Apelação Cível nº 1006438-53.2024.8.26.0529
Número: 1006438-53.2024.8.26.0529
Comarca: SANTANA DE PARNAÍBA
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
CONSELHO SUPERIOR DA MAGISTRATURA
Apelação Cível nº 1006438-53.2024.8.26.0529
Registro: 2025.0000988367
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível nº 1006438-53.2024.8.26.0529, da Comarca de Santana de Parnaíba, em que é apelante VENEZA EMPREENDIMENTOS IMOBILIÁRIOS E PARTICIPAÇÕES SOCIETÁRIAS LTDA, é apelado OFICIAL DE REGISTRO DE IMÓVEIS E ANEXOS DA COMARCA DE SANTANA DE PARNAÍBA.
ACORDAM, em Conselho Superior da Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: “Deram provimento ao recurso, v u.”, de conformidade com o voto do Relator, que integra este acórdão.
O julgamento teve a participação dos Exmos. Desembargadores FERNANDO TORRES GARCIA (PRESIDENTE TRIBUNAL DE JUSTIÇA) (Presidente), BERETTA DA SILVEIRA (VICE PRESIDENTE), XAVIER DE AQUINO (DECANO), TORRES DE CARVALHO(PRES. SEÇÃO DE DIREITO PÚBLICO), HERALDO DE OLIVEIRA (PRES. SEÇÃO DE DIREITO PRIVADO) E CAMARGO ARANHA FILHO(PRES. SEÇÃO DE DIREITO CRIMINAL).
São Paulo, 17 de setembro de 2025.
FRANCISCO LOUREIRO
Corregedor Geral da Justiça e Relator
APELAÇÃO CÍVEL nº 1006438-53.2024.8.26.0529
Apelante: Veneza Empreendimentos Imobiliários e Participações Societárias Ltda
Apelado: Oficial de Registro de Imóveis e Anexos da Comarca de Santana de Parnaíba
VOTO Nº 43.890
Direitos reais – Processo de dúvida – Escritura de venda e compra – Ordens de indisponibilidade – Registro recusado – Dúvida julgada procedente – Apelo provido.
I. Caso em Exame. 1. A interessada, adquirente do domínio útil de bem imóvel e cessionária de direitos anteriormente prometidos à venda pela enfiteuta aos cedentes, anuentes ao negócio jurídico, pretende o registro da escritura de venda e compra, recusado pelo Oficial, diante das indisponibilidades em nome dos cedentes. 2. Irresignada, a cessionária requereu suscitação de dúvida, julgada procedente; agora, interpôs apelação.
II. Questões em Discussão. 3. A controvérsia versa sobre as indisponibilidades em nome dos cedentes, anuentes, não averbadas na matrícula do bem imóvel objeto da cessão; tal negócio jurídico foi antecedido pela promessa de venda e compra também não levada a registro, e sucedido pelo negócio de transmissão do domínio útil à cessionária pelo enfiteuta, cuja correspondente escritura teve seu registro negado; discute-se se a indisponibilidade relacionada às pessoas dos cedentes em cadeia de transmissão não levada ao registro imobiliário obsta o acesso do título do negócio de cessão.
III. Razões de Decidir. 4. As indisponibilidades que recaem sobre os anuentes, ainda que vigentes ao tempo da dação em pagamento por meio da qual cederam seus direitos (não registrados) à suscitada, em favor de quem, por causa da cessão, outorgada a escritura de venda e compra, não impedem o registro intencionado, pois não constantes da matrícula. 5. A não oponibilidade das indisponibilidades decorre do princípio da concentração dos riscos, à luz do qual não são oponíveis ao adquirente, terceiro de boa-fé, as situações não registradas/averbadas na matrícula. 6. Prepondera, in concreto, a ponderação legislativa, expressa no art. 54 da Lei n.º 13.097/2015, que, em detrimento pontual da segurança jurídica, optou pela proteção dos negócios imobiliários, pela segurança do tráfico imobiliário, em prestígio assim da fé pública registral, da confiança espelhada no registro predial, da confiança na legitimação registral. 7. A inscrição visada está em conformidade com o princípio do trato sucessivo e a disponibilidade registral (tabular). 8. Negócios jurídicos extrínsecos ao registro, alheios à matrícula, extratabulares, em particular, a promessa de venda e a dação em pagamento referidas no título aquisitivo, negócios intermediários, lá descritos para contextualizar a cadeia de transmissões, e justificar a outorga do título, não obstam a inscrição constitutiva requerida. 9. O juízo de desqualificação registral é de ser revisto; a dúvida é improcedente.
IV. Dispositivo. 10. Apelo provido; registro do título determinado.
Teses de julgamento: As situações não averbadas na matrícula, em especial, indisponibilidades relativas a cedentes de direitos objeto de negócio jurídico não levado a registro, não são oponíveis a adquirentes, terceiros de boa-fé, com quem, depois, o proprietário tabular ajusta negócio de transmissão, e aí por força do princípio da concentração dos riscos; prepondera, in casu, a tutela dos negócios imobiliários, então em prestígio da legitimação registral.
Legislação citada: CC, art. 356; Lei n.º 13.097/2015, art. 54, III e §§ 1.º e 2.º.
A interessada/recorrente VENEZA EMPREENDIMENTOS IMOBILIÁRIOS E PARTICIPAÇÕES SOCIETÁRIAS LTDA. pretende o registro da escritura pública de venda e compra de fls. 5-11 na matrícula n.º 92.529 do RI de Barueri, recusado pelo Oficial, nos termos da nota devolutiva de fls. 49-50, em atenção às ordens de indisponibilidade em nome dos anuentes/cedentes Cassiano Tadeu de Carvalho e Rosangela Di Mazio Neiva de Carvalho.
Irresignada com a r. sentença de fls. 110-111, que então confirmou o juízo de desqualificação registral, interpôs a apelação de fls. 114-122, argumentando que os direitos sobre o bem imóvel pertencentes aos anuentes/cedentes lhe foram cedidos em pagamento de dívida, por meio de transação homologada judicialmente, não representando estorvo ao registro as ordens de indisponibilidades, que sequer estão averbadas na matrícula; tratou-se de uma transferência atípica; não houve cessão voluntária; os direitos cedidos estavam penhorados.
Nessa linha, aguarda a reforma do decisum e, com isso, o julgamento improcedente da dúvida e o registro do título, em prestígio do resolvido no processo contencioso, e de modo a resguardar a segurança jurídica e seu direito de propriedade.
A douta Procuradoria-Geral de Justiça se manifestou pelo desprovimento do recurso (fls. 145-148).
É o relatório.
1. O dissenso versa a respeito do registro da escritura de fls. 5-11, lavrada no dia 3 de maio de 2024, prenotada sob o n.º 6451, por meio do qual formalizada a venda e compra do domínio útil do imóvel objeto da matrícula n.º 92.529 do RI de Barueri, ajustada entre o espólio da foreira Marisa Stella Vieira e a VENEZA EMPREENDIMENTOS IMOBILIÁRIOS E PARTICIPAÇÕES SOCIETÁRIAS LTDA., adquirente.
O negócio jurídico dispositivo contou com a anuência de Cassiano Tadeu de Carvalho e Rosangela Di Mazio Neiva de Carvalho, para quem, anteriormente, no dia 31 de julho de 1999, há mais de vinte anos, a enfiteuta havia prometido vender o domínio útil, pelo preço de R$ 160.000,00, satisfeito. In casu, cederam seus direitos à adquirente/recorrente, para quem outorgada a escritura levada a registro.
Os anuentes, na realidade, deram os seus direitos sobre o bem imóvel em pagamento de dívida, cederam os seus direitos mediante dação em pagamento no valor de R$ 943.478,26, objeto de transação convencionada no dia 11 de março de 2024, homologada pelo Juízo da 3.ª Vara Cível da Comarca de Barueri, então nos autos do processo n.º 0013404-21.2017.8.26.0068 (fls. 30-35 e 36-37).
2. Na escritura de venda e compra, os anuentes ratificam a cessão de seus direitos e a dação em pagamento, negócio jurídico de disposição.
Tratou-se aí de acordo liberatório, convenção por meio da qual a recorrente consentiu na substituição do objeto da prestação que lhe era devida pelos anuentes.
O acordo é da essência da dação em pagamento. O art. 356 do CC é elucidativo, ao dispor que “o credor pode consentir em receber prestação diversa da que lhe é devida.” (sublinhei)
A dação em pagamento, meio supletivo de extinção das obrigações, é, sem dúvida, contrato translativo, como esclarece, com propriedade, Orlando Gomes[1], daí porque, consequentemente, o poder de disposição é um pressuposto subjetivo seu.
Nas palavras de Gustavo Tepedino e Anderson Schreiber, “o devedor precisa ter o poder de dispor do bem que será objeto da dação em pagamento, já que esta envolve a alienação daquele.”[2] Na dação, reforça Judith Martins-Costa, “há negócio jurídico bilateral de alienação …, havendo um plus, que é solver a dívida.”[3]
3. Os direitos foram cedidos, dados em pagamento; houve dação consensual (perdoem-me a redundância, a tautologia) de direitos sobre bem imóvel em pagamento de dívida; nada obstante estivessem penhorados, não foram excutidos, expropriados.
Na precisa e oportuna advertência de Orlando Gomes, “o direito moderno desconhece a dação em pagamento coativa. Há de ser convencionada entre os interessados.”[4] (sublinhei)
In concreto, por conseguinte, ocorreu, apesar da retórica empregada pela recorrente, alienação voluntária. À época, entretanto, os cedentes estavam privados da plena disponibilidade de seus bens, de seus direitos imobiliários.
As indisponibilidades arroladas nos relatórios de fls. 51-62, que acompanham a nota devolutiva de fls. 49-50, persistiam ao tempo da lavratura da escritura de venda e compra e, especialmente, quando da prenotação, da apresentação do título a registro.
De todo modo, não são oponíveis à adquirente/recorrente.
4. A não oponibilidade das indisponibilidades listadas é, in casu, decorrente do princípio da concentração dos riscos, de acordo com o qual, pontua Narciso Orlandi Neto, “a matrícula atrai também os riscos que envolvem o imóvel e os direitos reais inscritos” e, assim, se lá não registrados/averbados, conclui, não são oponíveis ao adquirente, “que fica dispensado até de buscar informações nos distribuidores forenses.”[5] Escora-se na Lei n.º 13.097/2015, no seu art. 54.
No que ora interessa, o art. 54, III, dispõe que os negócios jurídicos translativos de direitos reais sobre bens imóveis são eficazes em relação a atos jurídicos precedentes, se não averbada, na matrícula, a indisponibilidade do direito registrado. Por sua vez, o § 1.º do art. 54 deixa claro que não podem ser opostas, ao terceiro adquirente de boa-fé, situações jurídicas ausentes da matrícula.
Sob essa lógica, as indisponibilidades mencionadas pelo Oficial, uma vez não lançadas na matrícula n.º 92.529 do RI de Barueri, até porque estranhas à enfiteuta, não podem ser opostas à adquirente do domínio útil, ora recorrente, de quem, para fins de caracterização de sua boa-fé, não era exigível, por ocasião da transação judicial, obtenção de documentos outros, além de certidão de propriedade e de ônus reais.
Dela, adquirente/recorrente, também não era exigível, ao tempo da dação em pagamento, a consulta à CNIB, Central Nacional de Indisponibilidade de Bens, tampouco a obtenção de certidões forenses e de distribuidores judiciais. É o que se infere e se extrai do § 2.º do art. 54 da Lei n.º 13.097/2015.
Prevalece, na hipótese vertente, a soberana ponderação legislativa, que, em detrimento pontual da segurança jurídica, optou pela proteção dos negócios imobiliários, pela segurança do tráfico imobiliário, em prestígio da fé pública registral, da confiança espelhada no registro imobiliário, confiança na legitimação registral.
Evidente que eventuais prejudicados poderão, na via jurisdicional, postular a ineficácia do negócio jurídico de alienação do domínio útil celebrado entre o enfiteuta e o cessionário de modo direto. O que não se admite é que a indisponibilidade que não consta do registro imobiliário constitua óbice a registro do contrato.
Dentro desse contexto, impõe-se o registro intencionado.
5. A inscrição constitutiva visada está em conformidade com o princípio do trato sucessivo e a disponibilidade registral (tabular).
O registro tem respaldo na titularidade de direito inscrita na matrícula; preserva a integridade da cadeia de titularidade de direitos reais.
A aptidão registral do título aquisitivo não é, in concreto, afetada pelas indisponibilidades enumeradas pelo Oficial, desprovidas de força para obstar o acesso da escritura ao álbum imobiliário.
Ao outorgar a escritura de venda e compra, o intitulado vendedor, retendo, à época, mero domínio formal, apenas cumpriu um dever seu, fundado em sua titularidade formal e sua autonomia privada, não alcançada pelos comandos de indisponibilidade.
O título formaliza um negócio jurídico vinculado, devido, “o negócio jurídico é, aí, pagamento”[6], concorrendo a sua inscrição para a estabilização das relações jurídicas.
Negócios jurídicos extrínsecos ao registro, então alheios à matrícula, extratabulares, em particular, aqui, a promessa de venda e a dação em pagamento aludidas na escritura de venda e compra, negócios intermediários, descritos para contextualizar a cadeia de transmissões, e justificar a outorga do título, não se prestam a bloquear o registro.
O controle desses negócios intermediários, não levados a registro, não submetidos à qualificação registral, não compete ao Oficial.
Ante o todo exposto, pelo meu voto, dou provimento à apelação e, logo, julgando improcedente a dúvida, determino o registro da escritura pública de fls. 5-11, prenotada sob o n.º 6451, na matrícula n.º 92.529 do RI de Barueri.
FRANCISCO LOUREIRO
Corregedor Geral da Justiça e Relator
Notas:
[1] Obrigações. 13.ª ed. Atualizado por Humberto Theodoro Júnior. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 119.
[2] Fundamentos de Direito Civil: obrigações. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 270. v. 2.
[3] Comentários ao novo Código Civil: do direito das obrigações; do adimplemento e da extinção das obrigações: arts. 304 a 388.. Sálvio de Figueiredo Teixeira (coord.). Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 485. v. 5, t. I.
[4] Op. cit., p. 120.
[5] Registro de imóveis. 2.ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2024, p. 52-55.
[6] Antonio Junqueira de Azevedo. Negócio jurídico e declaração negocial: noções gerais e formação da declaração negocial. Tese de titularidade Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, 1986, p. 218-219.
Fonte: DJEN/SP 22.09.2025.
Publicação: Portal do RI (Registro de Imóveis) | O Portal das informações notariais, registrais e imobiliárias!
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