TJSP: Apelação – Ação anulatória de negócio jurídico (doação) – Sentença de procedência – Inconformismo das rés – Descabimento – Imóvel adquirido em 1988, na constância da união estável (reconhecida por escritura pública) havida entre a doadora e o falecido pai da donatária – Aquisição antes da vigência da Lei 9.278/96 que introduziu a presunção legal de esforço comum na aquisição do patrimônio dos conviventes durante a vivência conjunta – Incidência da Lei 9.278/96 apenas sobre os bens adquiridos a partir de sua vigência – Inaplicabilidade com relação ao patrimônio preexistente – Princípio geral da irretroatividade (art. 6º da LINDB) – Doação do imóvel com reserva de usufruto feita pela mãe à filha por meio de escritura pública em 2015, não levada a registro – Inexistência de ciência ou anuência do autor quanto à doação – Necessidade – Doadora que foi a declarante do óbito ocorrido em 2017, informando sua qualidade de companheira do de cujus, mas se qualificou como solteira na escritura pública de doação, sem informar acerca da escritura de reconhecimento de união estável – Validade do negócio jurídico maculada por informação inverídica – Sentença mantida (art. 252, do RITJSP) – Recurso desprovido.


  
 

ACÓRDÃO – Decisão selecionada e originalmente divulgada pelo INR –

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível nº 1125253-45.2018.8.26.0100, da Comarca de São Paulo, em que são apelantes EDNEIDE BARBOSA DA SILVA (ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA) e IRACEMA SILVA MEIRELES SUZANO (ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA), são apelados SEBASTIÃO MEIRELLES SUZANO (ESPÓLIO) e MARIA REGINA OLIVEIRA SUZANO (INVENTARIANTE).

ACORDAM, em sessão permanente e virtual da 8ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: Negaram provimento ao recurso. V. U., de conformidade com o voto do relator, que integra este acórdão.

O julgamento teve a participação dos Desembargadores SILVÉRIO DA SILVA (Presidente) E THEODURETO CAMARGO.

São Paulo, 26 de fevereiro de 2022.

PEDRO DE ALCÂNTARA DA SILVA LEME FILHO

Relator(a)

Assinatura Eletrônica

Apelação n°: 1125253-45.2018.8.26.0100

Apelante(s): Edneide Barbosa da Silva (Assistência Judiciária) e Iracema Silva Meireles Suzano (Assistência Judiciária)

Apelado(s): Espólio de Sebastião Meireles Suzano (por sua Inventariante Maria Regina Oliveira Suzano)

Comarca: São Paulo 6ª Vara Cível do Foro Central

1ª Instância: Proc. nº 1125253-45.2018.8.26.0100

Juiz: Lúcia Caninéo Campanhã

Voto nº 31838

EMENTA. Apelação. Ação anulatória de negócio jurídico (doação). Sentença de procedência. Inconformismo das rés. Descabimento. Imóvel adquirido em 1988, na constância da união estável (reconhecida por escritura pública) havida entre a doadora e o falecido pai da donatária. Aquisição antes da vigência da Lei 9.278/96 que introduziu a presunção legal de esforço comum na aquisição do patrimônio dos conviventes durante a vivência conjunta. Incidência da Lei 9.278/96 apenas sobre os bens adquiridos a partir de sua vigência. Inaplicabilidade com relação ao patrimônio preexistente. Princípio geral da irretroatividade (art. 6º da LINDB). Doação do imóvel com reserva de usufruto feita pela mãe à filha por meio de escritura pública em 2015, não levada a registro. Inexistência de ciência ou anuência do autor quanto à doação. Necessidade. Doadora que foi a declarante do óbito ocorrido em 2017, informando sua qualidade de companheira do de cujus, mas se qualificou como solteira na escritura pública de doação, sem informar acerca da escritura de reconhecimento de união estável. Validade do negócio jurídico maculada por informação inverídica. Sentença mantida (art. 252, do RITJSP). Recurso desprovido.

Apelação interposta contra a sentença de fls. 651/656, cujo relatório se adota, que julgou procedente a ação anulatória de negócio jurídico (doação) movida pelo Espólio de Sebastião Meireles Suzano, representado por sua Inventariante Maria Regina Oliveira Suzano, em face de Edneide Barbosa da Silva e Iracema Silva Meireles Suzano, confirmando a tutela deferida, para anular a Escritura de Doação com Reserva de Usufruto, lavrada em setembro de 2015, pela qual foi doado o imóvel objeto da matrícula 59.439 do 2º SRI pela ré Edneide em benefício da ré Iracema. Diante da sucumbência, condenou as rés ao pagamento das custas, despesas processuais, bem como honorários advocatícios, estes fixados em 10% do valor atribuído à causa.

Embargos de declaração opostos pelas rés (fls. 667/668), foram rejeitados (fls. 673/674).

As rés apelam, pelas razões apresentadas às fls. 687/690.

Recurso tempestivo, isento de preparo por serem as apelantes beneficiárias da justiça gratuita e respondido (fls. 695/707).

É o relatório.

Sustentam as apelantes que a união estável apenas foi consagrada no ordenamento jurídico pátrio em 1988 com a promulgação da Constituição Federal (art. 226) e que, à época da aquisição do imóvel pela corré E. em 1987 “Ela era solteira e adquiriu sozinha o bem”, “não havia união estável” entre ela e o falecido S., o qual “era casado com M. de O. M., de quem se separou judicialmente apenas em 1992 (certidão de casamento de fls. 577) e, em 1993 dela se desquitou, passando a residir com a Sra. E.”. Aduzem que “apesar de a união estável ser constitucionalmente reconhecida como entidade familiar, o art. 1.723, §1º, do Código Civil vedou a configuração da união estável se um dos conviventes for casado”, sendo o imóvel incomunicável com os bens do falecido S.. Dizem, ainda, que “segundo o art. 1.725 do Código Civil, na união estável, salvo contrato escrito entre os companheiros, aplica-se às relações patrimoniais, no que couber, o regime da comunhão parcial de bens” e, nesse contexto, o imóvel objeto da ação adquirido pela corré E., anteriormente à configuração da união com o falecido S., é incomunicável, a teor do art. 1.661 do Código Civil de 2002, de modo que a doação feita à filha I. em 2015 é válida (fls. 687/690).

Em que pese os argumentos das apelantes, o recurso não comporta provimento.

Como bem assinalado na sentença pelo d. Magistrado a quo, cujos fundamentos a seguir transcritos adoto como razões de decidir, nos termos do art. 252, do Regimento Interno deste E. Tribunal de Justiça [1] (com a substituição dos nomes das partes mencionados pelas suas iniciais, em obediência ao Provimento CSM nº 2.241/2015):

“Trata-se de pedido de anulação da escritura de doação de imóvel objeto da matrícula 59.439 do 2º SRI, negócio esse celebrado entre as requeridas supostamente em prejuízo ao espólio autor, o que já caracteriza o seu interesse de agir, por conta da união estável da doadora com o falecido.

Alega o requerente que o Sr. S. M. S. convivia em união estável com a requerida E. desde o ano de 1977, fato declarado por ambos em Escritura Pública lavrada em 06 de novembro de 2012.

Durante o relacionamento, adquirido o imóvel em questão, porém registrado apenas em nome da requerida Sra. E., que posteriormente o doou à filha comum do casal, ora ré I., sem a devida autorização do Sr. S.

Aduz que o instrumento de doação é viciado por omitir algumas informações e conter outras falsas, de modo que deve ser anulado o negócio.

As requeridas, por sua vez, sustentam que quando da aquisição do imóvel, em 1987, ainda não configurada união estável, quitado exclusivamente pela Sra. E., não havendo que se falar em qualquer irregularidade quanto à doação posteriormente realizada no ano de 2015.

Incontroverso que o Sr. S. e a ora ré Sra. E. mantiveram união estável por diversos anos, sendo a ré Sra. I. filha comum do casal.

Verifica-se, aliás, que inclusive lavrada Escritura Pública de Declaração, no ano de 2012, oportunidade em que o Sr. S. e a Sra. E. expressamente declararam que viviam em união estável, como se casados fossem, há 35 anos, ou seja, desde o ano de 1977, “em colaboração econômica para o sustento mútuo, todo esse tempo” (fls. 20/22).

Ocorre que embora o imóvel localizado na Rua Iperoig, nº 899, apto. 51, registrado sob a matrícula 59.439 do 2º SRI tenha sido adquirido durante o relacionamento do casal, tal fato ocorreu no ano de 1988 (R.2 fls. 25), enquanto a presunção legal de esforço comum na aquisição do patrimônio dos conviventes durante a vivência conjunta foi trazida pela Lei nº 9.278/96, que regulamenta a união estável como entidade familiar.

E no caso, deve-se ainda observar que consta como adquirente tão somente a ré E., que hipotecou o imóvel à Caixa Econômica Federal, comprometendo-se à quitação do financiamento em 300 prestações mensais(R.2 e R.3 fls. 25/26), cancelada a hipoteca em 19 de novembro de 2012 (Av-4, fls. 26).

No mais, o Sr. S. permaneceu casado com a Sra. M. de O. M. até o ano de 1992 (fls. 232/237).

Nesse contexto, e considerando que apenas no ano de 1994, com o advento da Lei nº 8.971/94, regulado o direito dos companheiros a alimentos e à sucessão, e em 1996 enfim regulamentada a união estável como entidade familiar, através da Lei nº 9.278/96, não se podendo presumir o esforço comum desde logo, deve-se reconhecer a comunicabilidade apenas quanto às prestações quitadas no curso da união estável a partir do ano de 1996.

Em casos análogos assim se decidiu:

Ação de reconhecimento e dissolução e união estável. Reconhecimento pos mortem. Reconhecimento parcial do pedido. Inconformismo quanto a meação de imóvel. Decisão que declarou a mãe da autora e o requerido viveram em união estável de 1978 até o falecimento dela em 2016, com direito à meação sobre o imóvel em 50% objeto da matrícula 66.518 do RI de Sumaré. Hipótese em que deve ser afastada a partilha do lote de terreno, tendo em vista que não restou comprovado o esforço comum para a aquisição do bem. Partilha de bens que deve observar o regime de bens e o ordenamento jurídico vigente ao tempo da aquisição. Precedentes do Superior Tribunal de Justiça. Lote de terreno adquirido antes da vigência da Lei 9.278/96, que introduziu a presunção legal de esforço comum na aquisição do patrimônio dos conviventes durante a vivência conjunta, e do Código Civil de 2002. Caso em que cabia à autora comprovar que sua mãe contribuiu para a compra do bem com seu esforço, direto ou indireto, conforme disciplinado pelo ordenamento jurídico vigente na época da respectiva aquisição. Fato, todavia, que não restou firmemente comprovado. Exclusão do imóvel é medida que se impõe. Recurso provido. (TJSP; Apelação Cível 1016250-16.2018.8.26.0114; Relator (a): Coelho Mendes; Órgão Julgador: 10ª Câmara de Direito Privado; Foro de Campinas – 4ª Vara de Família e Sucessões; Data do Julgamento: 20/04/2021; Data de Registro: 22/04/2021)

Nulidade de negócio jurídico. Doação sem outorga uxória. União estável. Sentença de improcedência fundada na prescrição da pretensão. Decisão baseada no art. 177 do CC/16 e art. 2.028 do CC/2002, aplicável as doações inoficiosas. Incorreção. Demanda que se funda em direito de família (direito à meação) e não em direito sucessório (direito à herança) da autora na qualidade de companheira (art. 1.790, do CC), em concorrência com filhos do falecido. Improcedência mantida, por fundamento diverso. Doador convivente em união estável com a autora. Bens imóveis que, se comuns, exigiriam a manifestação da vontade da autora no ato de liberalidade. Situação que desafia a inexistência do negócio, por ausência de manifestação da vontade. Regime da comunhão parcial de bens que se aplica à união estável, à ausência de contrato escrito (art. 1.725 do Cód. Civil). Imóveis adquiridos e doados na constância da união, antes o advento da Lei nº 9.278/1996. Presunção de esforço comum inadmitida. Impossibilidade de retroação legal. Precedentes do STJ. Esforço comum não comprovado (art. 373, I do CPC/15). Imóveis considerados bens particulares. Fato jurídico que exigiria outorga uxória para doação aos descendentes (artigo 1.647, I, do CC/02, antigo artigo 235, I do CC/16). Plano da validade. Ato anulável. Pretensão prescrita. Art. 178, parágrafo 9º, I, “a” do CC/16. Prazo prescricional de 4 anos. Sentença reformada. Recurso desprovido. (TJSP; Apelação Cível 1034553-68.2014.8.26.0001; Relator (a): Rômolo Russo; Órgão Julgador: 7ª Câmara de Direito Privado; Foro Regional I – Santana – 2ª Vara Cível; Data do Julgamento: 03/06/2020; Data de Registro: 03/06/2020)”.

De fato, antes do art. 5º da Lei nº 9.278/96 [2] não havia um comando normativo próprio que regulamentasse o regime patrimonial decorrente da união estável. Assim, referida lei incide apenas sobre os bens adquiridos a partir de sua vigência, posto que inaplicável com relação ao patrimônio preexistente, diante do princípio geral da irretroatividade previsto no art. 6º da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro.

Sobre o tema, oportuno destacar a lição de GUSTAVO TEPEDINO e ANA CAROLINA BROCHADO TEIXEIRA:

“O constituinte deixou a tarefa de definir a união estável, bem como as condições necessárias para a sua caracterização, para o legislador ordinário. Assim, com o objetivo de regulamentar a união estável, após o advento da Constituição, foram editadas duas leis: a Lei 8.971, de 29 de dezembro de 1994, e a Lei 9.278, de 10 de maio de 1996, que precederam a incorporação da matéria pelo Código Civil de 2002.”

O texto constitucional se refere à união estável como nova entidade familiar e coube às leis infraconstitucionais o regramento específico sobre a matéria, apoiada na rica construção jurisprudencial produzida até então. Não obstante a Lei 8.971/1994 não tenha conceituado união estável, conferiu aos companheiros o direito aos alimentos desde o comprovado o prazo de mais de cinco anos de união ou a existência de prole e estabeleceu alguns direitos sucessórios, dispondo sobre o usufruto vidual dos conviventes e a meação, em caso de morte de um deles, desde que comprovado o esforço comum na aquisição do patrimônio.

Aproximadamente 1 ano e meio depois da entrada em vigor da referida lei, foi promulgada a Lei 9.278/1996, que tratou da união estável de forma mais técnica e complementar ao que dispunha a lei anterior. Estabeleceu os pressupostos para a caracterização da união estável em seu art. 1º, segundo o qual “é reconhecida como entidade familiar, a convivência duradoura, pública e contínua, de um homem e uma mulher, estabelecida com o objetivo de constituição de família”. Verifica-se que, já em 1996, o legislador exigiu a presença dos mesmos requisitos constantes do atual art. 1.723 do Código Civil.”  [3]

“Discussão relevante refere-se ao direito intertemporal, a fim de se verificar a normativa aplicável aos longos relacionamentos estáveis, submetidos a diversas disciplinas normativas. Da ausência de normas expressas e da prevalência da jurisprudência, houve a positivação do condomínio previsto pelo art. 5º da Lei 9.278/1996 e, posteriormente, a presunção absoluta para partilha de bens pela comunhão parcial de bens, determinada pelo art. 1.725 do Código Civil. É necessário, então, delimitar a aplicação de cada norma durante seu tempo de vigência, tendo em vista relacionamentos que perduram na constância de legislações diversas respeitando-se o comando do art. 6º da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro e, assim, verificar a data de aquisição de cada bem, a fim de se invocar a norma então vigente.

A lei nova aplica-se aos fatos pendentes, ou seja, às uniões estáveis em curso; todavia, seus comandos não serão aplicados indistintamente em relação a todos os bens adquiridos, especialmente, aqueles obtidos antes de sua vigência, sob pena de infração ao direito adquirido e ao ato jurídico perfeito. Além disso, não é possível que direito material de cunho patrimonial tenha eficácia retroativa, sob pena de expropriar o patrimônio adquirido sob a vigência de normas diversas, o que afronta a segurança jurídica que se espera minimamente do direito patrimonial.

Nessa direção, decidiu o STJ, ao fundamento de que a Lei 9.278/1996 não tem comando expresso que determine sua retroatividade, razão pela qual “a presunção legal de esforço comum na aquisição do patrimônio dos conviventes foi introduzida pela Lei 9.278/1996, devendo os bens amealhados no período anterior a sua vigência, portanto, serem divididos proporcionalmente ao esforço comprovado, direto ou indireto, de cada convivente, conforme disciplinado pelo ordenamento jurídico vigente quando da respectiva aquisição (Súmula 380/STF)”. E arremata: “Os bens adquiridos anteriormente à Lei 9.278/1996 têm a propriedade e, consequentemente, a partilha ao cabo da união disciplinada pelo ordenamento jurídico vigente quando respectiva aquisição, que ocorre no momento em que se aperfeiçoam os requisitos legais para tanto e, por conseguinte, sua titularidade não pode ser alterada por lei posterior em prejuízo ao direito adquirido e ao ato jurídico perfeito (CF, art. 5º, XXXVI e Lei de Introdução ao Código Civil, art. 6º)”. [4]

Na mesma esteira a doutrina de FRANCISCO JOSÉ CAHALI [5]:

“Daí por que se ter na Lei n. 9.278/96 a pioneira previsão legislativa de efeitos patrimoniais da união estável, introduzindo, enquanto fonte normativa, o regime jurídico próprio dessa relação.

Como lei nova, sua incidência segue o princípio geral de irretroatividade previsto no art. 6º da Lei de Introdução ao Código Civil, admitida a aplicação imediata à situação jurídica em curso.

Esse panorama, em superficial análise, poderia levar a crer que a lei nova incide diretamente nas uniões estáveis em curso, fazendo prevalecer o comando contido na norma a todos os efeitos jurídicos da união.

Entretanto, a amplitude na produção de efeitos encontra limita na disposição maior, contida no art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal, segundo o qual “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”.

Compatibilizando essas duas regras, temos a imediata aplicação da novel legislação à situação em curso, mas sem atingir os efeitos da união estável já produzidos e os atos jurídicos já aperfeiçoados.

[…] a titularidade dos bens se consuma no momento da respectiva aquisição, tornando-se um ato jurídico perfeito, com a realidade jurídica então existente, além de outorgar ao titular o direito adquirido, tornando o negócio jurídico imune à nova legislação.”.

Por tais razões, não merece reparo a sentença quando reconheceu a comunicabilidade apenas quanto às prestações do imóvel em questão que foram quitadas no curso da união estável a partir do ano de 1996.

No tocante à Escritura de Doação, a sentença anuloua sob o fundamento de possuir declaração falsa, porque a ré e o falecido “declararam expressamente, através de escritura pública, que conviviam em união estável, declarando-se aquela companheira do falecido em sua certidão de óbito de 14 de agosto de 2017”“Não obstante, na Escritura de Doação, declarou-se como “solteira” (fls. 220), informação inverídica e hábil a macular a validade do negócio jurídico perpetrado”.

É certo que sob o aspecto formal, o ordenamento jurídico brasileiro não prevê expressamente a união estável como estado civil, o que é motivo de crítica de alguns doutrinadores, consoante voto da lavra da Ministra NANCY ANDRIGHI mencionado no artigo “STJ publica decisão sobre informações de União Estável em certidão de óbito”publicado pelo Instituto Brasileiro de Direito de Família IBDFAM [6].

Ocorre que, no caso dos autos, a união estável foi reconhecida expressamente pela ré e pelo falecido S., por meio de Escritura Pública de União Estável lavrada em 06/11/2012 no 5º Tabelionato de Notas de Olinda/PE, ocasião em que declararam que viviam em união estável, como se casados fossem, há 35 anos (ou seja, desde o ano de 1977), em colaboração econômica para o sustento mútuo, todo esse tempo (fls. 20/22).

Por sua vez, a doação do imóvel feita pela ré E. à filha I., também ré nos presentes autos, foi realizada no dia 09/09/2015, mediante Escritura de Doação com Reserva de Usufruto, lavrada pelo 7º Tabelião de Notas de São Paulo (fls. 420/423).

Ademais, in casu, a doação só era eficaz entre a doadora e a donatária, uma vez que a Escritura de Doação não foi levada a registro no respectivo Cartório de Registro de Imóveis, medida indispensável para conferir publicidade ao ato jurídico e produzir efeitos erga omnes.

Quando S. faleceu, em 14/08/2017, a ré E., que foi a declarante do óbito, fez questão de declarar que era companheira do de cujus, informando com detalhes acerca da existência da Escritura de União Estável, conforme se verifica das “Observações/Averbações” da certidão de óbito (fls. 28).

Na ocasião da lavratura da Escritura de Doação, entretanto, a corré E. declarou ser “solteira”sem sequer mencionar a existência da Escritura Pública de União Estável, de modo que a doação foi realizada sem a anuência do falecido, que estava se recuperando de um AVC ocorrido há 47 dias, conforme afirmado pelas próprias corrés.

A informação inverídica acaba por macular a validade do negócio jurídico perpetrado, ensejando sua anulação.

Ante o exposto, meu voto nega provimento ao recurso.

Pedro de Alcântara da Silva Leme Filho

Relator

Notas:

[1] O Colendo Superior Tribunal de Justiça tem prestigiado este entendimento quando predominantemente reconhece “a viabilidade de o órgão julgador adotar ou ratificar o juízo de valor firmado na sentença, inclusive transcrevendo-a no acórdão, sem que tal medida encerre omissão ou ausência de fundamentação no decisum” (REsp. nº 662.272-RS, 2ª Turma, Rel. Min. João Otávio de Noronha, j. de 4.9.2007; REsp nº 641.963-ES, 2ª Turma, Rel. Min. Castro Meira, j. de 21.11.2005; REsp nº 592.092-AL, 2ª Turma, Rel. Min. Eliana Calmon, j. 17.12.2004 e REsp nº 265.534 DF, 4ª Turma, Rel. Min. Fernando Gonçalves, j. de 1.12.2003).

[2] Art. 5° Os bens móveis e imóveis adquiridos por um ou por ambos os conviventes, na constância da união estável e a título oneroso, são considerados fruto do trabalho e da colaboração comum, passando a pertencer a ambos, em condomínio e em partes iguais, salvo estipulação contrária em contrato escrito.

§ 1° Cessa a presunção do caput deste artigo se a aquisição patrimonial ocorrer com o produto de bens adquiridos anteriormente ao início da união.

§ 2° A administração do patrimônio comum dos conviventes compete a ambos, salvo estipulação contrária em contrato escrito.

[3] Fundamentos do Direito Civil: Direito de Família, vol. 6/Ana Carolina Brochado Teixeira; organização Gustavo Tepedino, Rio de Janeiro: Forense, 2020, p.176.

[4] Op. cit, p.195/196.

[5] CAHALI, Francisco José. Contrato de convivência na união estável. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 154-155.

[6] Disponível em: <https://ibdfam.org.br/noticias/6452/STJ+publica+decis%C3%A3o+sobre+informa%C3%A7%C3%B5es+de+Uni%C3%A3o+Est%C3%A1vel+em+certid%C3%A3o+de+%C3%B3bito> Acesso em: 25 fev. 2021. – – /

Dados do processo:

TJSP – Apelação Cível nº 1125253-45.2018.8.26.0100 – São Paulo – 8ª Câmara de Direito Privado – Rel. Des. Pedro de Alcântara da Silva Leme Filho – DJ 04.03.2022

Fonte: INR-Publicações

Publicação: Portal do RI (Registro de Imóveis) | O Portal das informações notariais, registrais e imobiliárias.

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