1VRP/SP: Registro de Imóveis. Instrumento particular de constituição de sociedade e integralização de capital, Procuração. Poderes especiais e expressos.


  
 

Processo 1124050-09.2022.8.26.0100

Dúvida – Registro de Imóveis – Barongeno Gestão Patrimonial Ltda – Diante do exposto, JULGO PROCEDENTE a dúvida para manter o óbice registrário. Deste procedimento não decorrem custas, despesas processuais ou honorários advocatícios. Oportunamente, remetam-se os autos ao arquivo. P.R.I.C. – ADV: MARILU DOMARCO QUINTANILHA DE ALMEIDA (OAB 184168/SP)

Íntegra da decisão:

SENTENÇA

Processo Digital nº: 1124050-09.2022.8.26.0100

Classe – Assunto Dúvida – Registro de Imóveis

Suscitante: Primeiro Cartório de Registro de Imóveis de São Paulo

Suscitado: Barongeno Gestão Patrimonial Ltda

Juiz(a) de Direito: Dr(a). Luciana Carone Nucci Eugênio Mahuad

Vistos.

Trata-se de dúvida suscitada pelo Oficial do 1º Registro de Imóveis da Capital a requerimento de Barongeno Gestão Patrimonial Ltda, tendo em vista negativa em se proceder ao registro de instrumento particular de constituição de sociedade e integralização de capital, o qual envolve o imóvel da matrícula n.28.986 daquela serventia.

O Oficial informa que o ingresso do título foi obstado por não constar, nas procurações apresentadas, a outorga, pelo coproprietário Vicente Barongeno, de poderes especiais expressos para alienação do bem, como exigem o artigo 661, §1º, do Código Civil e precedente deste juízo (processo de autos n.1102241-94.2021.8.26.0100).

Documentos vieram às fls.05/65.

Em manifestação dirigida ao Oficial, a parte aduz que se trata de empresa familiar, constituída por Vicente Barongeno e por suas únicas duas filhas, Isabel Cristina Barongeno Mancini e Luciana Barongeno, cujo capital social foi integralizado com imóveis de sua propriedade; que registro seria possível, já que, no ato de constituição e conferência de bens, Vicente estava representado por sua filha Luciana conforme procuração pública lavrada em 11/12/2019 pelo 1º Tabelião de Notas da Capital; que, por procuração lavrada pelo mesmo Tabelião em 25/04/2007, o coproprietário também conferiu às filhas, Luciana e Isabel, poderes amplos, gerais e ilimitados, notadamente para gerir e administrar todos seus bens, podendo, por qualquer forma ou título, alienar ou onerar seus bens imóveis; que a empresa está registrada na JUCESP desde 20/12/2019; que Vicente Barongeno faleceu em 23/12/2019 enquanto viúvo, sem deixar testamento, e as sócias Isabel e Luciana são suas únicas herdeiras necessárias; que a sociedade foi constituída unicamente pelos proprietários (pai e filhas herdeiras) para administração do patrimônio comum, não representando risco a terceiros, notadamente ao fisco; que a constituição da empresa contou com a anuência do cônjuge de Isabel, Marco Antonio Mancini; que o título teve ingresso perante o 5ºRI da Capital, matrícula n.43.941 (fls. 05/08).

Em impugnação, a parte suscitada acrescentou que o imóvel é titularizado por Vicente Barongeno na proporção de 50% e por suas filhas, Isabel e Luciana, na proporção de 25% cada uma, o que foi observado quando da constituição da empresa, ocasião em que houve recolhimento dos impostos; que, no ato de constituição e conferência de bens, Vicente estaria representado por Luciana, em verdade, por procuração lavrada em 25/04/2007, pela qual foram conferidos amplos poderes para administrar bens imóveis, notadamente para receber e transmitir domínio; que a exigência não pode ser atendida em razão do falecimento do outorgante (fls. 66/69).

O Ministério Público opinou pela procedência (fls. 72/74).

É o relatório.

Fundamento e decido.

De início, é importante ressaltar que o Registrador dispõe de autonomia e independência no exercício de suas atribuições, podendo recusar títulos que entender contrários à ordem jurídica e aos princípios que regem sua atividade (art. 28 da Lei n. 8.935/1994), o que não se traduz como falha funcional.

No mérito, a dúvida é procedente. Vejamos os motivos.

Primeiramente, não se nega a aptidão do instrumento de constituição societária, devidamente registrado na JUCESP, para transferência de imóvel destinado à integralização do capital social, como claramente dispõe o artigo 64 da Lei n. 8.934/94.

O cerne da dúvida suscitada se restringe à extensão dos poderes de representação de que a mandatária dispunha ao firmar o instrumento de constituição da sociedade empresária, Barongeno Gestão Patrimonial Ltda, em nome do sócio Vicente Barongeno (fls. 17/30).

Neste ponto, não se verifica conflito entre a Lei n. 8.934/94, que trata do Registro Público de Empresas Mercantis, e o Código Civil, uma vez que o primeiro diploma nada dispõe sobre a outorga de mandato para prática de atos ou de administração de interesses, o que é tratado de forma detalhada no Capítulo X, Título VI, Livro I, da Parte Especial do segundo diploma (artigos 653/692).

Portanto, tem perfeita aplicação ao caso concreto o artigo 661 do Código Civil, que assim dispõe:

“Art.661. O mandato em termos gerais só confere poderes de administração.

§1º Para alienar, hipotecar, transigir, ou praticar outros quaisquer atos que exorbitem da administração ordinária, depende a procuração de poderes especiais e expressos”.

Atente-se, ainda, à lição de Pontes de Miranda, no sentido de que mandato expresso e mandato com poderes especiais são conceitos diferentes, sendo que a lei exige o atendimento cumulativo das duas hipóteses para atos de disposição.

Como definia o artigo 134 do antigo Código Comercial, poderes expressos são aqueles manifestados com explicitude. Poderes especiais, por sua vez, são aqueles outorgados para a prática de ato determinado.

O STJ também já se manifestou acerca do tema no julgamento do REsp n.1.836.584/MG, com a seguinte ementa (destaques nossos):

“DIREITO CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DECLARATÓRIA DE NULIDADE DE ESCRITURA PÚBLICA DE COMPRA E VENDA DE IMÓVEL. PROCURAÇÃO. OUTORGA DE PODERES EXPRESSOS PARA ALIENAÇÃO DE TODOS OS BENS DO OUTORGANTE. NECESSIDADE DE OUTORGA DE PODERES ESPECIAIS.

1. Ação declaratória de nulidade de escritura pública de compra e venda de imóvel cumulada com cancelamento de registro, tendo em vista suposta extrapolação de poderes por parte do mandatário.

2. Ação ajuizada em 16/07/2013. Recurso especial concluso ao gabinete em 10/09/2019. Julgamento: CPC/2015.

3. O propósito recursal é definir se a procuração que estabeleceu ao causídico poderes “amplos, gerais e ilimitados (…) para ‘vender, permutar, doar, hipotecar ou por qualquer forma alienar o(s) bens do(a)(s) outorgante(s)'” atende aos requisitos do art. 661, § 1º, do CC/02, que exige poderes especiais e expressos para tal desiderato.

4. Nos termos do art. 661, § 1º, do CC/02, para alienar, hipotecar, transigir, ou praticar quaisquer atos que exorbitem da administração ordinária, depende a procuração de poderes especiais e expressos.

5. Os poderes expressos identificam, de forma explícita (não implícita ou tácita), exatamente qual o poder conferido (por exemplo, o poder de vender). Já os poderes serão especiais quando determinados, particularizados, individualizados os negócios para os quais se faz a outorga (por exemplo, o poder de vender tal ou qual imóvel).

6. No particular, de acordo com o delineamento fático feito pela instância de origem, embora expresso o mandato – quanto aos poderes de alienar os bens do outorgante – não se conferiu ao mandatário poderes especiais para alienar aquele determinado imóvel.

7. A outorga de poderes de alienação de todos os bens do outorgante não supre o requisito de especialidade exigido por lei que prevê referência e determinação dos bens concretamente mencionados na procuração.

8. Recurso especial conhecido e provido” (REsp 1836584/MG, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 11/02/2020, DJe 13/02/2020).

Foi dentro deste contexto fático e normativo que o Oficial concluiu pela necessidade de outorga de poderes especiais e expressos para que a procuradora transmitisse, a título de integralização de capital social, o imóvel da matrícula n. 28.986, não mencionado nas procurações apresentadas (fls. 36/38 e 48/49).

Anteriormente à referida orientação do Superior Tribunal de Justiça, o E. Conselho Superior da Magistratura entendeu possível a transferência por procuração com poderes expressos, mas sem a identificação dos imóveis:

“Registro de Imóveis Conferência de bens para integralização de capital social Dúvida julgada procedente em primeira instância Análise das três exigências. Óbito da outorgante da procuração ocorrido entre a conferência de bens e o registro do título Afastamento do óbice Aplicação do artigo 674 do Código Civil. Falta de identificação dos imóveis a serem transferidos na procuração outorgada Procuração que confere ao apelante amplos poderes para representar sua esposa, inclusive para alienação de bens Afastamento do óbice Precedente deste Conselho. Conferência de bens comuns do casal para integralizar participação em sociedade da qual apenas o marido se tornará sócio Regime da comunhão parcial de bens Participação societária que entrará na comunhão de bens, ainda que as ações fiquem em nome do recorrente Inteligência do artigo 1.660, I, do Código Civil Anuência suprida pelos termos da procuração e pela futura partilha da participação societária Exigência afastada. Apelação provida, para julgar improcedente a dúvida” (CSM, Apelação Cível n. 1001689-21.2015.8.26.0363, Des. Pereira Calças, j. 15/08/2017).

Considerando a similitude do caso mencionado acima, que também envolveu conferência de bens para integralização de capital social, com óbito da outorgante entre a conferência e o registro do título, ao lado de exigência de identificação dos imóveis na procuração outorgada, é necessário estudo mais detalhado para adequada distinção entre esse precedente e a hipótese sub judice.

Vale observar que o óbito do outorgante não é impedimento para a transferência (23 de dezembro de 2019 – fl. 50), especialmente diante do registro tempestivo da constituição societária perante a JUCESP: o instrumento foi finalizado em 13 de dezembro de 2019, com registro da empresa em 20 de dezembro do mesmo ano (fls. 17/30 e 42).

Contudo, quanto à necessidade de especificação dos imóveis destinados à integralização do capital, extrai-se do referido acórdão que a procuração, então analisada pelo CSM, outorgava amplos poderes, inclusive para alienação de bens imóveis:

“(…) pela procuração outorgada o mandante habilitou os mandatários a alienar qualquer de seus bens imóveis mediante integralização do aumento de capital social da empresa apelante, integralização que, ainda ‘in casu’, foi concomitante com a subscrição, pelo mandante, de novas ações ordinárias emitidas pela apelante (…)”.

O E. Desembargador Cláudio Luiz Bueno de Godoy[1] esclarece tal situação nos seguintes termos:

“É certo, porém, como Carvalho Santos adverte (Código Civil brasileiro interpretado, 5. Ed. Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1952, v.XVIII, p.163), que, se o mandato envolve a outorga de poderes para a venda de todos os imóveis do mandante, terá sido cumprida a exigência de poderes especiais”.

Por outro lado, o que se constata no instrumento particular de constituição da sociedade em análise é que o coproprietário, Vicente Barongeno, estava representado pela procuradora Luciana Barongeno nos termos de procuração lavrada em 11 de dezembro de 2019 pelo 1º Tabelião de Notas de São Paulo (livro 4670, página 343 fls. 17/30 e 36/38). Procuração esta que somente conferiu às procuradoras, Isabel Cristina Barongeno Mancini e Luciana Barongeno, poderes para gerir, administrar e alienar os seus bens “móveis, semoventes, automóveis, direitos, ações, quotas sociais e outros de qualquer natureza”.

Assim, como nada se previu quanto à alienação de imóveis, essa procuração não serve para a transferência pretendida.

Já quanto à procuração de fls. 48/49, lavrada em 25 de abril de 2007, observa-se que, embora o outorgante tenha conferido “os mais amplos, gerais e ilimitados poderes” para gerir e administrar “todos seus bens, podendo comprar, vender, compromissar a venda, ceder, permutar, doar, receber doações, inclusive onerosas, hipotecar, dividir, lotear, alugar, arrendar e por qualquer outra forma ou título alienar ou onerar bens, moveis, imóveis” (…) “receber e transmitir posse, domínio, direito e ação”, impôs atuação sempre em conjunto pelas mandatárias constituídas, Isabel Cristina Barongeno Mancini e Luciana Barongeno.

No ato de constituição e de integralização de capital, porém, e como já visto, Vicente estava representado apenas pela procuradora Luciana (fl. 17).

Assim, embora a alteração contratual registrada na JUCESP seja documento hábil à transferência de bens imóveis, no caso concreto, tal título foi corretamente desqualificado já que a mandatária não detinha poderes para dispor sozinha do patrimônio imobiliário de titularidade de Vicente Barongeno.

Note-se que a impossibilidade de atendimento da exigência formulada em razão do falecimento do coproprietário outorgante ou o ingresso do título perante o 5º RI da Capital, Av.05/M.43.941 (fl. 60), não permitem conclusão diversa.

Diante do exposto, JULGO PROCEDENTE a dúvida para manter o óbice registrário.

Deste procedimento não decorrem custas, despesas processuais ou honorários advocatícios.

Oportunamente, remetam-se os autos ao arquivo.

P.R.I.C.

São Paulo, 14 de dezembro de 2022.

Luciana Carone Nucci Eugênio Mahuad

Juiz de Direito

NOTA:

[1] Cláudio Luiz Bueno de Godoy, Código civil comentado. Barueri: Manole, 2007, p. 524. (DJe de 16.12.2022 – SP)

Fonte: Diário da Justiça Eletrônico.

Publicação: Portal do RI (Registro de Imóveis) | O Portal das informações notariais, registrais e imobiliárias.

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