Processo CG n° 2014/144284 – (Parecer 355/2014-E) – Registro Civil das Pessoas Naturais – Reconhecimento da filiação socioafetiva perante o Registro Civil das Pessoas Naturais – Possibilidade – Recurso não provido.

PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

CORREGEDORIA GERAL DA JUSTIÇA
Processo CG n° 2014/144284
(355/2014-E)

Registro Civil das Pessoas Naturais – Reconhecimento da filiação socioafetiva perante o Registro Civil das Pessoas Naturais – Possibilidade – Recurso não provido.

Excelentíssimo Senhor Corregedor Geral da Justiça:

Trata-se de recurso interposto pelo Ministério Público do Estado de São Paulo contra a r. decisão do MM. Juízo Corregedor Permanente (fls. 25/28) que autorizou o registro de nascimento de Maria Fernanda Biglia Hirata como filha de Simone Hirata e Carina Biglia.

Alega, em síntese, que a competência para o reconhecimento é da Vara de Família em razão da ausência de determinação de vínculo biológico entre a criança e Carina, e que a decisão não interpretou corretamente o art. 1597, do Código Civil. Ainda, que o princípio constitucional da isonomia foi violado. Afirma, também, inexistir erro de registro. Aduz que a decisão administrativa não faz coisa julgada e que não garante segurança jurídica à criança em virtude de eventual questionamento futuro.

A D. Procuradoria Geral de Justiça opinou pelo não provimento do recurso Ministerial (fls. 42/43), mantendo-se a r. decisão recorrida.

É o relatório.

Opino.

A mesma questão foi recentemente analisada por essa Corregedoria Geral da Justiça, nos autos de nº 2014.88189. Repete-se, portanto, a fundamentação e, consequentemente, atribui-se ao caso o mesmo desfecho.

O que se discute é se o reconh/cimento voluntário da filiação socioafetiva pode ser realizado perante os Oficiais de Registro Civil das Pessoas Naturais ou se necessita de ação judicial.

A D. Procuradoria Geral da Justiça, forte nos fundamentos da r. decisão recorrida, é favorável ao reconhecimento nesta via administrativa.

A r. decisão recorrida, por seu turno, traz os seguintes argumentos: a) demonstração da relação familiar (as interessadas casaram-se); b) presunção de paternidade no caso de inseminação artificial heteróloga precedida de autorização do marido (CC 1.597, V); c) a expressão “marido”, contida no art. 1.597, V, do Código Civil, não deve servir de óbice ao reconhecimento socioafetivo porque a união estável é reconhecida pela Constituição Federal como entidade familiar e a ADI nº 4277 reconheceu a união estável homoafetiva nos mesmos moldes da heterossexual.

De fato, após o julgamento da ADI 4277-DF pelo E. Supremo Tribunal Federal, todos os dispositivos legais, notadamente os do Código Civil, que, de alguma forma, permitam ou induzam tratamento diverso entre os casamentos e uniões estáveis heterossexuais e homoafetivos devem passar por uma releitura para atender às suas novas finalidades.

Assim, de acordo com a lógica construída na r. decisão e acatada pelo D. Procuradoria Geral de Justiça, se a presunção da paternidade contida no art. 1.597, V, do Código Civil, vale também entre companheiros, e se aos casamentos e uniões estáveis de pessoas do mesmo sexo são garantidos os mesmos direitos, não se pode recusar à mãe socioafetiva o direito de reconhecer como seu o filho havido nestas circunstâncias.

Do contrário, criar-se-ia a seguinte situação injustificada de desigualdade: os cônjuges ou companheiros de sexos diferentes (relacionamento heterossexual) teriam acesso à via mais rápida do reconhecimento direto perante o registrador, ao passo que os companheiros ou cônjuges de mesmo sexo (relacionamento homoafetivo) teriam de trilhar a morosa e dispendiosa via judicial.

Mas não é só.

Milton Paulo de Carvalho[1] lembra que a opção do legislador pela filiação socioafetiva se manifesta nos arts. 1.593, 1.596, 1.597, V, 1.605 e 1.614, todos do Código Civil:

Art. 1.593. O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem.

Art. 1.596. Os filhos, havidos ou não da relação de casamento, ou por adoção, terão os mesmo direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.

Art. 1.597. Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos:

V – havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido.

Art. 1.605. Na falta, ou defeito, do termo de nascimento, poderá provar-se a filiação por qualquer modo admissível em direito:

I – quando houver começo de prova por escrito, proveniente dos pais, conjunta ou separadamente;

II – quando existirem veementes presunções resultantes de fatos já certos.

Art. 1.614. O filho maior não pode ser reconhecido sem o seu consentimento, e o menor pode impugnar o reconhecimento, nos quatro anos que se seguirem à maioridade, ou à emancipação.

E, ao comentar o art. 1.596, explica que a legislação estabelece quatro tipos de estado de filiação: por consanguinidade, por adoção, por inseminação artificial e em virtude de posse de estado de filiação.

Na jurisprudência, é tranquilo o reconhecimento da socioafetividade como um dos modos de filiação.

Nos autos do Recurso Especial n° 1000356/SP, a Ministra Nancy Andrighi destacou que a filiação socioafetiva tem alicerce no art. 227, § 6º, da Constituição Federal, e envolve não apenas a adoção, como também parentescos de outra origem, conforme introduzido pelo art. 1.593, do Código Civil, além daqueles decorrentes da consanguinidade oriunda da ordem natural, de modo a contemplar a socioafetividade surgida como elemento de ordem cultural.

A Jurisprudência deste E. Tribunal de Justiça caminha no mesmo sentido, podendo-se citar, por exemplo, trecho do voto proferido nos autos da apelação nº 01637-05.2010.8.26.0510, relatada pelo Desembargador Francisco Eduardo Loureiro:

O artigo 1.593 do novo Código Civil, afinado com o espírito da Constituição Federal, dispõe que “o parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem” (grifo nosso). O termo outra origem, usado pelo legislador, admite como fontes do parentesco os casos de reprodução artificial e as relações socioafetivas, sem vínculo biológico ou de adoção.

Na lição de Edson Luiz Fachin, a verdadeira filiação só pode vingar no terreno da afetividade, da intensidade das relações que unem pais e filhos, independente da origem biológico-genética (Comentários ao Novo Código Civil, Forense, V. XVI, p. 25; ver, também, Eduardo Oliveira Leite, Temas de Direito de Família, RT, 1.94, p. 121, entre outros).

Como se vê, o Código Civil prevê diversas causas de parentesco: civil, consanguíneo e com “outras origens”, aí incluídas a socioafetiva e a procriação por reprodução artificial.

O parentesco civil se constitui por meio de adoção e, para esta hipótese de filiação, a via judicial é indispensável, nos termos exigidos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente.

Diversas, porém, são as hipóteses de reconhecimento de filho biológico e por socioafetividade.

Em relação aos filhos biológicos, para os havidos durante a constância do casamento, a lei presume a filiação (CC 1.597); quanto aos concebidos fora dele, basta a declaração do pai perante o registrador para que seja averbada a paternidade no assento de nascimento (art. 1º, I, da Lei nº 8.560/92).

No caso do filho havido fora do casamento, é importante destacar que não exige qualquer prova específica daquele que se apresenta com pai, sendo suficiente a afirmação desta qualidade perante o registrador – ou mesmo perante o juiz (o art. 2º, § 3º, da Lei nº 8.560/92).

Quanto à filiação por socioafetividade que, repita-se, não se confunde com a adoção, a via judicial também é prescindível porque a Lei n° 8.560/92 cuida do reconhecimento de filhos havidos fora do casamento, sem discriminar o tipo de filiação: biológica ou socioafetiva.

Assim, impedir o reconhecimento da filiação socioafetiva na via administrativa implicaria inegável afronta à vedação da discriminação da filiação em virtude da natureza prevista no § 6º, do art. 227, segundo o qual:

Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.

Deste modo, se o filho biológico pode ser reconhecido voluntariamente pelo pai mediante simples declaração – desacompanhada de qualquer prova – feita perante o oficial de registro civil, o mesmo direito, nas mesmas condições, deve ser concedido ao filho socioafetivo.

A desnecessidade da via judicial se evidencia ainda mais no caso em exame porque o filho permanecerá na família de origem e apenas terá o nome de sua mãe socioafetiva, que assim se declarou voluntária e espontaneamente, inserido em seu registro.

A utilização da via administrativa representa, ainda, medida de desjudicialização, porque transfere a órgão não jurisdicional questão que prescinde da manifestação do Estado-Juiz.

O reconhecimento da filiação socioafetiva é modalidade de parentesco ainda precoce em nosso ordenamento jurídico e em nossa jurisprudência pátria, de modo que precisa ser interpretado à luz dos novos princípios informadores do direito de família, abandonando-se conceitos antigos arraigados em nossa cultura já incompatíveis com a realidade.

Não por outra razão, o Ministro Eduardo Ribeiro já observou, com total razão, que as normas jurídicas hão de ser entendidas tendo em vista o contexto legal em que inseridas e considerando os valores tidos como válidos em determinado momento histórico. Não há como interpretar-se uma disposição, ignorando as profundas modificações por que passou a sociedade, desprezando os avanços da ciência e deixando de terem conta as alterações de outras normas, pertinentes aos mesmos institutos jurídicos (STJ, Resp 194866).

E é dentro deste novo contexto do direito de família que o reconhecimento voluntário da filiação socioafetiva deve ser analisado.

Nos Estados do Pernambuco, Maranhão e Ceará, as respectivas Corregedorias Gerais de Justiça editaram Provimentos autorizando o reconhecimento voluntário por socioafetividade perante o registro civil de pessoas naturais (Provimentos n°s 09/2013, 21/2013 e 15/2013).

Referidos provimentos tomaram por base as seguintes premissas: igualdade de filiação; inexistência de hierarquia da filiação biológica sobre a civil; o art. 226, da Lei Maior, segundo o qual a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado; a inserção de novos valores; os princípios da afetividade e da dignidade da pessoa humana; que o instituto da paternidade socioafetiva tem a sua existência ou coexistência reconhecidas no âmbito da realidade familiar; a possibilidade do reconhecimento voluntário de paternidade perante o Oficial de Registro Civil, devendo tal possibilidade ser estendida às hipóteses de reconhecimento voluntário de paternidade socioafetiva, já que ambos estabelecem relação de filiação, cujas espécies devem ser tratadas com igualdade jurídica; que as normas consubstanciadas nos Provimentos n° 12, 16, e 26 do Conselho Nacional de Justiça, as quais visam a facilitar o reconhecimento voluntário de paternidade biológica devem ser aplicáveis, no que forem compatíveis, ao reconhecimento voluntário da paternidade socioafetiva, tendo em vista a igualdade jurídica entre as espécies de filiação; o Enunciado Programático n° 06/2013, do IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família, segundo o qual “do reconhecimento jurídico da filiação socioafetiva decorrem todos os direitos e deveres inerentes à autoridade parental; o art. 10, II, do Código Civil, segundo o qual “os atos judiciais ou extrajudiciais que declararem ou reconhecerem a filiação devem ser averbados em registro público”; a existência de um grande número de crianças e adultos sem paternidade registral estabelecida, embora tenham relação de paternidade socioafetiva já consolidada.

No Estado de São Paulo, como não há provimento regulamentado a matéria, é preciso examinar o caso concreto.

Pois bem. Os documentos acostados aos autos demonstram, de forma mais do que suficiente e, sobretudo, objetiva, a existência de casamento entre as interessadas (fl. 05) e o relacionamento de cerca de nove anos (fls. 03/04).

O contrato de fls. 07/10 e o relatório de fl. 24 comprovam, por sua vez, que Simone se submeteu à fertilização in vitro, com doador anônimo, em 2013. Assim, houve estimulação dos ovários, colheita e fertilização dos óvulos com sémen de doador anônimo e, por fim, seleção e transferência dos melhores embriões para o útero de Simone, que foi a escolhida para ser a gestante.

O cenário fático encontra-se objetivamente demonstrado, carecendo de qualquer outra prova.

No que diz respeito à atribuição do registrador civil de pessoas naturais para aferir o vínculo socioafetivo, anoto que, se para o reconhecimento do filho biológico não se exige qualquer comprovação, o mesmo tratamento deve ser dispensado ao reconhecimento da filiação por socioafetividade.

Mas, ainda que assim não fosse, a análise documental em questão é meramente objetiva, extrínseca, portanto a pleno alcance do registrador, desde que exercida, como sempre, mediante prudente critério. E as interessadas são casadas.

A propósito do exame notarial e registral, relembre-se que as últimas modificações feitas por V. Exa. nas Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça têm prestigiado – em razão da eficiência, da boa prestação de serviços, da meta de desjudicialização e inexistência de impedimento legal – o desenvolvimento e o estímulo da qualificação registral que, se de um lado, transferem mais confiança e atribuição aos notários e registradores, de outro, trazem maior responsabilidade.

Apenas para exemplificar o incremento da atividade qualificatória notarial e registral, cito alguns casos: a possibilidade de o tabelião de protestos recusar o protesto dos chamados “cheques podres” (item 34, do Capítulo XV); permissão para o registrador de imóveis rejeitar as impugnações infundadas nas retificações registro (item 138.19, I, do Capítulo XX); autorização para registrador de imóveis, seguindo o critério da prudência e à vista dos demais documentos e circunstâncias de cada caso, verificar se os documentos apresentados pelos interessados na regularização fundiária podem embasar o registro da propriedade (item 291, Capítulo XX); autorização para os notários e registradores realizarem conciliação e mediação nas Serventias Extrajudiciais (Provimento CG n° 17/2013).

De tudo o que se viu, conclui-se que inexistem motivos jurídicos ou razoáveis a impor às recorrentes o moroso e dispendioso caminho da via judicial.

Quanto ao risco de fraude, destaco que, para os casos como o presente, nenhuma segurança a mais se conseguiria com a remessa das recorrentes à via judicial haja vista que, nela, seriam os mesmos documentos ora apresentados e examinados que serviriam de alicerce para a inevitável sentença de procedência de eventual ação de investigação de paternidade socioafetiva.

De mais a mais, relembre-se que nenhum sistema é imune a fraudes e a prova disso são as inúmeras adoções à brasileira que, infelizmente, ainda ocorrem e, posteriormente, vêm a ser chanceladas pelo Judiciário com base justamente na socioafetividade e, ainda, no princípio do melhor interesse da criança.

A sistemática do reconhecimento administrativo estabelecido pela Lei nº 8.560/92, da mesma forma, também é suscetível a burlas, na medida em que não exige mais do que a simples declaração voluntária do pai em relação ao filho a ser reconhecido. Por fim, também a via judicial pode ser usada para chancelar situação de filiação socioafetiva inexistente, bastando que os fraudadores se casem ou constituam união estável por escritura pública para dar aparência de convivência familiar e, com isso, alcançar o espúrio objetivo.

Assim, também sob o prisma da segurança, não se pode obstar o reconhecimento da filiação socioafetiva na via administrativa.

Em contrapartida, deve-se sempre lembrar que a boa-fé é sempre presumida, de modo que não se pode impedir o benefício para muitos em virtude do eventual desvio de conduta de alguns.

E que, em caso de suspeita de fraude, o registrador sempre poderá recorrer ao juiz corregedor permanente.

Por último, quanto à alegada insegurança jurídica decorrente da inexistência de trânsito em julgado material das decisões administrativas, destaco que o art. 1.604, do Código Civil, dispõe que ninguém pode vindicar estado contrário ao que resulta do registro de nascimento, salvo provando-se erro ou falsidade do registro.

Assim, somente por meio de decisão judicial o estado de filiação poderá ser alterado – apenas nos casos de erro ou falsidade –, de onde se conclui que a segurança ora requerida é, em verdade, a mesma já existente que protege o reconhecimento da filiação biológica.

Em suma: seja pelo suporte legal e jurisprudencial indicado na r. decisão recorrida, seja pelos argumentos ora apontados, o recurso do Ministério Público não comporta provimento.

Diante do exposto, o parecer que respeitosamente submeto à elevada consideração de Vossa Excelência é no sentido de que seja negado provimento ao recurso.

Sub censura.

São Paulo, 19 de novembro de 2014.

Swarai Cervone de Oliveira

Juiz Assessor de Oliveira

DECISÃO: Aprovo o parecer do MM. Juiz Assessor da Corregedoria e, por seus fundamentos, que adoto, nego provimento ao recurso. São Paulo, 24.11.2014. – (a) – HAMILTON ELLIOT AKEL – Corregedoria Geral da Justiça.

______

Notas:

[1] Código Civil Comentado, Manole, 6ª Ed., p. 1767

Diário da Justiça Eletrônico de 10.12.2014
Decisão reproduzida na página 197 do Classificador II – 2014

Fonte: INR Publicações | 24/09/2015.

Publicação: Portal do RI (Registro de Imóveis) | O Portal das informações notariais, registrais e imobiliárias!

Para acompanhar as notícias do Portal do RI, siga-nos no twitter, curta a nossa página no facebook, assine nosso boletim eletrônico (newsletter), diário e gratuito, ou cadastre-se em nosso site.


Artigo: O fundamental papel do notário no reconhecimento das “Novas” Famílias – Por José Flávio Bueno Fischer

*José Flávio Bueno Fischer

A evolução célere dos relacionamentos familiares no mundo contemporâneo requer a constante transformação do ordenamento jurídico, a fim de que ele se coadune com a realidade social de uma determinada época. Assim, não há um conceito de família predeterminado aplicável a todas as épocas e regiões, ele altera-se com o passar dos anos, até mesmo porque, muito antes de ser definido em lei, ele é definido pelo contexto social em que está inserido.
No Brasil, a pluralização das relações familiares exigiu um redimensionamento no conceito de família, afastando o casamento como marco único de sua existência. A busca pela felicidade levou ao desprendimento das amarras formais e ao surgimento de novas famílias, que floresceram baseadas no afeto.
Inicialmente, a família era constituída unicamente pelo matrimônio. O Código Civil anterior, de 1916, em sua versão original, “(…) trazia uma estreita e discriminatória visão da família, limitando-a ao grupo originário do casamento. Impedia sua dissolução, fazia distinções entre seus membros e trazia qualificações discriminatórias às pessoas unidas sem casamento e aos filhos havidos dessas relações”.[1]
Neste cenário, a Constituição de 1934, considerada a primeira Constituição a se preocupar em delinear a família em seu contexto[2], determinava a indissolubilidade do casamento, ressalvados somente os casos de anulação e desquite. E tamanha era a relevância social e moral conferida ao casamento na época, que as Constituições posteriores, de 1937, de 1946 e de 1967, mantiveram sua indissolubilidade. Somente com o advento da Lei do Divórcio, de 1977, foi possível a extinção do vínculo matrimonial, ”(…) eliminando a ideia da família como instituição sacralizada”.[3]
Entretanto, o grande marco de inovação no direito de família no Brasil não foi a Lei de 1977 e, sim, a Constituição Federal de 1988, que “(…) num único dispositivo, espancou séculos de hipocrisia e preconceito”.[4] Além de instaurar a igualdade entre homem e mulher, a Carta Magna admitiu a existência de outras espécies de família, reconhecendo a união estável e a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes, a chamada família monoparental[5]. Além disso, estabeleceu a igualdade entre os filhos, havidos ou não do casamento, ou por adoção.
Ou seja, a Carta Constitucional trouxe à sua seara outros arranjos familiares que não somente aquele oriundo do casamento, “(…) e o fez erigindo o afeto como um dos princípios constitucionais implícitos, na medida em que aceita, reconhece, alberga, ampara e subsidia relações afetivas distintas do casamento”.[6]
Posteriormente, em 11 de janeiro de 2003, entrou em vigor o atual Código Civil Brasileiro, publicado em 11 de janeiro de 2002. O projeto original data de 1975 e tramitou no Congresso Nacional antes mesmo da própria Constituição Federal de 1988. Por isso mesmo, o projeto original teve que sofrer modificações profundas diante das diretrizes da nova Constituição, e a despeito das inúmeras emendas e remendos, o texto não tem a clareza e a atualidade necessárias à sociedade dos dias de hoje.[7]
Assim, apesar de incorporar boa parte das mudanças legislativas que haviam ocorrido por meio da legislação esparsa e agregar orientações pacificadas pela jurisprudência, abolindo expressões e conceitos discriminatórios, como referências desigualitárias entre homens e mulheres, adjetivação da filiação, entre outros, o Código se furtou a promover alguns avanços importantes, a “(…) operar a subsunção, à moldura da norma civil, de construções familiares existentes desde sempre, embora completamente ignoradas pelo legislador infraconstitucional”[8], tais quais as relações entre pessoas do mesmo sexo, as denominadas uniões homoafetivas.
O Código Civil de 2002 disciplinou exaustivamente o casamento, tratou da união estável, mas nada disse acerca de outras construções familiares, tais quais as uniões entre pessoas do mesmo sexo. É como diz aquela máxima: os movimentos sociais são lebres e o direito é tartaruga. Construções familiares tais quais as uniões homoafetivas existem desde sempre e, mesmo assim, o legislador se omitiu a normatizá-las.
Felizmente, os notários brasileiros, ao lado do Poder Judiciário, têm andado na contramão dos legisladores. Há muito, as grandes inovações operadas no direito de família brasileiro têm sido trazidas por brilhantes juízes e tabeliães. Assim, a despeito da lacuna legal, as mais diversas formas de constituição de família estão recebendo proteção jurídica, com base nos mais preciosos princípios constitucionais: o da dignidade da pessoa humana e o da igualdade de direitos.
Com efeito, o princípio da dignidade da pessoa humana confere ao indivíduo a liberdade de viver suas relações de afeto de acordo com suas convicções íntimas, a liberdade de escolher com quem quer partilhar sua vida, sem ter que estar preso a dogmas sociais e religiosos. Diante disso, é possível concluir que ao conferir supremacia ao princípio da dignidade da pessoa humana, elegendo-o como um dos pilares da República (artigo 1º, inciso III)[9], a Constituição Federal brasileira passou a dar mais importância ao amor, aos laços fraternos, à solidariedade e à felicidade, em detrimento da antiga visão patrimonialista de nossa legislação anterior, em que a entidade familiar era voltada exclusivamente para a transmissão patrimonial e para a procriação, mesmo se isso importasse no prejuízo da realização pessoal de cada um.
Ou seja, “o texto constitucional consagrou expressamente a mudança do conceito de família, tendo em vista ter considerado o amor como o elemento central na sua formação”[10]. Agora, “a tônica reside no indivíduo, e não mais nos bens ou coisas que guarnecem a relação familiar”.[11] Assim, o novo modelo de família funda-se sobre os pilares da afetividade, da pluralidade e da felicidade, “(…) abrigando os mais diversos arranjos familiares, devendo-se buscar o elemento que permite enlaçar no conceito de entidade familiar todos os relacionamentos que têm origem em um elo de afetividade, independentemente de sua conformação”.[12]
Nesta linha, em maio de 2011, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4277 e da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 132, reconheceu a união estável entre pessoas do mesmo sexo[13] como entidade familiar, conferindo-a iguais direitos e obrigações das uniões heteroafetivas.
A Suprema Corte brasileira, neste julgamento histórico, reconheceu o afeto enquanto princípio constitucional implícito[14], chancelando a postura de vanguarda dos notários de todo Brasil, que muitos antes disso já lavravam em suas notas escrituras públicas de união entre pessoas do mesmo sexo. Para se ter uma ideia, no Tabelionato em que sou titular, a primeira escritura de declaração em que duas mulheres manifestaram conviver juntas e compartilhar seu patrimônio data de junho de 2003, oito anos antes da decisão da Corte Suprema, portanto.
Outro exemplo do papel fundamental dos tabeliães na proteção das novas formas de constituição de família é a escritura de união poliafetiva lavrada pela tabeliã de Tupã, cidade do interior de São Paulo, Cláudia do Nascimento Domingues, em agosto de 2012. Numa atitude pioneira, enfrentando uma sociedade de cunho essencialmente monogâmico, a notária lavrou a primeira escritura pública de união entre um homem e duas mulheres, declarando a convivência pública e duradoura, como entidade familiar, de três pessoas solteiras, maiores e capazes.
Diante destes dois exemplos de escrituras que desafiaram sua época, é indiscutível que o tabelião é essencial no reconhecimento destes “novos” direitos, destas novas formas de família, garantindo que o ordenamento jurídico acompanhe a evolução da sociedade de forma célere
Deste modo, o notário exerce função precípua na sociedade contemporânea: a de conferir proteção legal às mais variadas relações entre particulares, reconhecendo em um documento público um fato social individual, portando por fé-pública aquilo que os particulares precisam preservar e codificar para assegurar direitos e obrigações.
Estamos vivendo um momento histórico no Brasil, em que se tem lutado arduamente pela plena cidadania e igualdade de todas as pessoas. “Os ideais de pluralismo, solidarismo, democracia, igualdade, liberdade e humanismo voltaram-se à proteção da pessoa humana. A família adquiriu função instrumental para a melhor realização dos interesses afetivos e existenciais de seus componentes”.[15] Neste cenário, o notariado é peça chave, eis que o tabelião é o operador do direito com maior legitimidade para construir direitos individualmente considerados, proporcionando segurança jurídica aos cidadãos, de forma célere e eficaz. A noção própria da função notarial é obter o bem comum, a paz social, de forma que o tabelião precisa estar sempre atento e pronto a resguardar novos direitos.

_______________________

[1] DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Família – 8. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 30.

[2] LOUZADA, Ana Maria Gonçalves. Evolução do conceito de família. In: Diversidade Sexual e Direito Homoafetivo. 1. ed. São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 268.

[3] DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Família – 8. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 30.

[4] VELOSO, ZENO. Apud DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Família – 8. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 30.

[5] Constituição Federal de 1988. Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. § 1º – O casamento é civil e gratuita a celebração. § 2º – O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei. § 3º – Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento. § 4º – Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes. § 5º – Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher. § 6º O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio. § 7º – Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas. § 8º – O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações. (grifo nosso)

[6]  LOUZADA, Ana Maria Gonçalves. Evolução do conceito de família. In:DIAS, Maria Berenice (coord.). Diversidade Sexual e Direito Homoafetivo. 1. ed. São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 268.

[7] DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Família – 8. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 31.

[8]  DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Família – 8. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 32.

[9] Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I – a soberania; II – a cidadania; III – a dignidade da pessoa humana; IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V – o pluralismo político. Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.

[10] VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. Manual da homoafetividade: da possibilidade jurídica do casamento civil, da união estável e da adoção por casais homoafetivos. 2. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2012. p. 177.

[11] DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Família – 8. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 43.

[12] DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Família – 8. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 42.

[13] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Notícias. Disponível em:http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=178931. Publicado em: 05.05.2011. Acesso em: 23.07.2013.

[14] VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. Manual da homoafetividade: da possibilidade jurídica do casamento civil, da união estável e da adoção por casais homoafetivos. 2. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2012. p. 198.

[15] DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Família – 8. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 40.

*José Flávio Bueno Fischer é 1º Tabelião de Novo Hamburgo/RS, Ex-presidente do CNB-CF e Membro do Conselho de Direção da UINL.

Fonte: Notariado | 18/08/2015.

Publicação: Portal do RI (Registro de Imóveis) | O Portal das informações notariais, registrais e imobiliárias!

Para acompanhar as notícias do Portal do RI, siga-nos no twitter, curta a nossa página no facebook, assine nosso boletim eletrônico (newsletter), diário e gratuito, ou cadastre-se em nosso site.


CNJ: Suspenso concurso na PB e revogada designação de interinos no MA

Por unanimidade, o Plenário do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) ratificou, na sessão de terça-feira (22/9), duas liminares deferidas pelo conselheiro Arnaldo Hossepian Junior relacionadas a serventias extrajudiciais dos estados da Paraíba e do Maranhão. Em um primeiro julgamento (Procedimento de Controle Administrativo 0001426-52.2015.2.00.0000), o Plenário acompanhou voto do relator que suspendeu o concurso público para outorga de delegação de serviços notariais e registrais na Paraíba (Edital n. 1/2003).

O pedido foi feito depois que a banca examinadora do concurso (Ieses) reconsiderou sua decisão de anular uma questão da prova escrita e prática do concurso. A anulação da questão, segundo o Tribunal de Justiça do Estado da Paraíba (TJPB), representaria a aprovação de quase a totalidade dos candidatos. No entanto, a reconsideração ocorreu após a identificação nominal dos candidatos, o que violaria o princípio da impessoalidade. A decisão vale até o julgamento de mérito do processo.

No segundo processo julgado, a Associação dos Titulares de Cartórios do Estado do Maranhão, a Associação dos Notários e Registradores do Estado do Maranhão (Anoreg-MA) e o Instituto de Estudos de Protesto de Títulos do Brasil – Seção Maranhão (IEPTB-MA) questionam designações de interinos praticadas pela Corregedoria-Geral de Justiça do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão (TJMA). Segundo as entidades que ingressaram com o Procedimento de Controle Administrativo 0003954-59.2015.2.00.0000, as designações estão em desacordo com as normas e precedentes do CNJ na matéria.

Quatro das situações relatadas referem-se à nomeação de interinos não concursados para serventias no Maranhão, o que seria contrário à Resolução CNJ n. 80/2009. Em seu voto, o relator lembra que a resolução veda, no artigo 3º, a designação de interino que não seja preposto do serviço notarial ou de registro na data de vacância.

Desrespeito – “Verifica-se a latente irregularidade das designações determinadas pela Corregedoria-Geral de Justiça para as serventias de Graça Aranha, 1ª Zona de Registro Civil das Pessoas Naturais de São Luís-MA, 1º Ofício de Arari-MA e 1º e 3º Ofícios de Caxias, pois estão em total desrespeito às regras estabelecidas pelo CNJ e, ainda, pelo próprio Código de Normas da Corregedoria-Geral de Justiça do Estado do Maranhão”, diz o voto do conselheiro-relator. Além disso, dois dos quatro interinos não concursados já foram afastados anteriormente de sua atuação em serventias extrajudiciais em virtude de irregularidades graves.

A liminar ratificada determina à Corregedoria-Geral de Justiça do Maranhão que revogue em 48 horas as designações de Pryscilla de Cássia Machado de Sousa Ferreira, Antonio Felipe Araújo Ribeiro, Marcos Weba e Delfina do Carmo Teixeira de Abreu. O tribunal também deverá designar novos interinos obedecendo aos critérios estabelecidos pela Resolução 80/2009 do CNJ.

Item 132 – Procedimento de Controle Administrativo –  0003954-59.2015.2.00.0000.

Item 136 – Procedimento de Controle Administrativo –  0001426-52.2015.2.00.0000.

Fonte: CNJ | 23/09/2015.

Publicação: Portal do RI (Registro de Imóveis) | O Portal das informações notariais, registrais e imobiliárias!

Para acompanhar as notícias do Portal do RI, siga-nos no twitter, curta a nossa página no facebook, assine nosso boletim eletrônico (newsletter), diário e gratuito, ou cadastre-se em nosso site.