O reconhecimento voluntário de filho socioafetivo – Por: MARCELO SALAROLI DE OLIVEIRA


* MARCELO SALAROLI DE OLIVEIRA

Não são raros os casos de pais que desejam assumir a paternidade de crianças com as quais não tem vínculo biológico. Diariamente dirigem-se ao balcão do registro civil brasileiro inúmeros pais, bem intencionados, manifestando o desejo de assumir a paternidade da criança que tem por filho, mesmo ciente de que não é o pai biológico da criança, mas que já vivem juntos, como se pai e filho fossem, até está casado com a mãe da criança, com quem, inclusive, tem outros filhos. Indagado acerca do pai biológico da criança, verifica-se que efetivamente não consta paternidade registrada.

O primeiro instituto jurídico que vem à mente para a solução desse caso concreto é a adoção, no entanto, a evolução da ciência jurídica demonstra que o reconhecimento de filho também pode ser usado como instrumento para se formalizar a filiação nesses casos, independentemente de vínculo biológico, mas fundado no vínculo social, afetivo, familiar, público, contínuo e duradouro.

Esse é o reconhecimento voluntário de filho socioafetivo, realizado diretamente em cartório, com inúmeras vantagens para o menor, para os pais e para a sociedade.

O dispositivo legal que dá suporte ao reconhecimento de filho é o artigo 1.607 e seguintes do Código Civil (CC), os quais, em nenhum momento, sequer de passagem, sugerem que a previsão legal se aplica apenas aos filhos biológicos. Não há, mas ainda que houvesse lei nesse sentido, discriminando a origem da filiação para o reconhecimento de filho, ela seria de constitucionalidade duvidosa, já que o artigo 227, § 6º da Constituição Federal veda, categoricamente, designações discriminatórias relativa a filiação, assegurando os mesmos direitos e qualificações.

Estabelecida pelo CC a possibilidade de reconhecimento de filho, genericamente, sem impor requisitos atinentes a espécie ou natureza da filiação, a discussão então é deslocada para o plano conceitual, para se definir quem ostenta essa qualidade de filho, para que então possa ser objeto do reconhecimento. Do ponto de vista lógico, fazendo uma comparação esdrúxula, mas elucidativa, o CC tampouco veda o reconhecimento de um animal de estimação como filho, estaria então permitido esse reconhecimento? Ou ainda, seria possível um suposto pai reconhecer como filho uma pessoa de mesma idade que a sua?

As respostas seguramente são negativas, mas o que importa atentar é que o fundamento dessas negativas se dá no plano conceitual, não no plano legal. Ou seja, é necessário perquirir quem ostenta essa qualidade de filho, para que então possa ser reconhecido. Esse é um trabalho jurídico, exercido pelo intérprete, para buscar o conceito de filho no ordenamento jurídico, o qual está indissociavelmente ligado a um contexto valorativo e social.

O próprio CC admite que o parentesco, onde se inclui a filiação, tenha fundamento em elementos sociais. Em seu artigo 1.593, estabelece que o “parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem”. Ou seja, é notória a desnecessidade de vínculo consanguíneo (ou genético, ou biológico), para que exista a relação de parentesco, já que é expressamente permitida outra origem.

O STJ, que tem por missão constitucional uniformizar, em âmbito nacional, a interpretação da lei federal, é uma fonte segura para o que se entende por filiação e, nessa corte, está pacificado que a socioafetividade é uma forma de estabelecer a filiação, protegida pelo direito (REsp       709.608/MS, Rel. Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, QUARTA TURMA,  julgado em 05/11/2009, DJe 23/11/2009 e REsp 1000356/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 25/05/2010, DJe 07/06/2010)

Tão clara está a socioafetividade como fonte da filiação, que não se vislumbram justos nem razoáveis motivos para permitir que a filiação biológica tenha um procedimento célere e módico para ganhar a proteção jurídica nos registros públicos e a filiação socioafetiva não o tenha.

Poderia se argumentar que o serviço de registro civil não tem elementos para aferir, no caso concreto, se existe a relação de socioafetividade, no entanto, não se exige qualquer comprovação para a filiação biológica, logo o mesmo tratamento deverá ter a filiação socioafetiva.

A valiosa assistência do Poder Judiciário no processo de adoção é desnecessária quando estamos diante de um caso concreto de paternidade socioafetiva, por três principais motivos: 1) a lei está atenta para a adoção bilateral, mas na hipótese em comento seria uma adoção unilateral, ou seja, será estabelecida apenas a filiação paterna, com o prévio consentimento da mãe; 2) não haverá desconstituição de uma paternidade registrada, pois no registro de nascimento dessa criança não consta paternidade alguma;  3) a paternidade já é uma realidade social e afetiva, que apenas busca ser declarada (não constituída), se não houver a adoção unilateral, o que é muito provável, por ser um processo caro e moroso, ela continuará existindo da mesma forma.

É inegável a importância da criança ter o nome do pai em seus documentos, pois a protege do arbítrio e instabilidade dos relacionamentos adultos. Não é raro acontecer daquele que por muitos anos se comporta como pai socioafetivo querer, posteriormente, abandonar essa paternidade. Se a paternidade está formalizada nos registros públicos, somente por meio de um provimento jurisdicional ela poderá ser negada, ou seja, a criança contará com a proteção do poder judiciário nesse momento difícil em que o pai quer abandoná-la.

Ademais, ter a paternidade estabelecida em sua certidão de nascimento assegurará os direitos decorrente da filiação, quer hereditários, quer alimentícios. Afinal, aquele que não é seu pai biológico, mas que se comporta como pai, tanto afetivamente, quanto socialmente, deve assumir, juridicamente, a responsabilidade por essa relação construída socialmente e que, certamente, cria expectativas na criança, que é um ser especial, em desenvolvimento, para quem é tão importante ter segurança e estabilidade.

Nesse sentido, andaram bem os Estados do Pernambuco (Provimento 09/2013), Maranhão (Provimento 21/2013) e Ceará (Portaria 15/2013), em que já há expressa previsão normativa da averbação de reconhecimento de filho socioafetivo diretamente pelo serviço de registro civil das pessoas naturais.

MARCELO SALAROLI DE OLIVEIRA é Diretor da ARPEN e Registrador em Capivari.

Fonte: Carta Forense | 05/05/2014.

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Artigo: Usucapião em cartório – Por: José Renato Nalini


* José Renato Nalini

Uma das excelentes previsões do novo CPC é a possibilidade de usucapião administrativa, sem necessidade de um juiz para reconhecer a propriedade do possuidor de boa-fé. A usucapião é velha conhecida da classe jurídica. É o decurso de tempo convertendo a posse em propriedade. Instituição essencial para um país como o Brasil, em que parcela considerável da população não é dona da terra que ocupa.

E não consegue se tornar proprietário, sem passar pelos trâmites de uma ação de usucapião. Em juízo, é um processo demorado. Demanda citação de todos os confinantes, de interessados incertos e não sabidos, do Poder Público, de realização de perícia, às vezes mais dispendiosa do que o montante do valor do imóvel. Já a possibilidade aberta pelo Deputado Paulo Teixeira (PT-SP) abre excelente perspectiva aos possuidores.

Prevê que, sem prejuízo da via jurisdicional, é admitido o pedido de reconhecimento extrajudicial da usucapião, diretamente no cartório do registro de imóveis. Basta o requerimento do interessado, representado por advogado, instruído com ata notarial lavrada pelo tabelião, atestando o tempo de posse do requerente e seus antecessores.

Mais a planta e memorial descritivo, assinado por profissional habilitado e confinantes, titulares de domínio ou de direitos reais. Também é necessária a juntada de certidões negativas dos distribuidores da comarca de situação do imóvel e do domicílio do requerente e justo título ou documentos que demonstrem a origem da posse, continuidade, natureza e tempo. Isso pode ser feito com a juntada de comprovante de pagamento de impostos e taxas que incidirem sobre o imóvel.

Pode parecer complicado, mas é muito simples diante da burocracia de um processo de usucapião convencional. Se houver impugnação, quem decidirá será o juiz. Mas se não houver, como ocorre na maioria dos casos, o registrador procederá ao assento de aquisição do imóvel com as descrições apresentadas e abrirá a matrícula.

É um grande passo no sentido da desjudicialização, tendência irreversível de uma população que se vê aturdida diante do excesso de ações judiciais em curso. 93 milhões de processos mostram uma Nação enferma. A saúde está na conciliação, na pacificação, na obtenção de resultados mais eficazes e mais rápidos do que a invencível lentidão do Judiciário, mercê de inúmeras causas e assunto que merece outra reflexão.

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* JOSÉ RENATO NALINI é presidente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo para o biênio 2014/2015. E-mail: jrenatonalini@uol.com.br

Fonte: Blog do Renato Nalini.

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