1VRP/SP: A atual orientação firmada pelo Superior Tribunal de Justiça nos Embargos de Divergência n. 1.623.858/MG é pela releitura da antiga súmula 377 do STF, com compreensão de que o esforço comum não pode ser presumido.


  
 

Processo 1041223-04.2023.8.26.0100

Pedido de Providências – Registro de Imóveis – Laila Ali El Sayed – Diante do exposto, JULGO PARCIALMENTE PROCEDENTE o pedido para determinar a abertura de matrícula para os imóveis transcritos sob n. 100.136 e 148.179 perante o 11º RI, com posterior averbação do regime de bens adotado por Youssif Ali El Sayed e Raya Youssef El Sayed (separação total) e do óbito de Raya Youssef El Sayed. Determino, ainda, que o Oficial produza, no prazo de cinco dias, a nota de devolução da prenotação n. 987.143, observando que todos os elementos necessários à avaliação do caso devem ser trazidos com suas informações. Deste procedimento não decorrem custas, despesas processuais ou honorários advocatícios. Oportunamente, remetam-se os autos ao arquivo. P.R.I.C. – ADV: LAILA ALI EL SAYED (OAB 130093/SP)

Íntegra da decisão:

SENTENÇA

Processo Digital nº: 1041223-04.2023.8.26.0100

Classe – Assunto Pedido de Providências – Registro de Imóveis

Requerente: Oficial do 15º de Registro de Imóveis de São Paulo

Requerido: Laila Ali El Sayed

Juiz(a) de Direito: Dr(a). Luciana Carone Nucci Eugênio Mahuad

Vistos.

Trata-se de pedido de providências formulado pelo Oficial do 15º Registro de Imóveis da Capital a requerimento de Laila Ali El Sayed diante da negativa em se proceder à abertura de matrícula para os imóveis transcritos sob n. 100.136 e 148.179 perante o 11º Registro de Imóveis e às averbações relativas ao regime de bens do casamento de seus genitores, ao óbito de sua genitora e à alteração dos números dos prédios da transcrição n. 100.136 (prenotação n. 987.143).

O Oficial informa que, embora a parte tenha requerido a suscitação de dúvida, formulou pedido de providências porque os atos envolvem abertura de matrícula e averbação; que os genitores da parte interessada se casaram no Líbano, pelo regime da separação total de bens; que, apesar de somente Youssif Ali El Sayed constar como proprietário dos imóveis, a incomunicabilidade deve ser comprovada mediante a propositura de ação judicial, conforme precedentes desta 1ª Vara de Registros Públicos (processos de autos n. 0047735-06.2012.8.26.0100, 1000413-94.2017.8.26.0100 e 1047162-96.2022.8.26.0100); que, com as averbações, os imóveis passariam a pertencer integralmente a Youssif; que não se apresentou comprovante municipal de alteração da numeração dos prédios n. 821 e 823 do imóvel da transcrição n. 100.136.

Documentos vieram às fls. 10/68.

A parte interessada apresentou impugnação às fls. 75/79, aduzindo, preliminarmente, que a suscitação de dúvida se refere à prenotação n. 984.622, cujo requerimento foi protocolado pelo 30º Tabelião de Notas; que não foi informada sobre a diferença entre suscitação de dúvida e pedido de providências; que o cartório recebeu o requerimento como suscitação de dúvida, mas não deu encaminhamento; que o preposto informou que a troca de numeração da prenotação atual não interferiria na prenotação n. 984.622, pelo que requer a juntada do requerimento objeto desta prenotação. No mérito, alega que o próprio Oficial juntou aos autos o comprovante municipal da alteração da numeração dos prédios n. 821 e 823, atualmente n. 815 e 821, respectivamente; que o termo “um prédio” foi corrigido para “dois prédios” no requerimento da prenotação n. 984.622; que as transcrições comprovam que os imóveis foram adquiridos somente pelo genitor, falecido posteriormente à genitora; que a certidão de casamento, na qual consta o regime de separação total de bens, já foi transcrita e legalizada no Brasil; que a jurisprudência dominante entende que o casamento realizado no exterior produz efeitos no Brasil; que ambos os cônjuges são falecidos, não existindo prejuízo na averbação do regime de bens no Registro de Imóveis; que uma nova certidão do Consulado libanês foi encaminhada com o último requerimento de averbação, mas não consta nos autos. Juntou documentos às fls. 80/81.

A decisão de fl. 82 determinou o prosseguimento do feito como pedido de providências.

A parte reiterou a impugnação de fls. 75/79 (fl. 86).

O Ministério Público opinou pela manutenção dos óbices (fls. 87/88).

É o relatório.

Fundamento e decido.

Por primeiro, observo que o Oficial não juntou aos autos a nota de devolução da prenotação n. 987.143, objeto deste pedido de providências, mas somente as notas devolutivas anteriores (fls. 16/21).

Além disso, o pedido de suscitação de dúvida feito pela parte em 08/03/2023 se refere à prenotação n. 984.622 (fl. 10), não havendo pedido nesse sentido na manifestação de 09/11/2022, relativa à prenotação n. 987.143 (fls. 11/14).

Ainda assim, considerando que os fatos foram apresentados ao juízo competente e que os elementos produzidos são suficientes para sua compreensão, passo ao julgamento de imediato.

O Registrador dispõe de autonomia e independência no exercício de suas atribuições, podendo recusar títulos que entender contrários à ordem jurídica e aos princípios que regem sua atividade (art. 28 da Lei n. 8.935/1994), o que não se traduz como falha funcional.

De fato, no sistema registral, vigora o princípio da legalidade estrita, pelo qual somente se admite o ingresso de título que atenda aos ditames legais.

Em outras palavras, o Oficial, quando da qualificação registral, perfaz exame dos elementos extrínsecos do título à luz dos princípios e normas do sistema jurídico (aspectos formais), devendo obstar o ingresso daqueles que não se atenham aos limites da lei.

É o que se extrai do item 117 do Cap. XX das Normas de Serviço:

“Incumbe ao oficial impedir o registro de título que não satisfaça os requisitos exigidos pela lei, quer sejam consubstanciados em instrumento público ou particular, quer em atos judiciais”.

No mérito, porém, o pedido é parcialmente improcedente. Vejamos os motivos.

No caso concreto, verifica-se que Youssif Ali El Sayed e Raya Youssef El Sayed, genitores da parte interessada, se casaram em Bar Elias, Comarca de Zahle, Líbano, em 20/06/1959 (fls. 57/58 e 61/62).

Em 16/12/1959, Youssif Ali El Sayed adquiriu do proprietário tabular o imóvel objeto da transcrição n. 100.136 do 11º RI mediante escritura de compra e venda lavrada perante o 18º Tabelião de Notas da Capital, a qual foi registrada em 24/11/1960 (fls. 32/33).

Por sua vez, em 14/03/1966, Youssif Ali El Sayed adquiriu dos proprietários tabulares o imóvel objeto da transcrição n. 148.179 do 11º RI mediante escritura de compra e venda lavrada perante o 18º Tabelião de Notas da Capital, com registro em 28/12/1966 (fls. 40/41).

Em ambas as transcrições, somente Youssif Ali El Sayed consta como atual proprietário, qualificado da seguinte forma: “Youssif Ali El Sayed, libanês, casado (…)”.

Ausente, portanto, informação acerca do regime de bens adotado pelo casal.

Tratando-se de casamento contraído no exterior, deve ser observado o regime de bens vigente naquele país (domicílio dos nubentes), conforme prevê o artigo 7º, § 4º, do Decreto-Lei n. 4.657/42 (Lei de Introdução às Normas do Direito brasileiro):

“Art. 7º A lei do país em que domiciliada a pessoa determina as regras sobre o começo e o fim da personalidade, o nome, a capacidade e os direitos de família.

(…)

§ 4º O regime de bens, legal ou convencional, obedece à lei do país em que tiverem os nubentes domicílio, e, se este for diverso, a do primeiro domicílio conjugal”.

Apesar de a certidão de transcrição do casamento e a certidão traduzida não especificarem o regime de bens adotado, a declaração do Consulado Geral do Líbano em São Paulo comprova que o regime de bens do casamento é o da separação total, único em vigor naquele país (fl. 60).

A pretensão é de abertura de matrícula dos imóveis transcritos sob n. 100.136 e 148.179 perante o 11º RI e de posterior averbação do regime de bens do casamento dos genitores da parte interessada, bem como do óbito da genitora.

Note-se que, nas prenotações anteriores, sob n. 969.091, 977.608 e 984.622, não há exigência relativa à abertura de matrícula (fls. 16/21).

Assim e à vista dos fatos expostos, conclui-se como possível a abertura de matrícula para ambos os imóveis perante o 15º RI, conforme permitem os artigos 169, inciso I, e 176, §1º, inciso I, da Lei n. 6.015/73, com redação dada pela Lei n. 14.382/2022 (destaque nosso):

“Art. 169. Todos os atos enumerados no art. 167 desta Lei são obrigatórios e serão efetuados na serventia da situação do imóvel, observado o seguinte:

I – as averbações serão efetuadas na matrícula ou à margem do registro a que se referirem, ainda que o imóvel tenha passado a pertencer a outra circunscrição, observado o disposto no inciso I do § 1º e no § 18 do art. 176 desta Lei; (…)

Art. 176 – O Livro nº 2 – Registro Geral – será destinado, à matrícula dos imóveis e ao registro ou averbação dos atos relacionados no art. 167 e não atribuídos ao Livro nº 3.

§ 1º A escrituração do Livro nº 2 obedecerá às seguintes normas:

I – cada imóvel terá matrícula própria, que será aberta por ocasião do primeiro ato de registro ou de averbação caso a transcrição possua todos os requisitos elencados para a abertura de matrícula”.

Com efeito, as transcrições possuem todos os requisitos da matrícula: data do negócio jurídico; identificação e caracterização do imóvel, com localização, nome do logradouro para o qual faz frente e número dos prédios; nome e qualificação do proprietário; número e data do registro anterior (artigo 176, § 1º, inciso II, da LRP, e itens 56 e 57, Cap. XX, das NSCGJ – fls. 32 e 40).

Quanto às averbações, por entender que envolvem a comunicabilidade ou não dos imóveis, o Oficial concluiu pela necessidade de decisão judicial sobre a questão.

No entanto, considerando que as transcrições se limitam a informar que Youssif é casado, possível também averbação quanto ao regime de bens do casamento à vista do documento oficial produzido (Consulado do Líbano – fl. 60), em atendimento ao princípio da especialidade subjetiva.

Em outros termos, não há discussão a respeito da comunicabilidade ou da incomunicabilidade dos bens neste momento, notadamente porque o presente caso não envolve transmissão da propriedade, o que justifica a não aplicação dos precedentes mencionados pelo Oficial.

Porém, ainda que houvesse discussão nesse sentido, a atual orientação firmada pelo Superior Tribunal de Justiça nos Embargos de Divergência n. 1.623.858/MG é pela releitura da antiga súmula 377 do STF, com compreensão de que o esforço comum não pode ser presumido:

“EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA NO RECURSO ESPECIAL. DIREITO DE FAMÍLIA. UNIÃO ESTÁVEL. CASAMENTO CONTRAÍDO SOB CAUSA SUSPENSIVA. SEPARAÇÃO OBRIGATÓRIA DE BENS (CC/1916, ART. 258, II; CC/2002, ART. 1.641, II). PARTILHA. BENS ADQUIRIDOS ONEROSAMENTE. NECESSIDADE DE PROVA DO ESFORÇO COMUM. PRESSUPOSTO DA PRETENSÃO. MODERNA COMPREENSÃO DA SÚMULA 377/STF. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA PROVIDOS.

1. Nos moldes do art. 1.641, II, do Código Civil de 2002, ao casamento contraído sob causa suspensiva, impõe-se o regime da separação obrigatória de bens.

2. No regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento, desde que comprovado o esforço comum para sua aquisição.

3. Releitura da antiga Súmula 377/STF (No regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento), editada com o intuito de interpretar o art. 259 do CC/1916, ainda na época em que cabia à Suprema Corte decidir em última instância acerca da interpretação da legislação federal, mister que hoje cabe ao Superior Tribunal de Justiça.

4. Embargos de divergência conhecidos e providos, para dar provimento ao recurso especial” (EREsp 1623858/MG, Rel. Ministro LÁZARO GUIMARÃES (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TRF 5ª REGIÃO), SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 23/05/2018, DJe 30/05/2018).

Como já dito, as escrituras foram lavradas em 1959 e 1966 e registradas em 1960 e 1966, respectivamente, de modo que as exigências do artigo 176 da LRP ainda não existiam, especialmente quanto aos requisitos da especialidade subjetiva, nos termos do § 2º do mesmo artigo.

O artigo 190 do Decreto n. 4.857/1939 estipulava como requisito da especialidade subjetiva somente a indicação de nome, domicílio e profissão da pessoa, como constou nas transcrições (fls. 32 e 40).

Não há, ademais, qualquer empecilho para averbação do regime de bens do casamento e, consequentemente, do nome de Raya Youssef El Sayed nas transcrições n. 100.136 e 148.179 do 11º RI, atualmente pertencentes ao 15º RI, já que tais informações são conhecidas por meio de documentos oficiais e apenas aperfeiçoarão o registro imobiliário (fls. 57/58, 60 e 61/62).

Justamente porque o nome de Raya Youssef El Sayed passará a constar nas matrículas, a averbação de seu óbito também é possível (fls. 26/27).

Por fim, em relação à mudança de numeração dos prédios n. 821 e 823 do imóvel da transcrição n. 100.136 (Av.1 e Av.2, 14/11/1963 fls. 32/33), não há nos autos comunicação nesse sentido expedida pelo município de São Paulo.

Além disso, na certidão de numeração e na certidão de dados cadastrais do imóvel, há informação de que os prédios n. 823 e 827, não mencionados na transcrição n. 100.136, foram substituídos pelos números 815 e 821, conforme retificação numérica realizada em 26/11/1968 (fls. 34/35).

Dessa forma, tendo em vista que não restou demonstrado por documento oficial que os prédios n. 821 e 823 possuem atualmente os números 815 e 821 nem que houve alguma outra alteração numérica entre as averbações de 1963 e a retificação de 1968, a mudança de numeração não pode ser averbada.

Diante do exposto, JULGO PARCIALMENTE PROCEDENTE o pedido para determinar a abertura de matrícula para os imóveis transcritos sob n. 100.136 e 148.179 perante o 11º RI, com posterior averbação do regime de bens adotado por Youssif Ali El Sayed e Raya Youssef El Sayed (separação total) e do óbito de Raya Youssef El Sayed.

Determino, ainda, que o Oficial produza, no prazo de cinco dias, a nota de devolução da prenotação n. 987.143, observando que todos os elementos necessários à avaliação do caso devem ser trazidos com suas informações.

Deste procedimento não decorrem custas, despesas processuais ou honorários advocatícios.

Oportunamente, remetam-se os autos ao arquivo.

P.R.I.C.

São Paulo, 29 de maio de 2023.

Luciana Carone Nucci Eugênio Mahuad

Juiz de Direito. (DJe de 31.05.2023 – SP)

Fonte: Diário da Justiça Eletrônico.

Publicação: Portal do RI (Registro de Imóveis) | O Portal das informações notariais, registrais e imobiliárias.

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