Artigo: Responsabilidade Civil na autenticação? – Por Rodrigo Reis Cyrino


* Rodrigo Reis Cyrino

A autenticação de cópias é o ato pelo qual o Tabelião de Notas ou Escrevente autorizado certifica que a cópia reprográfica de um documento confere com o documento original que lhe foi apresentado pelo usuário do serviço notarial.

No entanto, o ato do Cartório de Notas de autenticar uma cópia não tem pertinência quanto ao conteúdo ideológico do documento ou a realidade do seu teor, sendo somente uma análise formal de aspectos relativos ao formato do documento, tais como: aparência visual, forma material e os aspectos externos, momento em que o Tabelião tão somente certifica que o documento confere com o que foi apresentado no original na serventia, certificando a correspondência por semelhança entre o documento original apresentado e a cópia autenticada.

O Cartório de Notas só terá responsabilidade civil se o documento autenticado estiver com grandes rasuras, adulterações visíveis, emendas, borrões, possuir espaços em branco, alterações no seu conteúdo, falsificação ou fraude grosseira, perceptíveis a olho nu, ou grotesca montagem que dispensaria qualquer perícia técnica para a aferição da falsidade ou fraude pelo Tabelião.

Pois bem. Na prática, se o Tabelionato autenticar uma fotocópia que, substancialmente corresponde ao documento apresentado como original sem qualquer falha vista a olho nu, não há que se falar em responsabilidade civil, até mesmo porque o notário não é perito criminal e não possui instrumentos técnicos ou de apuração para verificar uma falsificação ou fraude em determinados documentos.

Dessa forma, nessa toada, o Cartório de Notas possui uma responsabilidade limitada de garantir que a cópia certificada pelo escrevente corresponde ao documento apresentado para a conferência e autenticação, mas não a autenticidade do conteúdo ideológico em si do documento.

Portanto, estando preenchidos os requisitos formais dos documentos levados à autenticação, o Tabelião atua no estrito cumprimento de um dever legal de certificar o fato de que foi apresentado o documento original na Serventia, não havendo possibilidade de analisar o conteúdo do ato em muitos casos que exigem uma perícia técnica apurada.

Sendo assim, a pergunta que se faz é: no caso concreto, poderia o funcionário do Cartório afirmar, a olho nu e com segurança, ser a fotocópia apresentada resultante de uma montagem ou não? Se não for possível essa verificação de plano, mas somente com uma perícia, isso afasta qualquer responsabilidade civil do Tabelião de Notas.

Sobre o assunto, analogicamente, o artigo 157, da Lei de Registros Públicos estabelece que:

Art. 157. O oficial, salvo quando agir de má-fé, devidamente comprovada, não será responsável pelos danos decorrentes da anulação do registro, ou da averbação, por vício intrínseco ou extrínseco do documento, título ou papel, mas, tão-somente, pelos erros ou vícios no processo de registro. 

Sob esse aspecto, Walter Ceneviva esclarece que “a má-fé do Oficial deve ser devidamente comprovada, válidos todos os meios de prova permitidos em Direito (…) defluindo sua existência do conhecimento que o serventuário tem de vício do título submetido, registrando-o, apesar disso” (In: Tratado de Registros Públicos. p. 92).

Noutro giro, também analogicamente, o artigo 8o, parágrafo único, da Lei Federal n° 9.492/97 (lei que regulamenta os serviços concernentes ao protesto de títulos), ao tratar das duplicatas por indicação, encaminhadas pelas Instituições Financeiras, diz que fica a cargo do Tabelião de protestos a mera instrumentalização das mesmas, ou seja, o Tabelião não pode alterar qualquer dado constante do referido título:

Art. 8o Os títulos e documentos de divida serão recepcionados, distribuídos e entregues na mesma data aos Tabelionatos de Protesto, obedecidos os critérios de quantidade e qualidade.

Parágrafo único. Poderão ser recepcionadas as indicações a protestos das Duplicatas Mercantis e de Prestação de Serviços, por meio magnético ou de gravação eletrônica de dados, sendo de inteira responsabilidade do apresentante os dados fornecidos, ficando a cargo dos Tabelionatos a mera instrumentalização das mesmas.

Numa interpretação desse artigo 8o, parágrafo único, da lei 9.492/97, depreende-se que não há possibilidade e disponibilidade operacional para que o Tabelião de protestos possa realizar a verificação das formalidades intrínsecas do título de crédito, a saber: prescrição, decadência, regularidade na emissão do CNPJ, CPF, sua correlação com a denominação, razão social, ou nome fantasia do sacado, se o número da fatura corresponde ao da duplicata, se houve ou não a entrega da mercadoria ou a efetiva prestação do serviço (substituível por declaração do sacador no próprio título), etc., porque estes dados estão sob a responsabilidade do credor. Da mesma forma, ocorre com o Tabelião de Notas ao autenticar uma cópia do documento original, onde é verificado o aspecto formal e não o conteúdo do documento.

Outro ponto importante a ser analisado sobre a responsabilidade civil em uma autenticação de cópia de um documento, que futuramente vem a ser tido como falsificado, é a existência ou não do nexo causal entre a ação e o dano ocorrido.

Imagine a situação em que um suposto vendedor apresenta a um corretor de imóveis uma identidade falsa e deixa na Imobiliária uma cópia autenticada em Cartório desse documento. Com tal cópia autenticada o corretor de imóveis vende o bem só com base nessa identidade, sendo que posteriormente descobre-se que ocorreu um verdadeiro golpe nessa venda lesando o comprador que pagou a integralidade do preço. Nesse exemplo, pergunta-se: tão somente a autenticação de um documento falsificado foi o que gerou um dano numa venda de um imóvel por quem se passou por vendedor ou o corretor de imóveis, por exemplo, deveria ter realizado outras diligências para não ocorrer o golpe?

No referido exemplo, não há responsabilidade do Tabelionato, porque o corretor de imóveis deveria ter tomado outras diligências necessárias para a venda do imóvel, tais como anúncios do imóvel em placas, jornais, obtenção da certidão de ônus do imóvel, verificação na vizinhança sobre  a pessoa do vendedor, levantamento do cadastro imobiliário na Prefeitura, orientação sobre a forma de pagamento através de cheque nominal ou cruzado e etc.

Além disso, no exemplo citado, aplica-se aqui a teoria da causalidade direta onde exige-se que um evento, fator ou circunstância só se caracteriza como causa do resultado danoso se houver um vínculo direto e imediato entre a conduta do agente e o dano, ou seja, tão somente a autenticação geraria o dano? Evidente que não, e por isso não incide responsabilidade civil do notário, até mesmo porque a autenticação se constitui em verdadeiro serviço de meio.

A teoria da causalidade direta foi adotada pelo artigo 403, do Código Civil, nos seguintes termos:

Art. 403. Ainda que a inexecução resulte de dolo do devedor, as perdas e danos só incluem os prejuízos efetivos e os lucros cessantes por efeito dela direto e imediato, sem prejuízo do disposto na lei processual.

Nesse paradigma, é de fácil constatação que não havendo liame entre a conduta do Tabelionato e os danos experimentados pela parte lesada, tal fato descaracteriza cabalmente o nexo de causalidade, mormente porque vige no país o princípio da relatividade dos efeitos do contrato, ou seja, os contratos só produzem efeitos entre os contratantes, salvo as peculiaridades de casos excepcionais. As partes que participaram do contrato de compra e venda e em tese são os responsáveis juridicamente pela transação são: o vendedor, comprador e o corretor de imóveis que prestou o serviço de vender o imóvel sem qualquer ônus ao comprador e ganhou comissão para tanto.

Portanto, pelo conceito acima descrito percebe-se que a responsabilização do Cartório de Notas é insubsistente, eis que este não se obrigou a nenhum negócio jurídico de compra e venda, nem sequer sabia da relação havida entre o vendedor, comprador e o corretor de imóveis.

Por todo o exposto, é importante esclarecer que em todos os casos de responsabilidade civil, inclusive na objetiva, o laço ou relação direta de causa e efeito (nexo causal) entre o fato gerador da responsabilidade e o dano são seus pressupostos indispensáveis, conforme decisões dos Tribunais:

INDENIZAÇÃO – DANOS MATERIAIS E MORAIS – CONTRATO DE LOCAÇÃO – FALSIFICAÇÃO DA ASSINATURA DO FIADOR – FIRMA RECONHECIDA PELO TABELIÃO – DANOS DECORRENTES DA INJUSTA COBRANÇA DOS ALUGUÉIS E ENCARGOS – AUSÊNCIA DE NEXO DE CAUSALIDADE ENTRE O ATO PRATICADO PELO RÉU E OS DANOS ALEGADOS. 1) A responsabilidade civil depende da concorrência dos seguintes elementos: conduta culposa ou dolosa, dano experimentado e o nexo de causalidade entre ambos. 2) Nas ações de indenização por ato ilícito, não basta a prova de fatos isolados, mas a efetiva demonstração do nexo de causalidade entre a ação voluntária do causador do dano e o prejuízo dele decorrente, devidamente comprovado. 3) Improcede o pedido de indenização por danos morais se um dos requisitos ensejadores da responsabilidade civil não estiver demonstrado. (TJDFT – APC 2005071002002-7 – Desembargadora Relatora Fátima Rafael – Sessão de Julgamento: 10/2006 – 4ª VCV/TAG – INDENIZAÇÃO)

Por fim, em um comentário sobre o artigo 22, da Lei nº 8935/94, que trata da responsabilidade civil e criminal dos notários, o jurista Walter Ceneviva ensina que:

A lei, ao tratar dos atos danosos, distingue o que denomina atos próprios da serventia, dando ensejo, por oposição, ao questionamento do que sejam atos im­próprios. A indicação legislativa é inadequada; não se trata de atos da serventia, mas os que nela sejam desenvolvidos, sob gerenciamento do registrador e do notá­rio, como se observa no § 4a do art. 20, a ser lido suplementarmente. O critério objetivo caracteriza os primeiros (atos próprios) como inerentes às funções legais do ofício registrário e notarial, de organização técnica e administra­tiva, atribuídos ao delegado, relacionados nas leis. Quando o ato próprio cause prejuízo, a vítima tem direito à reparação, na forma do art. 22 da LNR. Por oposição, são denomináveis de impróprios, posto que estranhos àquelas funções, todos os demais, embora praticados na serventia. Atos próprios da serventia são aqueles determinados imperativamente na lei, para serem desenvolvidos no ofício notarial ou no ofício registrário. Inexiste res­ponsabilidade do delegado quando o ato provocador do prejuízo não seja inerente à definição legal da atividade de profissionais do direito, nem tenha tal aparência. Distinguem-se, portanto, nessa matéria, os conceitos de atos próprios dos que não o sejam, inviável para estes a aplicação da regra do art. 22, regulados pelas normas gerais (diversas das não específicas aqui tratadas) sobre a prática de atos ilícitos e suas consequências. O adjetivo próprio qualifica o ato peculiar, característico, inerente aos servi­ços atribuídos por lei à serventia, natural dela. Outros atos, ocorridos na serventia, de natureza facultativa, com ou sem remuneração, são, para efeito da responsabi­lidade, impróprios. (In: Lei dos notários e dos registradores comentada, São Paulo: Editora Saraiva, 2010 p. 211-212).

Em conclusão, claro é: se o ato não é próprio da Serventia (ato afeto às atividades notariais), como por exemplo, a confecção de um contrato particular de compra e venda ou a venda propriamente dita de um imóvel, situação essa ligada à atividade de corretagem, não há qualquer responsabilidade do Tabelião de Notas nessa transação imobiliária que porventura venha dar errado e cause um dano.

Em suma, inexiste responsabilidade civil do notário na prática de um ato de autenticação, quando a ação foi dentro dos limites da legalidade e com observância dos aspectos formais do documento apresentado, bem como quando a constatação de uma eventual falsificação ou fraude só possa ser confirmada por uma perícia técnica especializada.

Nesses casos, o notário acabou sendo também uma vítima de quadrilhas de estelionatários, sem ser conivente com a falsificação, sobretudo porque muitas vezes o documento não transparece ser falsificado, o que só pode ser verificado em alguns casos por uma perícia grafotécnica e documental. Trata-se de situação com a qual qualquer Tabelionato ou mesmo o homem médio está sujeito a enfrentar, sobretudo porque em muitos casos é inviável impedir a fraude promovida por algumas quadrilhas pela perfeição da falsificação, o que afasta qualquer responsabilidade civil, até mesmo por ausência de ato ilícito, pois o notário atuou no estrito cumprimento de seu dever legal.

Por fim, há ainda a necessidade de se comprovar se tão somente a autenticação realizada, de forma isolada, teria o condão de causar um dano. Se a cópia autenticada sozinha não tiver condições de isoladamente ocasionar um prejuízo à parte ou a terceiros, afasta-se completamente o nexo causal e consequentemente a responsabilidade civil do notário.

___________________

* Rodrigo Reis Cyrino é
Tabelião de Notas do Cartório do 2º Ofício – Tabelionato de Linhares – ES
Membro da Comissão de Segurança e Tecnologia da Comissão de Assuntos Americanos da União Internacional do Notariado – UINL
Vice-presidente regional do Sudeste da Diretoria do Colégio Notarial Federal – Conselho Federal
Presidente do Colégio Notarial do Brasil – Seção Espírito Santo
Diretor do Tabelionato de Notas do Sindicato dos Notários e Registradores do Espírito Santo – SINOREG-ES
Mestre em Direito Estado e Cidadania
Pós Graduado em Direito Privado e Direito Processual Civil
Palestrante em Direito Notarial e Registral
Autor de diversos artigos

Fonte: Notariado | 10/11/2014.

Publicação: Portal do RI (Registro de Imóveis) | O Portal das informações notariais, registrais e imobiliárias!

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Artigo: Da Impossibilidade de Aplicação do Código de Defesa do Consumidor aos Serviços Notariais e de Registros – Por Moacyr Petrocelli de Ávila Ribeiro


* Moacyr Petrocelli de Ávila Ribeiro

O direito do consumidor surgiu no contexto jurídico contemporâneo como reflexo das profundas mudanças sociais e econômicas vividas e pautadas na intensificação dos mercados de produção, distribuição e consumo. Com o desenrolar das novas relações jurídicas verificou-se que o direito material tradicional, arquitetado sob pilastras romanistas, tais como a autonomia da vontade, o pacta sunt servanda e a própria responsabilidade subjetiva, ficou ultrapassado, revelando-se ineficaz para dar proteção efetiva ao consumidor. Nesse caminhar, a finalidade do direito do consumidor consagrou-se como sendo a proteção jurídica desse novo agente econômico, vulnerável, mediante a eliminação da injusta desigualdade existente entre ele e o fornecedor, desaguando no restabelecimento do equilíbrio da denominada “relação jurídica de consumo”. 

Com esse espírito, o Código de Defesa do Consumidor (CDC), veiculado pela Lei nº 8.078/1990, elevou-se no ordenamento brasileiro como um dos mais avançados e evoluídos diplomas legais. Sua magnitude jurídica é tal que a doutrina mais abalizada eleva o direito do consumidor a disciplina jurídica autônoma, falando inclusive, no pós 1988, em um novo direito privado, tripartite, composto pelo direito civil, pelo direito comercial (hoje direito empresarial) e pelo novo direito do consumidor. 1Aliás, o Código de Defesa do Consumidor brasileiro buscou inspiração em vários modelos legislativos estrangeiros, merecendo destaque, segundo os autores do “anteprojeto”, o direito francês, em especial o Projet de Cod de La Consommation, redigido sob a presidência do professor Jean Calais-Auloy. 2  Em enxuta análise, pode-se dizer que o direito do consumidor atualmente no Brasil é um verdadeiro microssistema jurídico, por possuir princípios e regras que lhe são próprios, reunidos num mesmo diploma legal, todos eles coordenados entre si e orientados para finalidade constitucional de proteção do mais fraco na relação de consumo.

Superado este destaque inicial, faz-se necessário ponderar que o Código de Defesa do Consumidor não pode ser aplicado indistintamente a toda e qualquer relação jurídica. Sua incidência deve ocorrer apenas e tão somente à chamada “relação jurídica de consumo”, assim considerada aquela formada entre consumidor e fornecedor, tendo como objeto a aquisição ou utilização de produtos e serviços pelo primeiro.

Imperioso destacar, de plano, que a relação jurídica que admite a aplicação do CDC – frise-se – é a estrita relação de consumo, eis que se trata de uma situação excepcional do universo jurídico, sob pena de banalização e desconfiguração desse microssistema protetivo. Nessa linha de raciocínio, a aplaudida jurista gaúcha Cláudia Lima Marques alerta que “(…) efetivamente, se a todos considerarmos ‘consumidores’, a nenhum trataremos diferentemente, e o direito especial de proteção imposto pelo Código de Defesa do Consumidor passaria a ser um direito comum, que já não mais serve para reequilibrar o desequilíbrio e proteger o não-igual”. 3

Às avessas dessa imprescindível interpretação restritiva, que deve lastrear a análise sobre eventual enquadramento de uma relação jurídica aos efeitos da norma consumerista, não raro, em ações movidas contra os tabeliães e registradores, os demandantes têm postulado em seu benefício – desarrazoadamente, diga-se – a aplicação da Lei Protetiva dos Consumidores.

Nunca é demais lembrar que os serviços notariais e de registros públicos estão constitucionalmente consagrados como serviços públicos delegados, ou seja, são exercidos em caráter privado, mediante delegação do Poder Público (CF/88, art. 236, caput). Nesse novo cenário constitucional, diante da histórica dificuldade do Estado prestar esses serviços com a qualidade necessária, a atual Constituição da República houve por bem delegar a atividade notarial e registral a particulares.

Nesse ambiente, é patente que a prestação dos serviços registrais e notariais é revestida de intenso caráter público. O notário e o registrador são profissionais do direito, dotados de fé pública, a quem é delegado pelo Poder Público o exercício da atividade notarial e de registro (Lei nº 8.935/1994, art. 3º). Em realidade, de per si, este regime de delegação atesta a natureza pública dos serviços extrajudiciais, afinal, o Estado somente pode delegar a atividade da qual é titular.

Absorvida esta premissa, cumpre rememorar, ainda que en passant, que os serviços públicos podem sim ser objetos de uma relação de consumo. Obtempere-se, inclusive, que a própria dogmática jurídica consumerista está a indicar isso, já que o CDC em diversas passagens aponta expressamente nesse sentido (v.g., no art. 3º, caput, ao dispor que a pessoa jurídica de direito público pode ser fornecedora; no art. 6º, X, o CDC fixa como direito básico do consumidor a adequada e eficaz prestação dos serviços públicos em geral; no art. 22 o CDC fixa uma série de deveres aos fornecedores de serviços públicos, etc.).

Se por um lado não se discute que os serviços públicos podem ser objeto de uma relação de consumo, também não há qualquer dúvida que não são todos eles que estão sujeitos à aplicação do Código de Defesa do Consumidor. Vale dizer, para que um serviço público possa se sujeitar à aplicação da Lei Consumerista é necessário observar alguns filtros essenciais.

Primeiramente, encontra-se assentado na doutrina e jurisprudência nacionais que somente os serviços públicos divisíveis e mensuráveis (uti singuli), oferecidos no mercado de consumo mediante remuneração, podem ser objetos de uma relação jurídica de consumo. Em palavras outras, só se sujeitam ao CDC os serviços públicos oferecidos no mercado a usuários determinados ou determináveis, com possibilidade de aferição do quantum utilizado por cada consumidor. Desse modo, de pronto, pode-se concluir que não se cogita de aplicar o CDC aos serviços públicos prestados pelo Estado a grupamentos indeterminados (uti universi), custeados pelo esforço geral, por meio de tributação, sem possibilidade de mensuração individualizada. Tais serviços, diferentemente dos serviços uti singuli, não permitem o estabelecimento da necessária correlação entre o pagamento e o serviço prestado (por exemplo, serviço de iluminação pública).       

Em um segundo momento, é indispensável analisar – para aplicação do CDC aos serviços públicos – a natureza jurídica da remuneração que é percebida em razão do serviço prestado. Prevalece o entendimento de que somente se admite a aplicação do Código de Defesa do Consumidor para os serviços públicos remunerados mediante tarifa ou preço público. 4 Dessa forma, os serviços públicos remunerados por meio de taxa não são abarcados pela tutela consumerista. Na verdade, esta exclusão da relação jurídica de consumo dá-se porque, neste último caso, os usuários não têm qualquer liberdade de escolha – um dos pressupostos para o reconhecimento da condição de consumidor –, travando-se entre eles e o Poder Público uma relação jurídica de natureza administrativo-tributária.

Nesse ponto, colhe-se valorosa explicação dos autores do “anteprotejo” do Código de Defesa do Consumidor Consumidor.  Com a palavra, os “pais da matéria”: “E, efetivamente, fala o §2º do art. 3º do Código Brasileiro de Defesa do Consumidor em ‘serviço’ como sendo ‘qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, (..) Importante salientar-se, desde logo, que aí não se inserem os ‘tributos’, em geral, ou ‘taxas’ e ‘contribuições de melhoria’, especialmente, que se inserem no âmbito das relações de natureza tributária. Não se há de confundir, por outro lado, referidos tributos com as ‘tarifas’, estas, sim, inseridas no contexto dos ‘serviços’ ou, mais particularmente, ‘preço público’, pelos ‘serviços’ prestados diretamente pelo Poder Público, ou então mediante sua concessão ou permissão pela iniciativa privada. O que se pretende dizer é que o ‘contribuinte’ não se confunde com ‘consumidor’, já que no primeiro caso o que subsiste é uma relação de Direito Tributário, (..)  Quando aqui se tratou do conceito de fornecedor, ficou consignado que também o Poder Público, enquanto produtor de bens ou prestador de serviços, remunerados não mediante a atividade tributária em geral (impostos, taxas e contribuições de melhoria), mas por tarifas ou ‘preço público’, se sujeitará às normas ora estatuídas, em todos os sentidos e aspectos versados pelos dispositivos do novo Código do Consumidor, sendo, aliás, categórico o seu art. 22.”  5

Inspirando-se nessas ideias, sem maiores dificuldades, ao focar a análise especificamente para os serviços notariais e de registros, conclui-se pela absoluta impossibilidade de aplicação do Código de Defesa do Consumidor.

De proêmio, é importante analisar a natureza jurídica da remuneração percebida pelos notários e registradores. Compreender esta questão é conditio sine qua non para entendimento da natureza da relação jurídica existente entre os usuários dos serviços notariais e de registro e os titulares das delegações.

O Supremo Tribunal Federal – já não é de hoje –, em sua pacífica e consolidada jurisprudência, definiu que os emolumentos recebidos pela prestação da atividade notarial e registral têm natureza tributária, qualificando-se como “taxas remuneratórias de serviços públicos”. Dada a clareza do raciocínio, vale transcrever passagem do voto do ministro José Celso de Mello Filho: “A jurisprudência do Supremo tribunal Federal firmou orientação no sentido de que as custas judiciais e os emolumentos concernentes aos serviços notariais e registrais possuem natureza tributária, qualificando-se como taxas remuneratórias de serviços públicos, sujeitando-se (…) ao regime jurídico constitucional pertinente a essa especial modalidade de tributo vinculado, notadamente aos princípios fundamentais que proclamam, dentre outras, as garantias essenciais da reserva de competência impositiva, da legalidade, da isonomia e da anterioridade. A atividade notarial e registral, ainda que executada no âmbito de serventias extrajudiciais não oficializadas, constitui,  em decorrência de sua própria natureza, função revestida de estatalidade, sujeitando-se, por isso mesmo, a um regime estrito de direito público. A possibilidade constitucional de a execução dos serviços notariais e de registro ser efetivada ‘em caráter privado’, por delegação do poder público” (CF, art. 236), não descaracteriza a natureza essencialmente estatal dessas atividades de índole administrativa” (STF – ADI 1.378-MC/ES, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 30.05.1997).

Em razão desse regime jurídico especial da atividade, avalizado pela Suprema Corte, não se pode negar que aquele que utiliza dos serviços notariais e registrais não é consumidor – nos termos do art. 2º do CDC –, mas sim contribuinte, que remunera o serviço mediante pagamento de um tributo. A relação jurídica existente entre o notário e o registrador e o utente de seus serviços é naturalmente peculiar,sui generis, e, ineludivelmente, encontra-se fora do âmbito de aplicação do CDC.

Diga-se de passagem, os notários e registradores sequer têm liberdade para fixar os emolumentos, cujos valores são estabelecidos em lei estadual, que, por sua vez, deve obedecer as normas gerais da Lei Federal nº 10.169/2000 e do Código Tributário Nacional, dada sua natureza tributária.

Na oportunidade em que o Superior Tribunal de Justiça manifestou-se sobre o tema em testilha – concluindo pela inaplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor aos serviços notariais e de registros – o ministro Humberto Gomes de Barros, em voto primoroso, sedimentou que “do ponto de vista tributário, os tabeliães e registradores não estipulam sua remuneração tendo em vista a concorrência de seus colegas, mas o preço pago é um tributo, na espécie de taxa, pré-fixado pelo Poder Legislativo e fiscalizado pelo Poder Judiciário” (STJ – REsp 625.144/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, 3ª T., julgado em 14/03/2006).

Em outra lente, para espancar qualquer tipo de dúvida, deve-se sublinhar que os serviços notariais e de registros públicos, muito embora prestados em caráter privado, são serviços públicos próprios de Estado, ou seja, sua essência tipicamente estatal – com regime jurídico próprio, regulado em lei especial – coloca a atividade notarial e registral em status diferenciado, de modo que a relação jurídica existente entre o notário e/ou registrador, a atividade por eles exercida e o utente desses serviços não pode ser enquadrada como relação jurídica de consumo.

Em didático paralelo, pode-se dizer que assim como não se pode enquadrar a prestação da atividade jurisdicional – ou seja, a relação envolvendo o Estado-juiz, a atividade própria do Poder Judiciário e o jurisdicionado – como sendo uma relação jurídica de consumo, por sua própria natureza, a atividade extrajudicial, prestada por notários e registradores, por sua essência estatal, trafega juridicamente fora do campo de incidência da Lei Consumerista.

De mais a mais, saliente-se que os serviços notariais e de registros não são, a toda evidência, fornecidos no espaço ideal denominado “mercado de consumo”. Sob este ângulo, portanto, as serventias extrajudiciais não podem ser enquadradas no elemento subjetivo da relação jurídica de consumo (art. 3º CDC).

Mencione-se, por oportuno, que o § 2° do art. 3º do CDC define o “serviço” objeto da relação de consumo como sendo “qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista”.

Com efeito, a noção de “mercado de consumo” pressupõe a existência de vários prestadores, que colocam à disposição dos consumidores bens ou serviços, de modo que esses últimos são os que elegem o serviço ou bem que melhor lhes aprouver, pelos mais variados critérios, tais como qualidade, preço, etc.. Ora, a partir desse pensamento, é de clareza solar que, do ponto de vista econômico, os notários e registradores não formam um mercado de consumo de serviços registrais e notariais. É evidente, pois, que na atividade notarial e registral não prevalecem os princípios da oferta e da procura, até porque todas as atribuições e competências dos notários e registradores são fixadas em leis específicas. Em palavras mais singelas, os serviços notariais e de registros não podem ser fornecidos de outro modo além daquele descrito nas leis vetoras da atividade (Lei nº 8.935/1994, Lei nº 6.015/1973, etc.).

Devido a este regime peculiar e a própria natureza jurídica da atividade, os usuários dos serviços notariais e de registros não têm alternativa de realização do direito fundamental à segurança nos atos e negócios jurídicos. Trata-se, assim, de uma atividade exercida estritamente sob os ditames legais e que não oferece qualquer opção ao utente desses serviços em realizá-los de modo diverso, ex voluntate.

Para melhor compreensão desse ponto, vale rápida visita a alguns dos serviços notariais e de registros públicos.

Observe-se, por exemplo, que o cidadão que pretende adquirir um bem imóvel deve registrar a compra no cartório imobiliário. E mais, o registro não poderá ser realizado em qualquer serventia registral imobiliária, mas apenas no ofício competente, nos termos da lei, para atuar naquela determinada circunscrição em que se encontra situado o imóvel objeto do negócio jurídico. Veja que este cidadão não tem a faculdade de se valer desse serviço público, mas o faz por força legal (ope legis), já que a transferência da propriedade imobiliária no direito brasileiro dá-se apenas e tão somente por meio do registro predial (art. 1.245 do Código Civil).

Nessa mesma sinergia, os registros de nascimento ou de óbito só podem ser feitos no cartório de registro civil das pessoas naturais. Desse modo, conforme previsto por lei, caso uma pessoa faleça em determinada cidade, em razão do princípio da territorialidade, a competência para lavratura do respectivo assento de óbito será naquela municipalidade onde ocorreu o evento morte, não cabendo aos familiares do falecido cogitar de levar o fato a registro em qualquer outra serventia.

No mesmo quadro, o apontamento da inadimplência de um título de crédito ou documento de dívida só pode ser levado a efeito no cartório de protestos. Em comarcas em que existe apenas um tabelionato de protesto, o usuário não tem escolha, deve apontar o título não pago na serventia extrajudicial ali existente. Nas comarcas em que há mais de um tabelionato desta natureza, a Lei nº 9.492/1997 (art. 7º) determina que seja criada, pelos próprios tabeliães, uma central de títulos, que fará a distribuição harmônica dos títulos entre os tabelionatos existentes, obedecendo aos critérios de quantidade e qualidade.

De sua vez, pretendendo a lavratura de escrituras públicas o usuário apenas poderá socorrer-se dos tabelionatos de notas. Ainda que para os serviços notariais a lei atribua às partes liberdade de escolha, qualquer que seja o seu domicílio ou o lugar de situação dos bens objeto do ato ou negócio (Lei nº 8.935/1994, art. 8º), deve-se ressaltar que os tabeliães de notas exercem a função pública nos limites do município para o qual receberam a delegação do Poder Público (Lei nº 8.935/1994, art. 9º). Por isso, na atividade notarial não há que se falar em concorrência mercadológica entre as serventias, não havendo sequer esboço de atividade empresarial, ainda que do ponto de vista econômico.

Para as cidades com mais de um tabelionato de notas, ainda que se cogite de eventual disputa por usuários dos serviços, a questão concentra-se em simples competição de delegatários, que exercem uma função pública de forma particular. Assim, essa situação jamais pode ser equiparada a uma concorrência de empresas insertas no mercado de consumo, até porque os notários devem seguir o que determina a Lei vetora de sua atividade. A rigor, não é correto nem mesmo classificar os usuários de determinado serviço extrajudicial como “clientela”, já que a relação existente entre aqueles e o titular da unidade de serviço notarial ou registral é formada pelo caráter de autoridade, além de ser revestida de estatalidade, decorrente do poder certificante do Estado (fé pública). Eis a exegese da norma constitucional, consagradora da essência jurídica da atividade notarial e registral. 5   

Feita esta breve incursão em algumas das especialidades das serventias extrajudiciais, para amputar qualquer discussão acerca da não inserção dos serviços notariais e de registros no mercado de consumo, recorde-se que, nos termos do permissivo constitucional (art. 236, § 1º, da CF/88), há intensa atividade de orientação, disciplina e fiscalização exercidas pelo Poder Judiciário, a bem do interesse público, que não permite se transforme a atividade notarial em mercado, desvinculada dos mandamentos da ética e da segurança jurídica.

Cite-se, a propósito, ilustrativo precedente da 2ª Vara de Registros Públicos de São Paulo/SP que, em razão do regime jurídico ao qual estão submetidos os serviços notariais e de registros, seus titulares atuam apenas nos termos da lei, estando limitados, inclusive, no que se refere à eventual divulgação comercial dos seus serviços, in verbis: “(…) há necessidade de absoluto respeito à ordem ética e a exigência de se evitar o aliciamento de clientes, o que inadmissível, de modo que a divulgação dos serviços deverá ficar submetida a critérios de equilíbrio e sensatez, autorizadas veiculações publicitárias não ostensivas, (…) vedada propaganda mediante anúncios em placas sensacionalistas ou veiculações os tensivas em jornais e outros meios de comunicação” (2ªVRP/SP Capital – Processo PP 99/2001, Juiz Márcio Martins Bonilha Filho, julgado em 22.02.2002).

Há mais.

É cediço que os serviços registrais e notariais – todos eles – garantem a publicidade, autenticidade, segurança e eficácia aos atos e negócios jurídicos (art. 1º da Lei nº 8.935/1994). Nesse viés, exsurge com vigor um anseio social legítimo que reclama a necessidade da existência e bom funcionamento de tais serviços. Em realidade, as serventias notariais e registrais realizam importante função social. São instrumentos de satisfação do direito fundamental à segurança jurídica (CF/88, art. 5º, caput).

Nessa linha de pensamento, o festejado professor Walter Ceneviva, ao comentar a Lei de Registros Públicos, consignou: “Apesar do amplo espectro abarcado pela lei do consumo, meu entendimento é o de que não se aplica aos registradores. Sendo embora delegados do Poder Público e prestadores de serviço, sua relação não os vincula ao ‘mercado de consumo’ ao qual se destinam os serviços definidos pelo Código do Consumidor (art. 3º, §2º). Mercado de consumo é o complexo de negócios realizados no País com vistas ao fornecimento de produtos e serviços adquiridos voluntariamente por quem os considere úteis ou necessários. O serviço registrário, sendo em maior parte compulsório e sempre de predominante interesse geral, de toda sociedade, não se confunde com as condições próprias do contrato de consumo e a natureza do mercado que lhe corresponde”. 5

É exatamente nesta moldura que se concentra a diferença substancial entre um serviço de natureza essencialmente estatal e a atividade econômica. Enquanto os serviços públicos obrigatórios visam à satisfação imediata e direta de direitos fundamentais, a atividade econômica visa o lucro. Nesse sentido, é esclarecedora a lição de Marçal Justen Filho: “Sempre que uma necessidade humana for uma manifestação direta e imediata os direitos fundamentais (em especial, a dignidade humana), sua satisfação será imposta ao Estado como serviço público. Não é possível deixar que a satisfação da necessidade seja subordinada à livre iniciativa e às leis de mercado.(…) Em contrapartida, cogita-se de atividade econômica propriamente dita quando a necessidade a ser satisfeita  não envolver de modo imediato e direto os direitos fundamentais, tal como ocorre com as atividades empresariais conhecidas (comercialização de comestíveis, prestação de serviços não essenciais, etc.)”. 6

Coloca-se em evidência, assim, a curial diferença entre os serviços notariais e de registros – que diretamente satisfazem a necessidade dos usuários, realizando direitos fundamentais – e uma atividade empresarial qualquer, que apenas indiretamente realizam interesses dos cidadãos, pautando-se primordialmente no lucro.

Ainda nesta ótica, não é novidade que a defesa do consumidor é princípio constitucional da ordem econômica (CF/88, art. 170, V) e que se funda na liberdade de iniciativa e de concorrência (CF/88, art. 170, caput e IV). Assim, o extenso catálogo de direitos e todo o regime jurídico posto à disposição do consumidor são um verdadeiro contraponto à livre iniciativa e à livre concorrência assegurada aos exploradores da atividade econômica. Por isso, a ratio essendi do direito do consumidor é trazer balizas de contenção para a proteção do vulnerável contra abusos, reequilibrando a relação jurídica.

Ademais, o direito do consumidor foi teleologicamente construído para a defesa daquele que se encontra subordinado ao explorador de atividades econômicas, organizadas empresarialmente para a produção e apropriação do lucro, e não ao prestador de um serviço estatal, obrigatório e essencial à satisfação de direitos fundamentais da pessoa humana.

Em palavras diversas, aplicar o Código de Defesa do Consumidor aos serviços notariais e de registros é desvirtuar o microssistema jurídico de tutela consumerista e desconsiderar que tais serviços são prestados para a satisfação de interesse coletivo (uti universi). Nesse aspecto, enfatize-se que os efeitos jurídicos decorrentes do serviço prestado pelos notários e registradores não se encerram na pessoa do usuário que os procurou, mas, na verdade, são pulverizados para toda coletividade, como consectário da fé pública indissociável ao serviço prestado e à publicidade intrínseca do ato realizado. Grife-se, inclusive, que o serviço prestado pelo titular da delegação de notas ou de registros não gera nenhum vínculo contratual entre ele e o usuário do serviço, fato que torna ainda mais evidente a inaplicabilidade das normas de consumo.   

Em passo seguinte, rememore-se ainda que os serviços notariais e de registros (cartórios) não possuem personalidade jurídica própria. São meras divisões administrativas nas quais os notários e registradores exercem o seu mister, em razão da delegação estatal. Assim, é evidente que não há atos praticados pelos serviços notariais e de registro. As serventias extrajudiciais não praticam atos. Quem os pratica são as pessoas físicas, os notários e registradores e seus prepostos. Diante disso, todo sistema de responsabilização civil, criminal, administrativa e tributária é concentrado nos titulares das delegações, tudo conforme regramento específico da Lei nº 8.935/1994. Em resumo, a responsabilidade do titular do serviço notarial e de registro é regulada em legislação especial, dotada de regras específicas, que – pelo princípio hermenêutico da especialidade – tende a afastar a aplicação de normas gerais, como, in casu, a legislação consumerista.   

Por derradeiro, importa esclarecer que a temática ora investigada já foi criteriosamente apreciada pelo Superior Tribunal de Justiça, tendo concluído aquela Corte pela impossibilidade de aplicação do CDC aos serviços notariais e de registros. Trata-se do julgamento do Recurso Especial n. 625.144/SP, da Terceira Turma, de relatoria da ministra Nancy Andrighi, ocorrido em 14/03/2006, por maioria, vencidos a ministra relatora e o ministro Castro Filho.

É de se ressalvar, entretanto, que em algumas oportunidades têm sido possível observar algumas manifestações (seja pelas partes em juízo, seja em algumas obras de cunho doutrinário) no sentido de que o Superior Tribunal de Justiça teria mudado sua posição em razão de indigitados julgados, posteriores àquele retromencionado. De fato, alguns julgados (por exemplo, o Recurso Especial 1.163.652/PE, rel. min. Herman Benjamin, 2ª T., julgado 01.02.2012), têm tido suas ementas editadas com a seguinte assertiva: “O Código de Defesa do Consumidor aplica-se à atividade notarial”. Ocorre, porém, que se for analisado o teor do julgamento, mediante a leitura atenta dos votos dos julgadores, perceber-se-á que sequer o tema foi abordado. Digno de nota, pois, que, infelizmente, alguns operadores do direito têm propalado este ementário de forma equivocada, inclusive afirmando ser esta a posição atual do Superior Tribunal de Justiça. Fica aqui o registro deste fato, consignando-se com destaque que na oportunidade em que o Superior Tribunal de Justiça efetivamente debruçou-se sobre o tema, concluiu pela inaplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor aos serviços notariais e de registros públicos. 

Diante do que se expôs, foi possível verificar que no atual cenário jurídico o Código de Defesa do Consumidor é inaplicável aos serviços notariais e de registros, sendo possível arrolar as seguintes conclusões:

1. O Código de Defesa do Consumidor é um diploma juridicamente evoluído a ser aplicável em prol da correção da desigualdade existente na relação de consumo, não sendo legítimo banalizar a sua aplicação para toda e qualquer relação jurídica.

2. O CDC não pode ser aplicado a todos os serviços públicos, mas apenas aos que sejam uti singuli e remunerados mediante tarifa ou preço público.

3. A natureza jurídica da remuneração recebida pelos notários e registradores, conforme pacificado pelo Supremo Tribunal Federal, é de “taxa remuneratória de serviço público”, de modo que a relação existente entre os titulares das delegações e os usuários dos serviços não é de consumo, mas de natureza administrativo-tributária,  derivada da natureza tributária da remuneração percebida e do poder certificante emergente da fé pública estatal.

4. Os serviços notariais e de registros estão constitucionalmente consagrados como verdadeira função pública delegada, de natureza peculiar, naturalmente estatal, exercida no interesse da sociedade e que tem por escopo garantir a segurança jurídica, a paz social e o bem comum, não sendo, assim, possível considerá-los como serviços públicos ordinários sujeitos à disciplina do CDC.

5. Há uma função social intrínseca na prestação dos serviços notariais e de registros, que existem para satisfazer a interesses coletivos, de caráter geral (uti universi), lastreados principalmente na segurança jurídica e nos efeitos publicitários dos atos praticados;

6. Serviços notariais e de registros não são atividades econômicas pautadas na livre concorrência e livre iniciativa, razão pela qual não estão inseridos no chamado “mercado de consumo”, espaço ideal previsto no CDC como necessário à caracterização do elemento objetivo da relação de consumo.

7. Seja qual for a especialidade de serviço notarial ou registral a ser levada em consideração, o regime jurídico-constitucional a que se submete a atividade extrajudicial, especialmente pela submissão à estrita legalidade, está arquitetado no ordenamento jurídico com estrutura tal que não concede liberdade ao usuário para escolher qual serviço utilizar, nem mesmo a forma de sua prestação.

8. As serventias extrajudiciais carecem de personalidade jurídica própria, concentrando toda a prestação dos serviços notariais e de registros nas pessoas físicas dos delegatários. Por isso, sob os próprios notários e registradores é que recai todo sistema de responsabilidades previsto na Lei nº 8.935/1994. Lei esta de caráter especial, com normas específicas regulamentadoras de toda a atividade extrajudicial, que, na melhor hermenêutica, não pode ser afastada para aplicação de leis de caráter geral, como o CDC.

9. O Superior Tribunal de Justiça, quando efetivamente se manifestou sobre o tema, concluiu pela impossibilidade da aplicação do CDC aos serviços notariais e de registros.

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Referências

1. MARQUES, Claudia Lima. Manual de direito do consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.

2. GRINOVER, Ada Pellegrini; BENJAMIN, Antônio Herman V. Código brasileiro de defesa do consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. 7ª Ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001.

3. PASQUALOTTO, Adalberto; PFEIFFER, Roberto Augusto Castellanos (coord). Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil de 2002: convergências e assimetrias. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 142.

4. É a posição sustentada, dentre outros, por Cláudio Bonatto, Paulo Valério Dal Pai Moraes e Sérgio Cavalieri Filho. Nesse sentido também é o atual posicionamento do Superior Tribunal de Justiça (videREsp 793.422/RS, Rel. Min. Eliana Calmon, julgado em 03.09.2006; AgRg no AREsp 372.327/RJ, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, julgado em 05/06/2014).

5. GRINOVER, Ada Pellegrini, et. all. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor – Comentado pelos Autores do Anteprojeto. 8ª Eedição. Rio de Janeiro: Ed. Forense Universitária, 2004, p. 49 e 153. Estão entre os autores do anteprojeto do CDC: Ada Pellegrini Grinover, Antônio Herman de Vasconcellos e Benjamin, Daniel Roberto Fink, José Geraldo Brito Filomeno, Kazuo Watanabe, Nelson Nery Júnior e Zelmo Denari.

5. FANTI, Guilherme. A inaplicabilidade do código de defesa do consumidor aos serviços notariais e registrais. Disponível em www.irib.org.br/html/biblioteca-detalhe.php?obr=47

5. CENEVIVA, Walter. Lei dos Registros Públicos Comentada. 15ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 57.

6. JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 458.

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Fonte: Notariado | 03/11/2014.

Publicação: Portal do RI (Registro de Imóveis) | O Portal das informações notariais, registrais e imobiliárias!

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