1VRP/SP: ex-cônjuges e proprietários registrários passam a poder dispor do patrimônio comum independentemente de partilha e sem violação ao princípio da continuidade, desde que averbada, previamente, a alteração do estado civil. Se ex-cônjuges podem dispor do patrimônio comum independentemente de partilha, o mesmo raciocínio pode ser aplicado ao inventário de bens não partilhados.


  
 

Processo 1117320-45.2023.8.26.0100

Dúvida – Registro de Imóveis – Tiago Costa Meireles – – Maria Luiza Tosetti Costa – Diante do exposto, JULGO PROCEDENTE a dúvida para manter o óbice. Deste procedimento não decorrem custas, despesas processuais ou honorários advocatícios. Oportunamente, ao arquivo com as cautelas de praxe. P.R.I.C. – ADV: MARIA MYRNA LOY GUERRA FILGUEIRAS (OAB 33987/SP)

Íntegra da decisão:

SENTENÇA

Processo Digital nº: 1117320-45.2023.8.26.0100

Classe – Assunto Dúvida – Registro de Imóveis

Suscitante: Primeiro Cartório de Registro de Imóveis de São Paulo

Suscitado: Tiago Costa Meireles e outro

Juiz(a) de Direito: Dr(a). Luciana Carone Nucci Eugênio Mahuad

Vistos.

Trata-se de dúvida suscitada pelo Oficial do 1º Registro de Imóveis da Capital a requerimento de Tiago Costa Meireles e Maria Luiza Tosetti Costa diante da negativa de registro de formal de partilha extraído do processo de autos n. 701/00, que tramitou perante a 6ª Vara Cível da Comarca de Sorocaba/SP, o qual envolve o imóvel da matrícula n. 122.133 daquela serventia (prenotação n. 436.571).

A recusa se fundou na violação ao princípio da continuidade, uma vez que a documentação apresentada indica que, anteriormente ao falecimento do inventariado Álvaro Fernando Franco Meireles, ocorreu a separação consensual dos coproprietários tabulares, Maria Luiza Tosetti Costa e Álvaro, mas o imóvel objeto da matrícula n. 122.133 não foi partilhado.

O Oficial esclarece que o de cujus adquiriu 50% do imóvel enquanto solteiro, mas se casou com Maria Luiza Tosseti Costa em 02/05/1970 pelo regime da comunhão universal de bens e faleceu no estado civil de divorciado; que, de acordo com a decisão proferida na ação de inventário e partilha dos bens deixados pelo falecimento de Álvaro (processo de autos n. 701/00), os herdeiros filhos herdaram a metade ideal do imóvel; que, entretanto, não consta transcrição ou registro pelo qual o falecido tenha adquirido a parte ideal da ex-esposa, totalizando a titularidade de domínio de 50% do imóvel objeto do formal de partilha; que, não obstante entendimento relativo a eventual prescrição aquisitiva, o reconhecimento deve ser consubstanciado em sentença a ser registrada.

Documentos vieram às fls. 04/153.

Em manifestação dirigida ao Oficial e em impugnação, a parte suscitada alegou que houve um lapso quando da partilha na separação do casal; que ingressou com ação declaratória de nulidade parcial da sentença homologatória da partilha realizada no inventário (processo de autos n. 1005744-98.2020.8.26.0602), porém, em razão do decurso do tempo, o juízo da 1ª Vara de Família e Sucessões da Comarca de Sorocaba julgou o pedido improcedente, observando que eventual sobrepartilha estaria prescrita; que a própria ex-mulher comparece em apoio ao herdeiro na expectativa de que o princípio da continuidade seja afastado em virtude do tempo transcorrido; que não há nenhuma outra medida a ser adotada para sanar a irregularidade ocorrida sem que surja o argumento relativo à prescrição (fls. 05/06 e 154/156).

O Ministério Público opinou pela procedência (fls. 160/162).

É o relatório.

Fundamento e decido.

Por primeiro, vale destacar que os títulos judiciais não estão isentos de qualificação para ingresso no fólio real.

O Egrégio Conselho Superior da Magistratura já decidiu que a qualificação negativa do título judicial não caracteriza desobediência ou descumprimento de decisão judicial (Apelação Cível n. 413-6/7).

Neste sentido, também a Ap. Cível nº 464-6/9, de São José do Rio Preto:

“Apesar de se tratar de título judicial, está ele sujeito à qualificação registrária. O fato de tratar-se o título de mandado judicial não o torna imune à qualificação registrária, sob o estrito ângulo da regularidade formal. O exame da legalidade não promove incursão sobre o mérito da decisão judicial, mas à apreciação das formalidades extrínsecas da ordem e à conexão de seus dados com o registro e a sua formalização instrumental”.

E, ainda:

“REGISTRO PÚBLICO – ATUAÇÃO DO TITULAR – CARTA DE ADJUDICAÇÃO – DÚVIDA LEVANTADA – CRIME DE DESOBEDIÊNCIA – IMPROPRIEDADE MANIFESTA.

O cumprimento do dever imposto pela Lei de Registros Públicos, cogitando-se de deficiência de carta de adjudicação e levantando-se dúvida perante o juízo de direito da vara competente, longe fica de configurar ato passível de enquadramento no artigo 330 do Código Penal – crime de desobediência -, pouco importando o acolhimento, sob o ângulo judicial, do que suscitado” (STF, HC 85911 / MG – MINAS GERAIS, Relator: Min. MARCO AURÉLIO, j. 25/10/2005, Primeira Turma).

Sendo assim, não há dúvidas de que a mera existência de título proveniente de órgão jurisdicional não basta para autorizar automaticamente seu ingresso no registro tabular.

No mérito, a dúvida é procedente. Vejamos os motivos.

Quanto ao ingresso pretendido, imprescindível que se observe o princípio da continuidade, conforme explicado por Afrânio de Carvalho:

“O princípio da continuidade, que se apoia no de especialidade, quer dizer que, em relação a cada imóvel, adequadamente individuado, deve existir uma cadeia de titularidade à vista da qual só se fará a inscrição de um direito se o outorgante dele aparecer no registro como seu titular. Assim, as sucessivas transmissões, que derivam umas das outras, asseguram a preexistência do imóvel no patrimônio do transferente” (Registro de Imóveis, Editora Forense, 4ª edição, p. 254).

Ou seja, o título deve estar em conformidade com o inscrito no registro.

No caso concreto, extrai-se da transcrição n. 60.240, sucedida pela matrícula n. 122.133, que o de cujus Álvaro Fernando Franco Meireles adquiriu a propriedade da quarta parte do imóvel por sucessão de seu pai, Oscar Meireles, falecido em 30/12/1966 (fls. 150/151).

Em 08/03/1972, por escritura pública de doação com reserva de usufruto datada de 26/04/1968, Orminda Franco Meireles, genitora de Álvaro e viúva de Oscar, doou a sua metade ideal do imóvel a seus dois filhos (um quarto para cada), de modo que Álvaro passou a ser proprietário da metade ideal do imóvel (fls. 92/95 e 148/149).

Posteriormente, Álvaro se casou com Maria Luiza Tosetti Costa pelo regime da comunhão universal de bens, com quem teve os filhos Tiago Costa Meireles, Fábia Costa Meireles e Cláudia Costa Meireles (02/05/1970, conforme Av.03 da transcrição n. 72.982 e Av.02 da transcrição n. 60.240 fls. 148/149 e 150/151).

Em 15/09/1981, o juízo da 5ª Vara de Família e das Sucessões da Comarca de São Paulo homologou por sentença a separação consensual do casal (processo de autos n. 1450/81 fls. 62/69, 70 e 72).

Assim, apesar de Álvaro ter recebido a metade ideal do bem enquanto solteiro, verifica-se que houve comunicação com o patrimônio de Maria Luiza Tosetti Costa em virtude do regime de bens do casamento, razão pela qual ambos constam como proprietários na matrícula n. 122.133 (fls. 146/147).

Ocorre que, quando da separação judicial, a metade ideal do imóvel não foi partilhada entre Álvaro e Maria Luiza: no rol dos bens pertencentes ao casal, consta somente um imóvel, o qual não corresponde àquele objeto da presente dúvida (item 3, “a” fls. 62/69).

Por sua vez, a pretensão da parte suscitada consiste no registro do formal de partilha extraído do inventário de autos n. 701/00, da 6ª Vara Cível da Comarca de Sorocaba, referente aos bens deixados por Álvaro Fernando Franco Meireles, falecido em 28/01/2000 (fls. 04, 20, 22/24 e 34).

Nota-se que, dentre os bens arrolados no plano de partilha homologado em 19/07/2001, está a metade ideal do imóvel da matrícula n. 122.133 (item IV, “c” fls. 40/60 e 130).

Contudo, a parte de Maria Luiza foi desconsiderada: a totalidade da propriedade da metade ideal do imóvel foi atribuída a Álvaro.

Assim, justamente pela falta de identificação do título apresentado (formal de partilha fls. 20/144) com o conteúdo da matrícula é que a qualificação negativa foi acertada, tudo em respeito ao princípio da continuidade registrária citado (artigos 195 e 237 da Lei n. 6.015/73):

“Art. 195 Se o imóvel não estiver matriculado ou registrado em nome do outorgante, o oficial exigirá a prévia matrícula e o registro do título anterior, qualquer que seja a sua natureza, para manter a continuidade do registro.

(…)

Art. 237 Ainda que o imóvel esteja matriculado, não se fará registro que dependa da apresentação de título anterior, a fim de que se preserve a continuidade do registro”.

No mesmo sentido, o item 47 do Cap. XX das NSCGJ:

“Se o imóvel não estiver matriculado ou registrado em nome do outorgante, o oficial exigirá a prévia matrícula e o registro do título anterior, qualquer que seja a sua natureza, para manter a continuidade do registro, observando-se as exceções legais no que se refere às regularizações fundiárias”.

No que diz respeito à prescrição de eventual direito de ação de sobrepartilha, a parte sustenta que o princípio da continuidade pode ser afastado em virtude do tempo transcorrido desde a separação do casal, notadamente porque a própria interessada comparece em apoio ao herdeiro.

Entretanto, além de o juízo da 1ª Vara de Família e Sucessões da Comarca de Sorocaba não ter reconhecido a prescrição da pretensão de sobrepartilha, já que esta não era o objeto do pedido, não cabe reconhecimento de decadência ou prescrição nesta via administrativa (processo de autos n. 1005744-98.2020.8.26.0100 fls. 09/12 e 17).

Em verdade, ainda que verificada a prescrição de eventual direito de ação, o registro do formal de partilha continuará não sendo possível na forma como apresentado em razão da violação ao princípio da continuidade, como já explicado.

Por outro lado, em que pese o entendimento de preservação do estado de mancomunhão até a efetiva partilha, existe fundamento nas Normas de Serviço para se admitir que, com o divórcio ou a separação judicial, o regime de bens é extinto, de modo que a comunhão patrimonial se transforma em condomínio (nota lançada ao subitem 14, alínea “b”, do item 9, do Capítulo XX, das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça do Tribunal de Justiça de São Paulo, destaque nosso):

“9. No Registro de Imóveis, além da matrícula, serão feitos:

b) a averbação de:

(…)

14. escrituras públicas de separação, divórcio e dissolução de união estável, das sentenças de separação judicial, divórcio, nulidade ou anulação de casamento, quando nas respectivas partilhas existirem imóveis ou direitos reais sujeitos a registro;

NOTA: A escritura pública de separação, divórcio e dissolução de união estável, a sentença de separação judicial, divórcio, nulidade ou anulação de casamento será objeto de averbação, quando não decidir sobre a partilha de bens dos cônjuges, ou apenas afirmar permanecerem estes, em sua totalidade, em comunhão, atentando-se, neste caso, para a mudança de seu caráter jurídico, com a dissolução da sociedade conjugal e surgimento do condomínio pro indiviso”.

Portanto, ex-cônjuges e proprietários registrários passam a poder dispor do patrimônio comum independentemente de partilha e sem violação ao princípio da continuidade, desde que averbada, previamente, a alteração do estado civil.

Se ex-cônjuges podem dispor do patrimônio comum independentemente de partilha, o mesmo raciocínio pode ser aplicado ao inventário de bens não partilhados.

Considerando que a separação judicial foi averbada nas transcrições n. 72.982 e 60.240, com consequente extinção do regime de bens e surgimento de condomínio entre os ex-cônjuges, há que se observar que a propriedade de Álvaro corresponde a um quarto do imóvel da matrícula n. 122.133, preservando-se, assim, a propriedade de um quarto de Maria Luiza (fls. 44/46 e 146/147). Retificação deve ser buscada, em consequência, nos próprios autos do inventário, nos termos do artigo 656 do Código de Processo Civil.

Diante do exposto, JULGO PROCEDENTE a dúvida para manter o óbice.

Deste procedimento não decorrem custas, despesas processuais ou honorários advocatícios.

Oportunamente, ao arquivo com as cautelas de praxe.

P.R.I.C.

São Paulo, 02 de outubro de 2023.

Luciana Carone Nucci Eugênio Mahuad

Juiz de Direito (DJe de 04.10.2023 – SP)

Fonte: Diário da Justiça Eletrônico.

Publicação: Portal do RI (Registro de Imóveis) | O Portal das informações notariais, registrais e imobiliárias.

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