Apelação nº 1092996-20.2025.8.26.0100
Número: 1092996-20.2025.8.26.0100
Comarca: CAPITAL
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
CONSELHO SUPERIOR DA MAGISTRATURA
Apelação nº 1092996-20.2025.8.26.0100
Registro: 2025.0001242692
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível nº 1092996-20.2025.8.26.0100, da Comarca de São Paulo, em que são apelantes EDSON DE MIRANDA e MARISA DUQUE RODRIGUES DE MIRANDA, é apelado 1º OFICIAL DE REGISTRO DE IMÓVEIS DA COMARCA DA CAPITAL.
ACORDAM, em Conselho Superior da Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: “Deram provimento ao recurso, vu.”, de conformidade com o voto do Relator, que integra este acórdão.
O julgamento teve a participação dos Exmos. Desembargadores FERNANDO TORRES GARCIA (PRESIDENTE TRIBUNAL DE JUSTIÇA) (Presidente), BERETTA DA SILVEIRA (VICE PRESIDENTE), XAVIER DE AQUINO (DECANO), TORRES DE CARVALHO(PRES. SEÇÃO DE DIREITO PÚBLICO), HERALDO DE OLIVEIRA (PRES. SEÇÃO DE DIREITO PRIVADO) E CAMARGO ARANHA FILHO(PRES. SEÇÃO DE DIREITO CRIMINAL).
São Paulo, 10 de novembro de 2025.
FRANCISCO LOUREIRO
Corregedor Geral da Justiça
Relator
APELAÇÃO CÍVEL nº 1092996-20.2025.8.26.0100
Apelantes: Edson de Miranda e Marisa Duque Rodrigues de Miranda
Apelado: 1º Oficial de Registro de Imóveis da Comarca da Capital
VOTO Nº 43.951
EMENTA: Direito registral. Apelação em procedimento de dúvida. Registro de imóveis. Recurso provido.
I. Caso em Exame
1. Apelação interposta contra sentença que negou o registro de instrumento particular de alteração de contrato social de pessoa jurídica, por meio do qual um dos sócios integralizou quotas mediante transferência de imóvel de sua propriedade.
II. Questão em Discussão
2. Discute-se se há necessidade de escritura pública específica para que o cônjuge do sócio transfira sua parte ideal sobre o imóvel .
III. Razões de Decidir
3. O entendimento administrativo mais recente permite que a anuência do cônjuge seja prestada por instrumento particular, sem necessidade de escritura pública.
4. Embora outorga uxória não se confunda com venda de coisa comum decorrente de meação, admite-se que a concordância do cônjuge não sócio seja manifestada no próprio instrumento particular de integralização de imóvel no capital social de pessoa jurídica.
IV. Dispositivo e Tese
5. Recurso provido.
Tese de julgamento: 1. Embora não se trate de hipótese de mera outorga uxória, a concordância do cônjuge que não é sócio com a integralização do bem manifestada no instrumento particular é suficiente para autorizar o registro da transferência do imóvel. 2. A mancomunhão decorrente do casamento permite que a integralização de bem comum do casal ao capital social de empresa que apenas um cônjuge é sócio seja feita na forma do art. 64 da Lei nº 8.934/94.
Legislação Citada:
– Código Civil, art. 108; Lei nº 8.934/94, art. 64.
Jurisprudência Citada:
– CSM/SP, Apelação nº 626-6/9, Rel. Des. Gilberto Passos de Freitas, j. em 22/2/2007.
– CSM/SP, Apelação nº 1.129-6/8, Rel. Des. Ruy Pereira Camilo, j. em 30/6/2009.
– CSM/SP, Apelação nº 1.226-6/0, Rel. Des. Munhoz Soares, j. em 16/3/2010.
– TJSP, Apelação Cível 1003527-68.2020.8.26.0445, Rel. Francisco Loureiro, j. 20/02/2024.
Trata-se de apelação interposta por EDSON DE MIRANDA e MARISA DUQUE RODRIGUES DE MIRANDA contra a r. sentença de fls. 198/203, proferida pela MM. Juíza Corregedora Permanente do 1º Registro de Imóveis da Capital, que, mantendo a exigência formulada pelo Oficial, negou o registro de instrumento particular de constituição de sociedade empresária por quotas de responsabilidade limitada unipessoal denominada MECC Participações Ltda, envolvendo a integralização do imóvel objeto da matrícula 93.034 daquela Serventia.
Sustentam os apelantes, em síntese, a necessidade da reforma da sentença, vez que o Conselho Superior da Magistratura já se manifestou no sentido de que a anuência do cônjuge em caso de integralização de capital não precisa ser formalizada por escritura pública. Pleiteiam a reforma da sentença, determinando-se o registro do título tal como apresentado pelos ora apelantes (fls. 209/223).
A Procuradoria de Justiça opinou pelo não provimento do recurso (fls. 243/245).
É o relatório.
Neste procedimento de dúvida, discute-se o registro de instrumento particular de Constituição de Sociedade Empresária Limitada Unipessoal denominada MECC Participações Ltda, constituída por Edson de Miranda, com “cláusula expressa de anuência” de sua esposa Marisa Duque Rodrigues de Miranda.
Por força do referido instrumento particular, o sócio da empresa, Edson de Miranda, com anuência de sua esposa, integralizou ao capital social o imóvel matriculado sob nº 93.034, de titularidade de ambos, casados sob o regime da comunhão universal de bens.
A esposa de Edson de Miranda, Marisa Duque Rodrigues de Miranda, não figura como sócia da empresa, mas assinou referido instrumento de instituição manifestando anuência com a transferência efetuada.
A síntese da exigência formulada é a seguinte: para transferência da titularidade de domínio do imóvel, o cônjuge não sócio deverá providenciar a lavratura da respectiva escritura pública, conforme previsto no art. 108 do Código Civil, a fim de que se efetive a transmissão de sua parte ideal do imóvel.
A questão não é nova e foi julgada por este Conselho Superior da Magistratura na Apelação Cível 108670249.2025.8.26.0100, de minha Relatoria.
O v. acórdão mencionado pelo Oficial e pela MM. Juíza Corregedora Permanente é no sentido de que o cônjuge que não é sócio não pode simplesmente anuir; deve transferir a parte que lhe cabe no bem a ser integralizado em virtude do regime de bens. E como o cônjuge que não é sócio não integraliza capital social, a ele não se aplica o art. 64 da Lei nº 8.934/94, de modo que o negócio jurídico que lhe diz respeito deve ser feito por instrumento público, conforme regra geral prevista no art. 108 do Código Civil [1].
In verbis:
“REGISTRO DE IMÓVEIS. Dúvida julgada procedente. Recusa de registro de instrumento particular de constituição de sociedade, pelo qual um dos sócios, casado sob o regime da comunhão universal de bens, pretende a conferência de bens imóveis para integrar suas quotas sociais mediante mera anuência de sua mulher. Inviável o registro, em razão da necessidade de a mulher transferir a parte que lhe cabe e não apenas anuir, o que é possível somente por escritura pública, já que não é sócia e, portanto, não busca integrar quotas sociais, a exemplo de seu cônjuge. Sentença mantida. Recurso não provido.” (CSM/SP Apelação nº 626-6/9, Rel. Des. Gilberto Passos de Freitas, j. em 22/2/2007).
Posteriormente, o entendimento administrativo deste E. Conselho foi alterado. Passou-se a entender que, mesmo nos casos em que o imóvel é comum por força do regime de bens do casamento, basta a anuência do cônjuge que não é sócio da empresa. Nesse sentido:
“REGISTRO DE IMÓVEIS – Negado registro de certidão de ato de alteração de contrato de sociedade empresária, para fim de transferência de imóvel com escopo de aumento de capital social – Dúvida julgada procedente, sob o fundamento de que não basta a anuência da esposa no instrumento contratual para viabilizar integralização, mediante conferência de bens, por parte de seu marido, que figura como sócio – Suposta necessidade de escritura pública – Entendimento que não deve prevalecer – Outorga uxória que se prova de igual modo que o ato autorizado, constando, sempre que possível, do mesmo instrumento – Inteligência do art. 220 do Código Civil, combinado com o art. 64 da Lei nº 8.934/94 – Título apresentado que se afigura, in casu, hábil para ser registrado – Recurso provido.” (CSM/SP Apelação nº 1.129-6/8, Rel. Des. Ruy Pereira Camilo, j. em 30/6/2009).
“Registro de imóveis – Dúvida – Certidão de ato de alteração de contrato social de sociedade empresária, para o fim de transferência de imóvel com escopo de aumento de capital social – Anuência da esposa do sócio no próprio instrumento contratual para viabilizar a integralização do capital social pelo marido – Admissibilidade, à luz do disposto nos arts. 64 da Lei n. 8.934/1994 e 220 do Código Civil – Desnecessidade de lavratura de escritura pública – Recurso provido.” (CSM/SP Apelação nº 1.226-6/0, Rel. Des. Munhoz Soares, j. em 16/3/2010).
Os posicionamentos administrativos antagônicos decorrem da extensão que se dá ao termo outorga uxória. O precedente mais antigo distingue a outorga uxória da alienação de direitos próprios; já os mais recentes tratam as duas hipóteses do mesmo modo.
No julgamento da apelação nº 1003527-68.2020.8.26.0445, de minha relatoria, a distinção entre os institutos é enfatizada:
“3. Neste ponto, observo que a questão discutida nos autos não diz respeito à venda sem outorga uxória, mas se refere a venda de coisa comum sem consentimento da companheira meeira, titular de parte ideal do imóvel.
(…)
De qualquer modo, tecnicamente não se trata de ausência de outorga uxória, mas sim da alienação de direitos aquisitivos sobre coisa comum sem o consentimento da comunheira.
É preciso fazer a distinção entre duas situações absolutamente distintas, que geram efeitos diferentes.
A primeira é a ausência de outorga uxória, que pressupõe a alienação ou oneração de coisa imóvel própria de um dos cônjuges ou companheiro sem a anuência do outro. Embora o bem seja próprio, se exige a concordância do outro para preservar a estabilidade econômica da família. É por isso que a falta de outorga uxória tem como efeito a mera anulabilidade, a ser alegada em prazo decadencial reduzido de dois anos e convalidada pelo decurso do tempo.
A segunda é a alienação de imóvel – ou direitos aquisitivos – de coisa comum, adquirida a título oneroso durante o casamento ou união estável. Se o imóvel tem a natureza de aquesto, o consentimento de ambos os comunheiros é elemento essencial do negócio jurídico, e sua ausência causa a inexistência do contrato em relação àquele que não assentiu.
No mais das vezes, a doutrina trata indistintamente da outorga uxória e do consentimento para a celebração de determinados negócios jurídicos (cf. Caio Mário da Silva Pereira, Instituições de Direito Civil, vol. V, 18ª ed., Ed. Forense, 2010, p. 206-209, Milton Paulo de Carvalho Filho, Código Civil Comentado, 7ª ed., Ed. Manole, 2013, p. 1849, entre outros).
Isto porque o art. 1.647, I, do Código Civil prevê que nenhum dos cônjuges pode, sem autorização do outro, exceto no regime da separação absoluta de bens, alienar ou gravar de ônus real os bens imóveis, além de outras providências previstas nos demais incisos do dispositivo citado.
Embora o art. 1.647, I, do Código não aluda expressamente aos bens particulares, o entendimento que se revela mais lógico e coerente acerca da matéria é o de que a eles se referiu o dispositivo, pois caso se tratassem de bens comuns ao casal, seria necessária a anuência, o consentimento do consorte ou companheiro para a alienação. Zeno Veloso chama a atenção para essa tênue distinção. Ao sustentar que também na união estável não pode o companheiro alienar ou gravar de ônus reais os bens imóveis, por força da aplicação supletiva do regime da comunhão parcial de bens, o autor observou que se o imóvel foi adquirido onerosamente no período de convivência, ainda que em nome de apenas um dos companheiros, “o bem entra na comunhão, é de propriedade de ambos os companheiros, e não bem próprio, privado, exclusivo, particular. Se um dos companheiros vender tal bem, sem a participação no negócio do outro companheiro, estará alienando – pelo menos em parte – coisa alheia, perpetrando uma venda a non domino, praticando ato ilícito. O companheiro, no caso, terá de assinar o contrato, nem mesmo porque é necessário seu assentimento, mas, sobretudo, pela razão de que é, também, proprietário, dono do imóvel” (cf. Código Civil Comentado, vol. XVII, Ed. Atlas, São Paulo, 2003, p. 144).
Na precisa lição de Humberto Theodoro Júnior, são inconfundíveis duas situações absolutamente distintas:
(i) se o declarante age em nome próprio, mas subordinado à anuência de outrem, o negócio é anulável (art. 176 CC); (ii) se o declarante age em nome de terceiro, mas sem o consentimento deste, o negócio é inexistente (cf. Comentários ao novo Código Civil, diversos autores coordenados por Sálvio Figueiredo Teixeira, vol. III, tomo I, p. 584).
Arremata o autor, que não se cogita de simples anulabilidade ‘quando alguém contrata em nome de outrem, sem dispor de poderes para tanto. Aí não se tem negócio anulável. Para aquele ao qual se pretendeu atribuir a qualidade de parte, negócio algum existe; o ato é inexistente, pois não houve de sua parte declaração de vontade, nem outorga de representação para que terceiro declarasse em seu lugar’ (op. cit., p. 584).
Logo, o que ocorreu foi alienação em parte a non domino, pois o imóvel teria a natureza de aquesto” (TJSP; Apelação Cível 1003527-68.2020.8.26.0445; Relator: Francisco Loureiro; Órgão Julgador: 1ª Câmara de Direito Privado; Foro de Pindamonhangaba – 2ª Vara Cível; Data do Julgamento: 20/02/2024; Data de Registro: 21/02/2024).
Observa-se que embora tratadas muitas vezes do mesmo modo, outorga uxória não se confunde com venda de coisa comum decorrente de meação. No primeiro caso, o cônjuge ou companheiro concorda com a alienação de um bem particular do outro; no segundo, o consorte, muito mais que anuir, figura no contrato como vendedor.
Ainda assim, entendo que ao recurso deve ser dado provimento, mantido o posicionamento mais recente deste C. Conselho Superior da Magistratura.
Inegável que no caso dos autos, em que bem comum do casal é integralizado ao capital social de empresa de que apenas um cônjuge é sócio, não se trata de outorga uxória, mas de consentimento para alienação de bem comum, pois adquirido na constância do casamento (cf. matrícula nº 93.034 fls. 139/140).
Por outro lado, a anuência prestada por Marisa no instrumento particular deixa claro que ela não se opõe à utilização do bem comum para a composição do capital social da empresa de que seu marido é sócio. Em outras palavras, mesmo que sem uma venda efetiva de sua parte, é indiscutível que Marisa tem conhecimento de que um bem que também era seu por força do regime de bens do casamento será transferido para sociedade de que apenas seu cônjuge é sócio.
Note-se, ainda, que como a empresa apelante foi constituída durante a constância do casamento de Edson e Marisa, o aquesto correspondente ao imóvel integralizado ao capital social da empresa foi substituído pelo valor de mercado da quota social pertencente a Edson, em autêntica sub-rogação real.
Nem se argumente, por fim, que o art. 64 da Lei nº 8.934/94 [2] que autoriza que o sócio, por meio de instrumento particular, registre a transferência de bem imóvel para o capital social de uma empresa impede a inscrição do título ora analisado. Seguindo este raciocínio, Marisa, que não é sócia da empresa, teria que vender sua parte por escritura pública, uma vez que a ela não se aplica o mencionado art. 64.
Como é sabido, porém, durante o casamento, os bens comuns do casal permanecem em estado de mancomunhão, ou seja, pertencem a ambos os cônjuges, em propriedade conjunta. Não há, portanto, partes ideais de propriedade de cada um; ambos são donos do todo, estado esse que perdura até o fim do casamento, seja por divórcio, seja pela morte de um dos consortes.
Inexistindo condomínio entre os cônjuges, mas mancomunhão, não se pode dizer que o bem cuja propriedade o subscritor do capital detém de forma conjunta com seu cônjuge, sem definição de parte ideal, não se enquadre na hipótese em que o registro da transferência da propriedade é admitido por instrumento particular (art. 64 da Lei nº 8.934/94). Ou seja, provada a concordância de Marisa que, como se viu, tecnicamente não é mera outorga uxória a transferência do bem do casal mediante instrumento particular é viável.
Uma última razão recomenda a adoção da solução que se contenta com o instrumento particular para o negócio de integralização de capital social. É que embora sócio da pessoa jurídica seja apenas o marido, a esposa terá direito ao valor patrimonial de metade da participação social de seu cônjuge.
Isso significa o seguinte: haverá, em termos patrimoniais verdadeira sub-rogação real. Sai do patrimônio da esposa o valor de metade ideal do imóvel e ingressa, em contrapartida, o valor de metade da participação social do marido. Em termos diversos, muda apenas a qualidade do patrimônio, mas se mantém incólume a quantidade.
Por esses motivos, o título está apto a ingressar no registro imobiliário.
Ante o exposto, pelo meu voto, dou provimento à apelação, para julgar improcedente a dúvida.
FRANCISCO LOUREIRO
Corregedor Geral da Justiça
Relator
NOTAS:
[1] Art. 108. Não dispondo a lei em contrário, a escritura pública é essencial à validade dos negócios jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente no País.
[2] Art. 64. A certidão dos atos de constituição e de alteração de empresários individuais e de sociedades mercantis, fornecida pelas juntas comerciais em que foram arquivados, será o documento hábil para a transferência, por transcrição no registro público competente, dos bens com que o subscritor tiver contribuído para a formação ou para o aumento do capital.
Fonte: DJE/SP 27.11.2025-SP
Publicação: Portal do RI (Registro de Imóveis) | O Portal das informações notariais, registrais e imobiliárias!
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