Artigo. A lei 13.043, de 13 novembro de 2014: alterações no procedimento de alienação fiduciária de bens móveis – Por Vitor Frederico Kümpel

* Vitor Frederico Kümpel

Em 13 de novembro último entrou em vigor a lei 13.043 com 114 artigos, todos eles modificando uma série de leis anteriores, trazendo para a comunidade jurídica a necessidade de um estudo pormenorizado de uma série de institutos jurídicos. No nosso caso, a analise recairá sobre o procedimento da alienação fiduciária em garantia de bem móvel, ou seja, o decreto lei 911 de 1° de outubro de 1969.

Durante muito tempo, o referido decreto era tido como um ranço do regime miliar, até porque subscrito pelos ministros da marinha de guerra, do exército e da aeronáutica militar. Porém, passados 45 anos, o decreto lei 911 de 1° de outubro de 1969 passou por duas grandes reformas, uma promovida pela lei 10.931 de 2004 e outra, dez anos mais tarde, em 2014, pela lei 13.043, vigente há poucos dias, e que, de certa forma, moderniza o procedimento, coadunando-o à nova realidade social. Contudo, não há como negar que o instituto continua a gerar ainda grandes discussões, tanto em órbita material como processual.

Na prática, a Alienação Fiduciária de bens móveis é comum quando um comprador adquire um bem, normalmente um automóvel, a crédito e permanece como possuidor direto e depositário do mesmo, respondendo por todos os encargos civis e penais a ele relacionados. O credor, por sua vez, toma o próprio bem em garantia e a propriedade consolida em suas mãos com o inadimplemento da obrigação. O instituto é amplamente utilizado no Brasil, sobretudo, na compra de automóveis, como já dito. Neste caso, a alienação é registrada no documento de transferência do veículo (DUT) a fim de certificar (súmula 92 do STJ).

Em 2004, a lei 10.931 ampliou sobremaneira o instituto da alienação fiduciária no âmbito das empresas financeiras. Permitiu-se a alienação fiduciária em garantia de bens fungíveis, bem como a cessão fiduciária de direitos sobre coisas móveis, tais como os títulos de crédito, além de importantes modificações no procedimento de busca e apreensão de bens móveis, o que repercutiu no mecanismo de purgação da mora, conferindo à consolidação da propriedade tratamento mais compatível com as exigências do mercado.

Dentre os destaques da alteração legislativa de 2004, temos o procedimento de busca e apreensão do bem móvel em caso de inadimplemento parcial, ou seja, de mora. O procedimento foi introduzido pelo decreto lei 911/69 e em 2004 a lei 10.931 reduziu para cinco dias o prazo de purgar da mora ou para a consolidação da propriedade fiduciária nas mãos do credor.

Melhor explicando, o STJ passou a entender que os §§ 1° e 2° do art. 3° não diziam respeito à purgação da mora, mas sim à necessidade do pagamento integral da dívida pendente – “nos contratos firmados na vigência da lei 10.931/2004, que alterou o art. 3º, §§ 1º e 2º, do decreto-lei 911/1969, compete ao devedor, no prazo de cinco dias após a execução da liminar na ação de busca e apreensão, pagar a integralidade da dívida – entendida esta como os valores apresentados e comprovados pelo credor na inicial –, sob pena de consolidação da propriedade do bem móvel objeto de alienação fiduciária”. Com isso o devedor nos 5 dias após a concessão da liminar passou a ter a obrigação de quitar a dívida sob pena de consolidação da propriedade em nome do credor.

Pelo Decreto 911/69, despachada a inicial e executada a liminar, o réu era citado para em três dias apresentar contestação e/ou se já tivesse pago 40% do preço financiado, purgar a mora. No caso da contestação, o devedor poderia somente alegar ou o pagamento do débito ou o cumprimento das obrigações contratuais. Para a purgação da mora, o juiz, tempestivamente agendava prazo final não superior a dez dias. Se, mesmo assim, a mora não fosse purgada (independentemente da contestação), cinco dias após o decurso do prazo de defesa o juiz proferiria a sentença, consolidando a propriedade plena e exclusiva nas mãos do proprietário fiduciário (art. 3º, §§). Tínhamos, dessa forma, um procedimento que garantia um prazo de quinze dias para a purgação da mora e direito de contestação anterior à consolidação da propriedade. Embora não tão ágil o sistema seguramente alicerçava-se nos princípios do devido processo legal, ampla defesa e contraditório, garantindo assim, tanto o devedor fiduciante, como o credo fiduciário.

Mencionadas as alterações de 2004, dez anos depois, óbvio que o intuito do legislador com a lei 13.041, foi agilizar ainda mais a venda dos bens retomados, conferindo fluidez e mais dinâmica ao mercado, bem como celeridade ao sistema processual. Aliás, esse tem sido o foco das legislações mais recentes.

Dentre as principais características da nova lei 13.043 de novembro de 2014 na regulamentação da alienação fiduciária de bem imóveis citamos: (i) alteração na caracterização da mora ex re (prescinde-se de notificação formal); (ii) permanência da proibição ao pacto comissório; (iii) inserção do RENAJUD no procedimento; (iv) precatória simplificada; (v) retirada do bem do depósito em até 48 horas; (vi) agilização na venda direta do bem a terceiros; (vi) possibilidade de apelação da sentença apenas quanto ao seu efeito devolutivo; (vii) possibilidade de requisição pelo próprio credor do pedido de busca e apreensão em ação executiva para a entrega da coisa (art. 4° do decreto lei 911 de 1969, com redação dada pela lei 13.043 de 2014). Vejamos algumas das alterações mais detalhadamente.

O contrato que se converte em direito real de alienação fiduciária em garantia bens móveis continua a ser lavrado por instrumento público ou particular, sendo imprescindível para eficácia “erga omnes” o seu registro no ofício de títulos e documentos do domicilio do vedor (art. 129, 5º item da LRP). A especialização do contrato continua com as mesmas bases do art. 1° do decreto lei em questão.

Pela recente alteração, a primeira grande novidade está no fato de que em caso de inadimplemento ou mora nas obrigações contratuais passa-se ser imprescindível a prestação de contas do contrato para que o devedor saiba exatamente o valor da dívida e o saldo apurado. Uma vez prestada contas a mora (imperfeição no pagamento) ocorre de forma automática prescindindo-se de notificação via TD ou protesto do título, bastando a carta registrada com aviso de recebimento, não sendo inclusive exigido que a assinatura no documento seja a do próprio destinatário, o que vem a confirmar a solução aplicada pelo STJ2. Trata-se de uma simples notificação extrajudicial, indispensável para o ajuizamento da ação de busca e apreensão (sumula 72 do STJ). O legislador renuncia a segurança em nome da celeridade e da redução de custos.

Uma vez comprovada a mora, passa o proprietário credor a ter condição de procedibilidade para a ação de busca e apreensão com direito a tutela liminar, que inclusive pode ser apreciada em plantão judicial. Com a nova redação o direito a liminar passou a ser ininterrupto, garantindo ao credor o direito de buscar o judiciário aos sábados, domingos e feriados, inclusive em recesso.

Como já mencionado, a lei 10.931 já havia alterado o sistema anterior que garantia direito a purgação da mora caso houvesse ocorrido o pagamento com pelo menos 40% do preço financiado, ocasião em que o devedor teria dez dias para a referida purgação. Com a mudança de 2004 cinco dias após executada a liminar consolidava a propriedade em nome do credor fiduciário que podia até o prazo de cinco dias quitar integralmente a dívida pendente e com isso se livrar da consolidação sem o pagamento de outro ônus decorrente da mora.

Com a nova legislação ao decretar a busca e apreensão do veículo, o juiz passa a inserir diretamente a restrição judicial na base de dados do RENAVAM via RENAJUD, um sistema eletrônico de inserção de constrição. Com tal medida, o bem automaticamente se torna inalienável até a retirada da constrição após a apreensão do veículo e a efetividade formal da liminar já está garantida no sistema, remanescendo o bem fora do comercio, até que o oficial de justiça consiga cumprir a liminar liberando o automóvel para o credor, situação que muitas vezes perdura por meses.

Com o fim de agilizar o cumprimento da busca e apreensão, pode o credor, agora, deprecar o pedido para o juízo de outra comarca automaticamente, bastando juntar cópia da petição inicial e do despacho concessivo da liminar. Outra medida agilizadora, está no fato que uma vez apreendido o veículo será intimada a instituição financeira para a retirada do mesmo do local em que se encontra no prazo de 48h.

Outra grande mudança está na adaptação do procedimento à decisão do Supremo Tribunal Federal que passou a entender não ser mais possível prisão por dívida decorrente de depósito ou mesmo por depósito puro, revogando, por conseguinte, o art. 4º do decreto 911 que admitia a conversão de busca e apreensão em ação de depósito (STF, Res 349.703 e 466.343, com a publicação da súmula vinculante 25). Pela nova sistemática, caso o bem não seja encontrado, haverá a conversão do pedido de busca e apreensão em ação executiva direta ou convertida e serão penhorados, nos próprios autos bens do devedor quanto bastem para assegurar a execução.

Por fim, é bom mencionar que o terceiro interessado fiador ou avalista que pagar a dívida se subrroga na qualidade de credor fiduciário para todos os fins (art.6º). Muito embora discutíveis algumas modificações sob o ponto de vista do devedor e suas garantias, são também louváveis as mudanças na proteção da afetividade do crédito, bem como quanto à agilização do procedimento que em última análise implicará em redução de custo, estimulando ainda mais a indústria automobilística no Brasil. Discussão, que remanecerá para outro registralhas está no artigo 102 da lei em debate que criou o artigo 1.368-B e que entende a alienação fiduciária como um direito real de aquisição. Contudo, esse é assunto para outra hora, até o próximo Registralhas!

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1STJ, 2ª Seção. REsp 1.418.593-MS, rel. min. Luis Felipe Salomão, julgado em 14/5/2014 (recurso repetitivo)

2STJ, 4ª Turma. AgRg no AREsp 419.667/MS, rel. min. Luis Felipe Salomão, julgado em 6/5/2014.

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Vitor Frederico Kümpel é juiz de Direito em São Paulo, doutor em Direito pela USP e coordenador da pós-graduação em Direito Notarial e Registral Imobiliário na EPD – Escola Paulista de Direito.

* O artigo foi escrito em coautoria com Ana Paula Ribeiro Ferreira da Costa, graduanda da Faculdade de Direito da USP e pesquisadora jurídica.

Fonte: Migalhas | 25/11/2014.

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Artigo: Cláusula de inalienabilidade na doação de imóveis – Por Frank Wendel Chossani

* Frank Wendel Chossani

Considerando os diferentes tipos de escrituras lavradas nas Serventias Notariais, certamente a doação de bens imóveis tem grande trânsito.

Nos termos do artigo 538 do Código Civil, “considera-se doação o contrato em que uma pessoa, por liberalidade, transfere do seu patrimônio bens ou vantagens para o de outra”.

Na doação, a transferência do patrimônio é advinda da munificência do doador.

Prevê a lei que “a doação far-se-á por escritura pública ou instrumento particular” (art. 544 – Código Civil). Lembrando que, nos casos de bens imóveis, cujo valor supere trinta vezes o maior salário mínimo vigente no País, a escritura pública é essencial à validade do negócio jurídico (art. 108 – Código Civil).

Fato que ora ou outra ocorre na doação, é a intenção dos doadores de constar na escritura a imposição de cláusulas sobre os bens doados, e isso em decorrência de vários fatores – exemplo disso, são as cláusulas de inalienabilidade, impenhorabilidade e imprescritibilidade (art. 1.911 – Código Civil).

Por certo que o tema não é novo, tanto que o Decreto nº 1.839, de 31 de Dezembro de 1907, que regulava o deferimento da herança no caso da sucessão “ab intestato”, já admitia que fosse estabelecida condições de inalienabilidade pelo testador, sobre os bens dos herdeiros ou legatários (art. 3º)[1]. Todavia, em que pese o tema seja arcaico, ele continua sendo pertinente, e faz parte da realidade contratual brasileira, sendo objeto do trabalho dos Tabeliães de Notas, e Oficiais de Registro de Imóveis de todo o Brasil.

A imposição da cláusula inalienabilidade, como o nome sugere, implica diretamente no direito de propriedade, haja vista que a faculdade que tem o proprietário de dispor da coisa, sofrerá limitação. Tal situação (limitação à faculdade de dispor) não é exclusiva das doações, podendo recair também sobre bens no caso de sucessão legítima ou testamentária. A regra é que a gravação de tais cláusulas só pode ocorrer em atos gratuitos.

Sem desmerecer a possibilidade da cláusula de inalienabilidade sobre bens no caso de sucessão legítima ou testamentária, na oportunidade, em fidelidade ao título do artigo em ponto, trataremos apenas, ainda que de forma breve, sobre a cláusula de inalienabilidade na escritura de doação de bens imóveis.

O consagrado Registrador Imobiliário Ademar Fioranelli, conceitua a inalienabilidade como “a restrição imposta ao beneficiado de poder dispor da coisa, ou seja, de aliená-la. Por força dessa circunstância, o imóvel não pode ser alienado a qualquer título (venda, doação, permuta, dação em pagamento, alienação fiduciária), nem onerado com hipoteca; nem tampouco sobre ele será possível constituir direitos reais de anticrese e outros mencionados no art. 1.225 do Código Civil/2002”.[2]

É como se a manifestação de vontade do doador ou testador, tivesse o poder de fazer com determinado bem seja incorporado “ad eternum” ao patrimônio do beneficiado. No entanto tal perpetuidade não é verdadeira, haja vista que a limitação se restringe a uma geração, isto é: ao tempo de vida do beneficiado.

Através da inalienabilidade, configurada está a mitigação ao exercício do direito de propriedade, no que toca a faculdade de dispor, previsto no artigo 1.228 do Código Civil. Daí se faz necessário o entendimento, já consolidado, a respeito do limite de duração da gravação, de modo que o tempo se limita a uma geração, pois do contrário afetada estaria, por descomedido tempo, o tráfego imobiliário e a circulação de riqueza.

Como a inalienabilidade restringe, ainda que por “pouco tempo” a circulação de riqueza, é de bom senso compreender que a ninguém é licito declarar como inalienáveis os próprios bens; e outra não poderia ser a solução, haja vista que, com a imposição da inalienabilidade, o bem automaticamente, nos termos da lei (art. 1.911 do Código Civil), estaria amparado pela impenhorabilidade e a imprescritibilidade, o que geraria grandes dificuldades, como por exemplo no campo das execuções, considerando que nos casos de execuções, a garantia do pagamento é consubstanciada no patrimônio do devedor (artigo 591 – Código de Processo Civil).

Das premissas arguidas, é de se compreender que, em regra, a inalienabilidade, bem como a impenhorabilidade e a imprescritibilidade, só pode imposta em atos gratuitos – testamento ou doação. Permitir tal imposição em qualquer negócio jurídico de forma indiscriminada geraria grande insegurança às relações negociais.

Quanto à imposição das cláusulas somente em atos gratuitos (doação e/ou testamento), surge grande discussão acadêmica no que toca a doação de numerário para a aquisição de bens. Através de tal situação, na casuística, o doador ao invés de doar o imóvel propriamente dito, doa o dinheiro para que o donatário adquira o imóvel.

Sobre os debates acadêmicas ligados ao tipo de doação mencionado, faço menção ao nobre mestre e registrador Doutor Sérgio Jacomino (“Doação Modal e Imposição de Cláusulas Restritivas”, in “Estudos de Direito Registral Imobiliário – XXV e XXVI Encontros dos Oficiais de Registro de Imóveis do Brasil – São Paulo/1998 – Recife/1999”, IRIB e safE, 2000, págs. 281 a 295) que sustentou a impossibilidade do doador de numerário clausular o bem a ser adquirido pelo donatário. De outro modo, o Egrégio Conselho Superior da Magistratura do Estado de São Paulo, superando a própria posição alhures, entendeu pela possibilidade da imposição[3].

Outra situação digna de menção, no que toca a inalienabilidade, ocorre no chamado “bem de família voluntário” (art. 1.711 a 1.722 – Código Civil).

Como a ninguém é dado declarar como inalienável o próprio bem, a regra é que a inalienabilidade decorra da declaração de vontade de terceiro. No entanto, no bem de família voluntário, cujo procedimento registral esta previsto no previsto nos art. 260 a 265 da Lei dos Registros Públicos (Lei nº 6.015/73), os próprios cônjuges, ou a entidade familiar, podem, mediante escritura pública ou testamento, e desde que respeitado o limite de até um terço do patrimônio líquido existente ao tempo da instituição, impedir que o bem que foi voluntariamente destinado como “de família” seja objeto de execução por dívidas posteriores à sua instituição, salvo alguns casos de específicos, como obrigações “propter rem”, por exemplo.

Cabível na oportunidade a transcrição do artigo 260 da LRP:

 Art. 260. A instituição do bem de família far-se-á por escritura pública, declarando o instituidor que determinado prédio se destina a domicílio de sua família e ficará isento de execução por dívida.

Necessário lembrar que o bem de família voluntário, quer instituído pelos cônjuges ou por terceiro, constitui-se pelo registro de seu título no Registro de Imóveis (art. 1.714 – Código Civil e Art. 167, inciso I, número 1 da LRP), situação que não se confunde com a cláusula de inalienabilidade imposta em escritura de doação, uma vez que esta ingressa no Registro Imobiliário por ato de averbação. Assim, expressa na escritura de doação a cláusula de inalienabilidade, ou ainda de impenhorabilidade ou imprescritibilidade, o seu ingresso no Registro de Imóveis, bem como o seu cancelamento, será por ato de averbação, nos termos do artigo 167, II, número 11 da Lei dos Registros Públicos.

Tratando do assunto, o já citado, Doutor Ademar Fioranelli, ensina que “a eventual falta de averbação de cláusulas restritivas nos Cartórios de Registro de Imóveis espelha tanto a desatenção no exame do título, quanto o desconhecimento do alcance dos objetivos das restrições estabelecidas, sejam estas estabelecidas por manifestação de vontade (doação e testamento), sejam decorrentes da lei. Tal fato poderá acarretar irreparáveis prejuízos às partes, sem falar na eventual e consequente responsabilidade para o registrador ou notário” (Das Cláusulas de Inalienabilidade, Impenhorabilidade e Incomunicabilidade – Série Direito Registral e Notarial – Coordenação Sérgio Jacomino – Ed. Saraiva – 2009, p.2).

Importante destacar que a averbação de cláusula de inalienabilidade não é extensiva aos frutos e rendimentos. Aliás, nesse sentido, conforme noticia veiculada no Colégio Notarial do Brasil – Seção São Paulo (CNB/SP), posicionou-se o IRIB – Instituto de Registro Imobiliário do Brasil, ao afirmar que segundo a base legal, “sobreditas cláusulas de restrição ao direito de propriedade recaem apenas sobre o imóvel, sem nenhum espaço para frutos e rendimentos”[4], de modo que não há base legal para qualquer averbação quanto a extensão aos frutos e rendimentos.

Com isso, ainda segundo o IRIB, na referência atribuída, “caso o interessado resolva dar a devida publicidade a tais cláusulas, no que se reporta a extensão aos frutos e rendimentos de determinado bem, deverá assim fazer perante o Oficial de Registro de Títulos e Documentos, como previsto no artigo 127, parágrafo único, da Lei 6.015/73, que assim se expressa: “Caberá ao registro de Títulos e Documentos a realização de quaisquer registros não atribuídos expressamente a outro ofício”. Desta forma, quando o Oficial Imobiliário receber em seus Serviços título que indique cláusulas de inalienabilidade, impenhorabilidade e de incomunicabilidade sobre determinado imóvel, com clara extensão das mesmas aos seus frutos e rendimentos, deve ele se ater em lançamentos que mostrem tais gravames a incidir apenas sobre os direitos de propriedade do imóvel em questão, sem qualquer notícia quanto a extensão aqui em comento, que vão envolver também os frutos e rendimentos do respectivo bem, por falta de amparo legal para assim fazer”.

Outra faceta da cláusula de inalienabilidade que é digna de estudo, diz respeito ao limite patrimonial da sua imposição nos casos do doador possuir herdeiros necessários. Embora, em regra, a cláusula de inalienabilidade, bem como as demais, só pode ser constituída em atos gratuitos (testamento ou doação), tal gravação não pode ser imposta de qualquer maneira, isso porque, no caso da doação, o doador só pode impor tal cláusula (de forma injustificada), quando o bem doado sair da parte disponível do seu patrimônio. Assim, a princípio, uma vez que o bem doado não interfira no valor da legítima, a imposição injustificada da cláusula de inalienabilidade será perfeitamente possível.

No entanto, caso a doação configure adiantamento da legítima, em tal caso, necessariamente deverá ocorrer justificativa para tal imposição (art. 1.848 do Código Civil).

Nesse sentido, importantes são os dizeres constantes do Código Civil Comentado, coordenado pelo ilustre Cezar Peluso, no sentido de que “o legislador optou por solução intermediária entre a do Código Civil de 1916, que permitia livre imposição das cláusulas à legitima, e a propugnada por grande parte da doutrina de abolir essas cláusulas, por retirarem bens do comércio, impedindo a circulação de riquezas, e também por serem resquício de mentalidade patriarcal”[5].

Tratando do assunto, mas no âmbito do testamento, ensina o saudoso jurista Silvio Rodrigues que “as restrições legais para a imposição das cláusulas de inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade só dizem respeito aos bens da legítima. Se o testador não tiver herdeiros necessários, poderá dispor livremente de todos os seus bens, impondo as cláusulas que bem entender, e, mesmo que tenha herdeiros necessários, pode, sem limitação alguma, gravar os bens que integram a sua metade disponível” (Direito Civil, Direito das Sucessões, vol. VII, p. 127).

Há que se notar que no caso de adiantamento de legítima a “justificativa” (causa) para clausular o bem, deve ser “justa” (justa causa), de modo que não são suficientes justificativas genéricas por parte dos doadores, como simplesmente “preservar o patrimônio da família”, ou “garantir o patrimônio do beneficiado”.

Mauro Antonini, em sua obra, ensina que “não serão válidas, por conseguinte, indicações genéricas, sem singularidade em face do herdeiro que sofrerá a restrição; nem puramente subjetivas, que impeçam a referida apreciação posterior. O que significa, por exemplo, que não atenderá ao requisito da explicitação da justa causa a imposição de inalienabilidade mediante simples afirmação de que visa a proteção do herdeiro, pois essa é a finalidade genérica da cláusula, sem nenhuma especificidade em face de um determinado testamento. Ainda exemplificando, também será insuficiente a alegação de que o cônjuge herdeiro, na cláusula de incomunicabilidade, não é pessoa confiável, sem indicação de algum aspecto passível de apreciação objetiva”. (ANTONINI, Mauro in “Código Civil Comentado”. Coordenador: Cezar Peluso, Manole, 3ª Ed., São Paulo, 2009, p. 2.083).

Diante das particularidades expostas, o Tabelião de Notas deve alertar o doador, no momento da lavratura da competente escritura, sobre a necessidade de embasar de forma substancial a justificativa para a imposição da cláusula de inalienabilidade nos casos em que a doação se tratar de adiantamento da legítima, pois do contrário o ato poderá sofrer alteração em decorrência de eventual decisão, ante a sua eventual impugnação perante o Poder Judiciário.

Para concluir, uma vez apresentados os documentos e protocolizados para a lavratura da escritura de doação, o Notário além de todos os requisitos inerentes ao ato, deve, uma vez manifesta pelo doador a intenção de impor a cláusula de inalienabilidade, verificar se a doação é oriunda da porção disponível do patrimônio do doador, e caso não seja, deve esclarecer ao mesmo sobre a necessidade da justificativa substancial para a imposição da cláusula, salientando ao usuário que, ainda assim, o donatário, poderá submeter o título á apreciação do Judiciário. Por sua vez, o Oficial do Registro de Imóveis, ao recepcionar o título, deve empreender toda a sua diligência na análise do mesmo, e uma vez preenchidos os requisitos, promover o registro do título, averbando a cláusula existente, lembrando sempre, que nos termos do item 119, do Capítulo XX, das NSCGJ/SP, “incumbe ao oficial impedir o registro de título que não satisfaça os requisitos exigidos pela lei, quer sejam consubstanciados em instrumento público ou particular, quer em atos judiciais”.

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[1] Decreto nº 1.839, de 31 de Dezembro de 1907 – Rio de Janeiro, 31 de dezembro de 1907, 19º da Republica – AFFONSO AUGUSTO MOREIRA PENNA – “Art. 3º: O direito dos herdeiros, mencionados no artigo precedente, não impede que o testador determine que sejam convertidos em outras especies os bens que constituirem a legitima, prescreva-lhes a incommunicabilidade, attribua á mulher herdeira a livre administração, estabeleça as condições de inalienabilidade temporaria ou vitalicia, a qual não prejudicará a livre disposição testamentaria e, na falta desta, a transferencia dos bens aos herdeiros legitimos, desembaraçados de qualquer ônus”.

[2] Das Cláusulas de Inalienabilidade, Impenhorabilidade e Incomunicabilidade – Série Direito Registral e Notarial – Coordenação Sérgio Jacomino – Ed. Saraiva – 2009, p.20.
 
[3] ACÓRDÃO CSM – DATA: 8/10/2001 – FONTE: 078532-0/3 – LOCALIDADE: SÃO JOSÉ DO RIO PRETO – Relator: LUÍS DE MACEDO- DOAÇÃO MODAL. INALIENABILIDADE. IMPENHORABILIDADE. INCOMUNICABILIDADE. USUFRUTO VITALÍCIO. AQUISIÇÃO – NUA-PROPRIEDADE. Ementa: “Escritura pública relativa à doação de numerário para a compra da nua-propriedade de imóveis com imposição, pelos doadores, de cláusula de inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade e à compra, do usufruto vitalício. Possibilidade”.

[4] Questão esclarece acerca da possibilidade de averbação de cláusula de inalienabilidade entre outros temas – publicada em 23/10/2014 – fonte iRegistradores. Noticia veiculada no site do Colégio Notarial do Brasil – Seção São Paulo (CNB/SP). Disponível em:http://www.cnbsp.org.br/(X(1)S(l5py5r45ldqjolfy5jxvxyix))/Noticias_leia

mais.aspx?NewsID=7828&TipoCategoria=1. Consulta aos 14 nov. 2014.

[5] Código Civil comentado: doutrina e jurisprudência: Lei nº 10.406, de 10.01.2002: contém o Código Civil de 1916 / coordenador Cezar Peluso. – 4 ed. rev. e atual. – Barueri, SP: Manole, 2010, p. 2177).

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Fonte: Notariado | 24/11/2014.

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Pernambuco fixa regras claras para reconhecimento de união estável – Por Jones Figueirêdo Alves

* Jones Figueirêdo Alves

Os pares convivenciais que vivem em união livre consolidam a união de fato quando esta resulta configurada na convivência pública, contínua e duradoura, e estabelecida com o objetivo de constituir família.

A união existente, informal e não solene, ao tempo que consolidada pelos seus caracteres de publicidade, estabilidade e o ânimo afetivo da formação familiar, torna-se, então, uma entidade familiar constitucionalizada. Assim dispõe a Constituição Federal de 1988: “Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”. (artigo 226, parágrafo 3º).

Avulta, daí, a necessidade de serem regulamentadas as atividades referentes ao registro da união estável junto ao Cartório de Registro de Pessoas Naturais e aos Registros Imobiliários, a fim de uniformizar procedimentos e garantir segurança jurídica da entidade familiar, tanto aos casais formados por homem e mulher (artigo 1.723 do Código Civil), como aos formados por duas pessoas do mesmo sexo (julgados do STF, com eficácia erga omnes e efeito vinculante, nos autos da ADI 4.277-DF e da ADPF 123-RJ).

Neste sentido é, agora, editado o Provimento 10/2014, da Corregedoria Geral da Justiça de Pernambuco (de nossa iniciativa, enquanto Corregedor Geral de Justiça, em exercício), de 3 de setembro de 2014 e publicado no Diário da Justiça Eletrônico de Pernambuco de 8 de setembro.

Certo que se faculta aos conviventes, plenamente capazes, lavrarem escritura pública declaratória de união estável, observado o disposto nos artigos 1.723 a 1.727 do Código Civil, o provimento cuida de disciplinar o procedimento da lavratura do referido instrumento público perante o Serviço de Notas, bem como o seu registro junto ao cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais e ao Registro de Imóveis competente, no tocante ao patrimônio imobiliário existente.

É certo que, na aludida escritura, as partes conviventes poderão deliberar de forma clara sobre as relações patrimoniais, nos termos do art. 1.725 do Código Civil, inclusive sobre a existência de bens comuns e de bens particulares de cada um, descrevendo-os de forma detalhada, com indicação da matrícula e registro imobiliário (artigo 6º, Provimento 10/2014). Em hipótese, quando for adotado o regime de bens diverso da comunhão parcial, deverá ser esclarecido que esse novo regime só terá eficácia a partir da Escritura Pública que alterou o regime patrimonial (parágrafo 1º, art. 6º, Prov. 10/2014).

No ponto, o provimento elucida ainda questão de relevo, a saber que o regime da separação obrigatória de bens somente terá lugar quando na data do termo inicial da existência da união estável um ou ambos os conviventes já contem com mais de 70 anos, ou seja, as uniões estáveis preexistentes que reúnam pessoas não septuagenárias, mesmo que declaradas, ao depois dos 70 anos, receberão o regime patrimonial de bens da comunhão parcial (artigo 1.725) ou outro regime elegível pelos conviventes.

O normativo também indica que o tabelião de notas deve fazer constar no traslado a ser entregue aos conviventes declarantes uma nota de advertência quanto à necessidade de promover o registro da Escritura Pública de União Estável no Ofício do Registro Imobiliário competente, onde se situam os imóveis em comum dos conviventes (artigo 6º, parágrafo 5º).

É que mais das vezes, a falta de tal providência, tende a permitir que um dos conviventes possa, por interesse próprio, alienar um imóvel comum, sem conhecimento da(o) companheira(o), induzida(o) a acreditar que somente a escritura da união estável protegerá o patrimônio que igualmente lhe pertença.

O novo provimento também estabelece que a escritura pública poderá ser averbada, pelo empresário ou empresária, no Registro Público de Empresas Mercantis, com o respectivo regime de bens, após o registro no Livro “E” perante o Registro Civil das Pessoas Naturais (artigo 6º, parágrafo 4º), bem como no serviço do registro de títulos e documentos do domicilio dos conviventes, nos termos do artigo 127, inciso VII, da Lei 6.015/1973 .

Mas não é só. O texto oferece novas latitudes de garantia da união estável, em segurança de seus direitos. Sublinham-se, com efeito: (i) quando da escritura pública de compra e venda de imóvel, por pessoa solteira, o notário/oficial deverá colher declaração de que o alienante e/ou o adquirente não convive(m) em união estável com outrem, fazendo constar referida informação no corpo da escritura (art. 15, Prov. nº 10/2014); (ii) qualquer dos conviventes, querendo, poderá acrescentar ao seu o sobrenome do outro, na forma do artigo 1.565, parágrafo 1º, do Código Civil (art. 6º, parágrafo 3º, Prov. nº 10/2014).

Na forma do Provimento 37 do Conselho Nacional de Nacional, torna-se vedado que pessoa casada, em se achando separada de fato, possa reconhecer a união estável existente durante a separação conjugal, ficando, por segurança jurídica, a matéria reservada à decisão judicial.

Finalmente, em admissão de direitos, o provimento contempla que servidores do Poder Judiciário que venham escriturar e inscrever a união estável terão direito a licenças de gala e de nojo, por reconhecimento equivalente às núpcias ou por óbito do convivente.

Em menos palavras, a escrita e a inscrição da união estável servem a dignificar a entidade familiar, como forma que consagra a família existente nesse modelo.

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Jones Figueirêdo Alves é desembargador decano do Tribunal de Justiça de Pernambuco. Diretor nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), coordena a Comissão de Magistratura de Família, é autor de obras jurídicas de Direito Civil e processo civil e integra a Academia Pernambucana de Letras Jurídicas.

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