Artigo – O pacto antenupcial de separação de bens quando os nubentes estão sujeitos à separação obrigatória de bens – Por Letícia Maculan


* Letícia Maculan

O pacto antenupcial, ou contrato antenupcial, é um negócio jurídico bilateral de direito de família, sob a condição suspensiva da celebração do casamento, destinado a estabelecer regime de bens.

Nos termos do parágrafo único do art. 1640 do Código Civil, o pacto antenupcial tem que ser feito por escritura pública, sendo sua lavratura, assim, de atribuição exclusiva do Notário, conforme estabelece o art. 6º da Lei 8.935/94.

É indispensável o pacto quando os nubentes querem adotar o regime da comunhão universal, o da participação final nos aquestos, o da separação convencional ou ainda qualquer outro regime, posto que a doutrina e a jurisprudência admitem a criação de regimes diversos daqueles previstos no Código Civil. 

O pacto não é necessário quando as partes pretendem se casar pelo regime da comunhão parcial ou nos casos da separação obrigatória, pois ambos os referidos regimes decorrem de lei.

A questão a ser analisada neste artigo é a possibilidade da lavratura de pacto antenupcial nos casos em que a lei determina a aplicação do regime da separação obrigatória de bens e o regime que deveria constar no registro de casamento, lembrando que o referido registro é atribuição do Oficial do Registro Civil.

A pergunta é importante, pois os regimes de separação obrigatória de bens e de separação consensual de bens são diversos, de modo que é impossível constar no registro que o casamento estará regido pelo regime de separação obrigatória de bens e também que há pacto antenupcial de separação consensual de bens, por total incompatibilidade.

DAS DIFERENÇAS ENTRE OS REGIMES DA SEPARAÇÃO OBRIGATÓRIA DE BENS E DA SEPARAÇÃO CONSENSUAL

Os regimes da separação obrigatória de bens e da separação consensual de bens são diversos.

Nos termos do art. 1641 do Código Civil de 2002, por razões de ordem pública, visando proteger o nubente ou terceiro, o legislador impôs a separação obrigatória de bens.

Determina o referido art. 1641:

Art. 1.641. É obrigatório o regime da separação de bens no casamento:

I – das pessoas que o contraírem com inobservância das causas suspensivas da celebração do casamento;

II – da pessoa maior de 70 (setenta) anos;

III – de todos os que dependerem, para casar, de suprimento judicial.

Logo, as pessoas inseridas nas situações previstas no art. 1641 do Código Civil terão que suportar os efeitos da imposição legal do regime, já que o legislador excepcionou a regra da livre manifestação de vontade dos consortes, estabelecendo a separação compulsória de bens.

A primeira diferença entre os regimes é a questão sucessória. No caso de separação consensual de bens, a lei é clara ao afirmar que não há meação. Já na separação obrigatória, grande parte da doutrina e da jurisprudência, inclusive do Superior Tribunal de Justiça, entende ser ainda aplicável a Súmula 377 do STF, de modo que é devida a partilha igualitária do patrimônio adquirido onerosamente na constância do casamento, com base no princípio da solidariedade e a fim de evitar a ocorrência de enriquecimento ilícito de um consorte em detrimento de outro.

O Superior Tribunal de Justiça publicou, nesse sentido, o acórdão cuja ementa abaixo se reproduz (no original não há grifos ou negritos):

Ementa: DIREITO CIVIL. FAMÍLIA. ALIMENTOS. UNIÃO ESTÁVEL ENTRE SEXAGENÁRIOS. REGIME DE BENS APLICÁVEL. DISTINÇÃO ENTRE FRUTOS E PRODUTO.

1. Se o TJ/PR fixou os alimentos levando em consideração o binômio necessidades da alimentanda e possibilidades do alimentante, suas conclusões são infensas ao reexame do STJ nesta sede recursal.

2. O regime de bens aplicável na união estável é o da comunhão parcial, pelo qual há comunicabilidade ou meação dos bens adquiridos a título oneroso na constância da união, prescindindo-se, para tanto, da prova de que a aquisição decorreu do esforço comum de ambos os companheiros.

3. A comunicabilidade dos bens adquiridos na constância da união estável é regra e, como tal, deve prevalecer sobre as exceções, as quais merecem interpretação restritiva, devendo ser consideradas as peculiaridades de cada caso.

4. A restrição aos atos praticados por pessoas com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos representa ofensa ao princípio da dignidade da pessoa humana.

5. Embora tenha prevalecido no âmbito do STJ o entendimento de que o regime aplicável na união estável entre sexagenários é o da separação obrigatória de bens, segue esse regime temperado pela Súmula 377 do STF, com a comunicação dos bens adquiridos onerosamente na constância da união, sendo presumido o esforço comum, o que equivale à aplicação do regime da comunhão parcial.

6. É salutar a distinção entre a incomunicabilidade do produto dos bens adquiridos anteriormente ao início da união, contida no § 1º do art. 5º da Lei n.º 9.278, de 1996, e a comunicabilidade dos frutos dos bens comuns ou dos particulares de cada cônjuge percebidos na constância do casamento ou pendentes ao tempo de cessar a comunhão, conforme previsão do art. 1.660, V, do CC/02, correspondente ao art. 271, V, do CC/16, aplicável na espécie.

7. Se o acórdão recorrido categoriza como frutos dos bens particulares do ex-companheiro aqueles adquiridos ao longo da união estável, e não como produto de bens eventualmente adquiridos anteriormente ao início da união, opera-se a comunicação desses frutos para fins de partilha.

8. Recurso especial de G. T. N. não provido.

9. Recurso especial de M. DE L. P. S. provido. (Processo REsp 1171820 / PR – RECURSO ESPECIAL 2009/0241311-6 – Relator Ministro SIDNEI BENETI (1137) – Relatora para Acórdão Ministra NANCY ANDRIGHI – Órgão Julgador -TERCEIRA TURMA – Data do Julgamento 07/12/2010 – Data da Publicação/Fonte DJe 27/04/2011 – LEXSTJ vol. 262 p. 149)

Outra diferença importante é a que se refere à necessidade ou não da outorga do cônjuge para a alienação de bens imóveis. A doutrina e a jurisprudência já se posicionaram no sentido de que o art. 1647 do Código Civil, ao dispensar a outorga do cônjuge para alienação de bens, abarcou apenas o regime da separação consensual, isso porque, em virtude da Súmula 377 do STF, o regime da separação obrigatória de bens não é de “separação absoluta”:

Art. 1.647. Ressalvado o disposto no art. 1.648, nenhum dos cônjuges pode, sem autorização do outro, exceto no regime da separação absoluta:

I – alienar ou gravar de ônus real os bens imóveis

É o que decidiu o Superior Tribunal de Justiça no julgamento cuja ementa abaixo se reproduz (sem grifos ou negritos no original):

Ementa: RECURSO ESPECIAL. NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. INEXISTÊNCIA. DOAÇÃO DE BENS ADQUIRIDOS NA CONSTÂNCIA DO CASAMENTO EM REGIME DA SEPARAÇÃO OBRIGATÓRIA. OUTORGA UXÓRIA. NECESSIDADE. FINALIDADE. RESGUARDO DO DIREITO À POSSÍVEL MEAÇÃO. FORMAÇÃO DO PATRIMÔNIO COMUM. CONTRIBUIÇÃO INDIRETA. SÚMULA N. 7 DO STJ. RECURSO IMPROVIDO.

1. Negativa de prestação jurisdicional. Inexistência.

2. Controvérsia sobre a aplicação da Súmula n. 377 do STF.

3. Casamento regido pela separação obrigatória. Aquisição de bens durante a constância do casamento. Esforço comum. Contribuição indireta. Súmula n. 7 do STJ.

4. Necessidade do consentimento do cônjuge. Finalidade. Resguardo da possível meação. Plausibilidade da tese jurídica invocada pela Corte originária.

5. Interpretação do art. 1.647 do Código Civil.

6. Precedente da Terceira Turma deste Sodalício: "A exigência de outorga uxória ou marital para os negócios jurídicos de (presumidamente) maior expressão econômica previstos no artigo 1647 do Código Civil (como a prestação de aval ou a alienação de imóveis) decorre da necessidade de garantir a ambos os cônjuges meio de controle da gestão patrimonial, tendo em vista que, em eventual dissolução do vínculo matrimonial, os consortes terão interesse na partilha dos bens adquiridos onerosamente na constância do casamento. Nas hipóteses de casamento sob o regime da separação legal, os consortes, por força da Súmula n. 377/STF, possuem o interesse pelos bens adquiridos onerosamente ao longo do casamento, razão por que é de rigor garantir-lhes o mecanismo de controle de outorga uxória/marital para os negócios jurídicos previstos no artigo 1647 da lei civil." (REsp n. 1.163.074, Rel. Min. Massami Uyeda, DJe 4-2-2010).

7. Recurso especial improvido. (Processo REsp 1199790 / MG – RECURSO ESPECIAL 2010/0118288-3 – Relatora Ministro VASCO DELLA GIUSTINA (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/RS) – Órgão Julgador TERCEIRA TURMA – Data do Julgamento 14/12/2010 – Data da Publicação/Fonte DJe 02/02/2011 – RMDCPC vol. 40 p. 106)

Por fim, há diferença no que se refere à herança. No regime da separação obrigatória de bens, o cônjuge não é herdeiro; já no regime da separação consensual de bens, o cônjuge é herdeiro, nos termos do art. 1829 do Código Civil:

Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte:

I – aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares; (sem grifos ou negritos no original)

A corroborar o entendimento acima apresentado, há o recente acórdão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais cuja ementa abaixo se reproduz:

EMENTA: AGRAVO DE INSTRUMENTO – INVENTÁRIO – DIREITOS SUCESSÓRIOS – CÔNJUGE SOBREVIVENTE – REGIME DA SEPARAÇÃO CONVENCIONAL DE BENS – ARTIGOS 1.829, INCISO I E 1.845, AMBOS DO CC/02 – INTERPRETAÇÃO – CÔNJUGE COMO HERDEIRO LEGÍTIMO E NECESSÁRIO, EM CONCORRÊNCIA COM OS HERDEIROS DO AUTOR DA HERANÇA – HABILITAÇÃO NO INVENTÁRIO – NECESSIDADE.

A mais adequada interpretação, no que respeita à separação convencional de bens, é aquela que entende ter o cônjuge direitos sucessórios em concorrência com os herdeiros do autor da herança, sendo essa, de resto, a interpretação literal e lógica do próprio dispositivo. Soma-se a isso o fato de que o direito à meação não se confunde com o direito à sucessão. (Processo: Agravo de instrumento 1.0701.13.009162-5/001, 0820985-66.2013.8.13.0000, Relator Desembargador Geraldo Augusto, DJe 12/12/2013)

Conclui-se que os regimes de separação consensual e de separação obrigatória de bens não se confundem, sendo somente o regime de separação consensual uma separação verdadeiramente absoluta, já que o regime da separação obrigatória, tanto em virtude da Súmula 377 do STF, quanto em decorrência do determinado no art. 1647 do Código Civil, não leva, na realidade, a uma separação de bens.

POSSIBILIDADE DE OPÇÃO PELO REGIME DA SEPARAÇÃO CONSENSUAL DE BENS DAQUELES QUE ESTÃO SUJEITOS, EM VIRTUDE DA LEI, AO REGIME DA SEPARAÇÃO OBRIGATÓRIA

Demonstrado, pois, que os regimes da separação consensual e da separação obrigatória não se confundem, resta examinar a possibilidade de opção pela separação consensual daqueles que, em virtude do determinado no art. 1.641 do Código Civil, teriam que se submeter à separação obrigatória.

A primeira questão a ser observada é que o objetivo da lei ao impor o regime da separação de bens é proteger o nubente ou terceiros.

Assim, se um casal opta pelo regime da separação consensual, que na realidade é o regime da separação absoluta de bens, não está sendo ferido o objetivo da lei, ao contrário, tal objetivo está sendo plenamente observado. O casal que se encaixa nosrequisitos do art. 1641 do Código Civil pode optar pelo regime da separação consensual, seja para evitar transtornos de anuência do cônjuge sempre que houver alienação de imóveis, seja para que cada um administre seus bens, seja ainda para proteger o patrimônio no caso de eventual separação, sem que haja, para eles ou para terceiros, qualquer prejuízo.

A segunda questão a ser analisada é o fato de existir questionamento sobre a constitucionalidade da separação obrigatória de bens, havendo grande tendência, pois, em ser declarada inconstitucional a imposição do referido regime. Em razão disso, pode ocorrer que um casal QUE EFETIVAMENTE QUEIRA A SEPARAÇÃO DE BENS, mas que não pôde escolhê-la por ter sido a ele imposta a separação obrigatória de bens, venha a ter também a separação obrigatória afastada, por inconstitucionalidade.

DO EXAME DA QUESTÃO EM CASO CONCRETO PELO PROMOTOR DE JUSTIÇA E PELA JUÍZA DA VARA DE REGISTROS PÚBLICOS DE BELO HORIZONTE

Em caso concreto ocorrido no Cartório do Registro Civil e Notas do Distrito do Barreiro, em Belo Horizonte-MG, a Oficial, autora do presente artigo, apresentou à Exma. Juíza da Vara de Registros Públicos consulta sobre a possibilidade de opção de casal sujeito à separação obrigatória de bens pelo regime da separação consensual de bens.

A Exma. Juíza determinou a abertura de vista ao Douto Ministério Público, que assim se manifestou:

Através do presente procedimento, a Oficiala do Cartório do Registro Civil e Notas do Distrito do Barreiro formula "Consulta" à Exma. Juíza da Vara de Registros Públicos desta Capital, a respeito da possibilidade de se realizar sob a égide da Separação Consensual de Bens, em caso de obrigatoriedade de Separação de Bens, nos moldes do art. 1641 do Código Civil.

Conforme despacho de fls. 09, a Exma. Juíza determinou a abertura de vista ao Ministério Público, para que este requeira o que entender de direito.

É o breve relato.

A princípio, cabe esclarecer que, como bem salientou a Oficiala, os regimes da Separação Obrigatória de Bens e Separação Consensual são diferentes, em que pese haver, em regra, a não comunhão de bens do casal.

A Súmula 377 do STJ e o art. 1.647 do Código Civil, ambos em pleno vigor, são suficientes para demonstrar que a separação obrigatória de bens não é tida como um separação absoluta, ao contrário da Separação Consensual devidamente optada através de um Pacto Antenupcial.

Isto é, a Separação Consensual, por se tratar de uma separação absoluta, abarca os efeitos da Separação Obrigatória de Bens, nos moldes do art. 1.641 do Código Civil, não havendo razão para se preterir a Separação Consensual em face da Separação Obrigatória, se os nubentes pretendem que o casamento seja regido pela Separação Consensual.

Desta forma, concordando com a interpretação da Oficiala ao explanar as razões desta Consulta, o Ministério Público entende ser possível e plenamente cabível a realização do casamento sob o regime da Separação Consensual, constando do respectivo registro tal regime somente, isto é "Regime da Separação Consensual de Bens.

Após receber o Parecer Ministerial, a Exma. Juíza decidiu:

Vistos etc,

Defiro o pedido nos termos do requerimento da ilustre Oficial e do parecer ministerial. Deve ser ressaltado na certidão de casamento o regime de separação consensual de bens, pois resulta da incomunicabilidade pactuada dos bens adquiridos antes, na constância e após o casamento, de modo que os bens de cada cônjuge constituem acervos distintos. Vê-se que até mesmo os bens adquiridos durante a vigência do casamento figurarão. Desta forma, concordando com a interpretação da Oficiala ao explanar as razões desta Consulta, o Ministério Público entende ser possível e plenamente cabível a realização do casamento sob o regime da Separação Consensual, constando do respectivo registro tal regime somente, isto é "Regime da Separação Consensual de Bens".

CONCLUSÃO

Examinada a questão por todos esses ângulos, conclui-se que não há qualquer prejuízo para os nubentes ou para terceiros em se admitir que as pessoas às quais seria imposto o regime da separação obrigatória de bens optem pelo regime da separação consensual de bens. Também o objetivo da lei seria preservado, pois a separação consensual é MAIS AMPLA do que a separação obrigatória de bens.

Estaria, ainda, sendo observada a autonomia da vontade, garantindo àqueles que querem ter patrimônios SEPARADOS que assim ocorra, facilitando também a negociação de imóveis, se essa for a vontade dos nubentes, posto que a separação consensual de bens afasta a necessidade de outorga conjugal, o que não ocorre no regime da separação obrigatória de bens.

Ocorrendo tal opção pela separação consensual de bens, e sendo juntado aos autos do processo de habilitação para casamento o pacto antenupcial, deverá o Oficial do Registro Civil fazer constar que o regime do casamento é o da SEPARAÇÃO CONSENSUAL DE BENS, não podendo ser admitido que seja registrado “regime da separação obrigatória com pacto”, pois os regimes são diversos e a falta de clareza poderia levar a grandes transtornos para o casal. 

Apesar de a interpretação acima parecer ser a melhor, como não há lei expressa sobre a questão, cabe ao Oficial de Registro, diante de um caso concreto, consultar o Poder Judiciário, por meio do Juiz de Direito competente para Registros Públicos, a fim de que seja fixada a interpretação sobre o tema. 

Apesar de haver posicionamento isolado do Superior Tribunal de Justiça, no RESP 992749/MS, DJe 05/02/2010, no sentido de que tanto no regime da separação consensual quanto no da separação obrigatória o cônjuge não herda, não tem sido esse o entendimento da doutrina e jurisprudência majoritárias.

A consulta foi autuada sob o nº 8002126.84.2014.813.0024.

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Letícia Franco Maculan Assumpção é graduada em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (1991), pós-graduada e mestre em Direito Público. Foi Procuradora do Município de Belo Horizonte e Procuradora da Fazenda Nacional. Aprovada em concurso, desde 1º de agosto de 2007 é Oficial do Cartório do Registro Civil e Notas do Distrito de Barreiro, em Belo Horizonte, MG. É autora de diversos artigos na área de Direito Tributário, Direito Administrativo, Direito Civil e Direito Notarial, publicados em revistas jurídicas, e do livro Função Notarial e de Registro.
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TJ/PE: Artigo – Recusa ao poder familiar – Por: JONES FIGUEIRÊDO ALVES


* JONES FIGUEIRÊDO ALVES

Um adolescente de 14 anos, Patrick Holland ingressou na justiça americana, perante a "Norfolk County Probate and Family Court" (2004), para retirar o poder familiar do seu pai, Daniel Holland. Ele matara a genitora do menor, da qual estava separado. Foi uma ação inusitada, até então, para dissolver o vínculo de autoridade parental.

Dez anos depois, registra-se que um pré-adolescente (menor impúbere), vivenciando interesse assemelhado, "chegou a procurar o Ministério Público por conta própria pedindo para não morar mais com o pai e a madrasta. E indicou duas famílias com as quais gostaria de ficar" (01/2014). "Relatou detalhes de sua rotina, marcada pela indiferença e pelo desamor na casa em que vivia."

No caso recente, do estudante Bernardo Uglione Boldrini, de Três Passos (RS), cidade do noroeste gaúcho, cuja morte repercutiu nacionalmente, a postulação teria como questão subjacente, a sua necessidade de ter um pai mais presente, apto a dar-lhe mais afeto. A imprensa também noticia que, em audiência judicial, o genitor assumira perante a Justiça o compromisso de uma assistência mais presencial e afetiva.

De fato, há uma diferença substancial entre o criar e o cuidar. "O criar está no campo material, o cuidar está no campo afetivo", sustenta Maria Aparecida Daud, especialista em responsabilidade civil no direito de família. Há uma tendência atual, no país, de "a Justiça condenar os pais a indenizar os seus filhos (crianças ou já adultos) quando comprovado psicoterapeuticamente que eles têm seqüelas psíquicas ou comportamentais por causa do chamado abandono moral". ("Papai, eu quero afeto", "Isto É", ed. nº 1.849, 19.01.2005, p.20).

O diferencial sugere profundas reflexões sob a égide da lei. Essa forma de abandono configura hipótese de perda do poder familiar, prevista no art. 1.638, II, do atual Código Civil. O dano psicológico causado pelo pai ausente aos cuidados do filho, "cuja ausência pode gerar timidez e medo" à falta da representação psicológica de segurança na figura paterna, tem sido reconhecido, em diversas decisões judiciais. Assim, o direito de cuidar do filho, dirigindo-lhe a educação, com autoridade protetora e zelosa, dando-lhe assistência imaterial, traduzida na afetividade, é também um dever paternal.

Vale conferir, historicamente, a lição doutrinária de Clóvis Beviláqua, quando, com permanente atualidade, comentando o art. 384 do Código Civil de 1916, anotou: "(…) Se o pai não se desempenha dessa missão sagrada, não somente infringe preceito da moral, como, ainda, ofende direitos do filho. Por isso, embora não deva intervir, senão em casos graves e manifestos, porque é da maior conveniência cultivar-se o afeto da família, o direito se mantém vigilante pela sorte dos filhos. (…).".

Quase cem anos depois, a vigília do direito a atender a proteção integral dos filhos produz resultados mais eficientes, quando, distinguindo o criar e o cuidar, decisões judiciais estabelecem, concretamente, a responsabilidade civil e penal dos pais pelo abandono afetivo dos seus filhos.

A justiça busca também contribuir para uma geração melhor capacitada em sentimentos, alinhada ao que pensou Beviláqua: "É também ao lado dos pais, na atmosfera da família, que devem estar os menores, porque é nesse meio que melhor se pode desenvolver o seu espírito, no sentido do bem, do justo e, ainda, do útil social e individual." Nessa linha, a justiça quer operar uma sociedade mais justa e harmônica.

A doutrina mais moderna orienta no mesmo sentido. Vejamos: (i) Álvaro Villaça Azevedo considera que "o descaso entre pais e filhos é algo que merece punição, é abandono moral grave, que precisa merecer severa atuação do Poder Judiciário, para que se preserve não o amor ou a obrigação de amar, o que seria impossível, mas a responsabilidade ante o descumprimento do dever de cuidar, que causa o trauma moral da rejeição e da indiferença" ("Jornal do Advogado" – OAB/SP nº 289, dez/2004, pág. 14).(ii) Tânia da Silva Pereira reflete a necessidade de o "cuidado" ser identificado dentro do ordenamento jurídico, proclamando que "a partir da percepção e convencimento de que as relações sócio-afetivas passaram a ser reconhecidas de forma significativa no Direito de Família, não podemos afastar a possibilidade de incluir neste contexto o ‘cuidado' como um valor jurídico".

Segue-se, então, reconhecer que o "Caso Bernardo Boldrini" não é um fato isolado no contexto de pai ausente ou deficitário no exercício do poder familiar. Grande contingente de crianças e adolescentes padecem do mesmo fenômeno.

Luigi Zoja, famoso psicólogo italiano, em sua obra "O Pai – História e Psicologia de uma espécie em extinção" (Editora Axis Mundi), visualizando o tema, ao indicar diversos modelos recorrentes atuais (pai ausente, pai tirano, etc.) que apontam para a "decadência do patriarcado", destaca que apesar da crise da figura do pai, no processo de modernização social, a sociedade reclama, sempre, a necessidade de se ter um pai.

Lado outro, quando a função parental paterna tem sofrido a influência de circunstâncias diversas, entre as quais se situam os casos mais comuns das novas famílias, as "famílias-mosaico", formadas por novos pares, com os filhos de uniões anteriores, apresenta-se a parentalidade  como um novo desafio, a exortar, particularmente, o cuidado jurídico.

Ora bem. Quando a falta do devido cuidado venha servir de reclamo pelo próprio filho, a sugerir uma manifesta recusa ao poder familiar, sob as mais diversas razões, não se pense, de pronto, tratar-se de uma tirania filial, "ante fatores sócio-emocionais que permeiam exacerbado individualismo dos jovens" (Dante Donatelli, "A Vida em Família: As Novas Formas de Tirania").

Cumpre-se decisiva a advertência de Tânia da Silva Pereira, colocada a questão a estilete: "O cuidado deve informar as relações privadas e institucionais. Efetivas violações vinculadas à falta de responsabilidade e compromisso devem justificar a mobilização das forças cogentes do Estado".  De fato.   "As leis não bastam, os lírios não nascem das leis". Uma eventual recusa à guarda ou ao poder familiar, por parte do filho, reclama novos procedimentos jurídico-processuais (multidisciplinares) e metajurídicos.

No ponto, cumpre, portanto, ao Estado, em situações que tais, quando as relações afetivas se acharem comprometidas pela ausência parental, maus-tratos, indiferenças e conflitos intrafamiliares, adotar medidas imediatas e urgentes: (i) ampliar a esfera privada familiar dos cuidados, elegendo um novo regime de guarda, o da "guarda expandida"; com ênfase e efetividade no que orienta o parágrafo único do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/1990, de 13.07.1990), incluído pela Lei nº 12.010/2009, ou seja, a partir da denominada "família extensa", constituída para além da unidade pais e filhos ou da unidade do casal, por parentes próximos "com os quais a criança ou adolescente convive e mantém vínculos de afinidade e afetividade". Nesse modelo, uma guarda excepcional e ampliada. (ii) monitorar com eficiência e rigor absoluto a realidade subjacente das famílias de risco, sempre havidas aquelas onde crianças e adolescentes estejam expostos como vítimas potenciais do desamor ou da indiferença (quando menos) e peçam o socorro extremo de sobrevivência.

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* O autor do artigo é desembargador decano do Tribunal de Justiça de Pernambuco. Diretor nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), coordena a Comissão de Magistratura de Família.  Assessorou a Comissão Especial de Reforma do Código Civil na Câmara Federal. Autor de obras jurídicas de direito civil e processo civil. Integra a Academia Pernambucana de Letras Jurídicas (APLJ).

Fonte: TJ/PE | 02/05/2014.

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