CONHECENDO OS CARTÓRIOS – Ideias Iniciais

* Fernando Alves Montanari

Provavelmente há mais de seis mil anos, na Antiguidade, sentimos a necessidade de registrar os acontecimentos para que os outros e as futuras gerações deles se interassem. Isso foi possível graças a uma das maiores manifestações do gênio humano: a escrita.

Não à toa, portanto, podemos definir a relação entre o registro e a escrita como fundamental, porque foi através da escrita que o nosso conhecimento perpetuou-se no tempo e venceu a finitude que nos reveste enquanto seres humanos. Foi através da mesma que o conhecimento que acumulamos por milênios foi devidamente historiado, inscrito, registrado, consignado.

Com a escrita vários documentos foram produzidos, por muitas pessoas, em todas as partes do mundo. Mas, como saber se o que foi registrado expressava, de fato, o ocorrido? Como identificar, em meio a tantos escritos, aquele que era fiel, original, autêntico? Como se poderia dar credibilidade a este e não àquele escrito?

Com o avanço histórico e tendo em mira o bem social, houvemos por bem portar de fé, de credibilidade, os escritos que fossem levados a efeito por aqueles a quem o Poder constituído na ocasião confiasse tal mister, seja lá qual tipo de organização social estávamos vivendo. Ou seja, foi necessário cunhar uma discriminação naquilo que registrávamos.

A partir de então, para o bem de todos, somente se poderia confiar, dentre tantos registros e escritos, naqueles que recebessem a chancela do Poder que os animava e, por isso, fossem pautados como escrituras e registros dotados de fé pública, os quais garantiriam amplitude sobre a existência, limites e concretudes dos fatos perpetrados pela sociedade.

Disso segue que triste e leviano engano existe na visão distorcida fomentada por alguns de que os registros públicos, que são guardados, efetuados e tornados públicos pelos cartórios em sua maioria, sejam burocráticos e só existam para atravancar a vida social. A verdade está bem distante disso. Basta que lembremos que a pressa desenfreada é inimiga não só da Perfeição, mas da própria Justiça e Segurança. Para tudo na vida é necessário Prudência.

Antes de tudo, bom que se firme que os cartórios não são cadastros. Estes, por sua vez são próprios e da incumbência de outros órgãos ou instituições como, por exemplo, da prefeitura sobre os imóveis do município, das instituições financeiras sobre os contratos que realizam, das empresas sobre seus clientes, etc..

Cartórios são os únicos e fiéis depositários da publicidade, autenticidade, segurança e eficácia jurídicas. Eles escrituram e emitem certidões de seus acervos com o atributo da fé pública, desenvolvendo suas atividades de forma técnica e organizada, sob atribuição de um delegatário do serviço público: o tabelião/notário ou o oficial/registrador. São depositários de sérios e imprescindíveis direitos, e não simples cadastros.

Além disso, é justamente pelos cartórios serem dirigidos pelos tabeliães ou oficiais que podemos reportar ao serviço público ali prestado as melhores intenções e a maior confiança, pois estes são profissionais do Direito, aprovados em exigente concurso público de provas e títulos.

Ademais, o registro público que está sob a incumbência direta destes, justamente por serem profissionais que devem agir de forma imparcial, espera-se que se reverta a nosso próprio favor, como protetores dos nossos direitos, garantias e liberdades individuais, pois consignam atos, fatos e negócios que devem estar acima dos interesses políticos, administrativos, econômicos e pessoais. Não é por acaso que estes profissionais atuam como atuam, pedem o que pedem, exigem o que exigem, pois o fazem em total observância e respeito à Lei. Não deveriam ser adjetivados como “chatos” ou “exigentes”. São cumpridores da Lei, só isso.

Com aplicação irrestrita da legalidade por este serviço, somos nós quem ganhamos. Assim, se você não gostaria de ver sua casa sendo de ti retirada por um erro no contrato que firmou, confie no serviço do tabelião de notas. Se não gostaria de ver a mesma casa sendo vendida por pessoa que não é dona, confie no oficial de registro de imóveis. Se não gostaria de ver um título ou documento sendo alterado pela vileza alheia, confie no oficial de registro de títulos e documentos. Se não gostaria de ver seu nome indevidamente apontado como devedor, confie no tabelião de protestos. Se não gostaria de se casar com pessoa já casada e quer que seu filho seja visto como cidadão brasileiro, confie no oficial de registro civil das pessoas naturais. Se não gostaria de se associar à entidade inexistente ou de ler um jornal clandestino, confie no oficial de registro civil das pessoas jurídicas.

Não se perca de vista que foi por conta da pressa, por não existirem profissionais dos registros públicos com as mesmas atribuições que as brasileiras, por colocar o lucro acima de tudo, por confiar em pessoas que não mereciam crédito, dentre outros fatores, que há alguns anos atrás os Estados Unidos viram os investidores desconfiarem da sua economia, tendo em vista principalmente que os próprios americanos não estavam pagando as hipotecas das suas casas, o que redundou na malsinada crise que os envolveu e, por muito pouco, quase nos atingiu. Existissem cartórios como os brasileiros lá e os danos seriam infinitamente menores.

Registros, autenticidade e eficácia jurídicas, aliados a profissionais do Direito imparciais, que atuam sob atributo da fé pública em tudo que fazem, garantindo segurança e tranquilidade nos atos, fatos e negócios jurídicos, só nos cartórios brasileiros. Confiança que a lei está sendo irrestritamente observada, só nesses cartórios. Aliás, como divulgou o Datafolha em 2009, os cartórios são umas das instituições mais confiáveis do Brasil, segundo sua própria população, gente que conhece e usa os seus serviços.

E serão estes, os cartórios, o objeto de nossos textos daqui por diante, com o intuito de informar a todos.

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* Fernando Alves Montanari é Oficial de Registro Civil  das Pessoas Naturais e Tabelião de Notas do município de Lourdes, Comarca de Buritama. Ex-advogado. Pós graduado em Direito Empresarial, Notarial, Registral e Tributário.

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O casal parental

* Jones Figueirêdo Alves

Estes ex-parceiros "para além do divórcio" têm sido tratados em diversos ordenamentos jurídicos internacionais e devem receber maiores atenções do Direito de Família.

Nada obstante se colocarem como ex-parceiros de um relacionamento findo, eles continuam substancialmente permanentes, como pais comuns que são dos mesmos filhos. Assim, sujeitos às mesmas obrigações parentais e mais que isso, submetidos a uma nova realidade familiar, pelo axioma de que "a separação do casal exige melhores pais" (Eduardo Sá, 2011).

É o denominado "casal parental", constituindo uma nova família jurídica, merecedora de maiores atenções do moderno direito de família.

Este "casal parental" representa, em cena, os novos protagonistas da família mais duradoura possível, aquela que tem sua extensão na exata medida que prossegue pelos filhos que existem; desafiando os sistemas jurídicos, a doutrina e a jurisprudência a uma vigília anti-alienante de uma parentalidade mórbida e desconforme.

É a família "post pactum finitum", a que tem começo quando o casal termina, e que faz nítida a distinção entre as frustrações de êxito do casal conjugal extinto e as necessidades continuadas de realização pessoal do filho, no desenvolvimento saudável de sua formação como pessoa.

Em bom rigor, a reforma legal civil portuguesa, trazida com a lei 61/208, introduziu um novo sistema de regulação do exercício das responsabilidades parentais em face do divórcio, acrescentando outros dispositivos ao Código Civil.

Vê-se, de saída, que a referida lei superou uma concepção reducionista da função jurídica do poder paternal, concebida na teoria geral do direito civil, como destaca Maria Clara Sottomayor. Nessa linha de superação, assumiu uma concepção personalista das responsabilidades parentais, onde a criança é sujeito de direito, titular de relações jurídicas ordenadas pelos seus superiores interesses e centro irradiante do sistema criado.

Mais ainda: A expressão "poder paternal" é abolida, sendo substituída pela nomenclatura "responsabilidades parentais", a tanto buscar expressar um liame interrelacional fundado na funcionalidade de um conjunto de direitos e deveres nas relações paterno-filiais. Decai o vocábulo "poder" com o seu significante de autoridade parental, domínio ou posse, colocando-se como regra a repartição das obrigações, no exercício em comum daquelas responsabilidades.

Mais precisamente, o casal formado pelos progenitores dos filhos permanece, juridicamente unido por responsabilidades inerentes de suas condições e postos em igualdade como pai e mãe.

Boaventura Santos, nesse ponto, assinala que "as questões de particular importância para a vida do filho, são exercidas por ambos os pais, nos termos que vigoravam na constância do matrimônio (artigo 1.906, nº 1, Código Civil português) enquanto que, todavia, questões relativas aos atos da vida corrente do filho, caberão ao pai ou mãe com que ele resida habitualmente (artigo 1.906, nº 3, CCpt.).

O direito brasileiro tem dispositivo algo semelhante, em seu artigo 1.632, quando preceitua que "a separação judicial, o divórcio e a dissolução da união estável não alteram as relações entre pais e filhos senão quanto ao direito, que aos primeiros cabe, de terem em sua companhia os segundos".

Este casal parental, "para além do divórcio", instituindo uma nova família jurídica, fundada e verticalizada nos seus descendentes, tem sido tratado em diversos ordenamentos jurídicos com maiores atenções. Suficiente especificar:

(i) o Código Civil francês, em seu artigo 373-2, estabelece que "a separação dos pais em nada influencia as regras de exercício da autoridade parental. Cada progenitor deve manter relação de convívio com os filhos e respeitar o vínculo com o outro pai."

(ii) na Itália, a lei divorcista 54/06, modificou o Código Civil italiano para efeito de o seu art. 155 dispor que, em caso de divórcio, "os menores mantém o direito à convivência com ambos os genitores";

(iii) o Código Civil alemão, o vetusto BGB de 1896, teve alteração pela lei 4/08, acrescentando item 3 ao artigo 1.626, para prever que o superior interesse da criança, como norma geral, inclui o contato do menor com ambos os pais, o mesmo se aplicando a outras pessoas com quem a criança tenha laços, se forem benéficos para o seu desenvolvimento.

(iv) o direito de família inglês, no "Family Law Act", de 1996, também ao tratar do superior interesse da criança, determina que o tribunal deve prover o regular contato da criança com ambos os pais e membros da família.

Pois bem. Relevante e inconteste o fato de a responsabilidade parental comum envolver os genitores separados, no trato dos cuidados e proteção dos filhos, em convivência familiar com eles, independente de seus conflitos interpessoais de ex-parceiros, caso é que a matéria de regulação das responsabilidades parentais, está a exigir novos diplomas normativos, tratando de forma exauriente as designadas situações, nomeadamente pelo Direito brasileiro.

Em verdade, enquanto o direito português, nitidamente, vem estabelecer pela lei 62/08, disciplina de exercício das responsabilidades parentais, tendo por objeto (i) determinação de residência habitual (ii) modelo de exercício, (iii) regime de convívio e (iv) definição de alimentos pelo genitor não residente; o Direito brasileiro, a seu turno, não descreve as diretivas desse exercício, para enfrentamento, inclusive, das hipóteses de eventuais incumprimentos.

Aliás, diversos tem sido os atos normativos nacionais que apresentam modelo jurídico ao regime da responsabilidade parental, pelo princípio da co-responsabilização dos pais, instituindo a "co-parentalidade positiva", em benefício construtivo dos laços familiares.

Com precisão, no âmbito do incumprimento das obrigações parentais, legislação estrangeira da última década tem sido diligente em promover medidas sancionatórias por atos de transgressão a acordos ou a decisões judiciais que venham ocorrer. Assim é que anota-se no Código Civil francês, a pena de prisão até dois anos e multa de quinze mil euros (artigo 227-3); o direito português, com a reportada lei 61/208, alinhou no artigo 249 do CP, a tipificação penal dos crimes de rapto parental e subtração de menor; tipos penais também previstos no Código Penal alemão.

Diante do significativo aumento de divórcios litigiosos, com a disputa acirrada de custódia dos filhos, sem soluções pronunciadas a contento, urge que o Direito de Família intervenha, decisivamente, a fazer cumprir princípios e valores que devem reger a co-parentalidade e o seu regular e eficiente exercício.

O "casal parental" é a família que não deixa de existir, quando os filhos estão a exigir que esta subsista neles.

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* Jones Figueirêdo Alves é desembargador decano do TJ/PE, diretor nacional do IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família, e coordena a Comissão de Magistratura de Família.

Fonte: Migalhas I 06/02/2014.

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Usucapião tabular familiar – III

* Vitor Frederico Kümpel

Hoje, em nosso terceiro e último encontro referente à série Usucapião Tabular, abordaremos a modalidade do instituto introduzida pela lei 12.424, de 16 de junho de 2011, isto é, o usucapião tabular familiar. A começar pelo nome, não existe, de fato, um consenso sobre o mais adequado, o prof. Flávio Tartuce prefere denominar "usucapião especial urbana por abandono do lar", primando pela didática a distinguir o rural do urbano, já para destacar a origem do instituto, o Prof. José F. Simão se refere a "usucapião familiar", denominaremos Tabular, uma vez que seu grande objetivo é retificar a tábula registral.

O usucapião tabular familiar é uma forma de aquisição da propriedade de imóvel em condomínio, por ex-cônjuge ou ex-companheiro que tenha sido abandonado pelo outro em seu lar. Para tanto, basta a concretização da posse exclusiva por um biênio ininterrupto e inconteste em imóvel nos padrões do usucapião constitucional urbano. Preenchido tais requisitos, é conferida a propriedade exclusiva ao ex-cônjuge ou ex-companheiro abandonado. Neste sentido o artigo 1.240-A estabelece que: "aquele que exercer, por doisanos ininterruptamente e sem oposição, posse direta, com exclusividade, sobre imóvel urbano de até 250m2 cuja propriedade divida comex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio integral, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural".

Resumindo, o instituto possui como requisitos fundamentais: (i) propriedade comum entre cônjuges ou companheiros, (ii) vínculo familiar, (iii) imóvel em zona urbana ou zona de expansão urbana, regularizado por transcrição ou por matrícula, com no máximo 250m2 de terreno ou área total de condomínio edilício, (iv) com o intuito de derelição do bem, (v) posse ininterrupta e inconteste por dois anos, (vi) moradia própria ou familiar, (vii) propriedade única e, por fim, (viii) única proposição de ação declaratória de usucapião tabular familiar, ou seja o beneficiário não pode se valer da tutela por mais de uma vez, pois, o instituto se dá apenas em condição especial e não resulta em regra com intuito econômico, como menciona o prof. Tartuce.

Desse modo, ocorre a regularização da matrícula que consta em um condomínio entre cônjuges, companheiros hetero ou homoafetivos. Vale ressaltar que, como uma modalidade de usucapião tabular, estamos nos referindo aqui também ao usucapião de propriedade certa e conhecida, já previamente registrada no CRI.

O objetivo da lei de 2011 foi modificar a lei 11.977 de 7 de julho de 2009, que disciplina o Programa Minha Casa, Minha Vida (PMCMV), inserindo, para tanto, o artigo 1.240-A ao Código Civil (lei 10.406, de janeiro de 2002), que aborda o usucapião tabular familiar. A nova modalidade visou proteger particularmente aquele que abandonado pelo cônjuge ou companheiro permaneceu no imóvel. Trata-se de hipótese pouco distinta do artigo 1.242 (aquisição a "non domino"), que, no entanto, tutela o mesmo bem jurídico, isto é, a veracidade da tábula registral. A modalidade é ainda familiar, vez que opera somente no seio da família (art. 226, CF).

O usucapião familiar, tal como o usucapião tabular genérico, busca atender a questão da regularização fundiária. Porém, nos referimos aqui a instituto mais específico, pois se busca legalizar a permanência de famílias das áreas urbanas ocupadas irregularmente para fins de moradia, além da promoção de melhorias no ambiente urbano, bem como na qualidade de vida da comunidade. Logo, incentiva o exercício da cidadania pela comunidade, sujeito do projeto.

Nesse sentido, o artigo 1.240-A somente atende a preceitos já constitucionalizados, como a função social da terra (art. 5º, XXIII CF, o exercício de moradia (art. 6º, CF) e a proteção conferida ao núcleo social familiar (art. 226, CF). Tudo em benefício do cidadão, portanto é digno de elogios.

O instituto atende ainda à desburocratização dos procedimentos de composição de conflitos familiares, dentro da perspectiva de simplificação que o direito brasileiro adotou. Nesse sentido, como outros exemplos da facilitação visada pelo legislador, hoje se permite a separação extrajudicial, o divórcio direto e livre de prazos, desprovido da exigibilidade de imputação de culpa ou responsabilização pelo término do relacionamento. Cabe lembrar, que estas atualizações hoje consideradas um grande avanço também foram questionadas no passado.

Logo, não é possível alegar, que o usucapião familiar se constitui forma de responsabilização pelo término da relação, ele não é causa, mas sim efeito. O requisito do abandono do lar não possui qualquer correlação com a discussão de culpa no divórcio ou na separação, como apontam. A culpa não está sendo ressuscitada e não importa o motivo do cônjuge ou companheiro que deixou o lar. Adotou-se o requisito abandono de lar tendo em vista apenas fins possessórios, o juiz cível ou registral fará uma aferição meramente possessória da questão. Caso, por exemplo, uma mulher sob violência doméstica seja obrigada a "fugir" do lar conjugal para evitar o agravamento do problema e tal situação seja verificável ainda que incidentalmente não ensejará abandono, dada a ausência do elemento subjetivo da derrelição, o que impedirá o usucapião.

Ademais o exercício do direito de propriedade do ex-cônjuge ou companheiro não pode se estender infinitamente, uma vez que o tempo exerce grande influência no direito. Não parece situação normal, apesar de corriqueira, que alguém que tenha o domínio regular de um bem possa, levianamente, "deixar para lá" a propriedade, em uma verdadeira "supressio", sem descumprir a função social (art. 5º, XXIII, CF).

O cônjuge que teve o seu lar abandonado também não pode aguardar indefinidamente em benefício do direito de propriedade daquele que se retirou, tal situação geraria instabilidade social, ademais o bem ficaria injustificadamente fora do comércio. O cônjuge residente jamais estaria seguro de seus direitos, para, por exemplo, poder negociar seu imóvel, por meio de doação, venda ou troca. A realidade cambiante possui influência efetiva na aquisição e na extinção de direitos. Por isso o decurso do tempo deve ser eficaz na eliminação da relação jurídica cujo direito não foi exercido, dentro da função sócio-econômica da propriedade como manda a Constituição Federal (art. 170, II, III, CF).

Portanto, o instituto somente preza pela realização e operabilidade de direitos já positivados. À maneira de Jhering, é da essência do direito a sua realizabilidade, o direito é feito para ser executado e, o que não se executa é como chama que não aquece e luz que não ilumina1.

Ademais, como meniona a doutrina, a diminuição do prazo é fruto da modernidade, já que é vetor constitucional a circulação de riquezas. Portanto, o instituto do usucapião familiar também se fundamenta na paz social e na tranquilidade da ordem jurídica.

O usucapião familiar se mostra útil à estabilidade e à consolidação dos direitos do residente no imóvel. Ainda nesse contexto, se apresenta como meio para evitar que o ex-cônjuge ou o ex-companheiro desapareça e inviabilize a alienação do imóvel pelo remanescente, por exemplo.

Como modalidade de usucapião, aqui também se aplica a teoria da aparência, recepcionada no código civil de 2002. A aparência deve coincidir com a realidade do registro, resguardando o princípio da dignidade humana no amplo limite da inserção social. Nesse sentido, temos que "se a dignidade da pessoa humana visa a estabelecer uma igualdade de direitos e obrigações para todos os homens, e se também visa a proteger os direitos inalienáveis do homem inclusive os de ordem privada, é da ordem do dia a proteção das relações aparentes"2. Assim, a tábula registral é retificada no intuito de que o condômino, possuidor exclusivo, possa extirpar o nome do ex-cônjuge ou ex-companheira que conste no registro, garantindo, a propriedade exclusiva, prevista pelo artigo 1.231 do código civil.

Por todo o exposto, conclui-se que o instituto do usucapião tabular familiar é digno de elogios, vez que além de meio eficaz para garantir a propriedade do bem de família pelo cônjuge ou companheiro(a), funda-se nos princípios da função social da propriedade, da confiança e da segurança jurídica, inserido ainda no contexto brasileiro de reestruturação fundiária. Por fim, temos como sua decorrência uma maior circulação de bens e riquezas com segurança e celeridade.

Desse modo, chegamos ao fim da série Usucapião Tabular, dentre sua origem, contexto histórico e delimitação prática. Esperamos que tenhamos contribuído para aplicação efetiva do Usucapião Tabular a fim de que não se torne letra morta no Código Civil.

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1. REALE, M. O projeto do novo código civil: situação após a aprovação pelo Senado Federal. São Paulo: Saraiva. 1999 (2 ed. reform. e atual ed.). 

2. KÜMPEL, V. F. Teoria da aparência no Código Civil de 2002. São Paulo: Método. 2007. p. 92.

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* Vitor Frederico Kümpel é juiz de Direito em São Paulo, doutor em Direito pela USP e coordenador da pós-graduação em Direito Notarial e Registral Imobiliário na EPD – Escola Paulista de Direito.

Fonte: Migalhas I 04/02/2014.

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