Artigo: Aquisição de veículos por menor ou incapaz: questões civis e tributárias – Por Letícia Franco Maculan Assumpção


*Letícia Franco Maculan Assumpção

Questão recorrente nos tabelionatos de notas é a possibilidade ou não de incapazes adquirirem veículos. O problema, aparentemente simples, envolve no entanto, tanto o direito civil quanto o direito tributário e merece análise mais detida.

Estabelece o Código Civil Brasileiro, art. 1.691:

Art. 1.691. Não podem os pais alienar, ou gravar de ônus real os imóveis dos filhos, nem contrair, em nome deles, obrigações que ultrapassem os limites da simples administração, salvo por necessidade ou evidente interesse da prole, mediante prévia autorização do juiz.

Logo, de acordo com o Código Civil, os pais não podem contrair em nome de seus filhos obrigações que ultrapassem os limites da simples administração, havendo necessidade de autorização judicial nos demais casos.

Nos termos do Código de Normas do Estado de Minas Gerais, Provimento nº 260/CGJ/MG, art. 276:

Art. 276. O reconhecimento de firma de autoria de menor entre 16 (dezesseis) e 18 (dezoito) anos, quando cabível, depende de assistência, no ato respectivo, de ambos os pais, ou de um deles, sendo o outro falecido ou declarado ausente, ou ainda do tutor, devendo também o cartão de autógrafos ser assinado pelos representantes legais do menor. (sem grifos no original)

O Código de Normas do Estado de Minas Gerais não está em conflito com a lei civil, expressamente constando que o reconhecimento de firma de autoria do menor, quando cabível, depende de assistência no ato respectivo, de ambos os pais. Deve, pois, ser verificado pelo tabelião se o reconhecimento de firma é cabível ou não.
A aquisição de veículo em nome do menor ou incapaz não é ato de simples administração e por vezes não tem em vista o melhor interesse do menor ou incapaz. Na praxe do Cartório do Barreiro, ao indagar o motivo para pôr o veículo em nome do menor, muitas vezes a justificativa é: para fugir das consequências das infrações de trânsito! Há, portanto, um interesse escuso por trás da prática! Nesse aspecto, é importante lembrar que, no notariado do tipo latino, incide o princípio da juridicidade, de modo que é obrigação do tabelião orientar as partes sobre a licitude dos atos, não praticando atos inexistentes ou nulos: é a polícia jurídica notarial. Deve o tabelião também zelar pela real manifestação de vontade, protegendo o hipossuficiente.
Não se pode ignorar que a aquisição de um veículo não é investimento, é custo, gera dívidas e obrigações, como pagamento do IPVA, por exemplo. Portanto, mesmo se o menor tem recursos, o genitor não pode, sem autorização judicial, utilizar esses recursos para adquirir um veículo, que desvaloriza, estando o negócio, de qualquer forma, além da “mera administração”.
Sobre os atos de mera administração, o Superior Tribunal de Justiça já esclareceu o que são, limitando-os, como se pode observar das ementas abaixo reproduzidas, com grifos nossos:

Processo
AgRg no Ag 1065953 / SP – AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO2008/0138082-5
Relator(a)
Ministro SIDNEI BENETI (1137)
Órgão Julgador
T3 – TERCEIRA TURMA
Data do Julgamento
07/10/2008
Data da Publicação/Fonte
DJe 28/10/2008
Ementa

CIVIL E PROCESSUAL CIVIL – AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO – FAMÍLIA – PODER FAMILIAR – ADMINISTRAÇÃO DE BENS DE FILHO – CONTRATAÇÃO DE SERVIÇOS ADVOCATÍCIOS – HONORÁRIOS FIXADOS EM 30% DO VALOR TOTAL DA CAUSA – NECESSIDADE DE INTERVENÇÃO JUDICIAL – SERVIÇO QUE BENEFICIOU MAIS O GENITOR DO QUE A PRÓPRIA MENOR, EM NOME DE QUEM O PATROCÍNIO FOI CONTRATADO.

I – O Código Civil, apesar de outorgar aos pais amplos poderes de administração sobre os bens dos filhos,não autoriza a realização de atos que extrapolem a simples gerência e conservação do patrimônio do representado.

II – Se o representante legal assume, sem prévia autorização judicial, contrato de prestação de serviços advocatícios em nome da filha, sendo o valor fixado dos honorários desproporcional (30% do valor total da causa), com o conseqüente comprometimento do patrimônio da representada, deve avocar para si a obrigação, ainda mais se considerado que, no caso concreto, os advogados contratados prestaram mais serviços ao representante do que à representada. Agravo regimental improvido.

Processo
REsp 439545 / SP – RECURSO ESPECIAL 2002/0064686-4
Relator(a)
Ministro JORGE SCARTEZZINI (1113)
Órgão Julgador
T4 – QUARTA TURMA
Data do Julgamento
03/08/2004
Data da Publicação/Fonte
DJ 06/09/2004 p. 261
Ementa

CIVIL – RECURSO ESPECIAL – INVENTÁRIO – MENORES – DEPÓSITO JUDICIAL – PÁTRIO PODER MATERNO – LEVANTAMENTO DA TOTALIDADE DOS BENS – ADMINISTRAÇÃO DOS PAIS – LIMITAÇÃO DE GASTOS – PROTEÇÃO DOS BENS – DISSÍDIO PRETORIANO COMPROVADO, PORÉM, INEXISTENTE.

1 – Divergência jurisprudencial comprovada, nos termos do art. 255 e parágrafos do RISTJ. Prequestionamento demonstrado. Conhecimento pelas alíneas “a” e “c” do permissivo constitucional.

2 – O pátrio poder deve ser exercido no proveito, interesse e proteção dos filhos menores. Todavia, a atuação dos pais no desempenho desse munus, não é irrestrita, além de não poderem alienar bens imóveis sem autorização judicial, também dispõe o artigo não caber aos genitores contrair obrigações que acarretem diminuição do patrimônio gerido, a menos sob hipótese de extremada necessidade da prole. Inteligência dos arts. 385 e 386, ambos do CC/1916.

3 – No caso vertente, o Tribunal a quo corretamente manteve o dinheiro herdado pelos menores em conta  judicial, garantindo, no entanto, o atendimento das necessidades da prole, mediante autorização para levantamento dos frutos e possibilidade de efetuar-se saque da quantia de R$3.000,00, a ser renovado periodicamente, aprovadas as contas a serem apresentadas pela genitora. Restou deferida, inclusive, a hipótese de se abaterem montantes maiores, desde que demonstrada a chance de emprego em investimentos de rentabilidade melhor.

4 – Precedente (REsp nº 292.974/SP).

5 – Recurso conhecido, por ambas as alíneas, porém desprovido.

Processo
REsp 292974 / SP RECURSO ESPECIAL 2000/0133409-3
Relator(a)
Ministra NANCY ANDRIGHI (1118)
Órgão Julgador
T3 – TERCEIRA TURMA
Data do Julgamento
29/05/2001
Data da Publicação/Fonte
DJ 25/06/2001 p. 173

JBCC vol. 192 p. 453

LEXSTJ vol. 147 p. 229

REVFOR vol. 365 p. 222

RJADCOAS vol. 24 p. 96

RSTJ vol. 146 p. 306

Ementa

Recurso Especial. Indenização por danos materiais e morais. Transação extrajudicial celebrada pelo pai, em nome dos filhos menores. Recebimento de direitos indenizatórios por atos ilícitos relativos. Quitação geral. Pátrio poder. Poderes de administração dos bens dos filhos. Ato que extrapola a simples gerência e conservação do patrimônio dos menores. Autorização judicial. Imprescindibilidade. Intervenção do Ministério Público. Obrigatoriedade. Art. 82, II, do CPC.

– O Código Civil outorga aos pais amplos poderes de administração sobre os bens dos filhos, mas estes não abrangem os atos que extrapolem a simples gerência e conservação do patrimônio do menor.Não podem, assim, praticar atos de disposição, a não ser nos casos especiais mencionados no art. 386 do CC, mediante as formalidades legais exigidas.

A transação, por ser negócio jurídico bilateral, que implica concessões recíprocas, não constitui ato de mera administração a autorizar o pai a praticá-la em nome dos filhos menores independentemente de autorização judicial. Realizada nestes moldes não pode a transação ser considerada válida, nem eficaz a quitação geral oferecida, ainda que pelo recebimento de direitos indenizatórios oriundos de atos ilícitos.

– O Ministério Público atua para proteger interesses indisponíveis.  No rol destes estão os relacionados à patria potestas. É de interesse do Estado assegurar a proteção da relação que envolve pais e filhos. Neste diapasão, quaisquer questões relativas aos direitos de ordem patrimonial dos filhos, assim como, aqueles que concernem ao usufruto e administração pelos pais sobre seus bens, transcendem a órbita do direito privado e justificam a atuação do Ministério Público na causa concernente, com arrimo art. 82, inciso II, do CPC.

– Com vistas a impedir atos fraudulentos ou o propiciar de perdas desvantajosas para o menor, competirá ao Ministério Público, nestes casos, coadjuvar seu representante na defesa dos interesses que estão afetos ao incapaz, bem como, fiscalizar os negócios por ele praticados que impliquem vedada disposição de bens. Tal participação é obrigatória, sob pena de nulidade.

– Recurso especial a que se nega provimento.

Acórdão

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas constantes dos autos, por unanimidade, não conhecer do recurso especial. Os Srs. Ministros Antônio de Pádua Ribeiro, Ari Pargendler e Carlos Alberto Menezes Direito votaram com a Sra. Ministra Relatora.

Assim, não é cabível, sem autorização judicial expressa, a aquisição de veículo por incapaz, mesmo que representado por ambos os pais.
Outro aspecto relevante da questão é o tributário. A legislação mineira relativa ao ITCD exige o pagamento do imposto no caso de doação, inclusive de bens móveis ou dos valores para sua aquisição, havendo presunção de incidência no caso de pessoa sem capacidade financeira, inclusive absoluta ou relativamente incapaz, praticar atos de aquisição:
Decreto Estadual de Minas Gerais nº 43.981/2005
Art. 2º O Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação de Quaisquer Bens ou Direitos – ITCD incide sobre a doação ou sobre a transmissão por ocorrência do óbito, de:
II – bens móveis, inclusive semoventes, direitos, títulos e créditos, e direitos a eles relativos, quando:
a) o doador tiver domicílio no Estado;
b) o doador não tiver residência ou domicílio no País e o donatário for domiciliado no Estado;
[…]
§ 2º Para os efeitos deste artigo, considera-se doação o ato ou fato em que o doador, por liberalidade, transmite bem, vantagem ou direito de seu patrimônio ao donatário, que o aceita expressa, tácita ou presumidamente, ainda que a doação seja efetuada com encargo ou ônus.
§ 3º Consideram-se também doação de bem ou direito os seguintes atos inter vivos praticados em favor de pessoa sem capacidade financeira, inclusive quando se tratar de pessoa absoluta ou relativamente incapaz para o exercício de atos da vida civil:
I – transmissão da propriedade plena ou da nua propriedade;
II – instituição onerosa de usufruto.  (sem grifos ou negrito no original)

Assim, para que alguém sem capacidade financeira adquira um veículo, há que ser recolhido o ITCD previamente. O tabelião não é responsável por esse tributo, pois a transferência da propriedade de bens móveis se dá pela tradição, o reconhecimento de firma é apenas uma formalidade exigida pelo DETRAN, mas é importante orientar os interessados sobre a regularidade do pagamento do imposto, até mesmo para evitar futuras multas.
Por fim, há uma questão específica e que demanda análise em separado, que é a aquisição de veículo por pessoa com deficiência física, visual, mental severa ou profunda, ou autista, sem capacidade financeira, na hipótese em que o doador seja parente em primeiro grau em linha reta ou em segundo grau em linha colateral, cônjuge ou companheiro em união estável ou representante legal do donatário. A legislação mineira concede isenção do ITCD e também do ICMS nessa hipótese, mediante processo administrativo apresentado à Secretaria do Estado da Fazenda.
Tendo em vista o reconhecimento pelo Estado do atendimento ao melhor interesse do menor, mediante o deferimento da isenção tributária para fins de ICMS e ITCD, pode-se entender desnecessária a autorização judicial prévia para que haja a aquisição, pois flagrante o benefício do menor.
Lei Estadual de Minas Gerais nº 14.941/2003, art. 3º, II, f
Art. 3º Fica isenta do imposto:
I – a transmissão causa mortis de:
[…]
II – a transmissão por doação:
[…]
f) dos recursos necessários à aquisição de veículo por pessoa com deficiência física, visual, mental severa ou profunda, ou autista, sem capacidade financeira, ao abrigo da isenção do Imposto sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação – ICMS -, na hipótese em que o doador seja parente em primeiro grau em linha reta ou em segundo grau em linha colateral, cônjuge ou companheiro em união estável ou representante legal do donatário;
Decreto Estadual de Minas Gerais nº 43.981/2005, art. 4º; art. 6º, II, f, c/c art. 7º, § 1º
Art. 4º O ITCD não incide sobre a transmissão causa mortis ou por doação em que figure como sucessor, beneficiário ou donatário:
I – a União, o Estado ou o Município;
[…]
Art. 6º É isenta do ITCD:
[…]
II – a transmissão por doação:
[…]
f) dos recursos necessários à aquisição de veículo por pessoa com deficiência física, visual, mental severa ou profunda, ou autista, sem capacidade financeira, ao abrigo da isenção do Imposto sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação – ICMS -, na hipótese em que o doador seja parente em primeiro grau em linha reta ou em segundo grau em linha colateral, cônjuge ou companheiro em união estável ou representante legal do donatário.
[…]
Art. 7º As hipóteses de não-incidência e de isenção do ITCD previstas neste regulamento serão reconhecidas pela repartição fazendária competente nos termos do art. 16 e homologadas pela autoridade fiscal.
§1º Na hipótese em que figure como herdeira, legatária ou donatária pessoa indicada no inciso I do caput do art. 4º, a imunidade do ITCD será reconhecida pelo responsável pela lavratura do ato que formalizar a transmissão.

Em conclusão:
1- a aquisição de veículo em nome de menor ou incapaz pelos seus genitores não é ato de simples administração e deve ser analisado pelo tabelião se tem em vista o melhor interesse do incapaz;
2- em regra, aquisição ou alienação de veículo por menor ou incapaz só é cabível com autorização judicial, não sendo suficiente a representação ou assistência de ambos os pais para o ato;
3- incide ITCD sobre a doação de recursos para aquisição de veículo por pessoa sem capacidade financeira, não sendo o tabelião responsável tributário, já que o reconhecimento de firma não transfere a propriedade, o que ocorre com a tradição do bem, mas é importante que o tabelião informe a incidência do ITCD aos interessados, inclusive para que tais interessados não sejam penalizados com multas;
4- nos casos de aquisição de veículo por pessoa menor ou incapaz com deficiência física, visual, mental severa ou profunda, ou autista, sem capacidade financeira, na hipótese em que o doador seja parente em primeiro grau em linha reta ou em segundo grau em linha colateral, cônjuge ou companheiro em união estável ou representante legal do donatário, com deferimento de isenção pelo Estado do ITCD e do ICMS, é possível entender-se dispensável a autorização judicial, tendo em vista o flagrante benefício do menor ou incapaz.

_______________

* Letícia Franco Maculan Assumpção é graduada em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (1991), pós-graduada e mestre em Direito Público. Foi Procuradora do Município de Belo Horizonte e Procuradora da Fazenda Nacional. Aprovada em concurso, desde 1º de agosto de 2007 é Oficial do Cartório do Registro Civil e Notas do Distrito de Barreiro, em Belo Horizonte, MG. É professora da pós-graduação da Faculdade Milton Campos e autora de diversos artigos na área de Direito Tributário, Direito Administrativo, Direito Civil e Direito Notarial, publicados em revistas jurídicas, e do livro Função Notarial e de Registro. É Presidente do Colégio do Registro Civil de Minas Gerais e Diretora do CNB/MG.

Fonte: Notariado | 26/06/2015.

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Artigo: Venda de coisa comum indivisível – Artigo 504 do Código Civil – Por Débora Fayad Misquiati


* Débora Fayad Misquiati
Art. 504. Não pode um condômino em coisa indivisível vender a sua parte a estranhos, se outro consorte a quiser, tanto por tanto. O condômino, a quem não se der conhecimento da venda, poderá, depositando o preço, haver para si a parte vendida a estranhos, se o requerer no prazo de cento e oitenta dias, sob pena de decadência.
Parágrafo único. Sendo muitos os condôminos, preferirá o que tiver benfeitorias de maior valor e, na falta de benfeitorias, o de quinhão maior. Se as partes forem iguais, haverão a parte vendida os comproprietários, que a quiserem, depositando previamente o preço.Inserido dentro do Capítulo I (Da compra e venda), do Título VI (Das várias espécies de contrato), o artigo 504 do Código Civil cuida do direito de preferência entre condôminos em se tratando de coisa indivisível.

Elpídio Donizetti e Felipe Quintella ensinam que “o direito de preferência do condômino é apelidado pela doutrina de prelação legal ou preempção legal”.[1]

O artigo 87 do vigente Código Civil bem informa o conceito legal de bens divisíveis, possibilitando-nos, por via inversa, entender como bem indivisível aquele que não se pode fracionar sem alteração na sua substância, diminuição considerável de valor, ou prejuízo do uso a que se destinam.

Em complemento ao conceito legal de bens divisíveis, o artigo 88 do mesmo diploma prevê que, “os bens naturalmente divisíveis podem tornar-se indivisíveis por determinação da lei ou por vontade das partes”. Assim, uma casa pode ser considerada como um bem imóvel indivisível.
Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, em curso de Direito Civil (parte geral e LIND), volume 1 (p. 474), lecionam:

A divisibilidade é própria de todos os corpos, admitindo-se, fisicamente, o fracionamento das coisas até a partícula do átomo. Juridicamente, no entanto, a divisibilidade, ou não, de uma coisa decorre de um critério utilitarista, ou seja, da manutenção do seu valor econômico proporcionalmente às coisas divididas. (…)
A indivisibilidade pode decorrer de diferentes origens (…)
ii) por determinação legal, nas hipóteses em que a lei determina a indivisibilidade. Veja-se, nesse sentido, o art. 1.386 da Codificação indicando que as servidões prediais são indivisíveis em relação ao prédio serviente. Também o art. 65 do Estatuto da Terra (Lei nº 4.504/64) reconhece o imóvel rural como insuscetível de divisão em frações de dimensão inferior a um módulo rural.

Em destaque a incidência do artigo 504 do Código Civil aos bens imóveis rurais, devemos ter em mente que, se há condomínio, mas este é passível de divisão, respeitando o parcelamento mínimo – frações de áreas superiores ao módulo rural da região – o artigo em estudo não é aplicável.[2]

No mesmo sentido, são as lições em relação aos bens imóveis urbanos. Waldemir Banja ensina que “na interpretação e aplicação do direito de preferência, quando se trate de imóvel urbano divisível, o condômino proprietário de parte ideal de tal imóvel poderá vender a sua parte a estranhos sem prévia oferta aos demais condôminos, desde que a parte por ele vendida atinja a área mínima exigida pela legislação local para constituição e registro como parte autônoma.”[3]

No mais, o artigo 504 do Código Civil estipula o direito de preferência do condômino de bem imóvel indivisível somente quando preterido por terceiro estranho ao condomínio. Vejamos a jurisprudência nesse sentido:

APELAÇÃO CÍVEL Nº: 0003436-60.2011.8.26.0493. CONDOMÍNIO. DIREITO DE PREFERÊNCIA. ANULAÇÃO DE CONTRATO DE COMPRA E VENDA. IMÓVEL RURAL. 1. Sentença que julgou improcedente o pedido de reconhecimento do direito de preferência e anulação de contrato de compra e venda. 2. Consoante dispõe o art. 504, do CC, o direito de preferência somente é oponível a estranhos e, no caso, o adquirente também é condômino. Logo, consoante constou da sentença, o direito de preferência do autor não é oponível ao direito de preferência do requerido. 3. Ademais, cabia ao autor, ao ingressar com a demanda, efetuar o depósito do preço, para assegurar eventual direito de preferência, o que não fez. Ausente depósito, não há subsídio para que lhe seja deferido eventual direito de preferência. 4. Recurso não provido. (Relator (a): Carlos Alberto Garbi; Comarca: Regente Feijó; Órgão julgador: 10ª Câmara de Direito Privado; Tribunal de Justiça de SP; Data do julgamento: 07/04/2015; Data de registro: 09/04/2015) [4] (grifo nosso)

No que tange ao prazo decadencial de cento e oitenta dias, a lei civil não estipulou quando referido lapso temporal inicia-se.

A nosso ver, o melhor posicionamento, no que tange aos bens imóveis, seria a data do registro.
Vejamos a jurisprudência sobre o assunto:

APELAÇÃO CÍVEL Nº: 4004340-80.2013.8.26.0286. DIREITO DE PREFERÊNCIA. Artigo 504 do Código Civil. PRAZO DECADENCIAL. Termo inicial a contar do registro imobiliário. Decurso de prazo superior a 180 dias entre o registro imobiliário e o ajuizamento da demanda. Recurso improvido. (…) É o relatório. O recurso não comporta provimento. O art. 504 do Código Civil não dispõe sobre o termo inicial do prazo decadencial de 180 dias para exercício do direito de preferência. Assim dispõe: (…) Acerca do termo inicial do prazo de 180 dias, a doutrina é divergente. Nesse sentido, Flavio Tartuce ressalta que:• Maria Helena Diniz entende, (…) que esse se dará com a ciência da alienação.• Silvio de Salvo Venosa posiciona-se no sentido de que o prazo será contado da consumação do negócio. Mais à frente o jurista afirma que “o prazo deve começar a correr da data em que efetivamente o interessado tomou ciência do negócio, e, no caso de imóveis, da data do registro imobiliário”. Álvaro Villaça Azevedo sustenta que no caso de bens imóveis, o prazo começa a fluir do registro imobiliário1. Conquanto a primeira solução prestigie o direito à informação inerente à boa-fé com que devem atuar os condôminos em suas relações entre si, não se deve ignorar, de outro lado, a confiança depositada por terceiros na publicidade e segurança advindas do registro imobiliário. Dessa forma, o prazo deve ser contado a partir do efetivo registro. Assim entende esta C. Câmara: (…). (Relator(a): Rosangela Telles; Comarca: Itu; Órgão julgador: 2ª Câmara de Direito Privado; Data do julgamento: 16/03/2015; Data de registro: 16/03/2015)[5]

De fato, o artigo 504 do Código Civil não incide nos casos de mera liberalidade. O preceito legal em comento é norma dispositiva restritiva da autonomia da vontade e, portanto, não deve sofrer intepretação extensiva.[6]

No caso da cessão de direitos hereditários, o direito de preferência do coerdeiro tem previsão específica no Código Civil. Assim prevê o artigo 1794 do referido diploma:

Art. 1.794. O co-herdeiro não poderá ceder a sua quota hereditária a pessoa estranha à sucessão, se outro co-herdeiro a quiser, tanto por tanto.

Mauro Antonini explica que “se terceiro pretender adquirir direitos hereditários, os coerdeiros terão preferência se a quiserem pelo mesmo preço. Ao se referir a tanto por tanto, o artigo trata exclusivamente da cessão onerosa. Não se aplica, assim, à cessão gratuita de direitos hereditários. Com efeito, seria inviável o exercício da preferência, nas mesmas condições, cuidando-se de liberalidade”.[7]

No que tange ao parágrafo único do artigo 504 do Código Civil, Elpídio Donizetti e Felipe Quintella, esmiúçam referido artigo determinando que “caso mais de um condômino se interesse por adquirir a fração do alienante, tem preferência o condômino que tiver as benfeitorias de maior valor, e, na falta destas, tem preferência o condômino que tiver o maior quinhão (art. 504, parágrafo único, primeira parte). Se as cotas de todos forem iguais, a preferência será do condômino que primeiro depositar judicialmente o preço (art. 504, parágrafo único, segunda parte).[8]

Por fim, a venda e compra de parte ideal de coisa comum indivisível a terceiro estranho, sem oportunizar o coproprietário a aquisição nas mesmas condições ofertadas, não invalida o negócio jurídico, apenas o torna ineficaz perante o condômino que desconhece o ato.[9]

No que se refere à atuação do notário frente ao artigo 504 do Código Civil, à evidência de seu dever de transparência e fornecimento de informações, as partes podem optar pela lavratura da escritura de compra e venda, em que pese a inobservância do preceito em estudo.

Assim o fazendo, o notário ao elaborar o documento público, dotado de fé pública e, que, portanto, pressupõe o preenchimento dos requisitos formais, observância da lei ao caso concreto, prévia orientação e conhecimento das partes sobre tudo o que ali se dispõe, deve fazer constar de forma expressa na escritura pública a ciência das partes sobre o que dispõe o artigo 504 do Código Civil.

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REFERÊNCIAS

CÓDIGO CIVIL COMENTADO: doutrina e jurisprudência – Lei nº 10.406, de 10.01.2002 – contém o Código Civil de 1916. Cezar Peluzo (coord.). 6ª ed. rev. e atual. Barueri: Manole, 2012.

DINIZ, Maria Helena. Código Civil Anotado. 11. Ed. ver., aum. E atual. de acordo com o novo Código Civil (Lei n. 10.406, de 10-1-2002). São Paulo: Saraiva, 2005.

DONIZETTI, Elpídio; QUINTELLA, Felipe. Curso didático de direito civil. São Paulo: Atlas, 2012.

FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil – contratos. 2º ed. editora JusPodivm, 2012. 4 vol.

FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil – Parte Geral e LINDB. 12º ed. editora JusPodivm, 2014. 1 vol.

TARTUCE, Flávio. Direito CivilTeoria Geral dos Contratos e Contratos em Espécie. São Paulo: Método, 2006.

VENOSA, Sílvio de Salvo. Código Civil interpretado. São Paulo: Atlas, 2010.

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[1] DONIZETTI, Elpídio; QUINTELLA, Felipe, cf. Curso didático de direito civil, p.531
[2] APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE PREEMPÇÃO. CONDOMÍNIO. IMÓVEL RURAL PASSÍVEL DE DIVISÃO. INAPLICABILIDADE DO ART. 504 DO CC/02. IMPROCEDÊNCIA DO PEDIDO. SENTENÇA CONFIRMADA. Se o imóvel rural em condomínio é passível de divisão entre os condôminos em frações de área superior ao módulo rural da região, inexiste direito de preferência com fundamento no disposto no art. 504 do Código Civil de 2002. Para o exercício do direito de preferência o condômino deve provar que reúne três requisitos: reclamação dentro do prazo legal, o depósito do preço e a indivisibilidade do imóvel, conforme determina o art. 504 do CC/02. Área alienada a terceiro superior ao módulo da região. Recurso improvido. Unânime. (Apelação Cível Nº 70017116450, Décima Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Cláudio Augusto Rosa Lopes Nunes, Julgado em 12/03/2009). Disponível em:
<http://www.tjrs.jus.br/busca/search?q=504+CC&btnG=buscar&entsp=a__politicasite&wc=200&wc_mc=1&
oe=UTF8&ie=UTF8&ud=1&proxystylesheet=tjrs_index&client=tjrs_index&filter=0&getfields=*&aba=juris&
lr=lang_pt&sort=date%3AD%3AS%3Ad1&as_qj=504+CC&site=ementario&as_epq=alienada+a+terceiro+superior&
as_oq=&as_eq=&as_q=+#main_res_juris> Acesso em: 09 de maio 2015.
[3] Disponível em:
<http://www.tjdft.jus.br/institucional/imprensa/artigos/2009/direito-de-preferencia-e-condominio-de-imovel
-urbano-divisivel-juiz-aposentado-waldemir-banja>. Acesso em: 09 de maio 2015.
[4]Disponível em: <http://www.jusbrasil.com.br/busca?q=DIREITO+DE+PREFER%C3%8ANCIA+NA+COMPR
A+E+VENDA+DO+IM%C3%93VEL>. Acesso em: 13 de maio 2015.
[5]Disponível em:
<http://esaj.tjsp.jus.br/cjsg/getArquivo.do?cdAcordao=8289343&cdForo=0&vlCaptcha= JyDQb>. Acesso em: 09 de maio 2015.
[6]Ementa: PROCESSUAL CIVIL E CIVIL. AÇÃO ANULATÓRIA DE ATO JURÍDICO. DOAÇÃO DE PARTE DE IMÓVEL COMUM INDIVISÍVEL. ANULAÇÃO DA AVENÇA POR AUSÊNCIA DE DISTRATO DA COMPRA E VENDA ANTERIOR, RELATIVA À MESMA PARTE DO BEM, E POR FALTA DE ANUÊNCIA DE FILHO DOS DOADORES. ILEGITIMIDADE ATIVA DO CONDÔMINO PARA PLEITEAR A NULIDADE COM TAIS FUNDAMENTOS. OFENSA AO DIREITO DE PREFERÊNCIA DO PROPRIETÁRIO DA COISA COMUM (CC, 504). INAPLICABILIDADE DO DISPOSITIVO LEGAL PERTINENTE EM CASO DE DOAÇÃO. PROIBIÇÃO DA CESSÃO DA POSSE A TERCEIRO (CC, 1.314, PARÁGRAFO ÚNICO). VEDAÇÃO CIRCUNSCRITA À TRANSFERÊNCIA PARCIAL DA POSSE, COM A MANUTENÇÃO DA POSSE DO CONDÔMINO CEDENTE. INOCORRÊNCIA. DOAÇÃO HÍGIDA. SENTENÇA MANTIDA. RECURSO DESPROVIDO. “Estará legitimado o autor quando for possível titular do direito pretendido, ao passo que a legitimidade do réu decorre do fato de ser ele a pessoa indicada, em sendo procedente a ação, a suportar os efeitos oriundos da sentença” (Humberto Theodoro Júnior). Assim, cabe aos prejudicados pretender a nulidade da doação por falta de anuência ou distrato de compromisso anterior. O direito de preferência de aquisição pelo coproprietário de imóvel indivisível, de que trata o artigo 504 do Código Civil , não se aplica em caso de doação, dada a especificidade da norma pelo uso do termo vender, bem como pela prerrogativa do doador de destinar seu patrimônio a quem lhe aprouver. “Conforme o parágrafo único do art. 1.314 do Código Civil de 2002, é proibido um condômino dar posse a estranho conservando também a posse sobre parte da sua quota. De forma diversa, contudo, permite-se ao condômino passar por inteiro a um terceiro a posse ou uso que tinha no imóvel em comum” (TJSC, Desembargadora Maria do Rocio Luz Santa Ritta).”Conforme o parágrafo único do art. 1.314 do Código Civil de 2002, é proibido um condômino dar posse a estranho conservando também a posse sobre parte da sua quota. De forma diversa, contudo, permite-se ao condômino passar por inteiro a um terceiro a posse ou uso que tinha no imóvel em comum” (TJSC, Desembargadora Maria do Rocio Luz Santa Ritta)…. Encontrado em: Segunda Câmara de Direito Civil Apelação Cível n. 749955 SC 2008.074995-5 (TJ-SC). Data de publicação: 22/03/2010 (grifo nosso). Disponível em: <http://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia
/busca?q=PREFERENCIA+DO+CONDOMIN O+DIREITO+ CIVIL+COMPRA+E+VENDA>. Acesso em: 13 de maio 2015.
[7] ANTONINI, Mauro, cf. Código Civil Comentado: doutrina e jurisprudência – Lei nº 10.406 de 10.01.2002, p. 2.161
[8] DONIZETTI, Elpídio; QUINTELLA, Felipe, cf. Curso didático de direito civil, p.531
[9] REsp 216979 / RJ: PROMESSA DE COMPRA E VENDA. Condomínio. Ação declaratória. Ação possessória. O contrato de promessa de compra e venda de bem indivisível, por um dos condôminos, é válido, mas ineficaz em relação ao condômino que não participou do ato. Ação declaratória julgada procedente. Não estando fundado o litígio sobre a posse em alegação de domínio, que não ficou provado por nenhuma das partes, não se aplica a regra de que a ação possessória não será julgada a favor de quem evidentemente não pertence o domínio. O promissário comprador que exerce a posse em razão do contrato não comete esbulho. Recurso conhecido e provido em parte. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/toc.jsp>. Acesso em: 13 de maio 2015.
Fonte: Notariado | 26/06/2015.

Publicação: Portal do RI (Registro de Imóveis) | O Portal das informações notariais, registrais e imobiliárias!

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