CSM/SP: Registro de Imóveis – Apelação – Dúvida – Negativa de registro de instrumento particular de desconstituição de pessoa jurídica – Transmissão de bem imóvel com valor superior a trinta salários mínimos, ainda que realizada a título de pagamento de haveres – Necessidade de escritura pública – Inteligência do art. 108 do código civil – ITBI – Isenção ou imunidade que depende de manifestação do órgão tributante – Recurso a que se nega provimento.


  
 

Apelação Cível nº 1001918-81.2021.8.26.0100

Espécie: APELAÇÃO

Número: 1001918-81.2021.8.26.0100

Comarca: CAPITAL

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

CONSELHO SUPERIOR DA MAGISTRATURA

Apelação Cível nº 1001918-81.2021.8.26.0100

Registro: 2021.0000918290

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível nº 1001918-81.2021.8.26.0100, da Comarca de São Paulo, em que é apelante JAIRO TACCI, é apelado 7º OFICIAL DE REGISTRO DE IMÓVEIS DA COMARCA DA CAPITAL.

ACORDAM, em Conselho Superior de Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: “Negaram provimento, V. U.”, de conformidade com o voto do Relator, que integra este acórdão.

O julgamento teve a participação dos Exmos. Desembargadores PINHEIRO FRANCO (PRESIDENTE TRIBUNAL DE JUSTIÇA) (Presidente), LUIS SOARES DE MELLO (VICE PRESIDENTE), XAVIER DE AQUINO (DECANO), GUILHERME G. STRENGER (PRES. SEÇÃO DE DIREITO CRIMINAL), MAGALHÃES COELHO(PRES. DA SEÇÃO DE DIREITO PÚBLICO) E DIMAS RUBENS FONSECA (PRES. DA SEÇÃO DE DIREITO PRIVADO).

São Paulo, 3 de novembro de 2021.

RICARDO ANAFE

Corregedor Geral da Justiça e Relator

Apelação Cível nº 1001918-81.2021.8.26.0100

Apelante: Jairo Tacci

Apelado: 7º Oficial de Registro de Imóveis da Comarca da Capital

VOTO Nº 31.587

Registro de Imóveis – Apelação – Dúvida – Negativa de registro de instrumento particular de desconstituição de pessoa jurídica – Transmissão de bem imóvel com valor superior a trinta salários mínimos, ainda que realizada a título de pagamento de haveres – Necessidade de escritura pública – Inteligência do art. 108 do código civil – ITBI – Isenção ou imunidade que depende de manifestação do órgão tributante – Recurso a que se nega provimento.

1. Cuida-se de recurso de apelação interposto por JAIRO TACCI em face da r. sentença de fl. 79/83, que julgou procedente a dúvida inversa suscitada, mantendo-se os óbices registrários ofertados pelo 7º Oficial de Registro de Imóveis da Comarca da Capital para registro de instrumento particular de desconstituição de pessoa jurídica, pela falta de aptidão do título representativo de ato translativo do domínio do imóvel objeto da matrícula nº 29.982, o que tornaria necessária a forma pública, nos termos do art. 108 do Código Civil, assim como o pagamento do tributo devido na operação.

A Nota de Exigência de fl. 22 indicou como motivos de recusa do ingresso do título:

“I – Observa-se que, para a formalização da transferência do imóvel objeto da matrícula 29.982 desta Serventia, para os sócios da empresa VIC COPIADORA RAPIDA EIRELI, em virtude da desconstituição e extinção da mesma conforme o presente instrumento particular de desconstituição, é necessário a apresentação do título hábil, que de acordo com o artigo nº 108 do atual Código Civil, é a escritura pública, tendo em vista que o valor de referência atribuído ao imóvel pela Prefeitura da Capital na data do instrumento é de R$ 752.048,00, ou seja, acima dos 30 salários mínimos previstos no aludido artigo 108, portanto o presente instrumento particular não é título hábil para instrumentalizar a transferência do imóvel aos sócios (nesse sentido v.g. AC. n.º 1036696-87.2015.8.26.0100 e Dec. de 04/02/2016 –  Proc. CG n.º 2015/00170381 dentre outras).

II – Por outro lado, salientamos ser necessário que quando da apresentação da escritura acima mencionada, a mesma esteja acompanhada da respectiva prova do recolhimento do imposto de transmissão respectivo (ITBI atual DTI), devidamente quitado, (consoante determina o artigo 2º do Decreto Municipal n.º 55.196/2014, antes com previsão no Decreto n.º 46.228/2005 e Lei Municipal n.º 13.402/2002, que alteraram diversos artigos da Lei n.º 11.154/91 e “ex-vi” do que dispõe o artigo nº 289 da Lei n.º 6.015/73), em virtude de ser obrigação dos notários, oficiais de Registro de imóveis ou seus prepostos, a fiscalização e exatidão, quanto ao pagamento e/ou omissões referentes ao aludido imposto.”

Sustenta o recorrente, em suma, que a sentença é nula porque não analisados todos os argumentos lançados. Com a extinção da empresa o imóvel retorna ao seu anterior proprietário. Que quando da integralização do capital da pessoa jurídica foi observada a correspondência da avaliação do imóvel e conferência de bens para fins de declaração de imposto de renda. Há limitação de tributar pelo art. 156, § 2º , I, da Constituição Federal, que impede a tributação da transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital; que a sentença desconheceu o registro na JUCESP e que a EIRELI é constituída por apenas um sócio; que os herdeiros não são sócios da EIRELI; que a sentença não considerou que se trata de EIRELI constituída por uma só pessoa, titular da totalidade do capital social, devidamente integralizado; e que foi incorporado ao capital social um imóvel que antes pertencia ao domínio e propriedade do casal.

A D. Procuradoria Geral de Justiça opinou pelo desprovimento do recurso (fl. 150/153).

É o relatório.

2. Presentes seus pressupostos legais e administrativos, conheço do recurso.

A apelação, a despeito de seus jurídicos fundamentos, não comporta provimento.

A preliminar de nulidade não comporta acolhimento.

Cuidou a MM.ª Juíza Corregedora Permanente, por meio da fundamentada r. decisão de fl. 79/83, de pronunciar-se sobre as questões de fato e de direito aventadas, rechaçando as alegações do recorrente, julgando, ao final, procedente a dúvida registrária.

No mérito, melhor sorte não socorre ao apelante.

Com efeito, por meio do instrumento particular de constituição de empresa individual EIRELI, datado de 01 de outubro de 2013, devidamente registrado na JUCESP, e sob n.º 06 (13 de março de 2020) na matrícula n.º 29.982 do 7º Oficial de Registro de Imóveis da Comarca da Capital, o imóvel situado na Rua Frei Gaspar n.º 338, Moóca, São Paulo, foi transferido à sociedade Vic Copiadora Rápida Eireli à título de conferência de bens para integralização de capital, figurando como única sócia Vicenta Di Fátima Ippolito Tacci.

Foi apresentado a registro, obtendo qualificação negativa, o instrumento particular de desconstituição da empresa Vic Copiadora Rápida Eireli, datado de 08 de janeiro de 2020, registrado na Junta Comercial do Estado de São Paulo JUCESP, acompanhado de escritura pública de arrolamento e partilha de bens, lavrada perante o 17º Tabelião de Notas da Capital em 27 de dezembro de 2019, em face do óbito de mencionada sócia, restando partilhadas as quotas sociais de dita pessoa jurídica na razão de 50% para o viúvo meeiro Jairo Tacci e para o herdeiro Alessandro Tacci.

Em última análise, pretende o recorrente, viúvo da falecida e única sócia de Vic Copiadora Rápida Eireli, obter o registro do instrumento particular de desconstituição da pessoa jurídica para constar que o imóvel objeto da matrícula nº 29.982 fica “desincorporado para restituição ao antigo proprietário e viúvo meeiro com o encerramento da empresa” (fl. 64/66).

Consoante dispõe o art. 108 do Código Civil:

“Art. 108. Não dispondo a lei em contrário, a escritura pública é essencial à validade dos negócios jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente no País.”

Para os negócios jurídicos que envolvam direitos reais relativos a imóveis de valor superior a trinta salários mínimos, a escritura pública é essencial, salvo disposição de lei em contrário.

O art. 64 da Lei n.º 8.934/94 traz exceção à regra inserta no referido art. 108, assim prevendo:

“Art. 64. A certidão dos atos de constituição e de alteração de empresários individuais e de sociedades mercantis, fornecida pelas juntas comerciais em que foram arquivados, será o documento hábil para a transferência, por transcrição no registro público competente, dos bens com que o subscritor tiver contribuído para a formação ou para o aumento do capital.”

É sabido que o exame do título pelo registrador é restrito aos aspectos formais e extrínsecos, à luz dos princípios que norteiam os registros públicos, dentre eles, o da legalidade.

Conforme lição de Afrânio de Carvalho, o Oficial tem o dever de proceder o exame da legalidade do título e apreciação das formalidades extrínsecas da ordem e à conexão de seus dados com o registro e sua formalização instrumental (in “Registro de Imóveis”, editora Forense, 4ª ed.). O exame da legalidade consiste na aceitação para registro somente do título que estiver de acordo com a lei.

O registro do instrumento particular de desconstituição da pessoa jurídica não constitui, pois, título hábil à transmissão do imóvel de valor superior a 30 salários mínimos e portanto, não preenche a formalidade exigida em lei.

A exceção contida no art. 64 da Lei n.º 8.934/94, admitindo a utilização de instrumento particular, qual seja, a certidão da Junta Comercial, com o fim de materializar a conferência de bens pelos sócios para integralizar o capital social, deve ser interpretada restritivamente, sendo descabida a interpretação extensiva defendida pelo apelante para dissolução da pessoa jurídica, inadmitindo-se, ademais, aplicação analógica no âmbito administrativo.

Não há conflito entre o art. 64 da Lei nº 8.934/1994 e o art. 108 do Código Civil, pois a norma especial prevalece sobre a norma geral na hipótese que prevê, ou seja, na transmissão de bens do sócio para a sociedade promovida para a constituição ou o aumento do capital social.

Indiscutível que o instrumento particular de desconstituição da empresa Vic Copiadora Rápida Eireli apresentado para ingresso na tábua registrária contém negócio jurídico que, para o direito registral, ultrapassa o âmbito da extinção da sociedade, incluindo a transmissão do direito real de propriedade (art. 1.225, I, do Código Civil), exigindo-se, pois, a escritura pública, nos termos do art. 108 do Código Civil porque supera o valor correspondente a 30 salários mínimos.

Neste sentido foi a decisão do então Corregedor Geral da Justiça, Desembargador Manoel de Queiroz Pereira Calças, que aprovou o Parecer n.º 33/2016-E, exarado pelo, à época, Juiz Assessor da Corregedoria, Dr. Guilherme Stamillo Santarelli Zuliani:

“REGISTRO DE IMÓVEIS – Pedido de providências julgado improcedente – Dissolução de sociedade por instrumento particular – Qualificação registral negativa – Transferência de bem imóvel em favor do sócio – Escritura Pública que é da substância do negócio jurídico – Forma prescrita em Lei – Recurso não provido.”

Nesta linha, também, o entendimento exarado na Apelação n.º 491-6/1, cujo relator foi o então Corregedor Geral da Justiça, Desembargador Gilberto Passos de Freitas.

“REGISTRO DE IMÓVEIS – Dúvida julgada procedente – Negativa de acesso ao registro de instrumento particular de distrato social de pessoa jurídica, com transferência de bens imóveis da sociedade para os sócios – Inviável o registro à luz do disposto no art. 134, II, §6º, do Código Civil de 1916 e no art. 108 do novo Código Civil – Indispensabilidade da transferência dos bens por intermédio de escritura pública – Não incidência, no caso, da norma do art. 64, da Lei n.º 8.934/1994 – Recurso não provido.”

A distinção entre a pessoa jurídica e os seus sócios, inclusive no que se refere ao patrimônio, foi realçada pelo art. 49-A do Código Civil, introduzido pela Lei nº 13.874/2019, que dispõe:

“Art. 49-A. A pessoa jurídica não se confunde com os seus sócios, associados, instituidores ou administradores.

Parágrafo único. A autonomia patrimonial das pessoas jurídicas é um instrumento lícito de alocação e segregação de riscos, estabelecido pela lei com a finalidade de estimular empreendimentos, para a geração de empregos, tributo, renda e inovação em benefício de todos.”

A função social das pessoas jurídicas referida no parágrafo único do art. 49-A do Código Civil, que abrange a sua função econômica, embasa o tratamento adotado na legislação para a transmissão dos bens, pelos sócios, destinados à integralização e aumento do capital social, uma vez que são essenciais para o desenvolvimento da atividade empresária.

Por isso, a transmissão de bem imóvel da sociedade, ainda que a título de pagamento dos haveres decorrentes da dissolução e posterior liquidação da empresa, tem como requisito de validade a escritura pública, salvo se o imóvel tiver valor inferior a trinta salários mínimos, como previsto no art. 108 do Código Civil.

O instrumento público não é dispensado pela causa da transmissão do imóvel da sociedade, consistente no pagamento de haveres decorrente de sua dissolução, pois até a sua efetiva liquidação e consequente extinção permanece a sociedade com o domínio dos bens que integram o seu patrimônio, como esclarece Fábio Ulhoa Coelho:

“A sociedade empresária dissolvida (por ato dos sócios ou decisão judicial) não perde, de imediato, a personalidade jurídica por completo. Ao contrário, conserva-a, mas apenas para liqüidar as pendências obrigacionais existentes (LSA, art. 207; CC/2002, art. 51, Ccom, art. 335, in fine). Em outros termos, ela sofre uma considerável restrição na sua personalidade, na medida em que somente pode praticar os atos necessários ao atendimento das finalidades da liquidação. Qualquer negócio jurídico realizado em nome da sociedade empresária dissolvida que não vise dar seguimento à solução das pendências obrigacionais não pode ser imputado à pessoa jurídica. Esta não é mais um sujeito apto a titularizar direitos ou contrair obrigações, salvo as indispensáveis ao regular processamento da liquidação. Imputam-se, desse modo, as conseqüências do ato exclusivamente à pessoa física que o praticou em nome da sociedade dissolvida” (Curso de Direito Comercial, Vol. 2, 6ª ed., São Paulo: Saraiva, 2003, pág. 460).

Relevante também pontuar que por meio da escritura pública de arrolamento e partilha lavrada perante o 17º Tabelião de Notas da Capital foram partilhadas apenas as quotas da sociedade sem menção ao direito real sobre o imóvel, de modo que, de fato, não comporta ingresso no fólio real, salvo se retificada fosse para se incluir, também, a partilha do bem imóvel.

Assim, a par das alegações do apelante a dissolução da empresa não acarreta automática transferência de domínio do bem imóvel, sendo imprescindível que o ato translativo se efetive através da escritura pública.

Ultrapassado este ponto, nos termos do art. 289 da Lei n.º 6.015/73, incumbe ao oficial de registro a rigorosa fiscalização do pagamento dos impostos devidos por força dos atos que lhe forem apresentados em razão do ofício, o que vem corroborado pelos itens 117 e 117.1, do Capítulo XX, Tomo II, das NSCGJ:

“117. Incumbe ao oficial impedir o registro de título que não satisfaça os requisitos exigidos pela lei, quer sejam consubstanciados em instrumento público ou particular, quer em atos judiciais.

117.1. Com exceção do recolhimento do imposto de transmissão e prova de recolhimento do laudêmio, quando devidos, nenhuma exigência relativa à quitação de débitos para com a Fazenda Pública, inclusive quitação de débitos previdenciários, fará o oficial, para o registro de títulos particulares, notariais ou judiciais.”

A omissão do Delegatário pode levar à sua responsabilidade solidária no pagamento do tributo, nos exatos termos do art. 134, inciso VI, do Código Tributário Nacional-CTN:

“Art. 134. Nos casos de impossibilidade de exigência do cumprimento da obrigação principal pelo contribuinte, respondem solidariamente com este nos atos em que intervierem ou pelas omissões de que forem responsáveis:

(…)

VI – os tabeliães, escrivães e demais serventuários de ofício, pelos tributos devidos sobre os atos praticados por eles, ou perante eles, em razão do seu oficio.”

No caso concreto, considerado pelo Registrador o negócio como ato oneroso decorrente da apuração de haveres da sociedade, existe fato gerador do imposto de transmissão “inter vivos”, incumbindo-lhe o dever de fiscalizar o pagamento, observando-se que eventual não incidência está condicionada à apresentação pelo interessado de prova do reconhecimento administrativo da isenção, conforme art. 176, inciso I, do Decreto Municipal n.º 59.579/2020.

“Art. 176. Para lavratura, registro, inscrição, averbação e demais atos relacionados à transmissão de imóveis ou de direitos a eles relativos, ficam obrigados os notários, oficiais de Registro de Imóveis ou seus prepostos a:

I – verificar a existência da prova do recolhimento do imposto ou do reconhecimento administrativo da não incidência, da imunidade ou da concessão de isenção;”

Não se trata, como já decidido por este Egrégio Conselho Superior da Magistratura, de questão relacionada ao exame material do montante de imposto devido, cuja atribuição é da Fazenda respectiva e foge do exame da regularidade formal do título, mas de dispensa do recolhimento, o que não está na esfera de discricionariedade do Oficial.

Não cabe, assim, ao registrador determinar se é caso de isenção ou não do tributo, compete ao órgão tributante emitir documento neste sentido para viabilizar o registro.

Nesse cenário, não há como se concluir pela superação dos óbices apontados pelo registrador.

3. Por essas razões, pelo meu voto, nego provimento ao recurso.

RICARDO ANAFE

Corregedor Geral da Justiça e Relator

Fonte: INR Publicações.

Publicação: Portal do RI (Registro de Imóveis) | O Portal das informações notariais, registrais e imobiliárias.

Para acompanhar as notícias do Portal do RI, siga-nos no twitter, curta a nossa página no facebook e/ou assine nosso boletim eletrônico (newsletter), diário e gratuito.