O ping pong da Central dos Registros de Títulos e Documentos de São Paulo


* Vitor Frederico Kümpel

Nos últimos anos, muito se discutiu sobre a permanência e funcionalidade do Centro de Atendimento e Distribuição de Títulos e Documentos de São Paulo, pessoa jurídica responsável por orientar e dar suporte à instalação e operação de uma central própria para a recepção e distribuição dos serviços dos Registros de Títulos e Documentos e Civil de Pessoa Jurídica na Comarca da Capital.

A central foi criada a partir de 09 de outubro de 2001, quando o então Corregedor Geral Luiz de Macedo, tendo por base o processo C.G. 2.686/01, a pedido dos titulares de Cartórios de Títulos e Documentos instituiu o provimento 29, alterando a redação do subitem 7.2. do capítulo XIX das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça de São Paulo. A partir daí, todos pedidos de registros foram centralizados e distribuídos de forma equânime entre as dez serventias de Títulos e Documentos da capital, a cada qual se garantia ainda um valor mínimo de 10% do montante capitalizado pela atividade no município.

A sistemática perdurou por aproximadamente dez anos sem qualquer objeção oficial e pôs fim à concorrência entre as unidades. Somente em 2011, que, motivado pelo processo 2011/42965, o corregedor geral pôs fim à distribuição prévia dos registros, sem juízo, entretanto, da distribuição mantida em consenso unânime dos titulares das delegações (provimento 19). Contudo, foi facultada a livre escolha do registrador pelo usuário, que poderia apresentar o título na unidade escolhida, neste caso vedada obviamente a compensação. O próprio provimento ainda destacava que nas dependências da central, bem como no respectivo endereço eletrônico deveriam ser fixadas informações claras sobre a liberdade de escolha e a possibilidade de apresentação do título diretamente ao registrador. Desde então, entre idas e vindas, vários provimentos regulamentaram o assunto, instituindo ou destituindo a centralização obrigatória, em um infindável set de uma partida de tênis.

Não satisfeita a questão, em 28/9/2011, os registradores de São Paulo solicitaram ao Conselho Nacional de Justiça o retorno da compensação dos valores. O CNJ acolheu o pedido e em 14/2/2012 suspendeu parte do Provimento 19/2011 da CGJ-SP. Desse modo, o então corregedor geral Renato Nalini editou os provimentos 03 e 04, conferindo nova redação ao subitem 7.2 do capítulo XIX das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça de São Paulo. Segundo o provimento 04, o usuário poderia até escolher o registrador, desde que apresentasse o título ao distribuidor, sem prejuízo da obrigatória compensação dos títulos livremente distribuídos.

Em 12/6/2012, a Associação dos Advogados de São Paulo impetrou mandado de segurança questionando a última decisão do CNJ. Em abril de 2013, o ministro Ricardo Lewandowsi suspendeu a decisão, prejudicando os provimentos 03 e 04. Desse modo, o atual corregedor-geral da Justiça de São Paulo Hamilton Elliot Akel foi obrigado a revogar as normas editadas por Nalini.

Na época, o presidente da Associação dos Advogados de São Paulo, Arystóbulo de Oliveira Freitas, defendeu o direito de escolha pelo cidadão do local de registro do documento, vez que existem "cartórios" mais eficientes e céleres. De qualquer modo, para quem defende a descentralização, o argumento é a busca por melhor qualidade no serviço, diferencial básico e elemento de competitividade entre as unidades. À maneira de Smith, diríamos que uma mão invisível regularia de maneira diretamente proporcional a procura em vista da qualidade do serviço oferecido.

Ademais, sendo a procura regulada pela qualidade do atendimento, nada impediria, por exemplo, que os RTDs que se dispusessem a manter elevado quadro de funcionários e notificantes, a utilizar de técnicas hodiernas em benefício de seu mister ou desenvolver trabalho aliado aos escritórios advocatícios usufruíssem da preferência pela clientela contentada. Acrescendo-se ainda em defesa da descentralização o fato de que a manutenção da central como intermediadora entre cidadão e o "cartório" apenas atrasaria os serviços prestado e elevaria os custos do serviço, dada a estrutura bis in idem.

Alguns chegam a responsabilizar a central pela redução no número de prepostos das serventias, com a perda de contratos que passaram a ser registrados inclusive em outras cidades, devido à queda na qualidade do atendimento e interrupção do desenvolvimento tecnológico apresentado pelo setor anteriormente ao surgimento da central. As más línguas chegam a apelidá-la "poupa trabalho" referindo-se aos delegatários ineficientes, que utilizam a central para transferir compulsoriamente parte da atividade prestada.

Se traçarmos um paralelo com a visão de George Arkelof e sua obra "The Market for Lemons: Quality Uncertainty and the Market Mechanism" poderíamos mencionar aqui a problemática de uma assimetria de informações, vez que os prestadores do serviço detêm maior informação que os usuários, cuja preferência acaba subsumida pela uniformização e centralização, premiando unidades menos eficientes ao igualá-las às mais eficientes. Trata-se do famoso mercado de limões de Arkelof, que utiliza o termo em alusão aos carros com defeito no mercado de usados, em uma tradução, equivaleria ao nosso famoso "abacaxi"1. Haveria um nivelamento do serviço de má qualidade que obteria o salvo conduto diante de um sistema que imporia uma igualdade para ofícios qualitativamente distintos.

Por outro lado, para quem defende a posição contrária, como Robson Alvarenga, titular do 4º Ofício de Títulos e Documentos, a descentralização completaria o sucateamento do sistema com piora no atendimento à população, pois a central garante a estabilidade necessária a um serviço com nível de excelência e independência fundamental à segurança jurídica do registro. Segurança esta incompatível com a captação de clientela em uma estrutura descentralizada, dada a possibilidade de oferecimento de vantagens ilegais. Nessa linha de raciocínio, uma das grandes preocupações éticas da atividade é evitar a concorrência formal na medida em que não pode haver captação de "clientela", o que certamente ocorre diante da liberdade de opção do usuário.

Argumenta-se que a comunhão das dez unidades de títulos e documentos facilita a inserção tecnológica a longo prazo de todas as serventias envolvidas. Segundo o próprio CDT até janeiro de 2014, mais de 13 milhões de atos registrais já haviam sido praticados, e somente em 2013 o investimento na área teria superado R$ 1 milhão. Outro argumento favorável à permanência da unidade se põe em função de clientes do setor financeiro, como grandes bancos. Trata-se de clientes em potenciais que seriam priorizados, em detrimento do cidadão comum, pois para satisfazê-los cada serventia teria de arcar ainda com a contratação de profissionais especializados no mercado.

Nesse sentido, a centralização também é elogiável, pois, na prática, ao longo da última década, o CDT moveu esforços para a capacitação dos seus funcionários, visando a melhoria dos serviços, oferecidos ao cidadão com celeridade e eficiência, por meio de estrutura apropriada e consistente, voltada à prontidão do atendimento.

A centralização da recepção e distribuição dos títulos e documentos obra favoravelmente no que toca à logística para que as informações e providências ganhem uma uniformidade e a central passe a ser elemento potencializador do próprio serviço de Títulos e Documentos facilitando inclusive o controle.

Contra o argumento da elevação dos custos da atividade, os defensores da Central pregam que os custos do CDT não são repassados aos usuários, vez que são financiados diretamente pelas serventias agregadas. Nesse contexto, prioriza-se compromisso dos delegatários com a eficiência, segurança, transparência e profissionalismo, em detrimento do valor de arrecadação das serventias.

O art. 12 da lei 8.935/94, na sua interpretação gramatical torna óbvio que os registros de títulos e documentos independem de prévia distribuição. Walter Ceneviva ensina que a escolha é livre, desde que no ambito da rescpectiva comarca, de modo que a legitimidade do funcionamento de cada serviço fique restrita a um local único, vedando-se sucursais2. Todo o problema da análise do artigo 12 reside no fato de que a lei 8.935/94 subentende em funcionamento no estado, como o de São Paulo, o ofício de registro de distribuição, que não se trata de um mero distribuidor, mas sim uma serventia centralizadora dos atos praticados nos ofícios de registro, o que jamais foi implementado na maioria dos estados da federação.

Independentemente do ponto de vista adotado, verdade é que a tecnologia informacional surge flexibilizando e inovando o serviço o que acaba, de certo, modo, por eliminar a problemática. Para ilustrar, temos o sistema adotado pelas CRCs, um gerenciamento de banco de dados alimentado por atos de competência dos oficiais dos Registros Civis das Pessoas Naturais interligados com um regimento administrativo próprio. Sem dúvida, a inclusão digital dos serviços extrajudiciais reflete um avanço considerável, tendo em vista a enorme redução de custos de transação. Por meio da virtualidade dos serviços, as despesas e tempo despendidos com o deslocamento à respectiva Serventia são substituídos pela faculdade do cidadão requerer e receber em seu endereço certidões instantaneamente atualizadas, sem ter de percorrer quilômetros de distância ou levar horas para se deslocar em uma cidade de infraestrutura deficitária. A adesão à tecnologia informacional é marco a favor do princípio da eficiência do serviço público, independente de qualquer distribuição ou equalização dos serviços de títulos e documentos. Aliás, a referida informatização põe em xeque o próprio ofício de distribuição.

É sabido que a própria LNR confere organização técnica e administrativa aos serviços notariais e de registro, com preceitos fundados na economia taylorista, relativos ao ordenamento científico do trabalho com método, técnica e especialização, por meio de uma definição de tarefas. Nesse sentido, a inserção tecnológica e interligação dos serviços atende a problemática em benefício da eficiência.

De fato, o CDT tornou-se ferramenta a favor da celeridade e eficiência dos serviços de Títulos e Documentos da capital, com o cognome de "poupa tempo" dos RTDs. Contudo, a tecnologia se põe à favor do final da partida de "ping pong" em benefício do cidadão usuário. Diante de todo o arrazoado o centro da discussão deve ser deslocado da existência ou não da central para o uso adequado da tecnologia como fator central na prestação do serviço em benefício da cidadania. Existindo ou não a central, a carência dos registros gira em torno da tecnologia como fator de produção.

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1. Akerlof, George A. (1970). "The Market for 'Lemons': Quality Uncertainty and the Market Mechanism". Quarterly Journal of Economics (The MIT Press) 84 (3): 488–500. doi:10.2307/1879431.

2. W. Ceneviva. Lei dos Notários e dos Registradores Comentada. 9ª edição. São Paulo: Saraiva. p. 158.

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* Vitor Frederico Kümpel é juiz de Direito em São Paulo, doutor em Direito pela USP e coordenador da pós-graduação em Direito Notarial e Registral Imobiliário na EPD – Escola Paulista de Direito.

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Artigo: Famílias mútuas – Por JONES FIGUEIRÊDO ALVES


A troca de bebês em maternidades, nascidos em mesmo dia, decorrente da ineficiência da administração hospitalar, tem provocado que famílias assumam como filhos os que são de outras, tendo-os, todavia, como verdadeiros filhos, ao fim e ao cabo da convivência familiar prolongada, em manifesta parentalidade socioafetiva.

As primeiras repercussões fáticas são danosas, quando a não semelhança física com os pais, permite "inconvenientes desconfianças" do cônjuge varão, que levam, em alguns casos, à separação judicial, ou à compreensão social do "filho de criação"; culminando, outrossim, com a realização de exames genéticos para a verificação da paternidade e, ao depois, a procura e identificação do filho biológico trocado.

As soluções subsequentes são a destroca dos filhos (em medida do possível) a retificação dos registros civis pessoais (com mudança dos prenomes) e as indenizações por danos morais (de caráter compensatório); quando, em bom rigor, as sequelas psicológicas são profundas, os fatos da vida se tornaram inexoráveis pelos danos existenciais causados, valendo, anotar, por essencial, os vínculos socioafetivos que jamais se desfazem.

A propósito, notável julgado da 1ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de Pernambuco, onde relator o desembargador Erik de Sousa Dantas Simões, juiz decisor de primeiro grau o magistrado Glacidelson Antonio da Silva (1ª Vara da Fazenda Pública da Comarca de Garanhuns; sentença em DJe. nº 123/2011, de 07.07.2011, pp. 1.182-1.185) e patrono dos autores o advogado Ivonaldo de Albuquerque Porto, confirmou a responsabilização civil estatal por troca de bebês, com o significativo de que ambas as famílias e os menores impúberes ajuizando, em conjunto, a ação indenizatória, permaneceram aqueles em companhia dos seus pais registrais, civis e sociafetivos, por inarredável situação consolidada de amor paterno-filial entre eles. (TJPE – DJe. nº 45/2014, de 10.03.2014, pp. 167-168). 

"Bem que fartos em amor, como natural, puderam ter em J.R.B.S.J., a satisfação de tê-lo amado como filho e continuarão a ama-lo como tal", disseram os primeiros pais na petição inicial da ação proposta, o mesmo repetindo os segundos, em relação a L.F. de S.

Os bebês nasceram no mesmo dia (30.05.1998), no mesmo hospital, com uma diferença de apenas oito minutos, trocados na primeira hora, e somente sete anos depois (25.04.2005), tiveram, por exame genético, suas verdadeiras origens biológicas reveladas.

As decisões recíprocas dos pais afetivos, uns e outros, de mantê-los no lar original de cada um, onde foram criados e amados, ao tempo que exaltam a paternidade e maternidade socioafetivas fazem, em ato instante, uma cumplicidade inevitável com o destino deles, mormente quando, na hipótese, tudo evidencia uma desigualdade econômica das famílias envolvidas. Essa singularidade mais enaltece o triunfo do amor, cuja prevalência tem seguido precedentes dignificantes: (i) o caso "Stanley e Jobson", em Cruzeiro do Sul, no Acre, quando somente quinze anos depois (05.2013)  foi  descoberta a troca, mantiveram-se os jovens com suas genitoras afetivas, decidindo ambas as famílias estabelecer encontros para a dinâmica de convivência entre os filhos e as mães biológicas Maria Lúcia Bezerra e Ana Cláudia Ramos;  (ii) o caso "Franciele e Danielle", em Foz do Iguaçu, no Paraná, quando trocadas em maternidade (23.10.1995), o que somente constatado sete depois, decidiram também as famílias em não desfazer a troca, morarem próximas, tornando-se duas famílias unidas.

Em situações que tais, recolhem-se esses fatos da vida como elementos indutores ao surgimento determinante do que ora se denomina de "famílias mútuas". Famílias mútuas serão aquelas, portanto, que se apresentam formadas por mães e pais que assumindo, efetivamente, a socioafetividade parental de seus filhos, que lhes foram remetidos pelo destino, desde o berço trocado, não deixam, todavia, de proteger o vinculo biológico com os seus filhos consanguíneos em poder de outra família, cuja permanência ali se oferece como ditame da mesma socioafetividade preordenada.

Há um outro dignificante exemplo, no caso russo da família Belyaeva, quando sua filha Anya foi trocada por Irina, filha de uma família muçulmana, a do tadjique Naimat Iskanderov, tendo o tribunal de Kopeisk, nos montes Urais, condenado o hospital a uma indenização de U$ 100 mil (2011). As duas famílias, independente de tradições, costumes e religião diferentes, decidiram utilizar a indenização para possibilitar residências próximas ou até uma moradia multifamiliar, para as crianças crescerem juntas com todos os pais.

Anota-se que a troca de bebês em maternidades, notadamente públicas, tem sido um fenômeno crescente, não obstante medidas de segurança, normas internas ou municipais e a tímida tipificação penal referida pelo art. 229 do Estatuto da Criança e do Adolescente, no atinente à correta identificação do neonato e da parturiente, por ocasião do parto. Os julgamentos dos tribunais brasileiros, inclusive do Superior Tribunal de Justiça, têm sido frequentes, a assinalar a responsabilização civil por ilicitudes dessa espécie.

No caso mais recente, anota-se com louvor que, para além da condenação do Estado de Pernambuco à indenização no valor de R$ 300 mil por danos morais para todos os autores (pais e filhos), foi acrescida a obrigação de o Estado fornecer tratamento psicológico a todos eles, pelo prazo de dois anos.

No ponto, tenha-se por refletir da impostergável construção jurídica do instituto do "pensionamento por dano existencial", de prazo determinado ou permanente, em moldura jurídica equipotente à do "pensionamento por morte", do art. 948, I, do Código Civil; ou seja, uma "pensão civil por dano" destinada a suprir não apenas as despesas necessárias de tratamento psicológico de suporte às situações de adequação supervenientes ao ilícito mas, sobremodo, as despesas advenientes e dirigidas à uma dinâmica de convivência dos pais com os filhos biológicos que permaneçam na família socioafetiva preestabelecida.

De efeito, há que se incluir na doutrina e na jurisprudência, o abrigo jurídico mais apropriado a reger as situações de vida onde as famílias mútuas, surgidas pela prevalência do afeto, edificam presença eloquente de dignidade. São exemplos de multiparentalidade, no entrelace de fatos, que a ordem jurídica, por certo, também haverá de, sem submissão a dogmas, necessariamente contemplar.  Quando separadas por troca, em Rio Verde (Goiás), há vinte e seis anos atrás, as gêmeas Kátia Sousa e Juliana Flausina, descobriram-se irmãs, em ocasião que foram trabalhar na mesma loja de sapatos, o destino orienta que o direito deve compreender melhor a vida.

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* O autor do artigo é desembargador decano do Tribunal de Justiça de Pernambuco. Diretor nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), coordena a Comissão de Magistratura de Família. Autor de obras jurídicas de direito civil e processo civil. Integra a Academia Pernambucana de Letras Jurídicas (APLJ).

Fonte: TJ/PE | 14/04/2014.

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