Artigo: Renúncia de herança e outorga do cônjuge – Por Marco Antonio de Oliveira Camargo


*Marco Antonio de Oliveira Camargo

Renuncia de herança e outorga do cônjuge.

Não se deve ignorar o fato de que existe polêmica na doutrina acerca da necessidade de outorga conjugal para a realização de documento que venha a formalizar a renúncia ao direito de recebimento de herança

Existe uma corrente que entende desnecessária (Maria Helena Diniz e Washington de Barros) e outra, que contrariamente, defende sua imprescindibilidade quando for o herdeiro casado em qualquer dos regimes, que não seja o da separação convencional.

Assim lecionam Francisco Cahali e Giselda Hironaka:- “tratando a sucessão aberta como imóvel a renúncia à herança depende do consentimento do cônjuge (…). Considera-se que a ausência do consentimento torna o ato anulável, uma vez passível de ratificação (RT, 675/102); no mesmo sentido: RTJ, 109:1086)”.

Igualmente Zeno Veloso entende imprescindível a outorga do cônjuge pelo renunciante casado (salvo se o regime de bens for o da separação absoluta, regulamentado pelo art. 1.647 do CC), visto que a herança, por lei, é considerada imóvel e a renúncia seria equivale a uma alienação.

DELIMITANDO O TEMA

O ponto que se pretende analisar com algum detalhamento neste despretensioso artigo é a renúncia pura, a única que realmente pode ser assim definida.

Diferentemente deste tipo de renúncia – pura – uma existe forma de transmissão de direito hereditário que pode ocorrer após a aceitação da própria herança. Para ser possível este tipo de cessão é preciso que, ainda antes de se cogitar na possibilidade de sua ocorrência, que ocorra a aceitação do direito se pretenda transmitir.

É forma de transmissão que a doutrina denomina renúncia traslativa, que, efetivamente, renúncia não é. Trata-se de uma forma de cessão de direitos ao recebimento da herança e não de uma renúncia do recebimento dela.

Existem características singulares no direito à sucessão aberta.

O mais fundamental dos elementos caracterizadores do instituto é conhecido pelo nome francês “droit de saisene”.

Esta genial construção da ciência do direito tem o mérito de evitar a inconveniência de se conceber que alguma propriedade possa vir a ser considerada, ainda que por algum momento e situação particular, como algo sem dono.

Por uma ficção da lei a herança se transmite, com a morte do proprietário, imediatamente aos seus herdeiros.

Mas esta criação do direito tem uma dificuldade prática.

Ninguém pode, legitimamente, ser obrigado a receber um direito que não lhe interessa.

Portanto é absolutamente necessário que o herdeiro manifeste de alguma maneira sua intenção de aceitar aquela herança que, regra geral, lhe é benéfica e interessante.

Não se negue o fato de que pode existir situação em que o recebimento de uma herança não é de interesse do herdeiro. Perfeitamente possível que um indivíduo não queira receber algum tipo de bem (ou uma fração ideal dele) se, para tanto, se mostre necessário realizar um inventário oneroso e complexo, ou possível fonte de disputas e querelas, ou ainda que um processo que, ao final, resultará em pagamento de valor proporcionalmente muito pequeno.

Não raro, em famílias numerosas, acontece de um ou mais herdeiros preferir a renuncia ao direito de receber uma diminuta fração ideal em bem imóvel (ou móveis) cujo uso efetivo dificilmente virá em ocorrer.

Será muito mais fácil ficar fora do conflito e deixar para os parentes o ônus da realização do inventário e, depois, a superação do inevitável conflito pela posse e uso (ou alienação) do imóvel tornado comum pelo falecimento do autor da herança.

TOMANDO PARTIDO E ABANDONANDO A POLÊMICA

É sempre confortável adotar uma postura e permanecer alinhado ao pensamento de algum renomado doutrinador. Mas em alguns casos, em que existe polêmica e divergência isso não é muito fácil e tranquilizador.

Já no início deste texto pontuou-se a existência da divergência doutrinária sobre o tema.

Em situações específicas e especiais, motivado por alguma filigrana do tema, ou simplesmente em razão de, na análise do assunto ter ocorrido um estudo menos acurado ou, quiçá, tenha ocorrido a influencia de outro pensador igualmente equivocado, mas é fato que até mesmo renomados doutrinadores erram. É preciso aceitar tal limitação do intelecto.

Os grandes sábios são os primeiros a reconhecer limitações e possibilidade de errar. Diante da polêmica, em havendo dúvida, o melhor é pensar por si próprio; tirar conclusões com base em raciocínios próprios (não pelos raciocínios prontos).

HERANÇA É BEM IMÓVEL

O direito a sucessão aberta é considerado bem imóvel por um clara ficção legal . Não existe nenhuma margem de dúvida sobre esta característica singular, expressamente enunciada no inciso II do artigo 80 do Código Civil.

Como bem imóvel que é, para alienar ou gravar o direito ao recebimento de herança, por transmissão onerosa ou gratuita (renúncia traslativa incluída), a anuência do cônjuge é necessária, sendo dispensável apenas em caso de regime de separação absoluta (cf. art.1647, I do CC).

Questiona-se então: O que, exatamente significa alienar ou gravar um direito real? (outros nomes para os mesmos tipos de negócio seriam: transmitir ou onerar). Verdadeiramente não é necessário por ora e para o quanto aqui se propõe, um grande aprofundamento nesta questão. Para a solução do tema que se comenta, basta ressalvar e aceitar como verdade inquestionável a evidência que se impõe a qualquer raciocínio correto e de conformidade com o Direito: somente é possível alienar ou gravar, legitimamente, um direito que seja próprio.

Ou, em outras palavras: não se pode alienar ou gravar um direito que não exista na esfera patrimonial de quem pretenda dele dispor ou usar de qualquer forma.

Um condômino pode renunciar ao direito de preferência que lhe assiste na aquisição de uma fração de propriedade comum. O titular do direito de usufruto, ou de uma servidão predial, pode renunciar a seu direito. Enfim, no Direito, são várias as possibilidades de ocorrer renúncia e a renúncia à sucessão aberta é apenas uma delas.

A forma como tal renúncia deve ocorre está expressamente regulamentada pelo artigo 1806 do CC, verbis: A renúncia da herança deve constar expressamente de instrumento público ou termo judicial.

A forma da renúncia ao direito à sucessão aberta está regulamentada pelo citado dispositivo. mas não existe comando legal expresso que defina a obrigatoriedade de anuência do cônjuge para a validade de instrumento formal de renúncia do direito à sucessão aberta.

A exigência de anuência do cônjuge, conforme acima citado, resulta de uma interpretação da regra geral que determina ser tal anuência obrigatória para todos os casos de alienação ou oneração de direito real (com a exceção da dispensabilidade dela no regime de separação convencional).

Inexistente o comando específico a determinar tal providência – anuência do cônjuge para a realização de renúncia formal ao direito de sucessão aberta – parece coerente apoiar a conclusão simples, pulo silogismo, que se apresenta como válida: A sucessão aberta é um direito real, para alienação de direito rela é necessária a anuência do cônjuge, logo, para alienar o direito à sucessão aberta é necessária a anuência do cônjuge.

Esta lógica é, de fato, verdadeira. Para alienar ou gravar tal direito é necessária a anuência do cônjuge.

Entretanto, muito diferentemente disso, para adquirir tal direito não existe a menor possibilidade e se conceber este tipo de conclusão como necessária.

SÓ SÉ TRANSMITE O QUE É PRÓPRIO

É evidente que somente se pode alienar ou gravar o que é próprio. Portanto, antes de se conceber possível qualquer forma de transmissão ou oneração de direito ou propriedade é preciso que exista a aquisição do direito ou da coisa a ser alienado ou gravado.

O disposto no caput do art.1804 do CC é muito claro (e já objeto de comentário acima). A herança considera-se transmitida ao herdeiro após a aceitação dele.

Contudo, o parágrafo único deste mesmo artigo, dispõe, com igual clareza que, em não existindo aceitação (por renúncia expressa de tal direito) não haverá a ocorrência da própria transmissão do direito à sucessão.

Evidente que, se inexistente a transmissão, impossível cogitar-se acerca de possibilidade da alienação ou oneração.

Aceitar o direito atribuído pela Lei ou pela vontade do autor da herança (pode-se conceber a existência de legado testamentário) é condição básica e fundamental para qualquer conclusão acerca da necessidade, ou desnecessidade, de anuência conjugal para a alienação ou oneração de tal direito.

Não parece haver margem de dúvida sobre a mais fundamental característica da situação jurídica conhecida como aceitação: é um ato personalíssimo.

Para considerar aceita uma herança, o Código Civil, em regulamento muito diferente daquele determinado para outras situações, pouca formalidade exige. A aceitação da herança será considerada tácita, resultado da simples prática de atos próprios de quem age na qualidade de herdeiro (confira-se o artigo 1805 e as exceções dos parágrafos 1º e 2º).

O engano verificado em respeitável doutrina é que não se atentou a uma particularidade da situação representada pelo caso específico da renúncia à sucessão aberta. Diferentemente do que ocorre com outros direitos reais já constituídos e que, de uma maneira ou de outra, interessa ao casal e integra a denominada “comunhão de vidas” (bela expressão utilizada pela lei), cuja alienação ou oneração sujeita-se à regra geral da anuência para a alienação ou oneração.

O direito à sucessão aberta (ou, em outras palavras, o direito ao recebimento de herança), tem seu surgimento no mundo jurídico condicionado a um ato de vontade de pessoa colocada na posição de herdeiro ou legatário, por força de lei ou de legado, ato este personalíssimo e que se denomina aceitação.

Tal direito especial pode simplesmente não existir se não for aceito.

FUNDAMENTAL É A ACEITAÇÃO

Deveras, o ato unilateral e pessoal de aceitar a sucessão não pode, de modo algum, ser considerado como alienação ou oneração de um direito. Fundamentalmente antes disso, ele é pré-condição necessária para a existência do próprio direito e, por sua natureza, não pode ser legitimamente condicionado à qualquer espécie de interferência ou anuência conjugal.

Antes de interessar ao casal, a aceitação ou renúncia do recebimento de uma herança é ato que interessa ao indivíduo em sua singular posição de herdeiro ou legatário de uma pessoa falecida. Decidir-se pela aceitação ou pela renúncia ao recebimento de herança é prerrogativa personalíssima de um herdeiro e, como tal, ninguém, nem mesmo o cônjuge do herdeiro, pode legitimamente, condicionar ou impedir tal aceitação – ou renúncia ao recebimento deste direito.

CONCLUINDO

No início da reflexão sobre o assunto poderia existir dúvida sobre qual orientação doutrinária seguir. Poderia se conceber alguma dificuldade na compreensão e aplicação dos comandos legais quando se viesse a enfrentar alguma situação prática em que o herdeiro não pretende concorrer à herança a que faz jus. Desapaixonadamente analisando o instituto da aceitação o convencimento que se impõe é que de a aceitação do direito à sucessão aberta é ato personalíssimo e não pode depender de qualquer participação do cônjuge ou de terceiros.

A aceitação da herança é direito essencialmente potestativo do herdeiro ou legatário. É um caso típico de poder absoluto que, em Direito, se concede ao cidadão.

Parece inquestionável o fato de que, mesmo contra a vontade de seu cônjuge e de qualquer outra pessoa, pode o herdeiro aceitar ao seu direito sucessório.

Somente após a ocorrência da aceitação é que se passa a considerar este direito à sucessão aberta – espécie singular denominada “direito real” – como existente na esfera patrimonial do herdeiro ou legatário.

Uma vez aceita esta herança, se o herdeiro pretender transmitir este direito, por qualquer forma e título, deverá ele sujeitar-se à regra geral que exige, quando não se estiver diante de casamento regulado pelo regime da separação total de bens, a anuência de seu cônjuge.

Entretanto, muito diferentemente disso, quando o herdeiro decidir pela renúncia de seu direito, para a escritura pública a ser obrigatoriamente lavrada em tabelionato (ou para a renúncia documentalmente formalizada nos autos judiciais), não será necessária qualquer participação ou anuência de seu cônjuge, independentemente do regime adotado em seu casamento.

Respeitando a posição de quem afirma o contrário, a conclusão aqui alcançada, parece ser a única que possui coerência com a inteligência da lei atualmente em vigor e os princípios que regulam a transmissão da herança e os direitos patrimoniais dos diferentes regimes de bens existentes em nosso ordenamento.

Fonte: Notariado | 06/11/2015.

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Artigo: O estranho caso do inimputável capaz – Parte II – Por Vitor Frederico Kümpel, Thales Ferri e Bruno de Ávila Borgarelli


Podemos afirmar que o Direito é uma só ciência, cuja finalidade é disciplinar condutas por meio da elaboração de normas jurídicas. A existência de distintos ramos do Direito (Civil, Penal, Processual Civil, etc.), tanto em nível acadêmico, como no âmbito jurisdicional, não abala a unidade da ciência jurídica; como adverte Goffredo Telles Júnior, “durante cinco anos do Curso, matérias muitas e diversas são explicitadas e estudadas. Mas, reparem, todas elas se prendem umas com as outras. Relacionam-se pelos seus primeiros princípios, pelos seus fundamentos, pelos fins que almejam. Em verdade, podemos até dizer que, durante todo o Curso numa Faculdade de Direito, só cuidamos de uma única disciplina: A Disciplina da Convivência Humana”1.

Nestes termos, o Direito deve ser estudado e aplicado de maneira interdisciplinar2, de modo que suas diversas áreas interajam, rompendo o tradicional isolamento teórico e prático3, mas, para tanto, faz-se necessário um pressuposto lógico: a harmonia do sistema jurídico. Tal harmonia não impede que existam conflitos aparentes entre normas jurídicas (antinomia), os quais devem ser solucionados pelos critérios hierárquico, cronológico e da especialidade, mas excetuada tal hipótese, deve-se evitar a promulgação de normas jurídicas que se excluam, ou seja, que estejam em real conflito. Impõe-se, portanto, que o Direito seja concebido como um sistema harmônico de normas jurídicas, não produzindo conflitos reais e ao mesmo tempo evitando lacunas (anomia) – eventuais lacunas são observadas apenas na lei e não no Direito, já que ele mesmo “supre seus espaços vazios, mediante a aplicação e criação de normas”, como bem esclarece Maria Helena Diniz4.

Tratando especificamente da interdisciplinariedade entre o Direito Civil e o Direito Penal, observamos que até a promulgação da lei 13.146/15 (Estatuto da Pessoa com Deficiência), esses dois ramos do Direito encontravam-se em plena harmonia. Com efeito, são incontáveis as relações entre os diversos institutos de Direito Civil e Penal, entre as quais podemos destacar a independência relativa entre as jurisdições civil e criminal, e os reflexos penais e processuais penais a partir do advento do Código Civil de 2002, que reduziu a maioridade civil de 21 para 18 anos. Tratemos, brevemente, de cada uma dessas questões, antes da análise do referido Estatuto.

O princípio da independência relativa entre as jurisdições civil e penal decorre da interpretação conjunta dos arts. 65, 66, 67, incisos I a III, e 386, incisos, I a VII, do Código de Processo Penal, e 935 do Código Civil, extraindo-se as seguintes regras:

a) Faz coisa julgada no juízo cível a sentença penal condenatória transitada em julgado, pois, como adverte Carlos Roberto Gonçalves, “estariam comprovados a autoria, a materialidade do fato ou dano, o nexo etiológico e a culpa (dolo ou culpa stricto sensu) do agente”5;

b) Também faz coisa julgada na esfera civil a absolvição em razão de excludente de antijuridicidade (CP, art. 123, I a III, entre outras causas legais ou supralegais), por excludente de culpabilidade, descriminante putativa, quando provada a inexistência material do fato e quando provado que o réu não concorreu para a infração penal (CPP, arts. 65, 66, e 386, I, IV e VI, CP, arts. 20, § 1º, 21, 22, 26, e 28, § 1º, e CC, art. 188, I e II); excetuam-se apenas as absolvições por legítima defesa com “aberratio ictus” (CP, art. 73) e por estado de necessidade agressivo, restando ao condenado na esfera civil propor ação regressiva, respectivamente, contra o autor da agressão e o causador da situação de perigo (CC, arts. 929 e 930)6;

c) Não fazem coisa julgada na esfera civil as absolvições criminais por não haver prova da existência do fato, em razão do fato não constituir infração penal, por não existir prova de ter o réu concorrido para a infração penal, por não existir prova suficiente para a condenação (CPP, arts. 66, 67, III, 386, II, III, V e VII, e CC, arts. 186, 927, “caput”, e 935), e por não ter sido caracterizada a culpa do réu em delito culposo (muitas vezes a culpa levíssima não é suficiente para o aperfeiçoamento da tipicidade, embora o seja para configurar o ato ilícito na esfera civil)7;

d) Finalmente, não fazem coisa julgada na esfera civil a decisão de arquivamento de inquérito policial ou de peças de informação, bem como a decisão que julga extinta a punibilidade (CPP, art. 67, I e II).

No que se refere à aquisição da maioridade civil aos 18 anos a partir da vigência do Código Civil de 2002 (art. 5º, “caput”), a interpretação mais coerente com a harmonia do sistema aqui defendida – e que acabou prevalecendo – foi no sentido de que todas as normas do Código de Processo Penal que exigiam curador ao réu ou ofendido menor de 21 anos e maior de 18 foram revogadas pelo diploma civil8; manteve-se, todavia, a circunstância atenuante e a redução dos prazos prescricionais pela metade em relação aos réus menores de 21 anos e maiores de 18 na data do delito (CP, arts. 65, I, e 115).

Contudo, o Estatuto da Pessoa com Deficiência rompeu a harmonia do sistema, pois a partir de sua vigência, considerará absolutamente incapazes somente os menores de 16 anos (CC, art. 3º); conforme lição de lição de Moacyr Petrocelli de Ávila Ribeiro, “averiguando-se alguns reflexos imediatos do novo regime jurídico das incapacidades, de pronto, pode-se inferir que todas as pessoas que foram interditadas em razão de enfermidade ou deficiência mental passam, com a entrada em vigor do Estatuto, a serem consideradas, ope legis, plenamente capazes. Vale dizer, tratando-se de lei que versa sobre o estado da pessoa natural, a disposição normativa tem eficácia e aplicabilidade imediata”9.

Obviamente que as disposições do Código Penal relacionadas aos inimputáveis e semi-imputáveis permanecem intocadas (art. 26, “caput” e parágrafo único), mas a nova lei criou um conflito real em nosso sistema jurídico, como será demonstrado. Para tanto, algumas breves considerações sobre a teoria geral do crime se fazem necessárias.

Analiticamente e segundo a teoria finalista da ação bipartida, o crime pode ser definido como o fato típico e antijurídico, funcionando a culpabilidade como pressuposto de aplicação da pena10. Fato típico é aquele fato descrito em lei como crime ou contravenção penal, enquanto a antijuridicidade é a contrariedade de um fato típico ao ordenamento jurídico, ou seja, todo fato típico é, em princípio, antijurídico, salvo quando amparado por alguma causa de justificação (eximente), conforme a teoria do caráter indiciário da ilicitude (“ratio cognoscendi”), de Mayer11. Interessa-nos, aqui, tratar da culpabilidade.

Culpabilidade é o juízo de reprovação exercido sobre o autor de um fato típico e antijurídico. Claus Roxin define a culpabilidade como o “agir ilícito apesar da idoneidade para ser destinatário de normas”12, mas foi Reinhard Frank quem primeiramente cuidou do tema com distinção, ao ligá-lo à ideia de reprovabilidade13. Culpabilidade, portanto, é reprovabilidade, ou ainda, censurabilidade, isto é, o juízo de reprovação ou censura dirigido sobre o autor de um fato típico e ilícito – Damásio de Jesus cita um antigo provérbio alemão, segundo o qual “a culpabilidade não está na cabeça do réu, mas na do juiz; o dolo, pelo contrário, está na cabeça do réu”14.

São elementos da culpabilidade: potencial consciência da ilicitude, exigibilidade de conduta diversa e imputabilidade. Cada excludente de culpabilidade (dirimente) prevista no Código Penal afasta um desses elementos: o erro de proibição exclui a potencial consciência da ilicitude, a coação moral irresistível e a obediência hierárquica afastam a exigibilidade de conduta diversa, enquanto a inimputabilidade por doença mental, desenvolvimento mental incompleto ou retardado, ou por embriaguez completa resultante de caso fortuito ou força maior, afasta a imputabilidade (CP, arts. 21, 22, 26, “caput”, 27 e 28, § 1º)15.

Cuidaremos, na próxima coluna, da última excludente, eis que relacionada às nefastas inovações do Estatuto da Pessoa com Deficiência. Até lá!

Referencias Bibliográficas

CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 18 ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: Teoria Geral do Direito Civil. 27 ed. São Paulo: Saraiva, 2010, v. 1.

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JESUS, Damásio Evangelista de. Direito Penal. 19 ed. São Paulo: Saraiva, 1995, v. 1.

RIBEIRO, Moacyr Petrocelli de Ávila. Estatuto da Pessoa com Deficiência: A revisão da teoria das incapacidades e os reflexos jurídicos na ótica do notário e do registrador. Disponível em http://www.cnbsp.org.br/?pG=X19leGliZV9ub3RpY2lhcw==&in=MTA3NDQ=&filtro=1, acesso em 28.08.2015.

RODRIGUES, Silvio. Direito Civil: Responsabilidade Civil. 20 ed. rev. e atual. 5ª tiragem. São Paulo: Saraiva, 2008, v. 4.

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TAVARES, Everkley Magno Freire; BEZERRA, Gilvante Correa. Interdisciplinariedade: uma concepção emergente no ensino superior do Direito, in Revista da ESMARN (Escola da Magistratura do Rio Grande do Norte), v. 3, n. 1, set. 2006.

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ZIMIANI, Doroteu Trentini; HOEPPNER, Márcio Grama. Interdisciplinariedade no ensino do Direito, in Revista Unipar, v. 16, n. 2, abr./jun. 2008.

__________

1 Apud ZIMIANI, Doroteu Trentini; HOEPPNER, Márcio Grama. Interdisciplinariedade no ensino do Direito, in Revista Unipar, v. 16, n. 2, abr./jun. 2008, p. 106.

2 Zimiani e Hoeppner identificam a escassez de estudos interdisciplinares no âmbito do Direito, fazendo a seguinte advertência: “O que se observa no exercício da atividade jurídica é a existência de muitos profissionais com conhecimento fragmentado do Direito, voltados para especialidades, dissociados da realidade social, restritos a atuarem numa determinada área, por interesses estritamente particulares, sem contribuírem de maneira mais ampla para a justiça, contrariando o perfil que se espera dos operadores do Direito (op. cit., p. 104 e 105).

3 Sobre tal necessidade, confira-se: TAVARES, Everkley Magno Freire; BEZERRA, Gilvante Correa. Interdisciplinariedade: uma concepção emergente no ensino superior do Direito, in Revista da ESMARN (Escola da Magistratura do Rio Grande do Norte), v. 3, n. 1, set. 2006, p. 231-239.

4 Curso de Direito Civil Brasileiro: Teoria Geral do Direito Civil. 27 ed. São Paulo: Saraiva, 2010, v. 1, p. 72.

5 Direito Civil Brasileiro: Responsabilidade Civil. 6 ed. São Paulo: Saraiva, 2011, v. 4, p. 335.

6 Neste sentido: CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 18 ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 212.

7 No mesmo sentido: RODRIGUES, Silvio. Direito Civil: Responsabilidade Civil. 20 ed. rev. e atual. 5ª tiragem. São Paulo: Saraiva, 2008, v. 4, p. 148.

8 Exemplos: CPP, arts. 15 e 34.

9 Estatuto da Pessoa com Deficiência: A revisão da teoria das incapacidades e os reflexos jurídicos na ótica do notário e do registrador. Acesso em 28/8/2015.

10 JESUS, Damásio Evangelista de. Direito Penal. 19 ed. São Paulo: Saraiva, 1995, v. 1, p. 397-397, em sentido diverso da concepção originária da teoria finalista da ação, de Hans Welzel, que é tripartida (Derecho Penal Alemán. 11 ed. 4 ed. en español. Traducción del alemán por los professores Juan Bustos Ramírez y Sergio Yáñez Pérez. Santiago: Editorial Jurídica de Chile, 2011, p. 77 e 87).

11 Apud GOMES, Luiz Flávio; MACIEL, Silvio. A teoria da “ratio cognoscendi” e a dúvida do juiz sobre as excludentes de ilicitude. Acesso em 21/3/2012.

12 Estudos de Direito Penal. Tradução de Luís Greco. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 87.

13 Eis a lição de Reinhard Frank: “En la búsqueda de una expresión breve que contenga todos todos los mencionados componentes del concepto de culpabilidad, no encuentro otra que la reprochabilidad. Culpabilidad es reprochabilidad. Esta expresión no es linda, pero no conozco otra mejor” (Sobre la estructura del concepto de culpabilidad. Collección Maestros del Derecho Penal. Dirigida por Gonzalo D. Fernandes. Coordinada por Gustavo Eduardo Aboso. Traducción por Gustavo Eduardo Aboso y Tea Löw. 3 Reimp. Buenos Aires: Editorial IB de F, 2011, p. 39).

14 Op. cit., p. 403.

15 A Lei de Drogas (lei 11.343/06) também prevê a dependência e o efeito de droga decorrente de caso fortuito ou força maior como excludentes de imputabilidade, aplicáveis a qualquer infração penal e não apenas aos delitos relacionados a substâncias entorpecentes (art. 45, “caput”).

Fonte: Migalhas | 03/11/2015.

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