DOCUMENTOS SEM PAPEL

* Renato Martini

Pouco a pouco as pessoas começam a se dar conta que um documento eletrônico não é em absoluto um documento digitalizado. O último caso é, por exemplo, o magistral trabalho da Hemeroteca de nossa Biblioteca Nacional. Trata-se dadigitalização do acervo jornalístico do país. Ou seja: trata-se de um legado outrora gerado em papel e que agora o geramos em forma digital, — o que é infinitamente melhor para o pesquisador-usuário e para a conservação deste patrimônio histórico-cultural, evitando o seu acesso direto. Ressalte-se a aplicação da técnica de OCR (Optical Character Recognition)1*; a este acervo ele possibilita um acesso mais qualificado ao acervo e pesquisas acuradas. De forma muito objetiva: pode-se procurar por uma palavra qualquer, uma expressão, em todos os jornais da Corte no século XIX.

Um documento eletrônico nasce digitalmente e realiza todo seu ciclo de vida desta forma, se impresso, por algum razão, o impresso a bem da verdade é cópia, o original é o digital. O legado que a sociedade produziu nasceu com suporte em papel, a digitalização é cópia deste documento físico, e seu descarte — ainda que todas as técnicas possam ajudar neste processo — ainda é um "tabu", e de difícil superação a curto prazo. Todas mudanças são difíceis, não tenhamos ilusão, e o uso do papel é milenar. A escrita em si é uma "tecnologia da inteligência", para usar uma expressão de Pierre Lévy, a impressão de Gutemberg e também a máquina de escrever igualmente, e nenhuma delas desumanizou o homem. Como disse sutilmente Richard Sennett: "technique has a bad name; it can seem soulless"2*;.

Fato irrecusável que nossa sociedade já produz gicantesca quantidade de documentos que nascem digitalmente. Fiquemos por hora com exemplo da Nota Fiscal Eletrônica (NFe), já validamos e autorizamos 7.5 Bilhões de NFes. Passados digamos uns 100 anos, será parcela da memória econômica de nosso país nestes documentos eletrônicos, assinados digitalmente. O mesmo se passa com o sistema para recolhimento e declaração do FGTS, o chamado "Conectividade Social", que também se insere em nossa memória econômico-social. As escolhas tecnológicas de hoje decidirão no futuro as condições de legibilidade e acesso a este acervo. O XML como padrão e formato tem sido a decisão mais adequada (que é uma tendência global e não somente local). Além de ser um documento em "texto-puro", como qualquer linguagem de "marcação", e é tremendamente interoperável, aderente a Web. Igualmente poderosa ferramenta de intercâmbio de dados. Por isso o Governo Federal, em seus padrões de interoperabilidade assevera:

"Serão considerados preferenciais aqueles tipos de arquivo que têm como padrão de representação o formato XML, de forma a facilitar a interoperabilidade entre os serviços de governo eletrônico."3*;

Assim, é o formato de nossas NFes e também a comunicação eletrônica do Fundo de Garantia brasileiro segue o padrão XML Manifest. Ele descreve o conteúdo do pacote ".zip" enviado, especificando como o conteúdo é mapeado numa estrutura de diretório e de informação. Outro aspecto importante é que ele deve ser agnóstico ao estabelecer os metadados do pacote, isto é, neutro quanto a linguagem e o sistema operacional, o que garantirá longevidade ao documento e sua informação. O esquema XML manifest é largamente utilizado pelos SOs atuais , como o MS Windows. Também no mundo da mobilidade, como o Android, aí toda a aplicação do SO Android deve ter na sua raiz um arquivo "manifest.xml".

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1. Consulte-se: "Optical Character Recognition (OCR) – How it works" e "How Good Can It Get? Analysing and Improving OCR Accuracy in Large Scale Historic Newspaper Digitisation Programs" []

2. The Craftsman. New York: Allen Lane, 2008, p. 149. [↩]

3. Cf.: http://www.governoeletronico.gov.br/biblioteca/arquivos/documento-da-e-ping-versao-2013/ []

4. Ver para o Android: http://developer.android.com/guide/topics/manifest/manifest-intro.html; e para o Windows:http://msdn.microsoft.com/en-us/library/windowsazure/jj151525.aspx; por fim, para o Google:https://developers.google.com/google-apps/marketplace/manifest []

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* Renato Martini é diretor-presidente do Instituto Nacional de Tecnologia da Informação – ITI e Secretário Executivo do Comitê Gestor da Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira CG ICP-Brasil, é também membro titular do Comitê de Segurança da Informação do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, do Comitê Gestor do Registro de Identidade Civil e do Comitê Gestor da Internet do Brasil – CGIbr, na condição de representante da Casa Civil da Presidência da República. Completou o seu doutorado, em 1998, na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, tendo como áreas de especialização a Filosofia da Ciência e a Lógica.

Fonte: Site ITI – Instituto Nacional de Tecnologia da Informação I 06/11/2013.

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Pontos positivos e negativos da unificação do registro civil de pessoas jurídicas

* Vitor Frederico Kümpel

Em continuação à artigo, em que nos debruçamos sobre as pessoas jurídicas de direito privado existirem a partir do registro (art. 45 do Código Civil) nos Ofícios de Registro Civil das Pessoas Jurídicas (simples) e nas Juntas Comerciais (empresárias), nesta oportunidade discorreremos sobre a unificação de ambas numa única estrutura administrativa.

Naquela oportunidade, encerramos o artigo deixando em aberto a questão da unificação, posto ser da essência da sociedade pós-moderna ampliar o acesso a todo aparato burocrático do Estado, para facilitar a vida do cidadão no que toca principalmente a procedimentos operacionais.

O objetivo deste artigo é justamente fazer essa análise, dos pontos positivos e negativos que decorrem de uma possível unificação do registro de pessoas jurídicas de direito privado. A finalidade desta análise é lançar algumas ideias, sem fechar a questão, até porque o tema é complexo e envolve uma série de interesses jurídicos e econômicos.

Comecemos então pelos benefícios, pelos pontos positivos, que uma unificação das atividades realizadas pela Junta Comercial e pelo Ofício de Registro de Pessoas Jurídicas traria para o cidadão, e para facilitar o acesso ao sistema.

O primeiro item, que não pode deixar de ser mencionado, é o benefício da uniformidade. É muito mais fácil regular uma atividade, e mesmo normatizá-la, quando tal regulamentação e tais normas deverão ter sua aplicação observada em apenas um aparato burocrático. A otimização dos procedimentos, ainda que com certas peculiaridades, traria maior facilidade a contadores, a operadores jurídicos e também a todos os controladores do sistema. A existência de duas estruturas burocráticas diferentes e desvinculadas uma da outra, realizando uma atividade de natureza assemelhada gera contradições desnecessárias e de difícil sanação.

Citando como exemplo a Junta Comercial do Estado de São Paulo (JUCESP), observa-se um órgão sujeito às especificações da lei complementar estadual 1.187/2012 e da lei Federal 8.934/1994, que dispõe sobre os Serviços de Registro Público de Empresas Mercantis e Atividades Afins. A JUCESP é um órgão subordinado ao Departamento Nacional de Registro do Comércio (DNRC) e, portanto, responde a este na realização de suas atividades1.

Já os ofícios de Registro Civil de Pessoas Jurídicas estão regulamentados, primeiramente, pelo artigo 236, da Constituição Federal, e pelas leis 6.015/1973 e 8.935/94, estando subordinados à Corregedoria Geral da Justiça e, indiretamente, ao Conselho Nacional de Justiça.

Percebe-se, então, que ambas as instituições responsáveis pelo registro de pessoas jurídicas no estado de São Paulo são regulamentadas por leis diferentes e estão subordinadas a diferentes órgãos administrativos. Essas diferenças dificultam, e até por vezes confundem, aqueles que se utilizam do serviço. A unificação tornaria mais fácil a fiscalização e a uniformidade do serviço prestado, sendo este o primeiro benefício da junção do registro civil de pessoas jurídicas.

Outro benefício seria a uniformização da qualificação das pessoas que trabalham com esses registros. Garantir que as pessoas registradoras das sociedades civis também saibam sobre a regulamentação do registro das sociedades comerciais e empresariais, traria mais segurança aos que se servem dos serviços de registro de pessoas jurídicas, no sentido de que estariam sendo atendidos por pessoas que, certamente, entendem o funcionamento de todo o sistema e não apenas de um setor específico. Portanto, a qualificação registral seria assemelhada, e respeitadas as peculiaridades haveria uma uniformidade das exigências de ambas as pessoas jurídicas. As rotinas de trabalho seriam semelhantes e solúveis por meio do procedimento da dúvida registral, passando o Poder Judiciário a dar a última palavra em todos os atos de registro.

Ainda, outro ponto positivo estaria na incidência das Normas de Serviço da Corregedoria Geral, tanto para pessoas jurídicas civis quanto empresárias. Portanto, haveria uma única normatização, também com suas especificações; e, por conseguinte, um único sistema de controle, desvinculado da burocracia administrativa do Estado, e sem qualquer injunção política. Neste sentido é bom lembrar que o Código Civil atual (lei 10.406/02) revogou parte do Código Comercial unificando as pessoas jurídicas de Direito privado.

Já um ponto negativo, de uma possível unificação das funções de registro das pessoas jurídicas, poderia ser, preliminarmente, a dificuldade prática de transferir todo o acervo, documentação, responsabilidades e atribuições das Juntas Comerciais para os Ofícios de Registro Civil de Pessoas Jurídicas. Considerando que, atualmente, as serventias não têm a obrigação de registrar as pessoas jurídicas de natureza comercial/empresarial, seriam necessários: um treinamento, uma adaptação, e uma normatização específica para todos os prepostos e demais funcionários da serventia, passando a ter familiaridade na observância das rotinas específicas.

Tal treinamento seria oneroso, sob o ponto de vista econômico e jurídico para as serventias, e isto demandaria certo tempo. Havendo, então, a necessidade de transferência do acervo da Junta Comercial para o Registro de Pessoas Jurídicas, bem como a relotação de serventuários para outras atividades burocráticas do Estado.

Ultrapassada a dificuldade prática, surge outra dificuldade: a falta de especialização. Hoje há a especialização graças à separação na realização dos serviços. Sem sombra de dúvida, a especialidade e a especificidade das rotinas facilitam a consecução dos atos, na medida em que as rotinas são distintas, para qualificar as pessoas empresariais em relação às pessoas jurídicas simples ou civis.

A seguinte pergunta deve ser feita quando analisada a possibilidade de unificação do Registro Civil de Pessoas Jurídicas: é possível aproveitar a estrutura que os Ofícios de RCPJ já proporcionam e incorporar, à tais serventias, os serviços realizados nas Juntas Comerciais? Fica claro que, frente à ocorrência de uma possível unificação, barreiras práticas deverão ser transpostas, treinamentos e especializações deverão ser realizados, etc.

Contudo parece-nos que uma vez ultrapassadas as dificuldades práticas impostas à unificação do registro de pessoas jurídicas, os benefícios trazidos por ela superariam, e em muito, os prejuízos. A dificuldade de implementação de uma proposta, e a concretização de um trabalho não deve obstaculizar os benefícios e as vantagens que podem decorrer da unificação, uma vez empreendida.

A qualificação das pessoas, oficiais e prepostos, abrangendo o registro das pessoas jurídicas de forma geral, só tem a garantir um serviço mais bem prestado e que gera mais facilidade e conveniência para aqueles que se utilizam de tal serviço. A pergunta que sobrepaira é a seguinte: Se em nenhuma outra serventia há desmembramento de atribuição, por que deveria acontecer em relação ao registro de pessoas jurídicas de direito privado?

Diante do mencionado quadro, o que é possível concluir com certeza absoluta é que a celeridade, operabilidade, uniformidade, publicidade e eticidade devem estar sempre à frente dos interesses pessoais na consecução de qualquer serviço público, de qualquer natureza.

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1Site da JUCESP.

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* Vitor Frederico Kümpel é juiz de Direito em São Paulo, doutor em Direito pela USP e coordenador da pós-graduação em Direito Notarial e Registral Imobiliário na EPD – Escola Paulista de Direito.

Fonte: Migalhas I 05/11/2013.

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Negociação de quotas na sociedade limitada

* Ricardo César Dosso

É praticamente mandatória, nos atos constitutivos de sociedades limitadas, a cláusula que prevê o direito de preferência dos demais sócios caso algum deles queira alienar sua participação societária.

A disposição remete, quase que instantaneamente, à analogia com o que ocorre no condomínio de bens, móveis e imóveis, em que a qualquer coproprietário é facultado dispor de sua fração ideal, bastando que assegure aos demais titulares a preferência em igualdade de condições.

A transferência automática dessa lógica ao regime jurídico das sociedades limitadas, no entanto, leva a interpretações equivocadas, não raro com consequências sérias na vida negocial.

Ainda que tenha sofrido alterações significativas a partir do atual Código Civil, datado de 2002, a sociedade limitada ainda deve ser classificada entre as sociedades de pessoas. Aaffectio societatis, expressão latina que designa a afeição entre os sócios e o propósito subjetivo de empreender em conjunto, já teve a morte decretada pela doutrina contemporânea, mas ainda não é possível afastar o vínculo pessoal entre os sócios e, especialmente, as peculiaridades ainda presentes na transmissão das quotas.

A ilustração prática permite compreender com clareza o que está a separar a sociedade limitada das ações por ações nesse assunto. Enquanto na limitada o ingresso e a retirada de sócio demandam modificação dos atos constitutivos da empresa, a chamada alteração de contrato social, a transferência da titularidade de ações exige apenas registro em livro específico, sem nenhuma repercussão no estatuto social da, não por acaso, chamada sociedade anônima.

E é exatamente a necessidade de alteração do contrato social da limitada, bem como seu arquivamento no registro de comércio, que impõe limitações à transferência das quotas.

Não basta àquele que pretende negociar sua participação na sociedade limitada ofertar suas quotas, inicialmente, aos demais sócios. Tampouco é suficiente para o comprador celebrar contrato de compra e venda das quotas, negócio jurídico existente e válido, mas ineficaz enquanto não traduzido em modificação do contrato social. O art. 1.003 do CC é enfático ao dispor que "a cessão total ou parcial de quota, sem a correspondente modificação do contrato social com o consentimento dos demais sócios, não terá eficácia quanto a estes e à sociedade".

Dessa circunstância surgem consequências sérias, cabendo aqui destacar duas delas. O sócio que, mesmo assegurando aos demais o direito de preferência, negociar suas quotas com terceiro, não se exime de responsabilidade se não aceito o adquirente e formalizado seu ingresso na sociedade em substituição ao retirante. É a partir desse evento que começa a fluir o prazo de dois anos previsto na lei civil, durante o qual cedente e cessionário respondem solidariamente pelas obrigações que aquele tinha como sócio, perante a sociedade e terceiros.

E o adquirente das quotas, que pagou o vendedor, bate às portas da empresa e não é aceito pelos demais sócios? Tem o direito de requerer o cumprimento do negócio e de impor aos demais sócios e à própria sociedade o dever de aceitá-lo? A resposta é não, pois a limitada continua sendo sociedade de pessoas, a quem a lei confere, a qualquer tempo e independentemente de motivo, o direito de se retirar do quadro societário. Como corolário do direito que todos têm de não permanecer sócios de quem não desejam, não são obrigados a aceitar o adquirente das quotas, e tampouco a justificar essa decisão.

Ao adquirente frustrado em sua expectativa restará, se o contrato celebrado não contiver disposições específicas para essa hipótese, demandar a apuração dos respectivos haveres, afigurando-se a titularidade de simples expectativa de crédito, jamais do direito de executar a obrigação in natura e de adentrar a uma sociedade limitada contra a vontade dos demais sócios.

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* Ricardo César Dosso é advogado do escritório Fernando Corrêa da Silva Sociedade de Advogados.

Fonte: Migalhas I 04/11/2013.

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