Registro de imóveis – Escritura Pública de Venda e Compra – Desqualificação por inobservância ao princípio da continuidade registral – Cisão parcial da pessoa jurídica outorgante vendedora – Efetiva transmissão do domínio e não mera alteração da denominação social – Apelação não provida.

Apelação Cível nº 1001274-85.2021.8.26.0538

Espécie: APELAÇÃO

Número: 1001274-85.2021.8.26.0538

Comarca: SANTA CRUZ DAS PALMEIRAS

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

CONSELHO SUPERIOR DA MAGISTRATURA

Apelação Cível nº 1001274-85.2021.8.26.0538

Registro: 2023.0000575214

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível nº 1001274-85.2021.8.26.0538, da Comarca de Santa Cruz das Palmeiras, em que é apelante ISABEL ALVES PIRES, é apelado OFICIAL DE REGISTRO DE IMÓVEIS E ANEXOS DA COMARCA DE SANTA CRUZ DAS PALMEIRAS.

ACORDAM, em Conselho Superior da Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: “Negaram provimento, v u.”, de conformidade com o voto do Relator, que integra este acórdão.

O julgamento teve a participação dos Exmos. Desembargadores RICARDO ANAFE (PRESIDENTE TRIBUNAL DE JUSTIÇA) (Presidente), GUILHERME GONÇALVES STRENGER (VICE PRESIDENTE), XAVIER DE AQUINO (DECANO), BERETTA DA SILVEIRA (PRES. DA SEÇÃO DE DIREITO PRIVADO), WANDERLEY JOSÉ FEDERIGHI(PRES. DA SEÇÃO DE DIREITO PÚBLICO) E FRANCISCO BRUNO (PRES. SEÇÃO DE DIREITO CRIMINAL).

São Paulo, 29 de junho de 2023.

FERNANDO ANTONIO TORRES GARCIA

Corregedor Geral da Justiça e Relator

APELAÇÃO CÍVEL nº 1001274-85.2021.8.26.0538

APELANTE: Isabel Alves Pires

APELADO: Oficial de Registro de Imóveis e Anexos da Comarca de Santa Cruz das Palmeiras

VOTO Nº 39.034 

Registro de imóveis – Escritura Pública de Venda e Compra – Desqualificação por inobservância ao princípio da continuidade registral – Cisão parcial da pessoa jurídica outorgante vendedora – Efetiva transmissão do domínio e não mera alteração da denominação social – Apelação não provida.

Cuida-se de apelação interposta por ISABEL ALVES PIRES contra a r. Sentença (fls. 140/142) que julgou procedente a dúvida e manteve a recusa do Oficial de Registro de Imóveis, Títulos e Documentos e Civil de Pessoa Jurídica da Comarca de Santa Cruz das Palmeiras em registrar a escritura pública de venda e compra lavrada perante o Tabelião de Notas e de Protesto de Letras e Títulos da mesma Comarca (livro nº 129, páginas 247 a 249).

Alega a apelante, em suma, que do título levado a registro consta como vendedora, Abengoa Bioenergia São Luiz S/A, não subsistindo o óbice registrário apenas porque houve a cisão da pessoa jurídica em outra do mesmo grupo econômico. Além disso, os negócios entabulados antes da cisão devem ser cumpridos pela nova empresa.

A Procuradoria Geral de Justiça opina pelo não provimento do recurso (fls. 172/174).

É o relatório.

Cuida-se de registro de escritura pública lavrada em 09 de setembro de 2008, perante o Tabelião de Notas e de Protesto de Letras e Títulos da Comarca de Santa Cruz das Palmeiras, livro nº 129, páginas 247 a 249, figurando como outorgante vendedora Abengoa Bioenergia São Luiz S/A, nova denominação social de Dedini S/A Indústria e Comércio, e outorgados compradores Manoel Rodrigues da Silva Isabel Alves Pires, tendo por objeto um lote de terreno matriculado sob o n.º 9.144 no Oficial de Registro de Imóveis, Títulos e Documentos e Civil de Pessoa Jurídica da Comarca de Santa Cruz das Palmeiras.

O registro foi obstado por ofensa ao princípio da continuidade, exigindo-se a prévia regularização da cadeia dominial ou a retificação do título.

Suscitada, a dúvida foi julgada procedente, nos termos da r. sentença de fls. 140/142, ora recorrida.

O recurso não comporta provimento.

Infere-se da matrícula nº 9.144 ser titular de domínio do imóvel a pessoa jurídica Abengoa Bioenergia Agrícola Ltda. (Av.4- 9.144), que teve sua denominação alterada para Abengoa Bioenergia Agroindústria Ltda. (Av.5-9.144).

Da mencionada Av.4-9.144 consta que: “nos termos do instrumento particular regularmente formalizado, datado de vinte e nove (29) de outubro de 2010, procede-se a esta averbação para constar que, conforme certidão específica expedida pela Junta Comercial do Estado de São Paulo (JUCESP) em dois (02) de junho de 2010 e item 1), alínea b.2) do protocolo de cisão, justificação e incorporação arquivado na JUCESP junto à ata de Assembléia Geral Extraordinária da Abengoa Bioenergia São Luiz S.A sob o n. 65.290/10-0 (documentos arquivados na pasta de alterações de sociedades neste Oficial), a ABENGOA BIOENERGIA SÃO LUIZ S.A foi cindida parcialmente e a propriedade imobiliária objeto desta matrícula transferida para ABENGOA BIOENERGIA AGRÍCOLA LTDA, sociedade privada, inscrita no CNPJ/MF sob o n. 06.252.818/0001-88, com sede na Fazenda São Joaquim, com acesso pela Estrada Vicinal Dr. Pedro Duarte, Km 8, Zona Rural, no Município de Santa Cruz das Palmeiras, Estado de São Paulo”.

Do título levado a registro figura, como outorgante vendedora, Abengoa Bioenergia São Luiz S/A, CNPJ/MF 56.617.244/0001-72, enquanto da matrícula, como já dito, consta como titular de domínio Abengoa Bioenergia Agroindústria Ltda., CNPJ/MF 06.252.818/0001-88.

Trata-se, pois, de pessoas jurídicas diversas, tanto que ostentam CNPJ’s distintos.

Indiscutível que, para constituição do capital social da atual titular de domínio, Abengoa Bioenergia Agroindústria Ltda. (CNPJ/MF 06.252.818/0001-88), houve a transmissão do imóvel telado, não se tratando apenas de mera alteração da denominação social da pessoa jurídica.

Por força do princípio da continuidade, qualquer título de transmissão do imóvel só pode ter ingresso e dar causa a um registro stricto sensu se nele constarem, como afetados, referidos titulares de domínio.

Deve, pois, haver perfeito encadeamento entre as informações inscritas e as que se pretendem inscrever, o que não ocorre no caso telado.

A propósito, ensina Afrânio de Carvalho:

“O princípio da continuidade, que se apóia no de especialidade, quer dizer que, em relação a cada imóvel, adequadamente individuado, deve existir uma cadeia de titularidade à vista da qual só se fará a inscrição de um direito se o outorgante dele aparecer no registro como seu titular. Assim, as sucessivas transmissões, que derivam umas das outras, asseguram sempre a preexistência do imóvel no patrimônio do transferente. Ao exigir que cada inscrição encontre sua procedência em outra anterior, que assegure a legitimidade da transmissão ou da oneração do direito, acaba por transformá-la no elo de uma corrente ininterrupta de assentos, cada um dos quais se liga ao seu antecedente, como o seu subseqüente a ele se ligará posteriormente. Graças a isso o Registro de Imóveis inspira confiança ao público” (Registro de Imóveis, 4ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 253).

Vale ainda lembrar que os atos registrários são norteados pelo princípio da inscrição segundo o qual a constituição, transmissão e extinção de direitos reais sobre imóveis, somente se operam por atos inter vivos mediante a inscrição no registro.

Assim, a despeito da data de sua lavratura, a escritura pública de venda e compra telada só produziria efeitos perante terceiros mediante inscrição na matrícula do imóvel, o que não ocorreu.

Ante o exposto, pelo meu voto, nego provimento à apelação.

FERNANDO ANTONIO TORRES GARCIA

Corregedor Geral da Justiça e Relator (DJe de 28.08.2023 – SP)

Fonte: INR Publicações.

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Registro de imóveis – Escritura Pública de doação – Doadores não domiciliados no Brasil – CPF e CNPJ desconhecidos – Exigência afastada – Impossibilidade de cumprimento pelos apresentantes – Mitigação do princípio da especialidade subjetiva – Dúvida improcedente – Recurso provido.

Apelação Cível nº 1039088-53.2022.8.26.0100

Espécie: APELAÇÃO

Número: 1039088-53.2022.8.26.0100

Comarca: CAPITAL

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

CONSELHO SUPERIOR DA MAGISTRATURA

Apelação Cível nº 1039088-53.2022.8.26.0100

Registro: 2023.0000575238

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível nº 1039088-53.2022.8.26.0100, da Comarca de São Paulo, em que são apelantes CHEN HSIN HSU e HUANG SI CHENG, é apelado 5º OFICIAL DE REGISTRO DE IMÓVEIS DA COMARCA DA CAPITAL.

ACORDAM, em Conselho Superior da Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: “Deram provimento, v u.”, de conformidade com o voto do Relator, que integra este acórdão.

O julgamento teve a participação dos Exmos. Desembargadores RICARDO ANAFE (PRESIDENTE TRIBUNAL DE JUSTIÇA) (Presidente), GUILHERME GONÇALVES STRENGER (VICE PRESIDENTE), XAVIER DE AQUINO (DECANO), BERETTA DA SILVEIRA (PRES. DA SEÇÃO DE DIREITO PRIVADO), WANDERLEY JOSÉ FEDERIGHI(PRES. DA SEÇÃO DE DIREITO PÚBLICO) E FRANCISCO BRUNO (PRES. SEÇÃO DE DIREITO CRIMINAL).

São Paulo, 29 de junho de 2023.

FERNANDO ANTONIO TORRES GARCIA

Corregedor Geral da Justiça e Relator

APELAÇÃO CÍVEL nº 1039088-53.2022.8.26.0100

APELANTES: Chen Hsin Hsu e Huang Si Cheng

APELADO: 5º Oficial de Registro de Imóveis da Comarca da Capital

VOTO Nº 39.041 

Registro de imóveis – Escritura Pública de doação – Doadores não domiciliados no Brasil – CPF e CNPJ desconhecidos – Exigência afastada – Impossibilidade de cumprimento pelos apresentantes – Mitigação do princípio da especialidade subjetiva – Dúvida improcedente – Recurso provido.

Trata-se de apelação interposta por Chen Hsin Hsu Huang Si Cheng em face da r. sentença proferida pela MM. Juíza Corregedora Permanente do 5º Oficial de Registro de Imóveis da Comarca de São Paulo, que julgou procedente a dúvida suscitada e manteve a recusa do registro da escritura pública de doação lavrada no 10º Tabelião de Notas da Comarca de São Paulo, aos 13 de setembro de 1984, no livro 1.446, fls. 272/275, referente ao imóvel matriculado sob nº 98.890 (fls. 56/60).

Afirmaram os apelantes, em síntese, que não têm como cumprir a exigência registrária, pois, apesar das diligências realizadas, não lograram êxito em descobrir se os doadores, pessoas física e jurídica, domiciliados no exterior, fizeram as inscrições nos respectivos cadastros (CPF e CNPJ). O princípio da especialidade subjetiva deve ser mitigado e, por conseguinte, autorizado o ingresso do título no fólio real (fls. 66/74).

A douta Procuradoria Geral de Justiça opinou pelo não provimento do recurso (fls. 105/107).

É o relatório.

O acesso do título à tábua registral acabou obstado devido à deficitária qualificação daqueles que figuram como doadores na escritura pública de doação lavrada aos 13 de setembro de 1984, pelo 10º Tabelião de Notas da Comarca de São Paulo, referente ao imóvel objeto da matrícula nº 98.890 do 5º Oficial de Registro de Imóveis da Comarca de São Paulo.

A nota devolutiva descreve (fls. 34/35):

“1) o título é omisso quanto ao CNPJ de ETABLISSEMENT SUDIM. Sanar omissão, nos termos do artigo 176, §1º, inciso III, item 2, alínea a e b c/c artigo 167, inciso II, item 5, c/c artigo 246, §1º, todos da Lei n. 6.015/73.

2) Apresentar cópias autenticadas do RG e CPF (ou comprovante de inscrição e situação cadastral no CPF, impresso pelo portal da Receita Federal do Brasil) de ELISA BRUNETTI, (artigo 176, §1º, inciso III, item 2, alínea a, c/c artigo 167, inciso II, item 5, c/c artigo 246, §1º, todos da Lei n. 6.015/73).

(…)”

O título foi apresentado pelos arrematantes Chen Hsin Hsu e Huang Si Cheng, que foram obrigados a buscar o registro da escritura pública de doação celebrada por Etablissement Sudim e Elisa Brunetti (doadores), representadas por Elda Listanti Paparoni, Alessandra Lugli Ometto, Andrea Lugli e Adriano Lugli (donatários) e Alberto Lugli e Maria Luisa Paparoni Lugli (usufrutuários), para atender à exigência posta para o ingresso do título judicial que lhes beneficia (carta de arrematação expedida nos autos nº 0032710-69.2020.8.26.0100) no álbum imobiliário em atenção ao princípio da continuidade registrária.

E os arrematantes afirmam que não têm à sua disposição, apesar de todos os esforços encetados, os dados de qualificação exigidos dos doadores, de sorte que pugnaram pela relativização do princípio da especialidade subjetiva.

Pois bem.

Analisada a escritura pública de doação (fls. 05/09), os doadores estão assim qualificados: a) Elisa Brunetti, italiana, viúva, portadora de Passaporte Italiano nº 6174986/P, expedido em Trento, Itália, em 10 de julho de 1968, residente na Itália, na cidade Ala, Província de Trento, foi representada por Elda Listanti Paparoni, italiana, viúva, do lar, R.G. 3.089.069-SP e do C.I.C. 035.443.468-34, residente e domiciliada nesta Capital à Av. Higienópolis, 111, apto. 144 (procuração lavrada no 10º Tabelionato de Notas da Comarca de São Paulo, livro 556, fls. 241); e Etablissement Sudim, estabelecida em Vaduz, Principado de Liechtenstein, com personalidade jurídica, de acordo com o arts. 534 e seguintes do C. Civil do referido país, registrado sob nº H-314/25, em 18 de janeiro de 1973, também representada por Elda Listanti Paparoni.

Como sabido, a norma vigente ao tempo da apresentação do título a registro (tempus regit actum) é a que deve ser observada, sendo obrigatória a inscrição da pessoa física ou jurídica, não domiciliada no Brasil, no Cadastro de Pessoas Físicas (CPF) ou Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas (CNPJ) para aquelas que sejam titulares de direitos sobre bens imóveis (Instruções Normativas RFB nºs 1.548/2015 e 1.863/2018; subitens 61.3 e 62.1, do Capítulo XX, Tomo II, das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça), daí o óbice oposto ao registro para que sejam informados e comprovados os respectivos números de inscrição.

Mas, no caso concreto, a exigência registrária deve ser afastada, porquanto não se alcançou descobrir se tais inscrições (CPF e CNPJ) chegaram a ser feitas, sem que se possa impor esse dever de inscrição nesta oportunidade, tanto mais aos arrematantes que não ostentam qualquer relação com os doadores.

Frise-se que o ato notarial foi lavrado no ano de 1984 e, ao que consta, os doadores nunca foram domiciliados no Brasil. À época da lavratura da escritura pública, foram feitas as referências ao passaporte, que é o documento de identificação do estrangeiro, e aos atos constitutivos da pessoa jurídica em conformidade com a legislação do país em que sediada, lembrando ainda que eles foram representados.

Outro não foi o entendimento deste Colendo Conselho Superior da Magistratura:

“REGISTRO DE IMÓVEIS – Carta de adjudicação – Promitente vendedor falecido CPF/MF inexistente – Exigência afastada – Impossibilidade de cumprimento pelo apresentante – Princípio da segurança jurídica – Princípio da razoabilidade – Dúvida improcedente – Recurso provido.” (Apelação n° 0039080-79.2011.8.26.0100, CSM, Rel. DES. JOSÉ RENATO NALINI, 20/09/2012).

Relevante destacar o seguinte trecho do v. acórdão:

“(…) Assim, para não sacrificar a segurança jurídica e a publicidade, é de rigor flexibilizar, in concreto, a severidade do princípio da especialidade subjetiva, dispensado a informação sobre o número do CPF/MF de Henri Marie Octave Sannejouand, cujo número de inscrição do Registro Geral é, de mais a mais, conhecido e consta da matrícula do imóvel (RG n.º 75.149 – mod. 19 – fls. 07), em sintonia com a carta de arrematação (fls. 23). A especialidade subjetiva, se, na hipótese, valorada com excessivo rigor, levará, em desprestígio da razoabilidade, até porque a exigência não pode ser satisfeita pela interessada, ao enfraquecimento do princípio da segurança jurídica, o que é um contrassenso. Com a exigência, o que se perde, confrontado com o ganho, tem maior importância, de sorte a justificar a reforma da sentença: a garantia registaria é instrumento, não finalidade em si, preordenando-se a abrigar valores cuja consistência jurídica supera o formalismo (…)”.

Em suma, diante da suficiência de elementos aptos à identificação dos doadores e a ausência de prejuízos a terceiros, de rigor a mitigação do princípio da especialidade subjetiva, afastando-se, pois, o óbice registrário.

Ante o exposto, pelo meu voto, dou provimento à apelação, para julgar improcedente a dúvida.

FERNANDO ANTONIO TORRES GARCIA

Corregedor Geral da Justiça e Relator (DJe de 28.08.2023 – SP)

Fonte: INR Publicações.

Publicação: Portal do RI (Registro de Imóveis) | O Portal das informações notariais, registrais e imobiliárias.

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1VRP/SP: RCPJ. Atividades de produção e comercialização de produtos, bem como a prestação de serviços de arquitetura e urbanismo não têm relação com a prática do culto, podendo ser desenvolvidas por qualquer pessoa sem o mesmo vínculo de fé. Se pretende alterar sua natureza para se organizar como instituição religiosa, também deve ajustar suas finalidades de acordo com as atividades estritamente religiosas.

Processo 1085314-82.2023.8.26.0100

Pedido de Providências – Registro civil de Pessoas Jurídicas – Congregação Religiosas Pias Discípulas do Divino Mestre – Diante do exposto, JULGO PARCIALMENTE PROCEDENTE o pedido para manter os óbices, ressalvando apenas a exigência relativa à adaptação dos itens “i” e “k” do estatuto aprovado, que deve ser afastada. Deste procedimento não decorrem custas, despesas processuais ou honorários advocatícios. Oportunamente, ao arquivo. P.R.I.C. – ADV: TATIANE MEKARO ARIKAWA (OAB 174142/SP)

Íntegra da decisão:

SENTENÇA

Processo Digital nº: 1085314-82.2023.8.26.0100

Classe – Assunto Pedido de Providências – Registro civil de Pessoas Jurídicas

Requerente: Congregação Religiosas Pias Discípulas do Divino Mestre

Requerido: 2º Oficial de Registro de Títulos e Documentos e Civil de Pessoa Jurídica da Capital

Juiz(a) de Direito: Dr(a). Luciana Carone Nucci Eugênio Mahuad

Vistos.

Trata-se de pedido de providências formulado pela Congregação Religiosas Pias Discípulas do Divino Mestre em face do Oficial do 2º Registro de Títulos e Documentos e Civil de Pessoa Jurídica da Capital após negativa de averbação de ata de assembleia geral realizada em 08/02/2023, que tratou da alteração do estatuto social da entidade (prenotação n.182.188).

O título indica a transformação da entidade de associação civil em organização religiosa (artigo 44, IV e §1º, do CC), pelo que exigiu-se exclusão ou adaptação de parte do artigo 3º do estatuto nos pontos em que são incluídas, dentre as finalidades da pessoa jurídica, a manutenção de estabelecimentos para produção e comercialização de produtos religiosos, a prestação de serviços de arquitetura e urbanismo na elaboração de projetos de templos religiosos e a manutenção de estabelecimentos de assistência social, educacional e de saúde.

O Oficial entende que tais finalidades caracterizam a formação de associação religiosa de modo que, mantidas tais finalidades, torna-se necessária reconfiguração estatutária no formato de associação (artigos 54 a 60 do Código Civil).

A parte interessada sustenta que não desenvolve obra social de assistência ou solidariedade e que todas as atividades indicadas no seu estatuto são exclusivamente ligadas à evangelização e à propagação da fé como missão religiosa apostólica, as quais fazem parte de sua tradição e carisma institucionais, sendo fundamentais para o exercício de sua ação missionária e religiosa.

Documentos vieram às fls. 14/83.

Constatado o decurso do prazo de validade da última prenotação, determinou-se a reapresentação do título à serventia extrajudicial (fl.84).

O Oficial se manifestou às fls.94/99, confirmando a reapresentação do título sob prenotação n.182.188, com nova qualificação negativa por entender que, ao adotar como objetivo o exercício da industrialização e do comércio de produtos ou a elaboração e o desenvolvimento de projetos arquitetônicos, a entidade refoge ao perfil de organização religiosa para emoldurar-se na figura de associação.

O Ministério Público opinou pela manutenção do óbice (fls. 103/105).

É o relatório.

Fundamento e decido.

No mérito, o pedido é improcedente. Vejamos os motivos.

De início, vale destacar que o Registrador dispõe de autonomia e independência no exercício de suas atribuições, podendo recusar títulos que entender contrários à ordem jurídica e aos princípios que regem sua atividade (artigo 28 da Lei n. 8.935/1994), o que não se traduz como falha funcional.

No sistema registral, ademais, vigora o princípio da legalidade estrita.

Em outras palavras, somente se admite o ingresso de título que atenda aos ditames legais: o Oficial perfaz exame extrínseco, verificando aspectos formais, e tem o dever de obstar o ingresso daquele que não se atenha aos limites da lei.

É neste contexto que o §1º, do artigo 44, do Código Civil, que estabelece como livres a criação, a organização, a estruturação interna e o funcionamento das organizações religiosas e veda ao poder público negativa de reconhecimento ou registro de seus atos constitutivos e necessários ao funcionamento, merece ser interpretado.

Em outros termos, o Registrador quando da qualificação de títulos, deve observar se cumpridos todos os requisitos legais para ingresso, não havendo dispensa para a entidade religiosa, enquanto pessoa jurídica de direito privado, de observar todos os ditames legais pertinentes à sua criação e ao seu funcionamento.

Como as organizações religiosas se caracterizam pelo fluxo constante de fiéis que nela ingressam e se retiram livremente, não necessitam ter forma de associação civil.

Para sua criação, basta ato de fundação.

Entretanto, a liberdade de organização é limitada às finalidades de culto e liturgia.

A natureza religiosa da organização deve ser interpretada restritivamente, sem ampliação para finalidades estranhas ao culto e ao exercício da fé professada.

Havendo interesse no desenvolvimento de atividade diversa, a entidade deve se organizar sob o formato mais adequado conforme dispõe o diploma legal, notadamente quando essas atividades têm características próprias de atividades econômicas. Nesse sentido foi a orientação da E. CGJ no julgamento do Processo n.6477/2012 (Corregedor Geral, Des. José Renato Nalini).

A mesma orientação foi adotada no julgamento do Processo n.147.741/2013 (Corregedor Geral, Des. Elliot Akel), no qual se reafirmou não ser possível interpretação ampliativa, englobando na religião atividades que podem ser exercidas independentemente da fé. Destaca-se do parecer então aprovado:

“Não se questiona que as diversas instituições ligadas à Igreja Católica possam ter também outras atividades além do culto religioso, inclusive o ensino, a promoção do esporte, a edição de livros, etc. Mas a questão é se, nas ocasiões em que a pessoa jurídica exerce essas outras atividades, deve ou não receber o tratamento jurídico de organização religiosa em sentido estrito”.

Nos Recursos Administrativos n.51.999/2015, n.54.191/2015 e n.118.807/2015, houve pequena flexibilização, como demonstrou a parte interessada (fl.10/11), porém, foram admitidas atividades de assistência em favor dos próprios fiéis.

Posteriormente, no Recurso Administrativo n.1096194-80.2016.8.26.0100, indicado pelo Ministério Público (fl.104), foi reafirmado o entendimento restritivo quanto ao conceito de organização religiosa, com citação, a título de precedente, do processo de autos n.1023847-89.2014.8.26.0562.

É certo que, recentemente, no Estado de São Paulo, promulgou-se a chamada “Lei Estadual de Liberdade Religiosa” (Lei n.17.346/2021), a qual, em seu artigo 22, faz expressa remissão às liberdades dispostas no artigo 44, §1º, do Código Civil.

Nos artigos 24 e 26 do referido diploma, o legislador estadual tratou de forma mais detalhada sobre a autonomia dessas organizações, permitindo o exercício de atividades não religiosas, nos seguintes termos (destaque nosso):

“Artigo 24 – As organizações religiosas podem dispor com autonomia sobre:

I – a formação, a composição, a competência e o funcionamento dos seus órgãos;

II – a designação, funções e poderes dos seus representantes, sacerdotes, missionários e auxiliares religiosos;

III – os direitos e deveres religiosos dos seus membros, sem prejuízo da liberdade religiosa desses;

IV – a adesão ou a participação na fundação de federações ou associações interconfessionais, com sede no país ou no estrangeiro.

§ 1º – São permitidas cláusulas de salvaguarda da identidade religiosa e do caráter próprio da confissão professada.

§ 2º – As organizações religiosas podem, com autonomia, fundar ou reconhecer filiais ou sucursais de âmbito nacional, regional ou local, e outras instituições, com a natureza de associações ou de fundações, para o exercício ou para a manutenção das suas funções religiosas.

(…)

Artigo 26 – As organizações religiosas podem ainda exercer atividades com fins não religiosos que sejam instrumentais, consequenciais ou complementares das suas funções religiosas, assim como:

I – criar e manter escolas particulares e confessionais;

II – praticar beneficência dos seus membros ou de quaisquer pessoas;

III – promover as próprias expressões culturais ou a educação e a cultura em geral;

IV – utilizar meios de comunicação social próprios para o prosseguimento das suas atividades”.

Admite-se, portanto, o exercício de atividades com fins não religiosos desde que sejam instrumentais, consequenciais ou complementares das funções religiosas.

Havendo interesse no exercício de outras atividades, notadamente comerciais e de prestação de serviços para a manutenção das próprias funções religiosas, o adequado é a criação de outras instituições, “com a natureza de associações ou de fundações”, como autoriza o parágrafo 2º do artigo 24 da mesma lei.

No caso concreto, trata-se de congregação religiosa vinculada à Igreja Católica, cujo histórico consta no preâmbulo do seu estatuto, do qual destacamos (fl.43):

“Em razão da legislação brasileira da época de sua fundação, foi constituída no Brasil como sociedade civil sem fins lucrativos, em 29 de maio de 1959, com denominação social de Congregação Religiosas Pias Discípulas do Divino Mestre (…). Posteriormente, para adequação às normas aplicáveis às entidades sem fins lucrativos, alterou sua natureza jurídica para associação civil de direito privado, mantendo sua denominação social, conforme atos estatutários registrados (…). Diante das novas exigências legais e para uma melhor adaptação à realidade religiosa, administrativa e organizacional, a Congregação Religiosas Pias Discípulas do Divino Mestre, através de sua Assembleia Geral, ALTERA sua natureza jurídica para organização religiosa, passando a ser regida pelo presente Estatuto e reconhecendo seu vínculo canônico à Congregação das Pias Discípulas do Divino Mestre, fundada em Alba (Itália)”.

O título apresentado para averbação é a ata de assembleia geral extraordinária realizada em 08 de fevereiro de 2023, na qual foi aprovada a alteração da natureza jurídica da entidade para organização religiosa, nos termos do artigo 44, §1º, do Código Civil, e do Decreto n.7107/2010, bem como a adequação de seu estatuto às regras e diretrizes canônicas.

No entanto, o Oficial negou a averbação, exigindo adequação do estatuto por entender que, para ser qualificada como organização religiosa, a entidade deve se dedicar à fé e ao culto, devendo ser considerada uma associação quando inclui entre as suas finalidades outras atividades como obras sociais, beneficência ou ensino e assistência moral.

Assim, exigiu a alteração do artigo 3º do estatuto com a exclusão ou modificação de algumas finalidades expressas. No caso de manutenção das finalidades mistas, exigiu a conformação do estatuto aos requisitos impostos para as associações, nos termos dos artigos 54 a 60 do Código Civil (fls.65/67).

De fato, a redação de alguns pontos do artigo 3º levam à conclusão pelo afastamento da finalidade religiosa da entidade, conforme indicado na nota de devolução (fls.44/45 – destaques nossos):

“Art. 3º: A CONGREGAÇÃO RELIGIOSAS PIAS DISCÍPULAS DO DIVINO MESTRE tem as seguintes finalidades, segundo os princípios contidos em seu carisma:

(…)

f) Criar, instalar e manter estabelecimentos para produção e comercialização de publicações didáticas, livros, jornais, revistas e periódicos religiosos, bem como para a produção e comercialização para o mercado interno e/ou externo, de artesanatos e artigos religiosos, apostólicos e litúrgicos, paramentos e vestuários religiosos, próprios ou de terceiros, estabelecimento estes denominados “Apostolado Litúrgico”, incluindo a modalidade de e-commerce, lojas virtuais ou outras plataformas ou meios que venham a existir;

g) Prestar serviços de arquitetura e urbanismo na elaboração e desenvolvimento de projetos arquitetônicos religiosos como templos, casas religiosas, capelas e outras obras correlatas, ligadas ao patrimônio religioso, incluindo, mas não se limitando, à criação, execução e pintura de painéis artísticos, montagem de vitrais e outras obras artísticas religiosas;

(…)

i) Criar, instalar e manter estabelecimentos para convivência religiosa, visando a formação integral da pessoa humana;

k) Promover as vocações, formando novas religiosas e agentes pastorais, por meio de Casas de Formação Inicial (Aspirantado, Postulantado, Noviciado, Juniorato) e Formação Permanente, criando e mantendo instituições apostólicas, educacionais e de saúde”.

Note-se que as atividades de produção e comercialização de produtos, bem como a prestação de serviços de arquitetura e urbanismo não têm relação com a prática do culto, podendo ser desenvolvidas por qualquer pessoa sem o mesmo vínculo de fé.

O item “f” trata do interesse na produção e na comercialização para o mercado interno e/ou externo, incluindo a modalidade de e-commerce, de lojas virtuais ou de outras plataformas ou meios que venham a existir.

A mera restrição à característica religiosa do material produzido e comercializado não permite concluir que sua negociação esteja ligada ao culto praticado, notadamente quando direcionada ao mercado interno e/ou externo, incluindo a modalidade de ecommerce.

Da mesma forma, a prestação de serviços de arquitetura e urbanismos prevista no item “g” foge da essência do culto praticado.

Ainda que a atividade seja voltada à produção de projetos específicos relacionados com a religião, a competência técnica para a prestação desse tipo de serviço nada tem de religiosa. Eventuais necessidades específicas de projetos arquitetônicos ou de urbanismo relacionados com a realização do culto constituem informação perfeitamente acessível a qualquer profissional com competência técnica para realizá-lo, independentemente da fé que professe.

Ademais, não há indicação de que a atividade proposta esteja restrita à própria organização religiosa ou às entidades que compartilhem da mesma religião.

Em outros termos, da forma como proposta no estatuto aprovado, a prestação do serviço pode ser oferecida a todo o mercado de consumo, independentemente da prática de culto próprio.

Note-se que a qualificação especial de religiosas professas das profissionais que desenvolvem tais projetos e produzem painéis, vitrais e obras artísticas é um diferencial relevante que pode ser explorado para valorizar o serviço e os produtos oferecidos.

Porém, ainda assim, caracteriza atividade essencialmente empresarial, não religiosa.

Já quanto ao item “i”, a exigência pode ser afastada. Mesmo trazendo redação abrangente, ele indica expressamente que os estabelecimentos eventualmente criados e mantidos pela organização se destinarão à convivência religiosa. Sua interpretação, portanto, deve ser contextualizada com a religião praticada pela entidade e com todo o estatuto que prevê a convivência das religiosas em comunidades específicas (artigos 5º e 31).

Todavia, o artigo 5º do estatuto deve ser adaptado no ponto em que admite a criação de estabelecimentos comerciais, pois é atividade que extrapola o âmbito religioso da organização, mesmo que tais estabelecimento se destinem ao complemento do custeio das atividades religiosas.

Também não se constata irregularidade na redação do item “k”, pois, embora mencione a criação de instituições educacionais e de saúde, elas se destinam à promoção das vocações e à formação das próprias religiosas e agentes pastorais.

Observe-se que, excetuando-se a finalidade transcrita na letra “k”, todas as demais já constavam, com redação muito parecida, no estatuto anterior vigente quando a entidade se definia como uma associação civil (letras “C”, “F” e “G”, do artigo 3º, fls.23/24).

Se pretende alterar sua natureza para se organizar como instituição religiosa, também deve ajustar suas finalidades de acordo com as atividades estritamente religiosas. Nada impede que as demais atividades continuem a ser exercidas, inclusive para a manutenção das funções religiosas, mas por outra instituição criada pela organização, com a natureza de associação ou fundação, tal como orienta o artigo 24, §2º, da Lei Estadual n.17.346/2021.

Diante do exposto, JULGO PARCIALMENTE PROCEDENTE o pedido para manter os óbices, ressalvando apenas a exigência relativa à adaptação dos itens “i” e “k” do estatuto aprovado, que deve ser afastada.

Deste procedimento não decorrem custas, despesas processuais ou honorários advocatícios.

Oportunamente, ao arquivo.

P.R.I.C.

São Paulo, 24 de agosto de 2023.

Luciana Carone Nucci Eugênio Mahuad

Juíza de Direito (DJe de 28.08.2023 – SP)

Fonte: Diário da Justiça Eletrônico.

Publicação: Portal do RI (Registro de Imóveis) | O Portal das informações notariais, registrais e imobiliárias.

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