Processo 1107653-64.2025.8.26.0100
Dúvida – Registro de Imóveis – Espólio de José Nicolau Marques – Diante do exposto, JULGO PROCEDENTE a dúvida suscitada, para manter os óbices registrários. Deste procedimento não decorrem custas, despesas processuais ou honorários advocatícios. Oportunamente, ao arquivo. P.R.I.C. – ADV: (…)
Íntegra da decisão:
SENTENÇA
Processo nº: 1107653-64.2025.8.26.0100
Classe – Assunto Dúvida – Registro de Imóveis
Suscitante: (…) Cartório de Registro de Imóveis
Suscitado: Espólio de José Nicolau Marques
Juíza de Direito: Dra. Renata Pinto Lima Zanetta
Vistos.
Trata-se de dúvida suscitada pelo (…)º Oficial de Registro de Imóveis de São Paulo, a requerimento de Espólio de José Nicolau Marques, diante de negativa em se proceder ao registro de escritura pública de inventário e partilha, envolvendo o imóvel objeto da transcrição n. 32.315 daquela serventia.
O Oficial informa que foi apresentada pelo suscitado em 14.04.2025, sob prenotação n. 644.764, escritura pública de inventário e partilha do espólio de José Nicolau Marques, acompanhada de requerimento solicitando o registro da partilha apenas em relação ao imóvel objeto da transcrição n. 32.315 da serventia; que, devidamente qualificado, o título foi devolvido com exigências; que a escritura pública foi novamente apresentada em 21.07.2025, sob prenotação n. 652.499, com atendimento das exigências nºs. 1, 4 e 5 da nota devolutiva; que, todavia, as exigências nºs. 2 e 3 da nota de devolução não foram cumpridas, o que ensejou nova desqualificação do título, acrescida de exigência para apresentação das guias de recolhimento e da declaração de ITCMD; que em 11.08.2025, dentro do prazo da prenotação, o suscitado promoveu o reingresso do título, com pedido de reconsideração das exigências nºs. 2 e 3 e da exigência tributária, requerendo, caso mantidas, a suscitação de dúvida; que no título foi reconhecida por Maria do Socorro Botelho de Souza e suas filhas Marília Marques Rodrigues e Marilin de Souza Marques a união estável mantida com o falecido José Nicolau Marques desde 01.05.1976; que, em razão do reconhecimento, foi atribuída à convivente a meação do imóvel da transcrição n. 32.315, contudo referido imóvel foi adquirido por José Nicolau Marques em 29.11.1954, quando solteiro e a título de doação, portanto antes do início da união estável, não se comunicando com a companheira; que, conforme entendimento jurisprudencial consolidado antes da Lei n. 9.278/1996, a companheira só teria direito à meação mediante prova de participação na formação do patrimônio; que, nos termos do artigo 1.725 do Código Civil, “na união estável, salvo contrato escrito, aplica-se o regime da comunhão parcial de bens”; que, considerando que não há contrato escrito estipulando regime de bens e que não foi comprovado esforço comum, a análise administrativa limita-se à aplicação desse dispositivo, devendo a sucessão observar o artigo 1.829, inciso I, do Código Civil; que o argumento do requerente de que o regime legal vigente em 1976 era o da comunhão universal de bens (antes da Lei n. 6.515/1977) não pode ser aplicado por analogia nesta esfera administrativa, em razão da ausência de previsão legal; que acolher a escritura como apresentada implicaria admitir meação sem respaldo jurídico, comprometendo a segurança registral e podendo acarretar prejuízos a terceiros, inclusive ao Fisco, já que sobre a meação não incide ITCMD; que, diante do exposto, os óbices devem ser mantidos (fls. 01/04).
Documentos vieram às fls. 05/53.
Em manifestação dirigida ao Oficial, e em impugnação apresentada nos autos, a parte suscitada aduziu que o entendimento do Oficial não se coaduna com o ordenamento jurídico vigente à época da união estável iniciada em 01.05.1976, data anterior à entrada em vigor da Lei n. 6.515/1977 (Lei do Divórcio), a qual alterou o regime legal de bens do casamento no Brasil, uma vez que o regime da comunhão parcial de bens, como o regime a ser aplicado ao caso segundo a suscitante, dependia nesta época, de pacto antenupcial, o que não ocorreu no presente caso; que, antes da vigência da Lei n. 6.515/1977, o regime legal de bens era o da comunhão universal de bens, conforme previa o artigo 258 do Código Civil de 1916; que, ainda que a união estável não fosse expressamente reconhecida como entidade familiar à época, é entendimento consolidado da doutrina que em relações de fato com características de casamento (more uxorio) aplica-se por analogia o regime legal de bens vigente à época, ou seja, comunhão universal de bens até 26.12.1977 (data de entrada em vigor da Lei n. 6.515/1977); que, no presente caso, a união estável entre José Nicolau Marques e Maria do Socorro Botelho de Souza teve início em 01.05.1976; que, dessa forma e considerando que o regime legal vigente à época era o da comunhão universal de bens e inexistindo pacto antenupcial, a condição de meeira da viúva Maria do Socorro Botelho de Souza se coaduna ao ordenamento jurídico vigente à época; que, nesse sentido, ainda que o imóvel tenha sido adquirido por José Nicolau Marques antes da união estável, a título de doação, o mesmo integra o patrimônio comum do casal, salvo cláusula expressa de incomunicabilidade, a qual não foi mencionada no título, na nota devolutiva e nem mesmo no testamento, de modo que o bem se comunica; que o Código Civil de 1916 já previa a possibilidade de doação com cláusula de incomunicabilidade, nos termos do artigo 1.177, contudo, ausente tal ressalva na escritura de doação, o bem integrou o patrimônio comum; que, além da questão legal aplicada por analogia, há uma questão de fato, já que o regime da comunhão universal de bens era o regime conhecido, escolhido e aceito pelas partes; que não era normal e, na maioria das vezes, nem conhecida, naquela época, a escolha de um regime diverso pelos casais, que no caso do regime de comunhão parcial de bens, dependia de pacto antenupcial; que, bem por isso, a partilha do inventário em questão se mostra adequada, ao considerar a meação de Maria do Socorro Botelho de Souza; que não há que se falar em ausência de respaldo jurídico, comprometimento da segurança registral, ou mesmo prejuízo a terceiros, razão pela qual os óbices de retificação do título e da declaração de ITCMD devem ser afastados (fls. 54/56). Juntou documentos (fls. 57/60).
O Ministério Público ofertou parecer, opinando pela manutenção dos óbices (fls. 63/66).
É o relatório. FUNDAMENTO e DECIDO.
De proêmio, cumpre ressaltar que o Oficial dispõe de autonomia e independência no exercício de suas atribuições, podendo recusar títulos que entender contrários à ordem jurídica e aos princípios que regem sua atividade (artigo 28 da Lei n. 8.935/1994), o que não se traduz como falha funcional.
No sistema registral vigora o princípio da legalidade estrita. Assim, quando o título ingressa para acesso ao fólio real, o Registrador perfaz a sua qualificação mediante o exame dos elementos extrínsecos e formais do título, de acordo com os princípios registrários e legislação de regência da atividade, devendo obstar o ingresso daqueles que não se atenham aos limites da lei.
É o que se extrai do item 117 do Capítulo XX das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça (NSCGJ): “Incumbe ao oficial impedir o registro de título que não satisfaça os requisitos exigidos pela lei, quer sejam consubstanciados em instrumento público ou particular, quer em atos judiciais”.
No mérito, a dúvida é procedente.
No caso concreto, o suscitado pretende o registro da escritura pública de inventário e partilha dos bens deixados por José Nicolau Marques, em que foi reconhecida a união estável entre Maria do Socorro Botelho de Souza e José Nicolau Marques iniciada em 01 de maio de 1976, e atribuída à companheira, a título de meação, a metade ideal do imóvel transcrito sob o n. 32.315 no (…)º Registro de Imóveis de São Paulo (fls. 15/22).
Pela certidão da transcrição n. 32.315, constata-se que José Nicolau Marques adquiriu o imóvel situado na Rua Amaro Cavalheiro, n. 238/244, nesta Capital, no estado civil de solteiro, por meio de escritura pública de doação lavrada em 29.11.1954 (fls. 15/22). Tratando-se, pois, de bem particular.
É cediço que a união estável, como situação de fato, não se sujeita a nenhuma solenidade.
Sobre o reconhecimento de união estável, o artigo 18 da Resolução nº 35/2007 do CNJ, considerada a recente revisão efetuada pela Resolução nº 571 de 26/08/2024, dispõe:
“Art. 18. No inventário extrajudicial, o convivente sobrevivente é herdeiro quando reconhecida a união estável pelos demais sucessores, ou quando for o único sucessor e a união estável estiver previamente reconhecida por sentença judicial, escritura pública ou termo declaratório, desde que devidamente registrados, nos termos dos arts. 537 e 538 do CNN/CN/CNJ-Extra (Provimento CNJ nº 149/2023).” (g.n.)
Muito embora a facultatividade do registro da união estável no Registro Civil de Pessoas Naturais, somente a partir de sua efetivação é que se confere efeitos jurídicos perante terceiros, como, aliás, expressamente consta do artigo 537, §1º, do Provimento CNJ nº 149/2023:
“Art. 537. É facultativo o registro da união estável prevista no art. 1.723 a 1.727 do Código Civil, mantida entre o homem e a mulher, ou entre duas pessoas do mesmo sexo. §1º. O registro de que trata o caput confere efeitos jurídicos à união estável perante terceiros. (…)”
Não se ignora a equiparação do companheiro ao cônjuge sobrevivente que, a partir do Código Civil em vigor, passou à condição de herdeiro necessário, em concorrência com eventuais descendentes e ascendentes. O Supremo Tribunal Federal reconheceu a inconstitucionalidade do artigo 1.790 do Código Civil, firmando a seguinte tese a respeito do Tema 809 de Repercussão Geral:
“No sistema constitucional vigente, é inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros, devendo ser aplicado, em ambos os casos, o regime estabelecido no art. 1.829 do CC/2002”.
A união estável, como fato da vida, se constitui e se dissolve sem que se exija procedimento específico ou formalidade, mas certos atos ou negócios jurídicos só produzem efeitos que deles se esperam se observadas formas específicas. É o que se passa com os atos e negócios jurídicos envolvendo a constituição de direitos reais sobre imóveis, em que se exige o registro para conferir a publicidade e, assim, deflagrar seu efeito “erga omnes”.
Conquanto não haja exigência legal de formalização da união estável como pressuposto de sua existência, a ausência dessa formalidade poderá implicar consequências aos efeitos patrimoniais da relação mantida pelas partes, sobretudo quanto às matérias que são prescritas pelo próprio legislador.
A regra disposta no artigo 1.725 do Código Civil disciplina sobre as relações patrimoniais entre os companheiros, nos seguintes termos:
“Art. 1.725. Na união estável, salvo contrato escrito entre os companheiros, aplica-se às relações patrimoniais, no que couber, o regime da comunhão parcial de bens.”
O dispositivo citado determina que se aplicará às relações patrimoniais entre os companheiros o regime da comunhão parcial de bens, na ausência de convenção em contrário formalizada, por meio de contrato escrito. Ou seja: autoriza os companheiros a conferir às relações patrimoniais outra disciplina ou regime (comunhão universal e separação total de bens), mas desde que o façam por escrito, sendo esta a exigência legal para sua formalização.
Consideram-se aquestos os bens adquiridos durante o período da vida em comum pelos cônjuges. No regime da comunhão universal, a regra é a comunicação de todos os bens, presentes e futuros. Na comunhão parcial, comunicam-se apenas os aquestos, desde que havidos onerosamente e não constituam sub-rogação de bens particulares. No regime da separação de bens, nada se comunica[1].
Acerca da distinção entre os institutos do direito sucessório e do direito das famílias, é oportuna a lição de Maria Berenice Dias (destaques nossos):
“Não há como confundir herança e meação. São institutos diversos: um situa-se no âmbito do direito sucessório e outro pertence ao direito das famílias e é condicionado ao regime de bens do casamento. Como bem observa Zeno Veloso, meação decorre de uma relação patrimonial (condomínio, comunhão) existente em vida dos interessados e é estabelecida por lei ou pela vontade das partes. A sucessão hereditária tem origem na morte, e a herança é transmitida aos sucessores conforme previsões legais (sucessão legítima) ou a vontade do testador (sucessão testamentária).(…)
Os bens adquiridos durante o período da vida em comum são chamados de aquestos, palavra que provém do latim acquisitu e significa adquirido. De um modo geral, a cada um dos cônjuges pertence a metade do patrimônio comum daí a expressão meação, cuja dimensão depende do regime de bens do casamento. Por isso, antes de falar em sucessão, é preciso atentar ao estado civil do de cujus e ao regime de bens adotado por meio de pacto antenupcial. Para saber a extensão da herança, cabe perquirir: se há patrimônio particular; se existe comunhão de aquestos; ou se os bens adquiridos durante o casamento são comuns ou exclusivos de cada um dos consortes. Ou seja, é necessário identificar se o patrimônio é todo do falecido ou se parte pertence ao viúvo, a título de meação.
Ainda que não integre o acervo hereditário, a meação necessariamente acaba fazendo parte do inventário, pois a separação dos bens que integram a meação do cônjuge sobrevivente ocorre quando da partilha (CPC 651 II).” (DIAS, Maria Berenice, Manual das sucessões 4ª. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2018)
Na hipótese vertente, é incontroverso que José Nicolau Marques adquiriu o imóvel objeto da transcrição n. 32.315 do (…)º RI em data anterior (06.04.1955) ao início da união estável com Maria do Socorro Botelho de Souza (01.05.1976).
Portanto, pelo regime da comunhão parcial de bens, o aludido imóvel consubstancia bem particular do falecido José Nicolau Marques, nos termos do artigo 1.659, inciso I, do Código Civil.
O fato de a união estável ter iniciado em momento anterior ao do atual Código Civil e da Lei n. 6.515/1977 não afasta a incidência do regime da comunhão parcial de bens, conforme elucida a doutrina: “No que respeita às questões intertemporais, se a união estável teve início anteriormente à entrada em vigor do Código Civil (11 de janeiro de 2003) a ela também se aplica o regime legal de comunhão parcial, salvo se os companheiros tivessem estipulado outra modalidade, em contrato específico, que é considerado ato jurídico perfeito, coberto pela garantia constitucional (art. 5º, XXXVI, da Constituição). Segundo orientação dominante no Supremo Tribunal Federal, não há direito adquirido a instituto jurídico, no que poderia ser qualificada a adoção anterior dos critérios da Súmula 380 para o concubinato (aliás, muito próximos do regime de comunhão parcial, salvo quanto à presunção legal absoluta deste de esforço comum para a aquisição dos bens).” (LÔBO, Paulo. Direito civil: famílias. 4ª. ed. – São Paulo: Saraiva, 2011, p. 182).
Com efeito, é entendimento do C. Superior Tribunal de Justiça que, à união estável iniciada anteriormente à Lei n. 9.278/96, aplica-se o teor da súmula n. 380 do STF, não havendo aplicação de regime de comunhão universal de bens, sendo, antes, necessária a prova de esforço comum para partilha dos bens adquiridos onerosamente na constância da união estável:
CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO DE RECONHECIMENTO E DISSOLUÇÃO DE UNIÃO ESTÁVEL CUMULADA COM PARTILHA E ALIMENTOS. (…) PARTILHA DE BENS ADQUIRIDOS ANTES DA ENTRADA EM VIGOR DA LEI º 9.278/96. AUSÊNCIA DE PRESUNÇÃO ABSOLUTA DE ESFORÇO COMUM. PARTILHA. POSSIBILIDADE CONDICIONADA À PROVA DE ESFORÇO COMUM. ÔNUS DA PROVA DO AUTOR. (…) ACÓRDÃO QUE APLICA A PRESUNÇÃO ABSOLUTA DE COMUNICABILIDADE. INCORREÇÃO. BENS ADQUIRIDOS ANTES DA LEI Nº 9.278/96. SÚMULA 380/STF. ÚNICA PROVA INDICADA PELA PARTE COMO REPRESENTATIVA DO ESFORÇO COMUM. ESCRITURA PÚBLICA MODIFICATIVA DE REGIME DE BENS. EFICÁCIA RETROATIVA. IMPOSSIBILIDADE. UNIÃO ESTÁVEL SUBMETIDA AO REGIME DA SÚMULA 380/STF. INEXISTÊNCIA DE PROVA DO ESFORÇO COMUM. PARTILHA INDEFERIDA QUANTO AOS BENS OPORTUNAMENTE IMPUGNADOS.(…)
5- A partir do exame dos precedentes firmados nesta Corte, é correto concluir que: (i) antes da entrada em vigor da Lei nº 9.278/96, não há presunção absoluta de esforço comum dos bens adquiridos na constância da união estável; (ii) ainda assim, é possível a partilha do patrimônio amealhado na constância do vínculo convivencial, desde que haja a prova do esforço comum, aplicando-se a Súmula 380/STF; e (iii) o ônus da prova do esforço comum é do autor, isto é, de quem pretende partilhar o bem objeto da controvérsia. Precedentes.(…)
9- Na hipótese em exame, o acórdão recorrido se baseou, equivocadamente, na presunção absoluta de comunicabilidade dos bens que haviam sido adquiridos antes da entrada em vigor da Lei nº 9.278/96 e a parte indica, como única prova do esforço comum, escritura pública de reconhecimento de união estável celebrada em 2012 que declara, com efeitos retroativos, o regime de comunhão parcial de bens desde a constituição da convivência, em 1978.
10- Na esteira da jurisprudência desta Corte, não é possível a celebração de escritura pública modificativa do regime de bens da união estável com eficácia retroativa, razão pela qual a partilha dos bens adquiridos antes da Lei nº 9.278/96 se submete ao regime da Súmula 380/STF, de modo que, na ausência de prova do esforço comum, os referidos bens são insuscetíveis de partilha. Precedente. (..) 14- Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa extensão, parcialmente provido, apenas para excluir da partilha os bens relacionados nos itens 25 e 26 do acórdão recorrido, a saber, “datas de Terras n. 19 e 20, matrícula 5935” e “lote de Terras n. 73, matrícula 8431”, mantida a sucumbência como fixada no acórdão recorrido. (STJ, REsp n. 2.104.920/PR, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 12/12/2023, DJe de 15/12/2023, g.n.)
No caso, porém, o título indica que o imóvel objeto da transcrição n. 32.315 do (…)º RI como sendo bem comum do casal (“9.1. Bens do Casal: O autor da herança possuía, em comum com sua companheira, os seguintes bens: A) Um prédio situado na Rua Amaro Cavalheiro, nº 238/244, (…) descrito e caracterizado na transcrição n. 32.315.” – fls. 17), não obstante José Nicolau Marques o tenha adquirido em data anterior (06.04.1955) ao de início da união estável com Maria do Socorro Botelho de Souza (01.05.1976).
Nesse contexto, razão assiste ao Oficial ao exigir a retificação do título, para que conste de forma expressa os bens do falecido que constituem patrimônio comum do casal e quais constituem patrimônio particular de cada convivente.
A respeito, dispõe o item 90, Cap. XVI, das NSCGJ:
“90. Se houver bens a serem partilhados na escritura, distinguir-se-á o que é do patrimônio individual de cada cônjuge do que é do patrimônio comum do casal, conforme o regime de bens, constando isso do ato notarial lavrado.”
Portanto, para se permitir o acesso do título ao fólio real, é necessário aditamento da escritura de inventário e partilha, com descrição detalhada da natureza de cada um dos bens do “de cujus” e a forma de pagamento, a título de meação ou de sucessão, à companheira sobrevivente e às demais herdeiras.
Ademais, outro óbice que imediatamente decorre dessa irregularidade no título é a impossibilidade de verificação da incidência tributária sobre cada uma das operações de transmissão que caracterizam fatos geradores distintos de ITCMD, o qual tem por base de cálculo o valor dos bens ou direitos transmitidos.
Como é sabido, para os Registradores vigora ordem de controle rigoroso do recolhimento do imposto por ocasião do registro do título, sob pena de responsabilidade pessoal (artigo 289 da Lei n. 6.015/1973; artigo 134, inciso VI, do CTN; e artigo 30, inciso XI, da Lei n. 8.935/1994).
As Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo, igualmente, impõem aos registradores imobiliários o dever de exigir a comprovação do recolhimento do imposto de transmissão de bem imóvel – ITBI ou ITCMD – para registro da transferência da titularidade do domínio junto à serventia predial.
Sobre o tema, o item 117 e subitem 117.1, Cap. XX, das NSCGJ assim prescrevem:
“117 – Incumbe ao oficial impedir o registro de título que não satisfaça os requisitos exigidos pela lei, quer sejam consubstanciados em instrumento público ou particular, quer em atos judiciais.
117.1. – Com exceção do recolhimento do imposto de transmissão e prova de recolhimento do laudêmio, quando devidos, nenhuma exigência relativa à quitação de débitos para com a Fazenda Pública, inclusive quitação de débitos previdenciários, fará o oficial, para o registro de títulos particulares, notariais ou judiciais.”
Em complemento, o item 91, Cap. XVI, das NSCGJ dispõe que:
“91. Na partilha em que houver transmissão de propriedade do patrimônio individual de um cônjuge ao outro, ou a partilha desigual do patrimônio comum, deverá ser comprovado o recolhimento do tributo devido sobre a fração transferida.”
Entretanto, o E. Conselho Superior da Magistratura já fixou entendimento no sentido de que a fiscalização devida não vai além da aferição sobre a existência ou não do recolhimento do tributo (e não se houve correto recolhimento do valor, sendo tal atribuição exclusiva do ente fiscal, a não ser na hipótese de flagrante irregularidade ou irrazoabilidade do cálculo).
Nesse sentido, os seguintes julgados do E. Conselho Superior da Magistratura:
“Ao oficial de registro incumbe a verificação de recolhimento de tributos relativos aos atos praticados, não a sua exatidão.” (Apelação Cível 20522-0/9- CSMSP – J.19.04.1995 – Rel. Antônio Carlos Alves Braga).
“Todavia, este Egrégio Conselho Superior da Magistratura já fixou entendimento no sentido de que a qualificação feita pelo Oficial Registrador não vai além da aferição sobre a existência ou não de recolhimento do tributo, e não sobre a integralidade de seu valor.” (Apelação Cível 996-6/6 CSMSP, j. 09.12.2008 – Rel. Ruy Camilo).
Nessa mesma linha, este juízo vem decidindo pela insubsistência do óbice quando não caracterizada flagrante irregularidade ou irrazoabilidade do cálculo (processos ns. 1115167-78.2019.8.26.0100, 1116491-06.2019.8.26.0100, 1059178-53.2020.8.26.0100, 1079550-52.2022.8.26.0100, 1063599-18.2022.8.26.0100, 1039109-29.2022.8.26.0100 e 1039015-81.2022.8.26.0100).
Vale observar, ainda, que, existindo previsão legal de exação para a hipótese aqui tratada, não cabe ao Oficial de Registro nem a este juízo administrativo entender pela não tributação ou pela existência de qualquer causa extintiva do crédito tributário.
Nesse sentido (destaque nosso):
“REGISTRO DE IMÓVEIS – Escritura pública de divórcio e partilha de bens – Excesso de meação na partilha – Transmissão não onerosa de bem imóvel – Doação configurada – ITCMD recolhido – Inexistência de fato gerador do ITBI – Exigência de comprovação do recolhimento do imposto municipal afastada – Recurso provido para julgar improcedente a dúvida determinando o registro do título.” (CSMSP – Apelação: 1112232-31.2020.8.26.0100; Data de Julgamento: 16/06/2021; Data DJ: 13/09/2021; Relator: Ricardo Mair Anafe).
“Registro de Imóveis – Dúvida – Título judicial – Partilha causa mortis – Imposto sobre transmissão (ITCMD) – Quinhões desiguais – Doação dos valores excedentes – Correta fiscalização exercida pelo Oficial de Registro de Imóveis – Impossibilidade de cisão do título – Recusa legítima – Apelação a que se nega provimento.” (TJSP; Apelação Cível 1002428-61.2020.8.26.0575; Relator: Ricardo Anafe (Corregedor Geral); Órgão Julgador: Conselho Superior da Magistratura; Data do Julgamento: 02/12/2021; Data de Registro: 15/12/2021).
Destarte, os óbices devem ser mantidos.
Diante do exposto, JULGO PROCEDENTE a dúvida suscitada, para manter os óbices registrários.
Deste procedimento não decorrem custas, despesas processuais ou honorários advocatícios.
Oportunamente, ao arquivo. P.R.I.C.
São Paulo, 02 de outubro de 2025.
Renata Lima Zanetta
Juíza de Direito
Nota:
[1] OLIVEIRA, Euclides de. Inventário e Partilha – Teoria e Prática – 28ª. ed. – São Paulo: Saraiva Jur, 2024.
Fonte: DJE/SP 03.10.2025.
Publicação: Portal do RI (Registro de Imóveis) | O Portal das informações notariais, registrais e imobiliárias!
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