Processo 1085314-82.2023.8.26.0100
Pedido de Providências – Registro civil de Pessoas Jurídicas – Congregação Religiosas Pias Discípulas do Divino Mestre – Diante do exposto, JULGO PARCIALMENTE PROCEDENTE o pedido para manter os óbices, ressalvando apenas a exigência relativa à adaptação dos itens “i” e “k” do estatuto aprovado, que deve ser afastada. Deste procedimento não decorrem custas, despesas processuais ou honorários advocatícios. Oportunamente, ao arquivo. P.R.I.C. – ADV: TATIANE MEKARO ARIKAWA (OAB 174142/SP)
Íntegra da decisão:
SENTENÇA
Processo Digital nº: 1085314-82.2023.8.26.0100
Classe – Assunto Pedido de Providências – Registro civil de Pessoas Jurídicas
Requerente: Congregação Religiosas Pias Discípulas do Divino Mestre
Requerido: 2º Oficial de Registro de Títulos e Documentos e Civil de Pessoa Jurídica da Capital
Juiz(a) de Direito: Dr(a). Luciana Carone Nucci Eugênio Mahuad
Vistos.
Trata-se de pedido de providências formulado pela Congregação Religiosas Pias Discípulas do Divino Mestre em face do Oficial do 2º Registro de Títulos e Documentos e Civil de Pessoa Jurídica da Capital após negativa de averbação de ata de assembleia geral realizada em 08/02/2023, que tratou da alteração do estatuto social da entidade (prenotação n.182.188).
O título indica a transformação da entidade de associação civil em organização religiosa (artigo 44, IV e §1º, do CC), pelo que exigiu-se exclusão ou adaptação de parte do artigo 3º do estatuto nos pontos em que são incluídas, dentre as finalidades da pessoa jurídica, a manutenção de estabelecimentos para produção e comercialização de produtos religiosos, a prestação de serviços de arquitetura e urbanismo na elaboração de projetos de templos religiosos e a manutenção de estabelecimentos de assistência social, educacional e de saúde.
O Oficial entende que tais finalidades caracterizam a formação de associação religiosa de modo que, mantidas tais finalidades, torna-se necessária reconfiguração estatutária no formato de associação (artigos 54 a 60 do Código Civil).
A parte interessada sustenta que não desenvolve obra social de assistência ou solidariedade e que todas as atividades indicadas no seu estatuto são exclusivamente ligadas à evangelização e à propagação da fé como missão religiosa apostólica, as quais fazem parte de sua tradição e carisma institucionais, sendo fundamentais para o exercício de sua ação missionária e religiosa.
Documentos vieram às fls. 14/83.
Constatado o decurso do prazo de validade da última prenotação, determinou-se a reapresentação do título à serventia extrajudicial (fl.84).
O Oficial se manifestou às fls.94/99, confirmando a reapresentação do título sob prenotação n.182.188, com nova qualificação negativa por entender que, ao adotar como objetivo o exercício da industrialização e do comércio de produtos ou a elaboração e o desenvolvimento de projetos arquitetônicos, a entidade refoge ao perfil de organização religiosa para emoldurar-se na figura de associação.
O Ministério Público opinou pela manutenção do óbice (fls. 103/105).
É o relatório.
Fundamento e decido.
No mérito, o pedido é improcedente. Vejamos os motivos.
De início, vale destacar que o Registrador dispõe de autonomia e independência no exercício de suas atribuições, podendo recusar títulos que entender contrários à ordem jurídica e aos princípios que regem sua atividade (artigo 28 da Lei n. 8.935/1994), o que não se traduz como falha funcional.
No sistema registral, ademais, vigora o princípio da legalidade estrita.
Em outras palavras, somente se admite o ingresso de título que atenda aos ditames legais: o Oficial perfaz exame extrínseco, verificando aspectos formais, e tem o dever de obstar o ingresso daquele que não se atenha aos limites da lei.
É neste contexto que o §1º, do artigo 44, do Código Civil, que estabelece como livres a criação, a organização, a estruturação interna e o funcionamento das organizações religiosas e veda ao poder público negativa de reconhecimento ou registro de seus atos constitutivos e necessários ao funcionamento, merece ser interpretado.
Em outros termos, o Registrador quando da qualificação de títulos, deve observar se cumpridos todos os requisitos legais para ingresso, não havendo dispensa para a entidade religiosa, enquanto pessoa jurídica de direito privado, de observar todos os ditames legais pertinentes à sua criação e ao seu funcionamento.
Como as organizações religiosas se caracterizam pelo fluxo constante de fiéis que nela ingressam e se retiram livremente, não necessitam ter forma de associação civil.
Para sua criação, basta ato de fundação.
Entretanto, a liberdade de organização é limitada às finalidades de culto e liturgia.
A natureza religiosa da organização deve ser interpretada restritivamente, sem ampliação para finalidades estranhas ao culto e ao exercício da fé professada.
Havendo interesse no desenvolvimento de atividade diversa, a entidade deve se organizar sob o formato mais adequado conforme dispõe o diploma legal, notadamente quando essas atividades têm características próprias de atividades econômicas. Nesse sentido foi a orientação da E. CGJ no julgamento do Processo n.6477/2012 (Corregedor Geral, Des. José Renato Nalini).
A mesma orientação foi adotada no julgamento do Processo n.147.741/2013 (Corregedor Geral, Des. Elliot Akel), no qual se reafirmou não ser possível interpretação ampliativa, englobando na religião atividades que podem ser exercidas independentemente da fé. Destaca-se do parecer então aprovado:
“Não se questiona que as diversas instituições ligadas à Igreja Católica possam ter também outras atividades além do culto religioso, inclusive o ensino, a promoção do esporte, a edição de livros, etc. Mas a questão é se, nas ocasiões em que a pessoa jurídica exerce essas outras atividades, deve ou não receber o tratamento jurídico de organização religiosa em sentido estrito”.
Nos Recursos Administrativos n.51.999/2015, n.54.191/2015 e n.118.807/2015, houve pequena flexibilização, como demonstrou a parte interessada (fl.10/11), porém, foram admitidas atividades de assistência em favor dos próprios fiéis.
Posteriormente, no Recurso Administrativo n.1096194-80.2016.8.26.0100, indicado pelo Ministério Público (fl.104), foi reafirmado o entendimento restritivo quanto ao conceito de organização religiosa, com citação, a título de precedente, do processo de autos n.1023847-89.2014.8.26.0562.
É certo que, recentemente, no Estado de São Paulo, promulgou-se a chamada “Lei Estadual de Liberdade Religiosa” (Lei n.17.346/2021), a qual, em seu artigo 22, faz expressa remissão às liberdades dispostas no artigo 44, §1º, do Código Civil.
Nos artigos 24 e 26 do referido diploma, o legislador estadual tratou de forma mais detalhada sobre a autonomia dessas organizações, permitindo o exercício de atividades não religiosas, nos seguintes termos (destaque nosso):
“Artigo 24 – As organizações religiosas podem dispor com autonomia sobre:
I – a formação, a composição, a competência e o funcionamento dos seus órgãos;
II – a designação, funções e poderes dos seus representantes, sacerdotes, missionários e auxiliares religiosos;
III – os direitos e deveres religiosos dos seus membros, sem prejuízo da liberdade religiosa desses;
IV – a adesão ou a participação na fundação de federações ou associações interconfessionais, com sede no país ou no estrangeiro.
§ 1º – São permitidas cláusulas de salvaguarda da identidade religiosa e do caráter próprio da confissão professada.
§ 2º – As organizações religiosas podem, com autonomia, fundar ou reconhecer filiais ou sucursais de âmbito nacional, regional ou local, e outras instituições, com a natureza de associações ou de fundações, para o exercício ou para a manutenção das suas funções religiosas.
(…)
Artigo 26 – As organizações religiosas podem ainda exercer atividades com fins não religiosos que sejam instrumentais, consequenciais ou complementares das suas funções religiosas, assim como:
I – criar e manter escolas particulares e confessionais;
II – praticar beneficência dos seus membros ou de quaisquer pessoas;
III – promover as próprias expressões culturais ou a educação e a cultura em geral;
IV – utilizar meios de comunicação social próprios para o prosseguimento das suas atividades”.
Admite-se, portanto, o exercício de atividades com fins não religiosos desde que sejam instrumentais, consequenciais ou complementares das funções religiosas.
Havendo interesse no exercício de outras atividades, notadamente comerciais e de prestação de serviços para a manutenção das próprias funções religiosas, o adequado é a criação de outras instituições, “com a natureza de associações ou de fundações”, como autoriza o parágrafo 2º do artigo 24 da mesma lei.
No caso concreto, trata-se de congregação religiosa vinculada à Igreja Católica, cujo histórico consta no preâmbulo do seu estatuto, do qual destacamos (fl.43):
“Em razão da legislação brasileira da época de sua fundação, foi constituída no Brasil como sociedade civil sem fins lucrativos, em 29 de maio de 1959, com denominação social de Congregação Religiosas Pias Discípulas do Divino Mestre (…). Posteriormente, para adequação às normas aplicáveis às entidades sem fins lucrativos, alterou sua natureza jurídica para associação civil de direito privado, mantendo sua denominação social, conforme atos estatutários registrados (…). Diante das novas exigências legais e para uma melhor adaptação à realidade religiosa, administrativa e organizacional, a Congregação Religiosas Pias Discípulas do Divino Mestre, através de sua Assembleia Geral, ALTERA sua natureza jurídica para organização religiosa, passando a ser regida pelo presente Estatuto e reconhecendo seu vínculo canônico à Congregação das Pias Discípulas do Divino Mestre, fundada em Alba (Itália)”.
O título apresentado para averbação é a ata de assembleia geral extraordinária realizada em 08 de fevereiro de 2023, na qual foi aprovada a alteração da natureza jurídica da entidade para organização religiosa, nos termos do artigo 44, §1º, do Código Civil, e do Decreto n.7107/2010, bem como a adequação de seu estatuto às regras e diretrizes canônicas.
No entanto, o Oficial negou a averbação, exigindo adequação do estatuto por entender que, para ser qualificada como organização religiosa, a entidade deve se dedicar à fé e ao culto, devendo ser considerada uma associação quando inclui entre as suas finalidades outras atividades como obras sociais, beneficência ou ensino e assistência moral.
Assim, exigiu a alteração do artigo 3º do estatuto com a exclusão ou modificação de algumas finalidades expressas. No caso de manutenção das finalidades mistas, exigiu a conformação do estatuto aos requisitos impostos para as associações, nos termos dos artigos 54 a 60 do Código Civil (fls.65/67).
De fato, a redação de alguns pontos do artigo 3º levam à conclusão pelo afastamento da finalidade religiosa da entidade, conforme indicado na nota de devolução (fls.44/45 – destaques nossos):
“Art. 3º: A CONGREGAÇÃO RELIGIOSAS PIAS DISCÍPULAS DO DIVINO MESTRE tem as seguintes finalidades, segundo os princípios contidos em seu carisma:
(…)
f) Criar, instalar e manter estabelecimentos para produção e comercialização de publicações didáticas, livros, jornais, revistas e periódicos religiosos, bem como para a produção e comercialização para o mercado interno e/ou externo, de artesanatos e artigos religiosos, apostólicos e litúrgicos, paramentos e vestuários religiosos, próprios ou de terceiros, estabelecimento estes denominados “Apostolado Litúrgico”, incluindo a modalidade de e-commerce, lojas virtuais ou outras plataformas ou meios que venham a existir;
g) Prestar serviços de arquitetura e urbanismo na elaboração e desenvolvimento de projetos arquitetônicos religiosos como templos, casas religiosas, capelas e outras obras correlatas, ligadas ao patrimônio religioso, incluindo, mas não se limitando, à criação, execução e pintura de painéis artísticos, montagem de vitrais e outras obras artísticas religiosas;
(…)
i) Criar, instalar e manter estabelecimentos para convivência religiosa, visando a formação integral da pessoa humana;
k) Promover as vocações, formando novas religiosas e agentes pastorais, por meio de Casas de Formação Inicial (Aspirantado, Postulantado, Noviciado, Juniorato) e Formação Permanente, criando e mantendo instituições apostólicas, educacionais e de saúde”.
Note-se que as atividades de produção e comercialização de produtos, bem como a prestação de serviços de arquitetura e urbanismo não têm relação com a prática do culto, podendo ser desenvolvidas por qualquer pessoa sem o mesmo vínculo de fé.
O item “f” trata do interesse na produção e na comercialização para o mercado interno e/ou externo, incluindo a modalidade de e-commerce, de lojas virtuais ou de outras plataformas ou meios que venham a existir.
A mera restrição à característica religiosa do material produzido e comercializado não permite concluir que sua negociação esteja ligada ao culto praticado, notadamente quando direcionada ao mercado interno e/ou externo, incluindo a modalidade de ecommerce.
Da mesma forma, a prestação de serviços de arquitetura e urbanismos prevista no item “g” foge da essência do culto praticado.
Ainda que a atividade seja voltada à produção de projetos específicos relacionados com a religião, a competência técnica para a prestação desse tipo de serviço nada tem de religiosa. Eventuais necessidades específicas de projetos arquitetônicos ou de urbanismo relacionados com a realização do culto constituem informação perfeitamente acessível a qualquer profissional com competência técnica para realizá-lo, independentemente da fé que professe.
Ademais, não há indicação de que a atividade proposta esteja restrita à própria organização religiosa ou às entidades que compartilhem da mesma religião.
Em outros termos, da forma como proposta no estatuto aprovado, a prestação do serviço pode ser oferecida a todo o mercado de consumo, independentemente da prática de culto próprio.
Note-se que a qualificação especial de religiosas professas das profissionais que desenvolvem tais projetos e produzem painéis, vitrais e obras artísticas é um diferencial relevante que pode ser explorado para valorizar o serviço e os produtos oferecidos.
Porém, ainda assim, caracteriza atividade essencialmente empresarial, não religiosa.
Já quanto ao item “i”, a exigência pode ser afastada. Mesmo trazendo redação abrangente, ele indica expressamente que os estabelecimentos eventualmente criados e mantidos pela organização se destinarão à convivência religiosa. Sua interpretação, portanto, deve ser contextualizada com a religião praticada pela entidade e com todo o estatuto que prevê a convivência das religiosas em comunidades específicas (artigos 5º e 31).
Todavia, o artigo 5º do estatuto deve ser adaptado no ponto em que admite a criação de estabelecimentos comerciais, pois é atividade que extrapola o âmbito religioso da organização, mesmo que tais estabelecimento se destinem ao complemento do custeio das atividades religiosas.
Também não se constata irregularidade na redação do item “k”, pois, embora mencione a criação de instituições educacionais e de saúde, elas se destinam à promoção das vocações e à formação das próprias religiosas e agentes pastorais.
Observe-se que, excetuando-se a finalidade transcrita na letra “k”, todas as demais já constavam, com redação muito parecida, no estatuto anterior vigente quando a entidade se definia como uma associação civil (letras “C”, “F” e “G”, do artigo 3º, fls.23/24).
Se pretende alterar sua natureza para se organizar como instituição religiosa, também deve ajustar suas finalidades de acordo com as atividades estritamente religiosas. Nada impede que as demais atividades continuem a ser exercidas, inclusive para a manutenção das funções religiosas, mas por outra instituição criada pela organização, com a natureza de associação ou fundação, tal como orienta o artigo 24, §2º, da Lei Estadual n.17.346/2021.
Diante do exposto, JULGO PARCIALMENTE PROCEDENTE o pedido para manter os óbices, ressalvando apenas a exigência relativa à adaptação dos itens “i” e “k” do estatuto aprovado, que deve ser afastada.
Deste procedimento não decorrem custas, despesas processuais ou honorários advocatícios.
Oportunamente, ao arquivo.
P.R.I.C.
São Paulo, 24 de agosto de 2023.
Luciana Carone Nucci Eugênio Mahuad
Juíza de Direito (DJe de 28.08.2023 – SP)
Fonte: Diário da Justiça Eletrônico.
Publicação: Portal do RI (Registro de Imóveis) | O Portal das informações notariais, registrais e imobiliárias.
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