STJ: Recurso Especial – Recuperação judicial – Negativa de prestação jurisdicional – Inocorrência – Compra e venda com reserva de domínio – Não sujeição aos efeitos da recuperação judicial da compradora – Desnecessidade de registro – 1. Ação ajuizada em 22/4/2015. Recurso especial interposto em 20/9/2017. Conclusão ao Gabinete em 27/2/2018 – 2. O propósito recursal, além de verificar a ocorrência de negativa de prestação jurisdicional, é definir se os créditos titularizados pela recorrente, concernentes a contrato de compra e venda com reserva de domínio celebrado com a recorrida, estão ou não sujeitos aos efeitos da recuperação judicial desta – 3. Devidamente analisadas e discutidas as questões de mérito, e suficientemente fundamentado o acórdão recorrido, não há como reconhecer a ocorrência de negativa de prestação jurisdicional – 4. Segundo o art. 49, § 3º, da Lei 11.101/05, o crédito titularizado por proprietário em contrato de venda com reserva de domínio não se submete aos efeitos da recuperação judicial do comprador, prevalecendo os direitos de propriedade sobre a coisa e as condições contratuais – 5. A manutenção da propriedade do bem objeto do contrato com o vendedor até o implemento da condição pactuada (pagamento integral do preço) não á afetada pela ausência de registro perante a serventia extrajudicial – 6. O dispositivo legal precitado exige, para não sujeição dos créditos detidos pelo proprietário em contrato com reserva de domínio, apenas e tão somente que ele ostente tal condição (de proprietário), o que decorre da própria natureza do negócio jurídico – 7. O registro se impõe como requisito tão somente para fins de publicidade, ou seja, para que a reserva de domínio seja oponível a terceiros que possam ser prejudicados diretamente pela ausência de conhecimento da existência de tal cláusula. É o que pode ocorrer com aquele que venha a adquirir o bem cujo domínio ficou reservado a outrem (venda a non domino); ou, ainda, com aqueles que pretendam a aplicação, em juízo, de medidas constritivas sobre a coisa que serve de objeto ao contrato. Todavia, a relação estabelecida entre o comprador – em recuperação judicial – e seus credores versa sobre situação distinta, pois nada foi estipulado entre eles acerca dos bens objeto do contrato em questão – Recurso especial provido.


  
 

RECURSO ESPECIAL Nº 1.725.609 – RS (2018/0039356-9)

RELATORA : MINISTRA NANCY ANDRIGHI

RECORRENTE : SCHELLING ANLAGENBAU GMBH

ADVOGADOS : ALEXANDRE EPPINGHAUS VARELLA JACOB RJ100865

HANS CHRISTIAN VON BLUCHER RJ211224-NATÉRCIA ESCOREL CORDEIRO DE CASTRO E SILVA RJ211410

RECORRIDO : D’ITALIA MÓVEIS INDUSTRIAL LTDA

ADVOGADO : LUCIANO D AVILA COUTINHO RS060235

INTERES. : DITALIA MOVEIS EM REC JUD

EMENTA Decisão selecionada e originalmente divulgada pelo INR

RECURSO ESPECIAL. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. INOCORRÊNCIA. COMPRA E VENDA COM RESERVA DE DOMÍNIO. NÃO SUJEIÇÃO AOS EFEITOS DA RECUPERAÇÃO JUDICIAL DA COMPRADORA. DESNECESSIDADE DE REGISTRO.

1. Ação ajuizada em 22/4/2015. Recurso especial interposto em 20/9/2017. Conclusão ao Gabinete em 27/2/2018.

2. O propósito recursal, além de verificar a ocorrência de negativa de prestação jurisdicional, é definir se os créditos titularizados pela recorrente, concernentes a contrato de compra e venda com reserva de domínio celebrado com a recorrida, estão ou não sujeitos aos efeitos da recuperação judicial desta.

3. Devidamente analisadas e discutidas as questões de mérito, e suficientemente fundamentado o acórdão recorrido, não há como reconhecer a ocorrência de negativa de prestação jurisdicional.

4. Segundo o art. 49, § 3º, da Lei 11.101/05, o crédito titularizado por proprietário em contrato de venda com reserva de domínio não se submete aos efeitos da recuperação judicial do comprador, prevalecendo os direitos de propriedade sobre a coisa e as condições contratuais.

5. A manutenção da propriedade do bem objeto do contrato com o vendedor até o implemento da condição pactuada (pagamento integral do preço) não á afetada pela ausência de registro perante a serventia extrajudicial.

6. O dispositivo legal precitado exige, para não sujeição dos créditos detidos pelo proprietário em contrato com reserva de domínio, apenas e tão somente que ele ostente tal condição (de proprietário), o que decorre da própria natureza do negócio jurídico.

7. O registro se impõe como requisito tão somente para fins de publicidade, ou seja, para que a reserva de domínio seja oponível a terceiros que possam ser prejudicados diretamente pela ausência de conhecimento da existência de tal cláusula. É o que pode ocorrer com aquele que venha a adquirir o bem cujo domínio ficou reservado a outrem (venda a non domino); ou, ainda, com aqueles que pretendam a aplicação, em juízo, de medidas constritivas sobre a coisa que serve de objeto ao contrato. Todavia, a relação estabelecida entre o comprador – em recuperação judicial – e seus credores versa sobre situação distinta, pois nada foi estipulado entre eles acerca dos bens objeto do contrato em questão.

RECURSO ESPECIAL PROVIDO.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas constantes dos autos, por unanimidade, dar provimento ao recurso especial nos termos do voto da Sra. Ministra Relatora. Os Srs. Ministros Paulo de Tarso Sanseverino, Ricardo Villas Bôas Cueva, Marco Aurélio Bellizze e Moura Ribeiro votaram com a Sra. Ministra Relatora. Dr(a). HANS CHRISTIAN VON BLUCHER, pela parte RECORRENTE: SCHELLING ANLAGENBAU GMBH.

Brasília (DF), 20 de agosto de 2019(Data do Julgamento)

MINISTRA NANCY ANDRIGHI

Relatora

RELATÓRIO

A EXMA. SRA. MINISTRA NANCY ANDRIGHI (Relator):

Cuida-se de recurso especial interposto por SCHELLING ANLAGENBAU GMBH, com fundamento nas alíneas “a” e “c” do permissivo constitucional.

Ação: recuperação judicial da sociedade DITÁLIA MÓVEIS INDUSTRIAL LTDA.

Decisão: acolheu parcialmente a impugnação apresentada pela recorrente, tão somente para esclarecer que a importância declarada se refere a créditos em euros.

Acórdão: negou provimento ao agravo de instrumento interposto pela recorrente.

Embargos de declaração: interpostos pela recorrente, foram rejeitados.

Recurso especial: alega violação dos artigos 521, 522, 524 e 1.275 do Código Civil; artigo 49, § 3º, da Lei 11.101/05; e artigo 1.022 do Código de Processo Civil; bem como dissídio jurisprudencial. Além de negativa de prestação jurisdicional, sustenta, em síntese, que, tratando-se de contrato de compra e venda com reserva de domínio, o crédito detido pelo alienante do bem não se sujeita aos efeitos da recuperação judicial da compradora, devendo prevalecer o direito de propriedade sobre a coisa, independentemente de seu registro ter ou não se perfectibilizado. Afirma que, na hipótese dos autos, o registro possui mera função declaratória, e não constitutiva do negócio jurídico.

É o relatório.

VOTO

A EXMA. SRA. MINISTRA NANCY ANDRIGHI (Relator):

O propósito recursal, além de verificar a ocorrência de negativa de prestação jurisdicional, é definir se os créditos titularizados pela recorrente, concernentes a contrato de compra e venda com reserva de domínio celebrado com a recorrida, estão ou não sujeitos aos efeitos da recuperação judicial desta.

1. DA NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL

Da análise do acórdão impugnado, verifica-se que a prestação jurisdicional dada corresponde àquela efetivamente objetivada pelas partes, sem vício a ser sanado. O Tribunal a quo se pronunciou de maneira a abordar todos os aspectos fundamentais da controvérsia, dentro dos limites que lhe são impostos por lei.

2. DA COMPRA E VENDA COM RESERVA DE DOMÍNIO

O contrato de compra e venda com cláusula de reserva de domínio é aquele em que o vendedor preserva a propriedade da coisa alienada consigo até que ocorra o pagamento integral do preço estipulado.

Tal mecanismo funciona para o alienante como garantia do adimplemento total, pois a propriedade do bem somente é transferida para o comprador quando da ocorrência da quitação.

Exsurge desse tipo negocial, portanto, uma maior eficiência econômica do que num contrato de compra e venda tradicional: a garantia conferida ao alienante tende a implicar juros e encargos financeiros menores a serem suportados pelo comprador.

O desdobramento da posse e da propriedade, inerente a essa espécie de avença, faz com que, estrutural e funcionalmente, o negócio jurídico em análise se aproxime bastante do instituto da propriedade fiduciária, embora mantenha, com esse, diferenças evidentes, sobretudo porque a reserva de domínio é relação que se circunscreve tão somente às pessoas do vendedor e do comprador, inexistindo a figura do financiador. Sobre o tema, oportuna a lição de FARIAS e ROSENVALD:

A reserva de domínio se aproxima bastante do modelo estabelecido pela propriedade fiduciária (CC, arts. 1.361 a 1.368), como uma espécie de negócio fiduciário. O desdobramento da posse e da propriedade, condicionado ao pagamento do preço, é comum em ambas as figuras (propriedade fiduciária e cláusula de reserva de domínio), propiciando uma circulação massiva de propriedade mobiliária. Todavia, algumas distinções são evidentes. Em primeiro lugar, a propriedade fiduciária gera a imediata transferência da titularidade do fiduciante (alienante) para o credor fiduciário (adquirente), como premissa para que o vendedor possa imediatamente receber o preço e se satisfazer. Ou seja, o vendedor não integra a relação jurídica de direito real, restringindo-se o negócio fiduciário ao comprador e ao financiador, que recebe a propriedade resolúvel da coisa móvel como garantia do pagamento realizado ao vendedor. Já na reserva de domínio, a relação jurídica se circunscreve ao vendedor e ao comprador, pois o próprio alienante realiza o financiamento da aquisição em prestações, subordinando-se a passagem da propriedade a uma condição suspensiva.

(FARIAS, Cristiano Chaves de; e ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil, vol. 4. 8ª ed. Salvador: JusPodivm, 2018, pp. 736/737)

3. DOS EFEITOS DA RECUPERAÇÃO JUDICIAL SOBRE CRÉDITOS REFERENTES A CONTRATOS COM RESERVA DE DOMÍNIO

A Lei 11.101/05 (Lei de Falência e Recuperação de Empresas LFRE), em seu art. 49, caput, dispõe que todos os créditos existentes na data do pedido de recuperação judicial estão sujeitos aos efeitos do processo de soerguimento.

O parágrafo 3º do mesmo dispositivo, contudo, excetua alguns credores da incidência da regra geral, preservando os direitos de propriedade sobre os bens relacionados aos respectivos créditos.

Dentre os beneficiados pela norma em questão figuram os credores titulares da posição de proprietário fiduciário, de arrendador mercantil e de proprietário em contrato de venda com reserva de domínio (hipótese dos autos).

Eis a letra da lei, no que interessa à espécie:

Art. 49. Estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos.

[…]

§ 3º Tratando-se de credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis, de arrendador mercantil, de proprietário ou promitente vendedor de imóvel cujos respectivos contratos contenham cláusula de irrevogabilidade ou irretratabilidade, inclusive em incorporações imobiliárias, ou de proprietário em contrato de venda com reserva de domínio, seu crédito não se submeterá aos efeitos da recuperação judicial e prevalecerão os direitos de propriedade sobre a coisa e as condições contratuais, observada a legislação respectiva, não se permitindo, contudo, durante o prazo de suspensão a que se refere o § 4º do art. 6º desta Lei, a venda ou a retirada do estabelecimento do devedor dos bens de capital essenciais a sua atividade empresarial.

É patente, nesse contexto, a intenção positivada pelo legislador no sentido de que o credor de empresa em recuperação judicial que tenha com ela firmado contrato com reserva de domínio não se sujeita aos efeitos do processo de soerguimento.

Quanto ao ponto, é também pacífica a jurisprudência deste Tribunal:

AGRAVO INTERNO NO CONFLITO POSITIVO DE COMPETÊNCIA. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. BUSCA E APREENSÃO. ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. BENS ESSENCIAIS À ATIVIDADE EMPRESARIAL. EXCEPCIONAL SUBMISSÃO AOS EFEITOS DA RECUPERAÇÃO JUDICIAL.

1. O credor titular da posição de proprietário fiduciário ou detentor de reserva de domínio de bens móveis ou imóveis não se sujeita aos efeitos da recuperação judicial (Lei 11.101/2005, art. 49, § 3º), ressalvados os casos em que os bens gravados por garantia de alienação fiduciária cumprem função essencial à atividade produtiva da sociedade recuperanda. Precedentes.

2. Agravo interno não provido.

(AgInt no AgInt no AgInt no CC 149.561/MT, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 22/08/2018, DJe 24/08/2018)

A questão que se coloca, todavia, diz respeito à necessidade ou não de registro da avença, junto ao Cartório competente, para fins de se viabilizar o reconhecimento da extraconcursalidade do crédito titularizado pelo alienante da coisa cujo domínio lhe foi contratualmente reservado até o adimplemento da contraprestação pelo comprador.

Isso porque, segundo disposição expressa do art. 522 do CC/02, a cláusula de reserva de domínio “depende de registro no domicílio do comprador para valer contra terceiros”.

Muito embora não haja precedentes do STJ tratando especificamente da matéria objeto deste recurso, verifica-se que esta 3ª Turma, em situações análogas – versando sobre direitos de crédito cedidos fiduciariamente –, já firmou posição no sentido da desnecessidade do registro para sua exclusão dos efeitos da recuperação judicial do devedor (REsp 1.412.529/SP, DJe 2/3/2016 e REsp 1.592.647/SP, DJe 28/11/2017).

E, como as razões que conduziram à conclusão alcançada pelos julgadores naquelas hipóteses se aplicam, em sua essência, à espécie em exame – dadas as semelhanças estrutural e funcional dos negócios jurídicos de que tratam ambas as situações litigiosas, bem como em razão da unicidade do regramento legal acerca dos efeitos do processo de soerguimento sobre tais relações jurídicas –, impõe-se conferir-lhes tratamento isonômico.

De se ressaltar que, tanto no que concerne à cessão fiduciária de créditos como quanto à venda com reserva de domínio, o registro do contrato não é requisito constitutivo do negócio jurídico respectivo. Vale dizer, o registro tem mera função declaratória, conferindo ao pacto eficácia contra terceiros, conforme dispõem os arts. 129 da Lei de Registros Públicos (Lei 6.015/73) e o art. 522, parte final, do Código Civil.

Para os fins da norma do § 3º do art. 49 da LFRE, portanto, não se pode exigir que o contrato que contenha a cláusula de reserva de domínio seja registrado no cartório competente para, só então, ter seu objeto preservado dos efeitos da recuperação judicial da devedora.

O dispositivo precitado exige, para não sujeição dos créditos detidos pelo proprietário em contrato com reserva de domínio, apenas e tão somente que ele ostente tal condição (de proprietário), o que decorre da própria natureza do contrato entabulado, consoante se extrai da interpretação das normas dos arts. 521 e 524 do CC/02.

Nessa espécie de negócio jurídico, impende ressaltar, a mera ausência de registro perante o Cartório competente não implica transferência ou perda da propriedade pelo alienante enquanto não cumprida a condição a que se obrigou o comprador (adimplemento do preço).

O registro, na verdade, se impõe como requisito tão somente para fins de publicidade, ou seja, para que a reserva de domínio seja oponível a terceiros que, por alguma circunstância, possam ser prejudicados diretamente pela ausência de conhecimento da existência de tal cláusula.

É o que se pode verificar, a título ilustrativo, com aquele que venha a adquirir, do comprador, o bem cujo domínio encontra-se reservado a outrem (o que viria a caracterizar venda a non domino). Ou, ainda, com aqueles que pretendam a aplicação, em juízo, de medidas constritivas sobre a coisa que serve de objeto ao contrato.

Ocorre, todavia, que, no âmbito da recuperação judicial do comprador, os credores deste não se enquadram em quaisquer das situações elencadas, pois entre eles nada foi estipulado acerca dos bens objeto do contrato em questão.

Ademais, considerando que, como explicitado linhas atrás, a manutenção da titularidade do bem na pessoa do alienante é decorrência natural da natureza jurídica do contrato de venda com reserva de domínio, este continua a figurar, perante todos, como proprietário da coisa. Apenas essa titularidade não se perfaz de maneira absoluta, dada a condição suspensiva inerente ao objetivo do negócio entabulado.

Desse modo, entender que o patrimônio da recorrente, apenas por estar na posse direta de empresa em recuperação judicial, deva ficar indisponível e submetido aos efeitos do processo de soerguimento equivaleria a subverter o direito de propriedade constitucionalmente assegurado a qualquer pessoa (art. 5º, XXII).

Nesse contexto, está a exigir reforma o acórdão recorrido.

4. CONCLUSÃO

Forte nessas razões, DOU PROVIMENTO ao recurso especial, para determinar que os créditos referentes aos contratos de venda com reserva de domínio firmados pela recorrente não se submetam aos efeitos da recuperação judicial da recorrida. /

Dados do processo:

STJ – REsp nº 1.725.609 – Rio Grande do Sul – 3ª Turma – Rel. Min. Nancy Andrighi – DJ 22.08.2019

Fonte: INR Publicações

Publicação: Portal do RI (Registro de Imóveis) | O Portal das informações notariais, registrais e imobiliárias!

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