevida restrição à atividade jurídica do notário e do registrador, que deve ser exercida de forma independente, motivada e com responsabilidade” (grifamos).

[8] DIP, Ricardo Henry Marques. Registro de Imóveis (Vários Estudos). Porto Alegre: Safe, 2.005.

[9] Obra citada, pág. 132.

[10] CASSETTARI, Christiano. Separação, divórcio e inventário por escritura pública, 6ª edição. São Paulo: Método, 2.013.

_________________________

* Eduardo Pacheco Ribeiro de Souza é Tabelião e Registrador – 2º Ofício de Teresópolis, R.J.

Fonte: CNB I 07/10/2013.

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Café com jurisprudência discute aspectos da escritura pública de transação em questões trabalhistas

A tabeliã Priscila Agapito explicou que a transação é um contrato e, portanto, pode ser feita pelo tabelião.

“Escritura pública de transação e outras formas extrajudiciais para a solução de conflitos trabalhistas e a atuação dos notários e registradores” foi tema de debate do Café com Jurisprudência da última sexta-feira, 4 de outubro. A 29ª tabeliã de notas da Capital, Priscila de Castro Teixeira Pinto Lopes Agapito, foi convidada para debater o assunto, na Escola Paulista da Magistratura, durante evento que reuniu notários e registradores.

Priscila Agapito iniciou o debate expondo conceitos e especificidades da transação segundo o Código Civil. Conforme ressaltou a tabeliã, o artigo 840 diz que é lícito aos interessados prevenirem ou terminarem o litígio mediante concessões recíprocas. Ela afirmou, ainda, que os direitos patrimoniais de caráter privado são os que podem ser transacionados, sendo indisponíveis os não patrimoniais e os de natureza pública.

A tabeliã explicou que a transação é um contrato e, portanto, pode ser feita pelo tabelião. Segundo ela, esse procedimento pressupõe lide ou conflito de interesses e tem a finalidade precípua de extinguir obrigações. Nele, cada parte abre mão de uma parcela de seus direitos. A tabeliã ponderou, porém, que nem todo acordo em juízo é uma transação.

Conforme Priscila Agapito, a natureza jurídica da transação pressupõe contrato e as características de ser bilateral, indivisível, não solene, de interpretação restritiva, consensual, oneroso e de caráter constitutivo. A tabeliã ainda destacou que a transação tem duas modalidades: a judicial e a extrajudicial, esta última realizada por escritura pública, quando a lei exigir e se recair sobre direitos contestados em juízo, ou por termos nos autos.

Priscila Agapito ainda comentou as regras para a escritura pública, salientando que requer plena capacidade, tendo em vista que transigir é alienar. Na ocasião, foi discutida a polêmica em torno da legitimação, por exemplo, do tutor em relação aos bens do tutelado e do curador em relação aos bens do pupilo, bem como da necessidade de alvará para escritura pública, quando envolve menor. Durante a discussão, foi ponderado que ainda não é possível mitigar a hipossuficiência. Por outro lado, Priscila Agapito destacou a importância de se desenvolver meios alternativos para o direito social. “O nosso papel como operador do direito é ir para a vanguarda. Começar o que é possível e fazer até que se torne algo natural”, declarou.

A tabeliã Priscila Agapito ainda abordou as diferenças de tratamento nos conflitos coletivos e individuais de trabalho. Ela explicou que o acordo coletivo de trabalho é o pacto de caráter normativo pelo qual uma ou mais empresas negociam com sindicatos representativos das categorias profissionais estipulando condições de trabalho, enquanto as convenções coletivas de trabalho estão relacionadas ao pacto de caráter normativo, pelo qual dois ou mais sindicatos estipulam condições de trabalho. Já os dissídios individuais e coletivos de trabalho envolvem lides e litígios trabalhistas tratados junto ao Judiciário. Conforme a tabeliã, o nível coletivo afasta a hipossuficiência. “Não há dúvida de que nós podemos fazer transação nas convenções coletivas”, salientou. Só os dissídios individuais encontram problemas para serem resolvidos extrajudicialmente.

Priscila Agapito tratou, ainda, de outras formas extrajudiciais de solução de conflitos trabalhistas, que envolvem autotutela, autocomposição e heterocomposição (através da mediação). Ela também comentou o Provimento CG nº 17/2013, que autoriza mediação e conciliação no extrajudicial em caso de direitos patrimoniais disponíveis. A tabeliã ressaltou que são diretos indisponíveis: penal, família, administrativo e trabalhista.

A tabeliã Priscila Agapito ainda enumerou os pontos positivos de lavratura de escritura pública de transação nos cartórios, dentre os quais ela citou a lavratura perante um oficial público, a imparcialidade por natureza legal (Lei 8935/1994), possibilidade de escolha do cartório, mais conforto, custos baixos e atribuição legal de título executivo extrajudicial.

Fonte: CNB/SP I 04/10/2013.

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Reconhecimento de união estável paralela ao casamento e outra união estável

TJ|RS: Apelação cível – Reconhecimento de união estável paralela ao casamento e outra união estável – União dúplice – Possibilidade – Partilha de bens – Meação – “Triação” – Alimentos.

EMENTA

APELAÇÃO CÍVEL. RECONHECIMENTO DE UNIÃO ESTÁVEL PARALELA AO CASAMENTO E OUTRA UNIÃO ESTÁVEL. UNIÃO DÚPLICE. POSSIBILIDADE. PARTILHA DE BENS. MEAÇÃO. “TRIAÇÃO”. ALIMENTOS. A prova dos autos é robusta e firme a demonstrar a existência de união estável entre a autora e o réu em período concomitante ao seu casamento e, posteriormente, concomitante a uma segunda união estável que se iniciou após o término do casamento. Caso em que se reconhece a união dúplice. Precedentes jurisprudenciais. Os bens adquiridos na constância da união dúplice são partilhados entre a esposa, a companheira e o réu. Meação que se transmuda em “triação”, pela duplicidade de uniões. O mesmo se verificando em relação aos bens adquiridos na constância da segunda união estável. Eventual período em que o réu tiver se relacionado somente com a apelante, o patrimônio adquirido nesse período será partilhado à metade. Assentado o vínculo familiar e comprovado nos autos que durante a união o varão sustentava a apelante, resta demonstrado os pressupostos da obrigação alimentar, quais sejam, as necessidades de quem postula o pensionamento e as possibilidades de quem o supre. Caso em que se determina o pagamento de alimentos em favor da ex-companheira. APELAÇÃO PARCIALMENTE PROVIDA. (TJRS – Apelação Cível nº 70022775605 – Santa Vitória do Palmar – 8ª Câmara Cível – Rel. Des. Rui Portanova – DJ. 19.08.2008).

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos os autos.

Acordam os Desembargadores integrantes da Oitava Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado, à unanimidade, dar parcial provimento à apelação.

Custas na forma da lei.

Participaram do julgamento, além do signatário (Presidente), os eminentes Senhores DES. CLAUDIR FIDÉLIS FACCENDA E DES. JOSÉ ATAÍDES SIQUEIRA TRINDADE.

Porto Alegre, 07 de agosto de 2008.

DES. RUI PORTANOVA – Relator.

RELATÓRIO

DES. RUI PORTANOVA (Relator):

Ação de reconhecimento e dissolução de união estável proposta por ALDA em face de CARLOS.

A sentença hostilizada referiu que, durante o período da união estável, Carlos era casado e após o final do casamento manteve uma união estável como uma terceira mulher. Em função da concomitância da união estável com o casamento do varão, a sentença julgou improcedente o pedido da autora.

Contra essa sentença apelou ALDA. Alegou que, mesmo o réu sendo casado, manteve relacionamento estável com o apelado, o qual lhe supria em todas suas necessidades básicas. Referiu que, durante o tempo em que mantiveram a união, sempre auxiliou o companheiro nas tarefas agrícolas inerentes à área rural que o varão possui. Assevera que ficou provado nos autos a existência de uma relação duradoura, pública, notória e com coabitação. Refere que a jurisprudência desse Tribunal tem se mostrado sensível ao reconhecimento de relações paralelas. Requereu, ao final, o provimento do apelo para que seja reconhecida a união estável que manteve com o requerido, ainda que paralela ao casamento dele, com a respectiva conseqüência na partilha de bens e verba alimentar.

O apelado ofereceu contra-razões (fls. 215/225).

Nesse grau de jurisdição, o Ministério Público lançou parecer opinando pelo não provimento do apelo.

Registro que foi observado o disposto nos artigos 549, 551 e 552, do Código de Processo Civil, tendo em vista a adoção do sistema informatizado.

É o relatório.

VOTOS

DES. RUI PORTANOVA (Relator):

O caso versa sobre um pedido de reconhecimento de união estável, formulado por ALDA, paralela ao casamento e a uma segunda união estável (que se seguiu ao casamento) de CARLOS.

A autora ALDA alega que manteve união estável com CARLOS por um período de 35 anos, desde os idos de 1975 até 2005. Referiu que ajudava Carlos na sua atividade rural e que, no período da união, Carlos sempre proveu seu sustento, custeando suas despesas gerais mais água, luz e IPTU, as quais eram debitadas diretamente na conta corrente do requerido.

Pelo que ressalta dos autos, o caso apresenta uma hipótese de união estável concomitante ao casamento, situação essa que a jurisprudência dessa Corte tem nominado como união paralela ou dúplice.

Registrado isso, tem-se duas tarefas pela frente.

Por primeiro, é necessário demonstrar a viabilidade da pretensão de reconhecimento da união estável paralela ao casamento ou a outra união estável, considerando a existência de vedação legal nesse sentido.

Por segundo, é necessário verificar se a relação que existiu entre as partes, de fato, caracteriza uma união estável. E, em caso afirmativo, analisar os efeitos dessa relação, mormente no que tange à partilha de bens e alimentos.

Vejamos então.

UNIÃO DÚPLICE.

Não é de hoje, que tenho entendido possível o reconhecimento das uniões paralelas ou uniões dúplices.

Tenho sustentado que, se a partir do cotejo dos elementos específicos que o caso concreto apresenta, restarem evidenciados os requisitos caracterizadores da união estável (art. 1.723 do CC), considero o reconhecimento da segunda união, em concomitância ao casamento, ser a medida mais adequada à realidade e ao estágio atual de convivência entre as pessoas em nossa sociedade.

O contrário disso, é fechar os olhos a uma realidade que cada vez mais tem batido à porta do Judiciário, não sendo possível o Estado deixar de dar a devida tutela a toda uma história de vida das pessoas envolvidas no litígio, sob pena de causar uma grave injustiça.

Nesse sentido, a título de contribuição para o entendimento ora defendido, interessante colacionar as palavras da Desa. Maria Berenice Dias, em voto proferido no julgamento da AC nº 70017045733, in verbis:

“O ordenamento civil, consubstanciado no princípio da monogamia, não reconhece efeitos à união estável quando um do par ainda mantém íntegro o casamento (art. 1.723, §1º, do Código Civil). Certamente, esse é o ideal da sociedade: um relacionamento livre de toda a ordem de traições e, se possível, eterno até que “a morte os separe”.

Contudo, a realidade que se apresenta é diversa, porquanto comprovada a duplicidade de células familiares. E conferir tratamento desigual a essa situação fática importaria grave violação ao princípio da igualdade e da dignidade da pessoa humana. O Judiciário não pode se esquivar de tutelar as relações baseadas no afeto, não obstante as formalidades muitas vezes impingidas pela sociedade para que uma união seja “digna” de reconhecimento judicial.”

Não menos importante, é o destaque no sentido de que esse Tribunal, a partir de recentes julgamentos, vem sinalizando a possibilidade de reconhecimento de união estável paralela a outro vínculo preexistente de um do par, seja ele casamento ou união estável. Senão, vejamos ementário que segue:

APELAÇÃO CÍVEL.

1)UNIÃO ESTÁVEL PARALELA A OUTRA UNIÃO ESTÁVEL. RECONHECIMENTO. O anterior reconhecimento judicial de união estável entre o falecido e outra companheira, não impede o reconhecimento da união estável entre ele e autora, paralela àquela, porque o Direito de Família moderno não pode negar a existência de uma relação de afeto que também se revestiu do mesmo caráter de entidade familiar. Preenchidos os requisitos elencados no art. 1.723 do CC, procede a ação, deferindo-se à autora o direito de perceber 50% dos valores recebido a título de pensão por morte pela outra companheira.

2)RESSARCIMENTO DE DANOS MATERIAIS E EXTRAPATRIMONIAIS. Descabe a cumulação de ação declaratória com ação indenizatória, mormente considerando-se que o alegado conluio, lesão e má-fé dos réus na outra ação de união estável já julgada deve ser deduzido em sede própria. (SEGREDO DE JUSTIÇA) Apelação parcialmente provida. (Apelação Cível Nº 70012696068, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: José Ataídes Siqueira Trindade, Julgado em 06/10/2005)

APELAÇÃO. UNIÃO DÚPLICE. UNIÃO ESTÁVEL. PROVA. MEAÇÃO. “TRIAÇÃO” . SUCESSÃO. PROVA DO PERÍODO DE UNIÃO E UNIÃO DÚPLICE A prova dos autos é robusta e firme a demonstrar a existência de união entre a autora e o de cujus em período concomitante a outra união estável também vivida pelo de cujus. Reconhecimento de união dúplice. Precedentes jurisprudenciais. MEAÇÃO (TRIAÇÃO) Os bens adquiridos na constância da união dúplice são partilhados entre as companheiras e o de cujus. Meação que se transmuda em ¿triação¿, pela duplicidade de uniões. DERAM PROVIMENTO À APELAÇÃO. POR MAIORIA. (SEGREDO DE JUSTIÇA) (Apelação Cível Nº 70011258605, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Rui Portanova, Julgado em 25/08/2005)

UNIÃO ESTÁVEL. RECONHECIMENTO. DUPLICIDADE DE CÉLULAS FAMILIARES. O Judiciário não pode se esquivar de tutelar as relações baseadas no afeto, inobstante as formalidades muitas vezes impingidas pela sociedade para que uma união seja “digna” de reconhecimento judicial. Dessa forma, havendo duplicidade de uniões estáveis, cabível a partição do patrimônio amealhado na concomitância das duas relações. Negado provimento ao apelo. (SEGREDO DE JUSTIÇA) (Apelação Cível Nº 70010787398, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Maria Berenice Dias, Julgado em 27/04/2005)

UNIÃO ESTÁVEL. RECONHECIMENTO. CASAMENTO DE PAPEL UNIÃO DÚPLICE. Caso em que se reconhece a união estável da autora-apelada com o de cujus apesar de até o falecimento o casamento dela com o apelante estar registrado no registro civil. NEGARAM PROVIMENTO, POR MAIORIA, VENCIDO O RELATOR. (APELAÇÃO CÍVEL Nº 70006046122, OITAVA CÂMARA CÍVEL, TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RS, RELATOR: RUI PORTANOVA, JULGADO EM 23/10/2003)

APELAÇÃO. CASAMENTO E CONCUBINATO. UNIÃO DÚPLICE. EFEITOS. Notório estado de união estável do de cujus com a apelada, enquanto casado com a apelante. De se reconhecer o pretendido direito ao pensionamento junto ao IPERGS. NEGARAM PROVIMENTO. POR MAIORIA. (APELAÇÃO CÍVEL Nº 70006936900, OITAVA CÂMARA CIVEL, REL. DES. RUI PORTANOVA, J. 13/11/2003).

Em resumo, conferir conseqüências jurídicas distintas a duas situações fáticas semelhantes (duas células familiares), importaria violação ao princípio da igualdade e da dignidade da pessoa humana.

Seria, do ponto de vista daquele que pleiteia o reconhecimento de sua relação, em muitos casos, dizer que a pessoa não viveu aquilo que viveu, que é uma pessoa “menor” do que aquelas que compõe a relação protegida pelo Estado, circunstância que, evidentemente, configura uma indignidade.

Nesta linha, é o ensinamento de Ingo Sarlet, “nem mesmo o interesse comunitário poderá justificar ofensa à dignidade individual, esta considerada como valor absoluto e insubstituível de casa ser humano”.

Reproduzindo o pensamento de Castanheira Neves, continua o eminente constitucionalista gaúcho:

“A dimensão pessoal postula o valor da pessoa humana e exige o respeito incondicional de sua dignidade. Dignidade da pessoa a considerar em si e por si, que o mesmo é dizer a respeitar para além e independente dos contextos integrantes e das situações sociais em que ela concretamente se insira. Assim, se o homem é sempre membro de uma comunidade, de um grupo, de uma classe, o que ele é em dignidade e valor não se reduz a esses modos de existência comunitária ou social. Será por isso inválido, e inadmissível, o sacrifício desse seu valor e dignidade pessoal a benefício simplesmente da comunidade, do grupo, da classe. Por outras palavras, o sujeito portador do valor absoluto não é a comunidade ou classe, mas o homem pessoal, embora existência e socialmente em comunidade e na classe. Pelo que o juízo que histórico-socialmente mereça uma determinada comunidade, um certo grupo ou uma certa classe não poderá implicar um juízo idêntico sobre um dos membros considerado pessoalmente – a sua dignidade e responsabilidade pessoais, não se confundem com o mérito e o demérito, o papel e a responsabilidade histórico-sociais da comunidade, do grupo ou classe de que se faça partes” (in Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais, p. 137).

Assim, resta demonstrada a viabilidade jurídico-constitucional quanto ao reconhecimento das uniões paralelas, uma vez presentes os pressupostos da segunda união, previstos no art. 1.723 do CC.

O CASO CONCRETO.

Inicialmente, é bem de ver que o juízo originário reconheceu a existência de um relacionamento estável entre a apelante ALDA e o apelado CARLOS.

É o que se depreende da fundamentação da sentença, precisamente à fl. 201 dos autos, que destaca: “Portanto, apesar da farta documentação trazida pela autora demonstrando o relacionamento amoroso que teve com réu, diante do impedimento legal, posto que era casado, não há como reconhecer a alegada união estável. ”

Com efeito, o julgador originário manifestou-se pela existência de uma relação afetiva, pública e duradoura pois, rigorosamente, a prova dos autos é robusta e firme no sentido de demonstrar que esse foi o tipo de relação existente entre a autora e o requerido.

Tal afirmação se comprova em razão das fotos de fls. 14/17, donde se conclui que a relação do casal era pública, figurando o par em eventos públicos como batizados e aniversário de 15 anos.

Na mesma linha são os vários bilhetes e cartões de datas comemorativas que o casal se trocava, deixando clara a relação de afeto sólido que mantinham (fls. 18/30).

Contudo, talvez a prova documental que melhor demonstre a intenção de constituição de família do casal seja as contas de água e luz da residência da autora, as quais estão em nome de CARLOS (fls. 31/37).

Não fora esses elementos, os requisitos caracterizadores da união estável estão também retratados na prova testemunhal, conforme os depoimentos que seguem.

A testemunha Tânia Mara Araújo (fl. 138), que é vizinha da autora, relatou que esta “mantinha com o requerido um relacionamento público e notório (…) como se matrimônio fosse (…) que esse relacionamento durou mais de vinte anos (…) que toda vizinhança tinha o réu como marido da autora, porém confirma a depoente que Carlos era casado na ocasião e isso era de conhecimento público.”

No mesmo sentido, Jorge Pereira Rodrigues (fl. 140), que também era vizinho da autora: “Confirma que na ocasião em que residiu próximo da autora o réu freqüentava a casa dela habitualmente, sendo que a vizinhança o tinha como companheiro de Alda (…) Em que pese a autora desempenhasse a função de manicure, tomou conhecimento de que o réu mantinha as despesas dela, pagando as suas contas. (…) Afirma que o relacionamento das partes era notória e pública, ainda que o réu estivesse mantendo paralelamente seu casamento. Soube por terceiros que o relacionamento da autora e do réu teve início nos anos setenta (…)Quando a autora mudou de endereço, em 2002, o réu ainda freqüentava a casa da autora.”

A testemunha Vera de Fátima Chaves Pereira Coitinho (fls. 139): “Confirma que a autora e réu tinham comportamento de marido e mulher. (…) O marido da depoente também tinha a autora como esposa, companheira do réu.”

Diante do contexto probatório, resta demonstrado que Alda e Carlos mantiveram uma união pública, contínua, duradoura e estabelecida com objetivo de constituição de família (art. 1.723 do CC).

Por outro lado, também é certo que, durante a união estável com Alda, Carlos não deixou de conviver com sua primeira esposaValcina bem como, após o término do matrimônio (em 1999 – verso fl. 60), passou a conviver, em união estável, com Eva. Nesse sentido, significativa é a escritura pública de pacto de convivência feita entre Carlos e Eva (fl. 61), dando conta que o requerido conviveu em união estável com Eva “há mais de (7) sete anos” (a data da escritura é de dezembro de 2005).
Todavia, como justificado no tópico anterior, à luz de uma interpretação baseada no princípio/fundamento constitucional dadignidade da pessoa humana, a existência concomitante com o casamento – ou união estável – não impede o reconhecimento de uma segunda união estável, configurando o que a jurisprudência convencionou chamar de união paralela ou união dúplice.

Verificado, então, a existência de união estável paralela ao casamento e, posteriormente, paralela à união estável que se seguiu ao casamento, impõe-se sua declaração, restando, agora, identificar seu período de existência.

Marcos temporais.

Nesse rumo, tem-se que Alda alega que a união estável iniciou-se em 1973.

Contudo, nenhum respaldo há nos autos no sentido de demonstrar que a união, realmente, iniciou-se naquela data.

Veja-se que dentre os vários cartões e fotos de fls. 14/30, a data mais antiga ali contida é referente a uma foto do casal, em uma viagem para o Uruguai, onde consta uma anotação de próprio punho da autora indicando a data de “1979/80” (fl. 14).

Documentalmente, não há mais nenhum indício de que a relação tenha se iniciado antes dessa data, haja vista que a grande maioria das cartas, cheques e contas de água e luz, são datadas da década de 80 em diante.

Por outro lado, a prova testemunhal também não ampara a alegação de que união tenha se iniciado em 1973.

Vejamos o que dizem as testemunhas da autora.

Tânia (fl. 138) diz que o relacionamento durou mais vinte anos (a data da audiência foi 28/08/2007).

Vera (fl. 139) diz que conhece a autora há vinte e sete anos, mas não esclarece desde quando sabe que as partes mantêm união estável.
Jorge (fl. 140) confirma que foi vizinho da autora desde 1984 e “que soube por terceiros que o relacionamento da autora e do réu teve início nos anos setenta”.

A luz desses elementos, penso que não há subsídio seguro para identificar que a união estável tenha se iniciado no ano sustentado pela autora. O fundamento para tanto é a fartura de fotos e correspondências, todas datadas dos anos oitenta e nenhuma dos anos setenta. Por isso, ainda que a prova testemunhal refira indiretamente que a união se iniciou na década de setenta, tenho que fixar o início em 1973 é demasiado.

Fixo, portanto, o marco inicial da união no ano de 1978.

Tocante ao termo final do relacionamento há prova de que tenha se mantido até 2005 como alegado pela apelante.
Nesse sentido são as contas de água e luz da casa da autora, que estão em nome do réu datadas de novembro de 2005 à maio/2006 (fls. 31/37).
A partir dessas balizas, considerando que a inicial, bem como o recurso de apelação, limita-se ao pedido de reconhecimento da união estável, o apelo de ALDA vai provido para reconhecer a união estável, paralela ao casamento e à segunda união estável do varão, pelo período compreendido entre janeiro de 1978 até novembro de 2005.

Reconhecida a união, passemos à análise de seus efeitos.

EFEITOS

Partilha de bens – Meação “Triação”

A apelante requereu na inicial a meação dos bens adquiridos na constância da união com o requerido.

Não há dúvida que se comunicam os bens adquiridos no curso da união entre Alda e Carlos, a teor da combinação das normas do artigo 1.658 e 1.725, do Código Civil de 2002:

Art. 1.658. No regime de comunhão parcial, comunicam-se os bens que sobrevierem ao casal, na constância do casamento, com as exceções dos artigos seguintes.

Art. 1.725. Na união estável, salvo contrato escrito entre os companheiros, aplica-se às relações patrimoniais, no que couber, o regime da comunhão parcial de bens.

No caso, há duas uniões dúplices.

Ou seja, num primeiro momento houve casamento e união estável concomitantes e, após o término do matrimônio, duas uniões estáveis concomitantes.

É que ficou bem retratado nos autos que, terminado o casamento com a primeira esposa Valcina (separação judicial em 1999 – verso da fl. 60) o requerido passou a conviver, em união estável, com Eva (escritura pública de pacto de convivência feita entre Carlos e Eva – fl. 61).

Por isso, o patrimônio terá que ser dividido em três, quando o réu apresentar concomitância de relacionamentos e em dois, quando em eventual intervalo entre as uniões paralelas, no caso de o réu ter se relacionado somente com a apelante.

À similitude:

APELAÇÃO. UNIÃO DÚPLICE. UNIÃO ESTÁVEL. POSSIBILIDADE. A prova dos autos é robusta e firme a demonstrar a existência de união entre a autora e o de cujus em período concomitante ao casamento de “papel”. Reconhecimento de união dúplice. Precedentes jurisprudenciais. Os bens adquiridos na constância da união dúplice são partilhados entre a esposa, a companheira e o de cujus. Meação que se transmuda em “triação”, pela duplicidade de uniões. DERAM PROVIMENTO, POR MAIORIA, VENCIDO O DES. RELATOR. (Apelação Cível Nº 70019387455, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Rui Portanova, Julgado em 24/05/2007)

APELAÇÃO. UNIÃO DÚPLICE. UNIÃO ESTÁVEL. PROVA. MEAÇÃO. “TRIAÇÃO” . SUCESSÃO. PROVA DO PERÍODO DE UNIÃO E UNIÃO DÚPLICE A prova dos autos é robusta e firme a demonstrar a existência de união entre a autora e o de cujus em período concomitante a outra união estável também vivida pelo de cujus. Reconhecimento de união dúplice. Precedentes jurisprudenciais. MEAÇÃO (TRIAÇÃO) Os bens adquiridos na constância da união dúplice são partilhados entre as companheiras e o de cujus. Meação que se transmuda em “Triação”, pela duplicidade de uniões. DERAM PROVIMENTO À APELAÇÃO. POR MAIORIA. (SEGREDO DE JUSTIÇA) (Apelação Cível Nº 70011258605, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator Vencido: Alfredo Guilherme Englert, Redator para Acordão: Rui Portanova, Julgado em 25/08/2005)

Logo, a partilha de bens/meação requerida pela apelante (companheira) corresponde a 1/3 do patrimônio formado no período concomitante em cada uma das uniões (casamento e união estável).

Ou metade do patrimônio, em eventual intervalo entre as uniões paralelas, caso venha a ser demonstrado que o requerido relacionou-se somente com a apelante em determinado período.

Portanto, a apelante não tem direito à meação em relação aos bens adquiridos antes do início da sua união (janeiro/1978) bem como após o término da relação, em novembro/2005.

Dito isso, como não veio aos autos relação de bens a serem partilhados, o apelo de Alda vai provido somente para declarar o direito de Alda à partilha dos bens, a ser feita em liquidação de sentença, nos moldes aqui definidos.

Alimentos.

Uma vez reconhecida a entidade familiar, procede a pretensão da apelada em receber alimentos do ex-companheiro, diante do vínculo de companheirismo que se estabelece (art. 1.694 do CC).

Resta, portanto, a análise do binômio (ou trinômio) alimentar – proporção entre necessidades e possibilidades – o que passo a fazer em conjunto.
Na inicial, Alda pede que os alimentos sejam fixados em 1,4 salários mínimos (fl. 05).

Por um lado, restou muito bem comprovado que durante o período de convivência Carlos proveu o sustento da requerente. Nesse sentido são os cheques do requerido que ele repassou à autora para o custeio de suas despesas (fls. 09/13), bem como as contas de água e luz da apelante que estavam em nome do varão.

Na mesma toada, a prova testemunhal sustenta a alegação da autora de que o varão era o responsável por seu sustento.

Nesse sentido a testemunha Tânia (fl. 138): “Durante os anos em que a autora esteve com o réu, ele mantinha o sustento dela.”

A testemunha Vera (fl. 139): “Diz que a autora ajudava na campanha, trabalhando na horta, com o gado, entre outras atividades.”

A testemunha Jorge (fl. 140): “em que pese a autora desempenhasse a função de manicure, tomou conhecimento de que o réu mantinha as despesas dela, pagando as suas contas”.

Não fora esses elementos, não perco de vista que, ainda em cognição sumária, foram fixados alimentos provisórios em favor da autora em um salário mínimo (fl. 45), contra os quais foi interposto agravo de instrumento, mantendo-se o pensionamento provisório (decisão de fl. 78/80).

Só a partir dessas constatações, já é possível identificar os pressupostos da obrigação alimentar. Ou seja, por um lado Alda necessita da verba alimentar, pois foi sustentada pelo varão ao longo de 27 anos de união estável, bem como possui ele possibilidade de fornecer pensão alimentícia à mulher.

Sendo assim, tocante aos alimentos, vai provido parcialmente o apelo de Alda para determinar que Carlos lhe pague alimentos em 25% do salário mínimo, a ser pago pelo demandado até o quinto dia útil de cada mês, a contar da data dessa decisão.

Sucumbência.

Considerando a alteração na sucumbência, em função do parcial provimento do apelo de Alda, as custas judiciais e honorários advocatícios, fixados na sentença, ficarão a cargo do réu.

ANTE O EXPOSTO, dou parcial provimento à apelação para:

a) declarar a união entre Alda e Carlos compreendida entre janeiro de 1978 até novembro de 2005;

b) declarar seu direito à meação, que equivalerá a um terço do patrimônio adquirido pelo casal, em período em que o réu apresentar relacionamentos concomitantes e metade do patrimônio adquirido em eventual período em que o requerido tiver se relacionado somente com a apelante, nos termos acima expostos, definindo-se a partilha em liquidação de sentença e

c) fixar alimentos em favor da apelante no valor de 25% do salário mínimo, a ser pago pelo réu no quinto dia útil de cada mês, a partir dessa decisão.

Sucumbência conforme a fundamentação.

DES. CLAUDIR FIDÉLIS FACCENDA (REVISOR) – De acordo.

DES. JOSÉ ATAÍDES SIQUEIRA TRINDADE – De acordo.

DES. RUI PORTANOVA – Presidente – Apelação Cível nº 70022775605, Comarca de Santa Vitória do Palmar: “DERAM PARCIAL PROVIMENTO. UNÂNIME.”

Fonte: Blog do 26 I 04/10/2013.

Publicação: Portal do RI (Registro de Imóveis) | O Portal das informações notariais, registrais e imobiliárias!

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