Mudança do nome registral sem cirurgia transexual


* Eudes Quintino de Oliveira Júnior

A evolução dos princípios reguladores da convivência humana alcançou um estágio de liberdade que proporciona a cada um ousar ser o que quiser ser.

A resolução 1955/2010 do Conselho Federal de Medicina permite a realização da cirurgia de redesignação sexual para os pacientes que tenham sido acompanhados pelo prazo de dois anos por uma equipe multidisciplinar constituída, obrigatoriamente, por médico psiquiatra, cirurgião, endocrinologista, psicólogo e assistente social, com o diagnóstico médico de transgenitalismo, ausência de características físicas inapropriadas para a cirurgia e que seja o paciente maior de 21 anos. Esta última exigência esbarra no Código Civil que estabelece a maioridade plena aos 18 anos. Após ter concluído o ajuste físico, há necessidade de se regularizar a nova situação no campo jurídico.

Até então nossos Tribunais, de forma já pacificada, vinham autorizando a alteração do nome e sexo no registro civil. Surge, agora, uma nova realidade: a retificação no assento de nascimento com a mudança do nome, sem a realização da cirurgia de transgenitalização. Não se trata da adoção do nome social, como o instituído pelo governo do Rio Grande do Sul 1, que possibilita a expedição da Carteira de Nome Social para travestis e transexuais, com a inserção do nome que reflita sua identidade de gênero, de utilização exclusiva no próprio Estado.

O Direito é dinâmico e se apresenta como um instrumento de uso coletivo para que as pessoas possam atingir suas pretensões. "O Direito, acentua Maximiliano, é um meio para atingir os fins colimados pelo homem em atividade; a sua função é eminentemente social, construtora; logo não mais prevalece o seu papel antigo de entidade cega, indiferente às ruínas que inconsciente ou conscientemente possa espalhar" 2. 

Assim, se se pretende mudar o sexo, sem a cirurgia de adequação, pergunta-se: onde está o sexo? na genitália?

A regra que sempre predominou é que o sexo é ditado pela genitália que define o homem e a mulher. A identidade sexual, sentencia Cury, "é a manifestação espontânea, seja no sentimento, ou na expressão de pertencer ao sexo feminino ou masculino independente dos seus cromossomos" 3.  A natureza do homem, apesar de carregar regras inflexíveis, todas lastreadas em conceitos fincados como dogmas, vai lentamente se diluindo e se amoldando às novas realidades. 

Então, se a cirurgia é recomendada, o sexo está na mente?

Nenhuma dúvida de que é a mente a força propulsora do mecanismo chamado corpo humano. Daí que a vocação sexual é ditada por ela e exige a  intervenção cirúrgica para se chegar ao equilíbrio da adequação sexual, em caso de desalinho. A lei permite a realização da cirurgia de transgenitalização de pessoa que carrega as genitálias interna e externa perfeitas, porém em total desajuste com sua mente, que já se amoldou ao sexo oposto. A falta de sintonia e conjugação dos fatores corpo e mente acarreta transtornos que impossibilitam o cidadão de encontrar sua verdadeira identidade sexual, como também exige uma carga supletiva de efetiva proteção legal para o exercício e a defesa de seus direitos consagrados nas políticas para a diversidade sexual.

Vários tribunais, inicialmente, rejeitavam ações com o propósito de  mudança de sexo e nome no documento registral. As decisões foram se amoldando à aceitação social e passaram a permitir a pretensão, desde que transgenitalizado o autor. Hoje o procedimento ganha corpo e permite a mudança de nome sem a cirurgia transexual, com fulcro na dignidade da pessoa humana, conforme recentes decisões4. 

Resta, ainda, indagar se o sexo está na aparência.

A evolução dos princípios reguladores da convivência humana alcançou um estágio de liberdade que proporciona a cada um ousar ser o que quiser ser. Trata-se um novo parâmetro identitário com erupções temporárias, que nem mesmo a lei, reguladora que é do controle social, consegue enunciar uma regra que seja coerente e aceitável, de acordo com um padrão ético. A aparência, por si só, não traduz uma identidade sexual definida. Basta ver o comportamento do crossdresser (aquele que traja vestes e usa acessórios do sexo oposto ao seu), que carrega dois perfis sexuais dissociados um do outro, podendo apresentar-se como heterossexual, homossexual, bissexual, totalmente divorciado da transexualidade. 

Forçoso é concluir que a definição da identidade sexual, desta forma, não está nas genitálias e sim faz parte da liberdade de escolha da pessoa, compreendida na elasticidade do princípio da dignidade humana. O Direito, obrigatoriamente, tem que caminhar de braços dados com as transformações sociais e encarar esta nova realidade, baseando-se no respeito mútuo e no convívio estável, ambos tutelados pelo Estado.

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1. Decreto 49476, de 15/8/2012.

2. Maximiliano, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 138.

3. Cury, Carlos Abib. Transexualidade: da mitologia à cirurgia. São Paulo: Iglu Editora, 2012, p. 33.

4. TJ/SP, APL 0082646-81.2011.8.26.0002, Ac. 7145642, 8ª C. Dir. Priv., Rel. Des. Helio Faria, j. 30/10/2013). TJSP, APL 0082646-81.2011.8.26.0002, Ac. 7145642, 8ª C. Dir. Priv., Rel. Des. Helio Faria, j. 30/10/2013.

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* Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de Justiça aposentado, mestre em Direito Público, com doutorado e pós-doutorado em Ciências da Saúde. Advogado e reitor da Unorp – Centro Universitário do Norte Paulista.

Fonte: Migalhas | 23/03/2014.

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A desapropriação de áreas destinadas à instituição de reservas indígenas


Ilmar Nascimento Galvão*

Decreto presidencial sinalizou mudança significativa quanto ao entendimento estatal acerca das terras indígenas.

O Diário Oficial do último dia 13 publicou decreto presidencial declarando de interesse social, para fins de desapropriação, imóvel destinado à Comunidade Indígena Tuxá de Rodelas, no município de Rodelas, Estado da Bahia.

Trata-se de um marco dos mais importantes no trato governamental das questões suscitadas pela presença de indígenas no território brasileiro.

Como se sabe, nas mais diversas localidades do País podem ser encontradas áreas nem sempre por eles tradicionalmente ocupadas, de molde a poderem ser consideradas como integrantes do patrimônio da União, na forma prevista no art. 20, XI, da Constituição Federal.

Áreas tradicionalmente ocupadas por indígenas, na verdade, são aquelas que, por constituírem um aldeamento indígena, impediram que as respectivas terras fossem consideradas devolutas e, consequentemente, transferidas aos Estados, pela Carta de 1891 (art. 64).

Tais, as terras sujeitas a demarcação, se ainda ocupadas pelos índios à data da Carta de 88, como determinado no seu art. 231, de forma a serem separadas das terras estaduais e particulares, destinando-se à posse permanente dos índios, titulares do usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes (art. 231,§ 2º).

Sabidamente, porém, os índios nem sempre se mantiveram nos limites das áreas dos antigos aldeamentos, sendo frequentes, através dos tempos, os deslocamentos de grupos étnicos na busca de novas fontes de recursos ambientais necessários a seu bem-estar e das necessárias a sua reprodução física e cultural.

Ao assim agirem, é fora de dúvida que os deslocamentos – a menos que se tenham dado nas áreas de fronteira, onde as terras devolutas pertencem à União – passaram a invadir terras dos Estados ou de particulares, gerando sérios conflitos possessórios.

No primeiro caso, não se mostra difícil a composição do conflito, mediante cessão, pelos Estados à União, das terras ocupadas pelos índios, como previsto no art. 3º do decreto 8.072/1910.

Os conflitos com particulares é que nunca encontraram solução, dado o óbvio inconformismo dos legítimos proprietários das áreas ocupadas, com o despojamento de seu patrimônio, principalmente quando não considerados como titulares de domínios invadidos pelos índios, mas como proprietários em terras de índios, de nada valendo a recomendação contida na Exposição de Motivos Interministerial nº 62/80, segundo a qual, ainda assim, a análise das circunstâncias deveria abranger judiciosa avaliação de suas situações e dos bens existentes, devendo adotar-se normas de padrões de ação para evitar condutas e procedimentos diversos, ou, ainda, casuísmos inexplicáveis.

O decreto sob exame, com efeito, vem pôr um basta no entendimento até agora dominante, seja na Administração, seja no Judiciário, de que toda terra particular que os índios vão ocupando, por efeito de seus auto-descolamentos e perambulações, é, automaticamente, transformada em terra pública Federal.

Deparando-se o Poder Público com conflitos envolvendo grupos indígenas e particulares, pelo que ficou exposto, cabe investigar seriamente (não por meio de um só antropólogo que comumente sequer percorre toda a área), a fim de ver se se trata de remanescente de antigo aldeamento – hipótese em que as terras são públicas federais – ou de ocupações, ou tentativas de ocupação, realizadas por efeito de auto-deslocamentos de indígenas.

Na primeira hipótese, impõe-se a demarcação da área, nos termos da determinação contida no art. 231 da CF/88. Na segunda, conforme previsto no art. 26 da lei 6.001/1973, não há falar em demarcação, mas na instituição de uma RESERVA INDÍGENA, espécie que, como já afirmado, fora prevista pelo Estatuto dos Índios.

Trata-se de áreas reservadas à ocupação indígena, que podem ser instituídas, como já dito, em terras da própria União, dos Estados e, mesmo, de domínio de particulares, ocorrendo, no primeiro caso, simples afetação da terra pública à ocupação e usufruto de índios; no segundo, cessão pelo Estado de terras devolutas de seu domínio, como já previa o art. 3º do decreto 8.072/1910.

Recaindo, entretanto, sobre terras particulares, as áreas haveriam de ser desapropriadas, como foram agora, por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, hipótese cuja configuração se ensejou por meio do decreto sob enfoque.

Obviamente, as terras, no caso sob exame, não eram tradicionalmente ocupadas por índios, razão pela qual o Governo Federal, em vez da demarcação, determinou a desapropriação das terras para instituição de uma reserva.

Trata-se, como foi dito, de importante passo dado pela atual Administração Federal, no prol da paz no campo e, consequentemente, do bem-estar, não apenas dos indígenas mas, também, dos produtores rurais e enfim, merecendo, por isso, os encômios de toda sociedade.

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*Ilmar Galvão é advogado e ministro aposentado do STF.

Fonte: Migalhas | 18/03/2014.

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