Artigo: Nótulas sobre a Convenção de Haia – Apostila – Por Felipe Leonardo Rodrigues

Breves nótulas sobre a

CONVENÇÃO SOBRE A ELIMINAÇÃO DA EXIGÊNCIA DE LEGALIZAÇÃO DE DOCUMENTOS PÚBLICOS ESTRANGEIROS                                  

1. Aprovação e Promulgação:

Aprovação da Convenção – plano jurídico externo (Decreto Legislativo nº 148/2015)

Promulgação da Convenção – plano jurídico interno (Decreto nº 8.660/2016)

2. Vigência:

A Convenção entrará em vigor entre o Estado aderente e os Estados que não tiverem apresentado objeção à adesão no sexagésimo dia após a expiração do prazo de seis meses – A partir de 14 de agosto de 2016.

3. Abrangência: documentos públicos feitos no território do Estado contratante ou em parte dele.

4. Objeto: documentos públicos:

– Provenientes de autoridade ou de um agente público, inclusive do Ministério Público, de escrivão judiciário ou de oficial de justiça, inclusive os atos de registro;

– Documentos administrativos;

– Atos notariais;

– Declarações oficiais apostas em documentos de natureza privada, tais como certidões que comprovem o registro de um documento ou a sua existência em determinada data, e reconhecimentos de assinatura. Ex. Documentos reconhecidos por notary public.

5. Não se aplica:

– Documentos emitidos por agentes diplomáticos ou consulares;

– Documentos administrativos diretamente relacionados a operações comerciais ou aduaneiras. Regramento próprio.

6. Tradução juramentada e RTD

A Convenção dispensa tão somente a Consularização, ou seja, permanece a necessidade da tradução e do registro em RTD.

7. Aposição da apostila

A apostila poderá vir no próprio documento ou anexo a ele, conforme modelo do decreto.

8. Idioma

A apostila poderá ser redigida no idioma oficial da autoridade que a emite. Também poderá ser redigido em um segundo idioma, mas o título deverá ser escrito em francês: “Apostille (Convention de La Haye du 5 octobre 1961)”.

9. Quem pode solicitar

O signatário do documento ou qualquer portador.

10. Autenticação

A apostila atesta a assinatura, a função ou o cargo exercido pelo signatário do documento e, quando cabível, a autenticidade do selo ou carimbo nele aposto.

A assinatura, selo ou carimbo contidos na apostila serão isentos de qualquer certificação.

11. Autoridade competente no Brasil para emitir a Apostila

Consta no sítio da Convenção – por indicação do governo brasileiro – a atividade notarial e de registro como autoridades competentes para emitir a Apostila.

“Brasil – Autoridade competente (Art. 6)

Pursuant to Article 6 of the Convention, the Government of the Federative Republic of Brazil states that, according to the applicable Brazilian legislation, the Judiciary is responsible for supervising and regulating notarial activities in Brazil. Therefore, legal, notarial and registration authorities will have competence to issue certificates by the Brazilian Government.”

(https://www.hcch.net/pt/states/authorities/details3/?aid=1043)

12. Arquivo

A autoridade emitente de apostilas manterá registro ou arquivo das apostilas emitidas, em especial:

a) O número e a data da apostila;

b) O nome do signatário do documento público e o cargo ou função por ele exercida ou, no caso de documentos não-assinados, a indicação da autoridade que apôs o selo ou carimbo(ou chancela).

13. Consulta da autenticidade da Apostila

Qualquer interessado poderá consultar junto a autoridade emissora da apostila os dados nela inscritos e se correspondem àqueles contidos no registro ou no arquivo. O serviço de confirmação pode ser fornecido pela internet, mediante código de confirmação nos sítios dos órgãos de classe.

14. Derrogação de formalidades de outros tratados ou convenções mais rigorosas que a prevista na Convenção de Haia

Quando um tratado, convenção ou acordo contiver disposições que sujeitem o reconhecimento de uma assinatura, selo ou carimbo a certas formalidades, a presente Convenção derrogará as referidas disposições se tais formalidades forem mais rigorosas do que a formalidade prevista nos artigos 3º e 4º, da Convenção. Ex. Trâmites junto as autoridades centrais (MRE) de cada Estado.

15. Consulados e Agente Diplomáticos

O Estado contratante tomará as providências necessárias para evitar que seus agentes diplomáticos ou consulares realizem legalizações nos casos em que esse procedimento seja dispensado pela presente Convenção. Não se poderá exigir ou consularizar as Apostilas.

16. Vigência após a entrada em vigor

A Convenção terá vigência de 5 anos, inclusive para os Estados que a ratificaram ou a ela aderiram posteriormente. Caso não haja denúncia, a Convenção será renovada tacitamente a cada 5 anos. Ao receber a Apostila, é de cautela consultar se há denúncia por parte do Estado que emitiu a Apostila.

17. Membros da organização, suas adesões e objeções e as autoridades indicadas

Sítio da Convenção: https://www.hcch.net/pt/instruments/conventions/status-table/?cid=41

18. Modelo de Apostila

APOSTILLE

(Convention de La Haye du 5 octobre 1961)

1. País: ……………………

Este documento público

2. foi assinado por …………………………………………

3. agindo na qualidade de ……………………………..

4. e tem o selo ou carimbo do ………………………..

Reconhecido

5. em  …………………                       6.  em…………….

7. pelo …………………………………………………………

8. sob o Nº ………………………….

9. Selo/carimbo:                      10. Assinatura:

…………………………….                      …………………………….

A apostila terá a forma de um quadrado com lados medindo no mínimo 9 centímetros

_____________

* Felipe Leonardo Rodrigues é tabelião substituto em S. Paulo.

Fonte: Notariado | 12/02/2016.

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Artigo: Imposição do regime da separação obrigatória (..) – Por Moacyr Petrocelli de Ávila Ribeiro

*Moacyr Petrocelli de Ávila Ribeiro

Imposição do regime da separação obrigatória à união estável septuagenária: resenha crítica

Passando em revista algumas teses jurisprudenciais, sobre o tema da união estável, firmadas pelo Superior Tribunal de Justiça e recém divulgadas,1 uma delas causa impressão. Refiro-me à seguinte conclusão pretoriana: “Na união estável de pessoa maior de setenta anos (art. 1.641, II, do CC/02), impõe-se o regime da separação obrigatória, sendo possível a partilha de bens adquiridos na constância da relação, desde que comprovado o esforço comum”. Fixa-se, nessas breves linhas, na parte primeira da assertiva, até porque a questão da presunção – ou não – do esforço comum demanda estudo pormenorizado. A estranheza sobressalta não pela novidade – que de fato não o é – ,2 mas pela subsistência da profecia engendrada em tão equivocada hermenêutica.

Diz o Código Civil: “Art. 1.641. É obrigatório o regime da separação de bens no casamento: (…) II – da pessoa maior de 70 (setenta) anos”.

Desde logo, advirta-se que a redação atual do dispositivo foi dada pela Lei nº 12.344, de 2010, porque – pasmem – na redação congênita da Lei Civil a imposição do regime da separação obrigatória operava-se ao maior de 60 (sessenta) anos.

Seja como for, o Superior Tribunal de Justiça consolidou o entendimento de que tal regra impositiva de regime de bens deve ser aplicada também para a união estável.

Como face da mesma moeda, por coerência, discordamos da imposição do regime legal obrigatório tanto para o casamento, quanto à união estável. Entretanto, e a bem da verdade, quanto ao matrimônio, pode-se até discordar da ratio legis – como, de fato, dissentimos e fundamentamos a seguir –, agora, para a família convivencial, aplicar a norma desenha interpretação desastrosa do Direito, ante a inexistência de lei.

Há espaço, sejamos francos, para trabalho de fôlego com combativos fundamentos para a não aplicação desta regra restritiva à união estável – que não é nosso objetivo nessas breves nótulas. Restringe-se, por enquanto, a apenas um obstáculo, intransponível: diante da inexistência de previsão legal, tal regra, restritiva por essência, não pode ser aplicada por analogia. Em termos ainda mais claros, normas que limitam direitos devem ser interpretadas restritivamente. Cuida-se de regra comezinha de interpretação do Direito, vincada em lições centenárias do direito romano. Pensar diferente é andar na contramão da história.

Em acréscimo, não se pode esquecer que o trato jurídico igualitário de institutos distintos – neste caso, o casamento e a união estável – não prestigia, ipso facto, a Constituição. Por vezes, a distorce. É da natureza dessas instituições distinguir-se entre si, sob pena de perder, uma e outra, a razão de ser. Igualar, em tudo, essas formas de constituição de família implica verdadeiro retrocesso social. Nesse viés, acompanhamos as autorizadas considerações de Rodrigo da Cunha Pereira divulgadas em escólio que traz título sugestivo – aliás, serviria tranquilamente como nota conclusiva para nossos pensamentos aqui tratados: “Em nome da liberdade, união estável tem de se manter diferente do casamento”.

Disserta o ilustre autor, que “(…) outro grande problema, também está em demarcar os limites e diferenças entre união estável e casamento. A regulamentação de união estável é necessária e eliminou injustiças históricas ao proteger a parte economicamente mais fraca. Mas trouxe consigo um paradoxo: quanto mais regulamenta, mais a aproxima do casamento; quanto mais próxima do casamento for, eliminando as diferenças entre um instituto e outro, mais distancia a união estável de sua ideia original. Se em tudo ela for igual ao casamento, ela deixa de existir e acaba com a liberdade das pessoas de escolherem entre um instituto e outro. Se escolho constituir minha família conjugal pela união estável é porque optei por esta via e não a outra. Se em tudo forem iguais, não terei mais duas vias de escolha, pois estarei praticamente casado, mesmo não querendo. E isto é excesso de intervenção do Estado na vida privada do cidadão. (…) Casamento e união estável são duas formas de constituir famílias. Uma não é superior ou inferior à outra, nem melhor nem pior. Apenas diferentes. E ainda bem que há diferenças. (…)Equiparar em tudo estas duas formas de família significa acabar com a união estável, interferir drasticamente no desejo e autonomia de escolher uma forma de constituir família que não seja o casamento”. 3

Como já afirmado en passant, sequer concordamos – com o perdão do leitor pela recalcitrância – com a imposição do regime da separação obrigatória para o casamento.

Não soa razoável sustentar a imposição do regime obrigatório de bens em virtude da natureza jurídica das normas do Direito de Família, que estariam lastreadas no binômio tensivo público-privado.

Nada justifica, como neste caso, tolher a autonomia privada. Não nos esqueçamos que a eleição do regime de bens pelo casal, ainda que em razão da constituição de família, tem forte espírito patrimonial e, com os ventos da modernidade, a imposição legal de estatuto patrimonial é desmedida.

Com efeito, uma das arestas do fenômeno da “repersonalização” do direito civil – e, antes ainda, do Estado Democrático de Direito – é a garantia aos cidadãos da liberdade de escolha de seus múltiplos projetos pessoais para a busca de sua felicidade. E o Direito Privado, comosói acontecer, com seu sistema de regras e princípios, é o amparo e a base do exercício desta autonomia. Como fio da meada, a liberdade deve ser tida como valor jurídico e sua escolha, espontânea, é instrumento de efetivação do Direito. Afinal, na liberdade de escolha do diferente, está a responsabilidade do sujeito por esta escolha e, aqui sim, tem terreno fértil a atuação interventiva do Estado.

Somente esta exegese é válida.

Ressalvadas algumas vozes solteiras, boa parte da doutrina filia-se pela inconstitucionalidade da norma em debate, especialmente porque sua mens legis não se legitima. A senilidade não implica em automática incapacidade. Não há, assim, justificativa para o discrímen. Colhe-se, por oportuno, anotações do sempre didático Pablo Stolze: “A alegação de que a separação patrimonial entre pessoas que convolarem núpcias acima de determinado patamar etário teria o intuito de proteger o idoso das investidas de quem pretenda aplicar o “golpe do baú” não convence. E, se assim o fosse, essa risível justificativa resguardaria, em uma elitista perspectiva legal, uma pequena parcela de pessoas abastadas, apenando, em contrapartida, um número muito maior de brasileiro. Não podemos extrair dessa norma nenhuma interpretação conforme a Constituição. Muito pelo contrário. O que notamos é uma violência escancarada ao princípio da isonomia, por conta do estabelecimento de uma velada forma de interdição parcial do idoso. Avançada a idade, por si só, não é causa de incapacidade!”.

Demonstrando que o dispositivo se põe em rota direta de colisão com o Texto Maior, em inegável quebra da coerência teleológica, propõe o supracitado autor: “Aliás, com 60 anos (como era o limite original do dispositivo), 70 anos (na atual redação) ou mais idade ainda, a pessoa pode presidir a República. Pode integrar a Câmara dos Deputados. O Senado Federal. (…) E não poderia escolher livremente o seu regime de bens? Não podemos tentar encontrar razão onde ela simplesmente não existe. Nessa linha, concluímos pela inconstitucionalidade do dispositivo sob comento (art. 1.641, II), ainda não pronunciada, em controle abstrato, infelizmente, pelo Supremo Tribunal Federal”. 4

Isto posto, reitera-se, aqui, o Enunciado nº 125 da Primeira Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal, que arrola dentre as propostas de modificação da legislação, a revogação do art. 1.641, inciso II, do Código Civil, sob a seguinte justificativa: “A norma que torna obrigatório o regime da separação absoluta de bens em razão da idade dos nubentes não leva em consideração a alteração da expectativa de vida com qualidade, que se tem alterado drasticamente nos últimos anos. Também mantém um preconceito quanto às pessoas idosas que, somente pelo fato de ultrapassarem determinado patamar etário, passam a gozar da presunção absoluta de incapacidade para alguns atos, como contrair matrimônio pelo regime de bens que melhor consultar seus interesses”.

Para encerrar, sem qualquer menoscabo, conclui-se enfatizando o pleno respeito à força da jurisprudência – catalisada que será pela entrada em vigor do novo Código de Processo Civil (Lei nº 13.105/2015), com intensa valorização dos precedentes e fincada na função nomofilácica dos tribunais –, mas, com todas as vênias, discordamos da tese fixada pelo Superior Tribunal de Justiça.

Referências

1. Teses jurisprudenciais divulgadas no sítio oficial do Superior Tribunal de Justiça, as quais recomendamos firmemente a leitura.

2. Já é de algum tempo que o Superior Tribunal de Justiça vem se posicionando nesse sentido. Vejam-se alguns precedentes: EREsp 1171820/PR, Rel. Ministro RAUL ARAÚJO, SEGUNDA SEÇÃO, Julgado em 26/08/2015,DJE 21/09/2015; AgRg no AREsp 675912/SC,Rel. Ministro MOURA RIBEIRO, TERCEIRA TURMA,Julgado em 02/06/2015,DJE 11/06/2015; REsp 1403419/MG,Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA,Julgado em 11/11/2014,DJE 14/11/2014; REsp 1369860/PR,Rel. Ministro SIDNEI BENETI, Rel. p/ Acórdão Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA,TERCEIRA TURMA,Julgado em 19/08/2014,DJE 04/09/2014; REsp 646259/RS,Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, Julgado em 22/06/2010,DJE 24/08/2010.

3. PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Em nome da liberdade, união estável tem de se manter diferente do casamento. Disponível em  http://www.conjur.com.br/2015-out-04/processo-familiar-liberdade-uniao-estavel-diferente-casamento

4. GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil, volume 6: Direito de família – As famílias em perspectiva constitucional. 2ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 369-370.

______________________

* Moacyr Petrocelli de Ávila Ribeiro é Oficial de Registro Civil das Pessoas Naturais e Tabelião de Notas do Município de Platina, São Paulo. Colunista do Colégio Notarial do Brasil – Conselho Federal. Contato: moacyrpetrocelli@hotmail.com

Fonte: Notariado | 13/02/2016.

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Artigo: É o fim da interdição? – Por Pablo Stolze

*Pablo Stolze

1. Introdução

Ainda será sentido o profundo impacto da Lei 13.146 de 06 de julho de 2015 – Estatuto da Pessoa com Deficiência -, a partir, especialmente, da jurisprudência que se formará ao longo dos próximos anos.

Esta Lei, como já tive a oportunidade de observar[1], nos termos do parágrafo único do seu art. 1º, tem como base a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, ratificados pelo Congresso Nacional por meio do Decreto Legislativo no 186, de 9 de julho de 2008, em conformidade com o procedimento previsto no § 3o do art. 5o da Constituição da República Federativa do Brasil, em vigor para o Brasil, no plano jurídico externo, desde 31 de agosto de 2008, e promulgados pelo Decreto no 6.949, de 25 de agosto de 2009, data de início de sua vigência no plano interno.

Pela amplitude do alcance de suas normas, o Estatuto traduziu uma verdadeira conquista social, ao inaugurar um sistema normativo inclusivo, que homenageia o princípio da dignidade da pessoa humana em diversos níveis.

A partir de sua entrada em vigor, a pessoa com deficiência – aquela que tem impedimento de longo prazo, de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, nos termos do seu art. 2º – não deve ser mais tecnicamente considerada civilmente incapaz, na medida em que os arts. 6º e 84, do mesmo diploma, deixam claro que a deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa.

Ainda que, para atuar no cenário social, precise se valer de institutos assistenciais e protetivos como a tomada de decisão apoiada ou a curatela, a pessoa deve ser tratada, em perspectiva isonômica, como legalmente capaz.

Por óbvio, uma mudança desta magnitude – verdadeira “desconstrução ideológica” – não se opera sem efeitos colaterais, os quais exigirão um intenso esforço de adaptação hermenêutica[2].

Mas, certamente, na perspectiva do Princípio da Vedação ao Retrocesso, lembrando Canotilho, a melhor solução será alcançada.

O que não aceito é desistir desta empreitada, condenando o Estatuto ao cadafalso da indiferença em virtude de futuras dificuldades interpretativas.

2. O Estatuto e a Capacidade Civil

Como salientei, com a entrada em vigor do Estatuto, a pessoa com deficiência – aquela que tem impedimento de longo prazo, de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, nos termos do art. 2º – não deve ser mais tecnicamente considerada civilmente incapaz, na medida em que os arts. 6º e 84, do mesmo diploma, deixam claro que a deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa:

Art. 6o  A deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa, inclusive[3] para:

I – casar-se e constituir união estável;

II – exercer direitos sexuais e reprodutivos;

III – exercer o direito de decidir sobre o número de filhos e de ter acesso a informações adequadas sobre reprodução e planejamento familiar;

IV – conservar sua fertilidade, sendo vedada a esterilização compulsória;

V – exercer o direito à família e à convivência familiar e comunitária; e

VI – exercer o direito à guarda, à tutela, à curatela e à adoção, como adotante ou adotando, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas.

Art. 84.  A pessoa com deficiência tem assegurado o direito ao exercício de sua capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas.

Esse último dispositivo é de clareza meridiana: a pessoa com deficiência é legalmente capaz, ainda que pessoalmente não exerça os direitos postos à sua disposição.

Poder-se-ia afirmar, então, que o Estatuto inaugura um novo conceito de capacidade, paralelo àquele previsto no art. 2º do Código Civil[4]?

Em meu sentir, não há um novo conceito, voltado às pessoas com deficiência, paralelo ao conceito geral do Código Civil.

Se assim o fosse, haveria um viés discriminatório que a nova Lei exatamente pretende acabar.

Em verdade, o conceito de capacidade civil foi reconstruído e ampliado.

Com efeito, dois artigos matriciais do Código Civil foram reestruturados.

O art. 3º do Código Civil, que dispõe sobre os absolutamente incapazes, teve todos os seus incisos revogados, mantendo-se, como única hipótese de incapacidade absoluta, a do menor impúbere (menor de 16 anos).

O art. 4º, por sua vez, que cuida da incapacidade relativa, também sofreu modificação. No inciso I, permaneceu a previsão dos menores púberes (entre 16 anos completos e 18 anos incompletos); o inciso II, por sua vez, suprimiu a menção à deficiência mental, referindo, apenas, “os ébrios habituais e os viciados em tóxico”; o inciso III, que albergava “o excepcional sem desenvolvimento mental completo”, passou a tratar, apenas, das pessoas que, “por causa transitória ou permanente, não possam exprimir a sua vontade”; por fim, permaneceu a previsão da incapacidade do pródigo.

Nesse contexto, faço uma breve reflexão.

Não convence inserir as pessoas sujeitas a uma causa temporária ou permanente, impeditiva da manifestação da vontade (como aquela que esteja em estado de coma), no rol dos relativamente incapazes.

Se não podem exprimir vontade alguma, a incapacidade não poderia ser considerada meramente relativa.

A impressão que tenho é a de que o legislador não soube onde situar a norma.

Melhor seria, caso não optasse por inseri-lo no próprio artigo art. 3º (que cuida dos absolutamente incapazes), consagrar-lhe dispositivo legal autônomo.

Considerando-se o sistema jurídico tradicional, vigente por décadas,  no Brasil, que sempre tratou a incapacidade como um consectário quase inafastável da deficiência, pode parecer complicado, em uma leitura superficial, a compreensão da recente alteração legislativa.

Mas uma reflexão mais detida é esclarecedora.

Em verdade, o que o Estatuto pretendeu foi, homenageando o princípio da dignidade da pessoa humana, fazer com que a pessoa com deficiência deixasse de ser “rotulada” como incapaz, para ser considerada – em uma perspectiva constitucional isonômica – dotada de plena capacidade legal, ainda que haja a necessidade de adoção de institutos assistenciais específicos, como a tomada de decisão apoiada[5] e, extraordinariamente, a curatela, para a prática de atos na vida civil.

3. O Estatuto e a Curatela

De acordo com este novo diploma, a curatela, restrita a atos relacionados aos direitos de natureza patrimonial e negocial, passa a ser uma medida extraordinária (art. 85):

Art. 85.  A curatela afetará tão somente os atos relacionados aos direitos de natureza patrimonial e negocial.

§ 1o  A definição da curatela não alcança o direito ao próprio corpo, à sexualidade, ao matrimônio, à privacidade, à educação, à saúde, ao trabalho e ao voto.

§ 2o  A curatela constitui medida extraordinária, devendo constar da sentença as razões e motivações de sua definição, preservados os interesses do curatelado.

§ 3o  No caso de pessoa em situação de institucionalização, ao nomear curador, o juiz deve dar preferência a pessoa que tenha vínculo de natureza familiar, afetiva ou comunitária com o curatelado. (grifei)

Note-se que a lei não diz que se trata de uma medida “especial”, mas sim, “extraordinária”, o que reforça a sua excepcionalidade.

E, se é uma medida extraordinária, é porque existe uma outra via assistencial de que pode se valer a pessoa com deficiência – livre do estigma da incapacidade – para que possa atuar na vida social: a “tomada de decisão apoiada”, processo pelo qual a pessoa com deficiência elege pelo menos 2 (duas) pessoas idôneas, com as quais mantenha vínculos e que gozem de sua confiança, para prestar-lhe apoio na tomada de decisão sobre atos da vida civil, fornecendo-lhes os elementos e informações necessários para que possa exercer sua capacidade.

Pessoas com deficiência e que sejam dotadas de grau de discernimento que permita a indicação dos seus apoiadores, até então sujeitas a uma inafastável interdição e curatela geral, poderão se valer de um instituto menos invasivo em sua esfera existencial.

Note-se que, com isso, a autonomia privada projeta as suas luzes em recantos até então inacessíveis.

4. É o Fim da Interdição?

Afinal, o Estatuto pôs fim à interdição?

É preciso muito cuidado no enfrentamento desta questão.

O Prof. Paulo Lôbo, em excelente artigo[6], sustenta que, a partir da entrada em vigor do Estatuto, “não há que se falar mais de ‘interdição’, que, em nosso direito, sempre teve por finalidade vedar o exercício, pela pessoa com deficiência mental ou intelectual, de todos os atos da vida civil, impondo-se a mediação de seu curador. Cuidar-se-á, apenas, de curatela específica, para determinados atos”.

Esta afirmação deve ser adequadamente compreendida.

Explico o meu ponto de vista.

Na medida em que o Estatuto é expresso ao afirmar que a curatela é extraordinária e restrita a atos de conteúdo patrimonial ou econômico, desaparece a figura da “interdição completa” e do “curador todo-poderoso e com poderes indefinidos, gerais e ilimitados”.

Mas, por óbvio, o procedimento de interdição (ou de curatela)[7] continuará existindo, ainda que em uma nova perspectiva, limitada aos atos de conteúdo econômico ou patrimonial, como bem acentuou Rodrigo da Cunha Pereira. [8]

É o fim, portanto, não do “procedimento de interdição”, mas sim, do standard tradicional da interdição, em virtude do fenômeno da “flexibilização da curatela”, anunciado por Célia Barbosa Abreu[9].

Vale dizer, a curatela estará mais “personalizada”, ajustada à efetiva necessidade daquele que se pretende proteger.

Aliás, fixada a premissa de que o procedimento de interdição subsiste, ainda que em uma nova perspectiva, algumas considerações merecem ser feitas, tendo em vista a entrada em vigor do novo Código de Processo Civil.

Flávio Tartuce[10], com propriedade, ressalta a necessidade de se interpretar adequadamente o Estatuto da Pessoa com Deficiência e o CPC-15, para se tentar amenizar os efeitos de um verdadeiro “atropelamento legislativo”.

E a tarefa não será fácil, na medida em que o novo CPC já surgirá com muitos dispositivos atingidos pelo Estatuto.

Dou como exemplo o artigo do Código Civil que trata da legitimidade para promover a interdição (art. 1.768), revogado pelo art. 747 do CPC-15.

O Estatuto da Pessoa com Deficiência, por seu turno, ignorando a revogação do dispositivo pelo novo CPC – observou Fredie Didier Jr.[11] – acrescentou-lhe um novo inciso (art. 1.768, IV, CC), para permitir que a própria pessoa instaure o procedimento de curatela.

Certamente, a conclusão a se chegar é no sentido de que o art. 747 do CPC vigorará com este novo inciso.

Será um intenso exercício de hermenêutica que deverá ser guiado sempre pelo bom senso.

5. O Estatuto e as Interdições em Curso

Para bem compreendermos este ponto, é necessária uma incursão na Teoria Geral do Direito Civil.

Isso porque o Estatuto alterou normas que dizem respeito ao “status” da pessoa natural, tema sobre o qual já tivemos a oportunidade de escrever:

O estado da pessoa natural indica sua situação jurídica nos contextos político, familiar e individual.

Com propriedade, ensina ORLANDO GOMES que estado (status), em direito privado, é noção técnica destinada a caracterizar a posição jurídica da pessoa no meio social.

Seguindo a diretriz traçada pelo mestre baiano, três são as espé­cies de estado:

a) estado político categoria que interessa ao Direito Constitucional, e que classifica as pessoas em nacionais e estrangeiros. Para tanto, leva-se em conta a posição do indivíduo em face do Estado;

b) estado familiar categoria que interessa ao Direito de Família, considerando as situações do cônjuge e do parente. A pessoa poderá ser casada, solteira, viúva, divorciada ou judicialmente separada, sob o prisma do direito matrimonial. Quanto ao parentesco, vinculam-se umas às outras, por con­sanguinidade ou afinidade, nas linhas reta ou colateral. O estado familiar leva em conta a posição do indivíduo no seio da família. Note-se que, a despeito de a união estável também ser considerada entidade familiar, desconhece-se o estado civil de concubino ou convivente, razão pela qual não se deve inserir essa condição na presente categoria;

c) estado individual essa categoria baseia-se na condição física do indivíduo influente em seu poder de agir. Considera-se, portanto, a idade, o sexo e a saúde. Partindo-se de tal estado, fala-se em menor ou maior, capaz ou incapaz, homem ou mulher.[12]

O Estatuto da Pessoa com Deficiência, como dito, alterou normas reguladoras de um aspecto fundamental do “estado individual” da pessoa natural: a sua capacidade.

E, tais normas, por incidirem na dimensão existencial da pessoa física, têm eficácia e aplicabilidade imediatas.

Com efeito, estando em curso um procedimento de interdição – ou mesmo findo – o interditando (ou interditado) passa a ser considerado, a partir da entrada em vigor do Estatuto, pessoa legalmente capaz.

Mas, como analisamos linhas acima, é importante observar que a interdição e a curatela  – enquanto “procedimento” e “instituto assistencial”, respectivamente – não desapareceram, havendo, em verdade, experimentado uma flexibilização.

Vale dizer, não sendo o caso de se converter o procedimento de interdição em rito de tomada de decisão apoiada, a interdição em curso poderá seguir o seu caminho, observados os limites impostos pelo Estatuto, especialmente no que toca ao termo de curatela, que deverá expressamente consignar os limites de atuação do curador, o qual  auxiliará a pessoa com deficiência apenas no que toca à prática de atos com conteúdo negocial ou econômico.

O mesmo raciocínio é aplicado no caso das interdições já concluídas.

Não sendo o caso de se intentar o levantamento da interdição ou se ingressar com novo pedido de tomada de decisão apoiada, os termos de curatela já lavrados e expedidos continuam válidos, embora a sua eficácia esteja limitada aos termos do Estatuto, ou seja, deverão ser interpretados em nova perspectiva, para justificar a legitimidade e autorizar o curador apenas quanto à prática de atos patrimoniais.

Seria temerário, com sério risco à segurança jurídica e social, considerar, a partir do Estatuto, “automaticamente” inválidos e ineficazes os milhares – ou milhões – de termos de curatela existentes no Brasil.

Até porque, como já salientei, mesmo após o Estatuto, a curatela não deixa de existir.

Finalmente, merece especial referência a previsão da denominada “curatela compartilhada”, constante no art. 1.775-A do Código Civil, alterado pelo novo diploma estatutário: Na nomeação de curador para a pessoa com deficiência, o juiz poderá estabelecer curatela compartilhada a mais de uma pessoa.

Trata-se de uma previsão normativa muito interessante que, em verdade, tornará oficial uma prática comum.

Por vezes, no seio de uma família, mais de um parente, além do próprio curador, conduz a vida da pessoa com deficiência, dispensando-lhe os necessários cuidados.

Pois bem.

O novo instituto permitirá, no interesse do próprio curatelado, a nomeação de mais de um curador, e, caso haja divergência entre eles, caberá ao juiz decidir, como ocorre na guarda compartilhada.

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*Pablo Stolze é Bacharel em Direito – Universidade Federal da Bahia (1998), tendo recebido o diploma de honra ao mérito (láurea), pela obtenção das maiores notas ao longo do bacharelado. Pós-graduado em Direito Civil pela Fundação Faculdade de Direito da Bahia, tendo obtido nota dez em monografia de conclusão. Mestre em Direito Civil pela PUC/SP, tendo obtido nota dez em todos os créditos cursados, nota dez na dissertação, com louvor, e dispensa de todos os créditos para o doutorado. Aprovado em primeiro lugar em concursos para as carreiras de professor substituto e professor do quadro permanente da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia, e também em primeiro lugar no concurso para Juiz de Direito do Tribunal de Justiça da Bahia (1999). Autor e coautor de várias obras jurídicas, incluindo o “Novo Curso de Direito Civil” (Saraiva). Professor da Universidade Federal da Bahia, e da Rede Jurídica LFG. Já ministrou aulas, cursos e palestras em diversos tribunais do país, inclusive no Supremo Tribunal Federal.

Fonte: JUS Navigandi | 12/02/2016.

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