Jurisprudência mineira – Retificação de assento de nascimento – Alteração do nome e do sexo – Transexual – Interessado não submetido à cirurgia de transgenitalização

RETIFICAÇÃO DE ASSENTO DE NASCIMENTO – ALTERAÇÃO DO NOME E DO SEXO – TRANSEXUAL – INTERESSADO NÃO SUBMETIDO À CIRURGIA DE TRANSGENITALIZAÇÃO – PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA – CONDIÇÕES DA AÇÃO – PRESENÇA – INSTRUÇÃO PROBATÓRIA – AUSÊNCIA – SENTENÇA CASSADA

– O reconhecimento judicial do direito dos transexuais à alteração de seu prenome conforme o sentimento que eles têm de si mesmos, ainda que não tenham se submetido à cirurgia de transgenitalização, é medida que se revela em consonância com o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana.

– Presentes as condições da ação e afigurando-se indispensável o regular processamento do feito, com instrução probatória exauriente, para a correta solução da presente controvérsia, impõe-se a cassação da sentença.

Apelação Cível nº 1.0521.13.010479-2/001 – Comarca de Ponte Nova – Apelante: L.V.S. – Des. Edilson Fernandes

ACÓRDÃO

Vistos etc., acorda, em Turma, a 6ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, na conformidade da ata dos julgamentos, em dar provimento ao recurso.

Belo Horizonte, 22 de abril de 2014. – Edilson Fernandes – Relator.

NOTAS TAQUIGRÁFICAS

DES. EDILSON FERNANDES – Trata-se de recurso interposto contra a r. sentença de f. 31/32, proferida nos autos da ação de retificação de registro civil ajuizada por L.V.S., que julgou extinto o processo, sem resolução de mérito, nos termos do art. 267, inciso VI, do CPC, fundamentando impossibilidade jurídica do pedido.

Em suas razões, o apelante sustenta que manifesta comportamento próprio do genótipo feminino, bem como características morfológicas secundárias que lhe conferem a condição de mulher. Afirma que é reconhecido em seu meio social como pessoa do sexo feminino. Alega que tem sofrido muitos constrangimentos em virtude da discrepância entre sua imagem corpórea e o nome e sexo que constam em seus documentos. Salienta que a identificação civil da parte autora está em desconformidade com o seu gênero, que é o feminino, tanto psicologicamente quanto na sua aparência física. Destaca que deve prevalecer o sexo morfológico e psíquico, e não o sexo genético e endócrino. Assevera que a adequação do seu registro civil observa o princípio da dignidade da pessoa humana. Sustenta que, embora o prenome seja definitivo, admite-se a sua substituição por apelidos públicos e notórios. Afirma que não é necessária a realização de cirurgia de transgenitalização para a alteração do prenome e do gênero, não havendo falar em impossibilidade jurídica do pedido. Pugna pelo provimento do recurso para que seja determinado o regular processamento do feito (f. 33/42).

Presentes os pressupostos de admissibilidade, conheço do recurso.

Versam os autos sobre ação em que se busca a alteração do prenome e do sexo constante do assento de nascimento da parte autora.

O apelante narra que, conquanto não tenha se submetido à cirurgia de transgenitalização, não se identifica com o seu sexo biológico, tendo passado por processo de hormonização feminina e colocação de prótese mamária.

A MM. Juíza da causa, entretanto, concluiu pela impossibilidade jurídica do pedido, julgando extinto o processo, sem resolução do mérito, com fulcro no art. 267, VI, do CPC (f. 31/32), considerando que a alteração pleiteada pelo autor não encontra amparo em nenhuma das restritas exceções à imutabilidade do nome civil.

Nos termos do art. 16 do Código Civil, toda pessoa tem direito ao nome, o qual consiste em elemento de identificação do indivíduo, integrando o rol dos direitos da personalidade.

Sobre o tema, Silvio de Salvo Venosa leciona que:

"O nome atribuído à pessoa é um dos principais direitos incluídos na categoria de direitos personalíssimos ou da personalidade. A importância do nome para a pessoa natural situa-se no mesmo plano de seu estado, de sua capacidade civil e dos demais direitos inerentes à personalidade" (Direito civil – Parte Geral. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2002, p. 203). E prossegue:

"Assim, pelo lado do Direito Público, o Estado encontra no nome fator de estabilidade e segurança para identificar as pessoas; pelo lado do direito privado, o nome é essencial para o exercício regular dos direitos e do cumprimento das obrigações. Tendo em vista essa importância, o Estado vela pela relativa permanência do nome, permitindo que apenas sob determinadas condições seja alterado. O nome, destarte, é um dos meios pelos quais o indivíduo pode firmar-se na sociedade e distinguir-se dos demais" (ob. cit., p. 204).

O nome, nele compreendido o prenome e o sobrenome, goza de especial proteção do ordenamento jurídico (arts. 17 e 18, CC), tendo por fundamento a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III,  CR).

A propósito desse fundamento da República, Alexandre de Moraes ensina que:

"[…] a dignidade da pessoa humana: concede unidade aos direitos e garantias fundamentais, sendo inerente às personalidades humanas. Esse fundamento afasta a ideia de predomínio das concepções transpessoalistas de Estado e Nação, em detrimento da liberdade individual. A dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos" (Direito constitucional. 24. ed. São Paulo: Atlas, 2009, p. 21/22, destaquei).

O Direito Brasileiro adota o princípio da imutabilidade relativa do nome, o que significa que o nome pode ser alterado em casos previstos em lei ou por decisão judicial.

Embora não haja norma que autorize a alteração do assento de nascimento nas hipóteses de transexualidade, o colendo Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do REsp 1008398/SP (julgado em 15.10.2009, DJe de 18.11.2009), entendeu pela possibilidade de alteração do prenome, assim como do designativo de sexo, em favor de transexual que havia se submetido à cirurgia de transgenitalismo.

Na espécie, o apelante não passou por tal procedimento, porém afirma que se identifica psicológica e socialmente com o sexo feminino, anexando aos autos as fotografias de f. 13/16 e as declarações apresentadas para corroborar as suas alegações (f. 17/21).

O transexualismo consiste em uma desconformidade entre o sexo físico e o sexo psíquico, reconhecendo a Resolução nº 1.955/2010 do Conselho Federal de Medicina "ser o paciente transexual portador de desvio psicológico permanente de identidade sexual, com rejeição do fenótipo e tendência à automutilação e/ou autoextermínio".

Outrossim, segundo a Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde, o transexualismo: "trata-se de um desejo de viver e ser aceito enquanto pessoa do sexo oposto. Este desejo se acompanha em geral de um sentimento de mal-estar ou de inadaptação por referência a seu próprio sexo anatômico e do desejo de submeterse a uma intervenção cirúrgica ou a um tratamento hormonal a fim de tornar seu corpo tão conforme quanto possível ao sexo desejado" (CID-10, F64.0) (http://www.datasus.gov.br/cid10/V2008/cid10.htm).

O prenome tem a função de identificar e de individualizar a pessoa perante a família e a sociedade, revelando-se importante fator de autodeterminação, repercutindo nas relações privadas e públicas.

Nesse sentido, o reconhecimento judicial do direito dos transexuais à alteração de seu prenome conforme o sentimento que eles têm de si mesmos, ainda que não tenham se submetido à cirurgia de transgenitalização, é medida que se revela em consonância com o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana.

Com efeito, o julgador deve analisar as razões íntimas e psicológicas do portador do nome e estar sensível à realidade que o cerca e às angústias de seu semelhante. E, na hipótese da transexualidade, a alteração do prenome da pessoa segundo sua autodefinição tem por escopo resguardar a sua dignidade, além de evitar situações humilhantes, vexatórias e constrangedoras.

O fato de o apelante não ter se submetido à cirurgia de transgenitalismo não pode constituir óbice ao acolhimento da alteração do prenome, entendimento esse adotado nos seguintes julgados:

"Apelação cível. Alteração do nome e averbação no registro civil. Transexualidade. Cirurgia de transgenitalização. – O fato de o apelante ainda não ter se submetido à cirurgia para a alteração de sexo não pode constituir óbice ao deferimento do pedido de alteração do nome. Enquanto fator determinante da identificação e da vinculação de alguém a um determinado grupo familiar, o nome assume fundamental importância individual e social. Paralelamente a essa conotação pública, não se pode olvidar que o nome encerra fatores outros, de ordem eminentemente pessoal, na qualidade de direito personalíssimo que constitui atributo da personalidade. Os direitos fundamentais visam à concretização do princípio da dignidade da pessoa humana, o qual atua como uma qualidade inerente, indissociável, de todo e qualquer ser humano, relacionando-se intrinsecamente com a autonomia, razão e autodeterminação de cada indivíduo. Fechar os olhos a essa realidade, que é reconhecida pela própria medicina, implicaria infração ao princípio da dignidade da pessoa humana, norma esculpida no inciso III do art. 1º da Constituição Federal, que deve prevalecer à regra da imutabilidade do prenome. Por maioria, proveram em parte" (Apelação Cível nº 70013909874, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relatora: Maria Berenice Dias, j. em 05.04.2006).

"Apelação. Retificação de registro civil. Transexualismo. Travestismo. Alteração de prenome independentemente da realização de cirurgia de transgenitalização. Direito à identidade pessoal e à dignidade. – A demonstração de que as características físicas e psíquicas do indivíduo, que se apresenta como mulher, não estão em conformidade com as características que o seu nome masculino representa coletiva e individualmente são suficientes para determinar a sua alteração. A distinção entre transexualidade e travestismo não é requisito para a efetivação do direito à dignidade. Tais fatos autorizam, mesmo sem a realização da cirurgia de transgenitalização, a retificação do nome da requerente para conformá-lo com a sua identidade social. Deram provimento" (Apelação Cível nº 70030504070, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Rui Portanova, j. em 29.10.2009).

"Apelação cível – Retificação de registro – Transexual não submetido a cirurgia de alteração de sexo – Modificação do prenome – Possibilidade – Autor submetido a situações vexatórias e constrangedoras todas as vezes em que necessita se apresentar com o nome constante em seu registro de nascimento – Princípio da dignidade da pessoa humana – Alteração do gênero biológico constante em seu registro de masculino para transexual sem ablação de genitália – Impossibilidade – Sentença reformada – Recurso conhecido e parcialmente provido" (Apelação Cível nº 3976/2012, 1º Vara Cível de Estância, Tribunal de Justiça do Estado de Sergipe, Rel.ª Des.ª Maria Aparecida Santos Gama da Silva, j. em 09.07.2012).

Em caso semelhante, de relatoria da eminente Des.ª Sandra Fonseca, esta egrégia Sexta Câmara Cível já teve a oportunidade de concluir:

"Retificação de registro – Alteração do nome e do sexo – Transexualismo – Indivíduo que se sente e aparenta ser do sexo feminino – Tratamento hormonal – Respeito à integridade moral e à dignidade humana – Situação excepcional que autoriza a retificação – Modificação que se recomenda a fim de evitar constrangimento público – Exclusão de patronímico em prejuízo da identificação familiar – Impossibilidade – Pedido julgado improcedente – Recurso provido em parte. 1 – O princípio da imutabilidade do registro conta com exceções que facultam ao interessado a correspondente retificação desde que devidamente motivada a pretensão. 2 – Manifestado o distúrbio conhecido como transexualismo, já tendo sido alcançada pelo indivíduo a aparência de mulher, assim conhecido no meio social, em respeito à integridade moral e à luz do mandamento constitucional da dignidade humana, revela-se possível a alteração do prenome constante do registro civil, adequando-se à realidade dos fatos. Precedentes do Superior Tribunal de Justiça. 3 – Se o interessado não se submeteu à intervenção cirúrgica de mudança de sexo, não se pode autorizar a alteração no registro civil neste particular, porque há riscos da segurança registrária em relação a terceiros. 4 – A retificação do nome autorizada pela Lei de Registros Públicos não permite a exclusão de patronímico que não causa constrangimento ao indivíduo, em prejuízo da correspondente identificação familiar, podendo, nessa circunstância, ser alterado apenas o prenome" (Apelação Cível 1.0232.10.002611-0/001, j. em 18.09.2012, publicação da súmula em 28.09.2012, destaquei).

Lado outro, ainda que as fotografias anexadas aos autos demonstrem que o apelante tenha uma aparência feminina, o regular processamento do feito, com instrução probatória exauriente, revela-se indispensável para a correta solução da presente controvérsia.

Somente após a avaliação de um profissional será possível analisar se, de fato, o apelante se identifica psicologicamente com o sexo oposto, sendo que a alegação de que é conhecido no meio em que vive como se fosse uma mulher, com a devida vênia, somente poderá ser definitivamente demonstrada mediante produção de provas pericial e testemunhal. 

Forçoso concluir pela presença das condições da ação, devendo ser assegurado o regular processamento do feito, com instrução probatória completa. 

Dou provimento ao recurso para cassar a r. sentença e determinar o regular prosseguimento do processo e, após a completa instrução probatória, outra sentença seja proferida com enfrentamento do mérito, segundo o elevado convencimento da MM.

Juíza da causa.

Custas, ao final, na forma da lei.

DES. ANTÔNIO SÉRVULO – Ressalvado meu entendimento pessoal e aguardando a decisão de mérito para apreciar o pedido, neste momento, concordo com o eminente Relator.

DES.ª SELMA MARQUES – Também ressalvo o meu entendimento pessoal e aguardo a decisão de mérito para apreciá-lo, conforme fez o eminente Revisor, para, neste momento, acompanhar o não menos eminente Relator.

Súmula – DERAM PROVIMENTO AO RECURSO PARA CASSAR A SENTENÇA.

Fonte: Recivil – DJE/MG | 10/07/2014.

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TJ/SP: CONSTRUTORA É CONDENADA A PAGAR INDENIZAÇÃO POR ATRASO EM ENTREGA DE IMÓVEL

A 5ª Câmara Extraordinária de Direito Privado do Tribunal de Justiça condenou uma construtora a indenizar os proprietários de uma sala comercial pelo atraso na entrega do imóvel. Eles receberão R$ 10 mil por danos morais e um valor correspondente a 26 meses de aluguel não aferidos como reparação por danos materiais.        

Os autores relataram que a empresa demorou mais de dois anos para entregar o consultório médico, sem nenhuma justificativa. O prazo foi superior ao de seis meses previsto em contrato como tolerância para finalização do imóvel. Em defesa, a companhia admitiu a ocorrência da demora, mas alegou que todos os interesses dos clientes acabaram sendo satisfeitos.        

O relator dos recursos de ambas as partes, Enio Santarelli Zuliani, confirmou a condenação de primeira instância por danos morais e entendeu que os dois autores fazem jus ao recebimento de soma por lucros cessantes. “O proprietário adquire direitos de uso e gozo, de modo que todo o atraso repercute de forma negativa no direito de perceberem os frutos civis”, afirmou em voto.        

Os desembargadores Natan Zelinschi de Arruda e Paulo Alcides Amaral Salles também participaram do julgamento e acompanharam o entendimento do relator.

A notícia refere-se a seguinte apelação: 9090576-71.2009.8.26.0000.

Fonte: TJ/SP | 02/07/2014.

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1ªVRP/SP: Para que se verifique se determinado direito foi ou não extinto depois da hasta pública, o critério decisivo não é (ou não é apenas) a natureza da arrematação, mas sobretudo os efeitos que a lei lhe atribua

Processo 0067139-09.2013.8.26.0100 – Dúvida – Registro de Imóveis – 14º Oficial do Registro de Imóveis – Tupi Transportes Urbanos Piratininga Ltda – Registro de Imóveis Pedido de Providências . requerimento de abertura de matrícula por força do registro de arrematação “Causa de extinção de direitos que existam sobre uma coisa” e “aquisição originária” não são conceitos de mesma extensão insuficiente o caráter originário da aquisição para que o direito novo tenha sido adquirido sem restrições ou limitações de qualquer espécie abertura de matrícula que não se justifica – impossibilidade dos cancelamentos de averbações para os quais faltem os requisitos legais Dúvida procedente. CP 370 Vistos. O Oficial do 14º Registro de Imóveis de São Paulo suscitou dúvida, a pedido de Tupi Transportes Urbanos Piratininga Ltda., decorrente de sua negativa de ingresso de carta de arrematação levada a registro, que tem por objeto o imóvel da matrícula 6.065 (fls. 02/05). A interessada solicitou a abertura de nova matrícula, desprovida de qualquer menção ou alusão aos eventuais ônus, gravames, indisponibilidades ou restrições que oneravam o bem, por ser a arrematação forma originária de aquisição da propriedade, segundo atual entendimento do E. Conselho Superior da Magistratura CSM (apelações cíveis 0007969-54.2010.8.26.0604 e 0018138-36.2011.8.26.0032) e do Superior Tribunal de Justiça STJ (AgRg no Ag 1246665; REsp 1179056; REsp 716438). O Registrador prestou informações (fls. 152) e sustentou que há necessidade de ordem expressa dos órgãos competentes para que sejam levantados ônus e constrições judiciais; no caso dos autos esclarece , a questão não está em saber se a arrematação é modo de aquisição derivado ou originário, mas sim em determinar se o ofício do registro de imóveis pode, sponte propria, promover cancelamentos como os pretendidos pela requerente (processos CG 2.413/1999 e CG 312/2006). Defende, ainda, que a arrematação não leva sequer a cancelamento indireto de penhoras feitas antes dela (apelações cíveis 13.838-0/4 e 15.296-0/4; processos CG 2.658/2001, CG 399/2007, CG 11.394/2006 e 13105/2010), que representam uma notícia importante para eventuais sub-adquirentes de imóveis em hasta pública, na consideração de que as alienações judiciais podem ser consideradas ineficazes perante outras execuções forçadas. O Ministério Público opinou pelo indeferimento do pedido (fls. 140/143). É o relatório. Decido. Como bem sustentado em recente sentença da lavra do Dr. Josué Modesto Passos, que me antecedeu nesta Corregedoria Permanente: “Causa de extinção de direitos (latissimo sensu) que existam sobre uma coisa” e “aquisição originária” não são conceitos de mesma extensão, ou seja, não designam o mesmo conjunto de objetos: a aquisição originária não conduz, sempre e de per si, à extinção de direitos que existam sobre uma coisa (e vice-versa, passe o truísmo: nem toda extinção de direitos sobre uma coisa advém de aquisição originária). Para ilustrar o que se disse bastam dois exemplos. Em primeiro lugar, a posse ad usucapionem sobre um imóvel pode ser exercida mansa e pacificamente com o respeito (muita vez, justamente por causa do respeito!) a uma servidão aparente e contínua (imagine-se, de aqueduto) que já exista sobre o imóvel; em tal hipótese, do só fato da usucapião não decorrerá, ipso iure, a extinção da servidão, pois é absurdo concluir que a aquisição venha extinguir aquilo que fora preciso respeitar para adquirir. Em segundo lugar, uma coisa móvel pode tornar-se adéspota (nullius) por abandono e, ainda assim, permanecer gravada com penhor que antes se constituíra sobre ela; nesse caso, uma posterior aquisição do domínio por ocupação (originária, portanto) também não implica, de per si, a extinção do direito real de garantia: a sequela, afinal, existe justamente para forrar o titular do penhor à disposição do proprietário. A confusão entre os dois conceitos (= “causa de extinção de direitos sobre uma coisa” e “aquisição originária”), porém, existe, e tentar desfazê-la é condição para conseguir uma solução adequada ao problema posto nestes autos. Tal confusão advém da falta de observação do seguinte: a aquisição originária, para caracterizar-se como tal, não exige que o direito adquirido originariamente tenha conteúdo distinto do conteúdo do direito anterior, nem que o direito anterior sempre seja “destruído” para que o direito agora adquirido possa surgir ex novo. Para que se fale em aquisição originária, o decisivo é que o direito tenha sido adquirido por meio de um suporte fático em que não haja entrado o direito anterior e só. Com efeito, a aquisição derivada é aquela em que “a existência de um outro direito pertence ao suporte fático da aquisição jurídica: então a aquisição do novo direito é deduzida, derivada da existência do direito já constituído. No caso de aquisição derivada, ‘a posição jurídica agora constituída está de tal forma ligada a uma outra, que esta última aparece como relação de procedência e, com isso, condiciona o surgimento da nova posição jurídica’ (Hellwig, Lehrb. § 39 I). Em outros casos a aquisição jurídica é independente da existência de um outro direito; tal aquisição é chamada de originária” (Andreas von Tuhr, Der Allgemeine Teil des Deutschen Bürgerlichen Rechts: die rechtserheblichen Tatsachen, insbesondere das Rechtsgeschäft. Goldbach: Keip, 1997 (Neudruck d. Ausg. München, 1914). v. 2 (1ª parte), p. 35). Dito de outra forma: a aquisição originária é aquela em cujo suporte fático não entra em linha de conta a existência de um outro direito: para o adquirente, o direito agora adquirido surge de maneira autônoma, etsi prius ius non daretur, ainda que não houvesse um direito anterior, embora pudesse ter havido.” “Se a propriedade foi adquirida originariamente, incorpora-se no patrimônio do adquirente em toda sua plenitude, da forma que ele quiser” (Maria Helena Diniz, Curso de Direito Civil brasileiro: Direito das Coisas, 12 ed. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 120); “Na aquisição originária, não se consideram vícios anteriores da propriedade porque não existe anterior titular a ser levado em conta” (Sílvio de Salvo Venosa, Direito Civil. Direit
os Reais, 4. ed. São Paulo: Atlas, 1999. vol. 5, p. 192). Pois bem: aplica-se à aquisição imobiliária fundada em arrematação forçada tudo o que até agora se disse sobre a relação entre a aquisição originária, de um lado, e a extinção de direitos que existam sobre o imóvel, de outro. Por outras palavras: ainda que exista uma aquisição originária na arrematação forçada imobiliária, nem por isso se tira, com base apenas no caráter originário da aquisição, que o conteúdo do domínio adquirido (= arrematado) sempre venha a ser distinto do conteúdo do domínio anterior (= penhorado), quer dizer, nem por isso se conclui que sempre se extingam os direitos pendentes sobre o domínio anterior, para que não continuem a pender sobre o domínio adquirido. Portanto, para que se verifique se determinado direito (latissimo sensu, recorde-se sempre) foi ou não extinto depois da hasta pública, o critério decisivo não é (ou não é apenas) a natureza mesma da arrematação, mas sobretudo os efeitos que a lei lhe atribua. É insuficiente invocar a natureza originária ou derivada da arrematação para tentar determinar, somente a partir disso, se em razão dela se extingam direitos que existam sobre o imóvel arrematado. Por exemplo, no REsp 40.191-SP, Rel. Dias Trindade, j. 14.12.1993, o STJ associou a extinção da hipoteca ao caráter originário da aquisição fundada em arrematação. Deve-se observar, porém, que nessa hipótese a extinção da hipoteca está expressamente prevista no CC02, art. 1.499, VI (antes, no Código Civil antigo CC16, art. 847, VII); logo, esse efeito que decorre de lei existe independentemente da natureza que a doutrina e a jurisprudência atribuam à aquisição imobiliária fundada em arrematação e, assim, não é um indício seguro nem dessa natureza, nem muito menos do fato de que da natureza originária se deva tirar a extinção da hipoteca (à parte o problema da petição de princípio). Ademais, o efeito extintivo sobre a hipoteca vem reconhecido desde o tempo em que a arrematação se entendia como uma compra e venda, e é curioso dizer que agora tal efeito exista por força de uma suposta natureza originária: de onde provinha, então, antes? Além disso, que o efeito da arrematação se deva procurar na legislação e não, simplesmente, na natureza que se possa atribuir à arrematação mesma dizem-no recentes decisões do E. Conselho Superior da Magistratura que, reconhecendo porém o caráter originário do ato, ressalvam a incidência do imposto municipal de transmissão, a possibilidade de evicção e a exigência de perfeita qualificação do arrematante e respectivo cônjuge, porque previstas em lei (cf., respectivamente, as apelações cíveis 0007969- 54.2010.8.26.0604, j. 10 05.12; 0034323-42.2011.8.26.0100, j. 12.09.12; e 0003196-60.2010.8.26.0411, j. 04.10.12). Posto isso, fica determinada a verdadeira questão por examinar neste processo: saber que diga a lei sobre o cancelamento, no registro de imóveis, do arrolamento administrativo (Lei n. 9.532/97) e da penhora (CPC73, art. 659, §§ 4º-6º), o que não há maneira de resolver, discutindo somente se a arrematação conduza a uma aquisição originária ou derivada do domínio imobiliário. A lei é clara: o cancelamento tem de fazer-se em cumprimento a decisão judicial transitada em julgado; ou a requerimento unânime das partes que tenham participado do ato registrado; ou a requerimento do interessado, instruído com documento hábil (LRP73, art. 250, I-III); ou ainda, em juízo, por iniciativa de terceiro prejudicado (LRP73, art. 253). Ora, a arrematação, no direito brasileiro, não faz coisa julgada (ASSIS, Araken de, Manual da execução. 13. ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 878; THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. Processo de Execução e Cumprimento da Sentença. Processo Cautelar e Tutela de Urgência. 41. ed. Forense: Rio de Janeiro, 2007. v. 3, p. 387) e, mesmo que se interprete o art. 250, I, verbis “transitada em julgado”, como compreensivo da mera preclusão, fato é que a decisão de arrematação (implícita na assinatura do auto pelo juiz) não teve por objeto o desfazimento da penhora e do arrolamento administrativo, ao que se vê nestes autos. Tem fundamento em lei a exigência de que o arrematante solicite o cancelamento das constrições às autoridades que as determinaram (como, de resto, já declarou o E. Conselho da Magistratura cf. fls. 44), sendo que o Registrador agiu corretamente quando se negou a proceder às averbações com fundamento apenas no registro da arrematação. Por fim, não há razão para abrir matrícula. De um lado, a providência não convém à boa ordem dos serviços, pois pode dar margem a dificuldades ainda maiores quando houver arrematação de parte ideal. De outro lado, a abertura de matrícula não é sinônimo sucedâneo de cancelamento de direitos, e sobre isso basta dizer que há casos em que a matrícula se abre, mas se lhe transportam inscrições de direitos que pendam sobre o imóvel. Do exposto, JULGO PROCEDENTE a dúvida suscitada pelo 14º Oficial de Registro de Imóveis da Capital, a pedido de Tupi Transportes Urbanos Piratininga Ltda. Não há custas, despesas processuais nem honorários advocatícios. Oportunamente, arquivem-se estes autos. P.R.I.C. São Paulo, 10 de junho de 2014. Tânia Mara Ahualli Juíza de Direito (CP 370) – ADV: HENRIQUE RATTO RESENDE (OAB 216373/SP)

Fonte: DJE/SP | 02/07/2014.

Publicação: Portal do RI (Registro de Imóveis) | O Portal das informações notariais, registrais e imobiliárias!

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