1VRP/SP: Registro de Imóveis. Retificação do estado civil no registro (de viúva para casada na época da lavratura da escritura pública), bem como de que se trata de bem particular. Desnecessidade de retificação e ratificação da escritura pública. Possibilidade de requerimento diretamente ao oficial do RI, com manifestação do ex-cônjuge.

Processo 1003322-24.2022.8.26.0007

Pedido de Providências – Registro de Imóveis – Robson Gonçalves Barão – – Welida Pereira Barão – Diante do exposto, JULGO PROCEDENTE o pedido de providências para determinar a retificação do Registro n.01 da matrícula n.64.309 do 7º RI, de modo a constar que, por ocasião da lavratura da escritura de venda e compra, a adquirente Madalena Pereira da Costa Nunes não era solteira, mas casada com Joares da Silva Nunes pelo regime da comunhão parcial de bens, bem como para autorizar a averbação, na sequência, de seu divórcio (fls. 49/50) e da condição de bem particular, que não se comunica com o patrimônio de ex-cônjuge, Joares da Silva Nunes. Deste procedimento, não decorrem custas, despesas processuais ou honorários advocatícios. Oportunamente, ao arquivo com as cautelas de praxe. P.R.I.C. – ADV: FABIO BARÃO DA SILVA (OAB 249992/SP).

SENTENÇA

Processo Digital nº: 1003322-24.2022.8.26.0007

Classe – Assunto Pedido de Providências – Registro de Imóveis

Requerente: Robson Gonçalves Barão e outro

Requerido: 7º Oficial de Registro de Imóveis da Capital

Juiz(a) de Direito: Dr(a). Luciana Carone Nucci Eugênio Mahuad

Vistos.

Trata-se de pedido de providências formulado por Robson Gonçalves Barão e Welida Pereira Barão em face do Oficial do 7º Registro de Imóveis da Capital, visando retificação de registro da matrícula n.64.309 daquela serventia, para corrigir o estado civil da atual proprietária, que está qualificada como viúva mesmo tendo adquirido o imóvel enquanto oficialmente casada. Pedem, ainda, a averbação do divórcio da proprietária, que voltou a usar seu nome de solteira, com indicação de que o imóvel é bem particular, pois adquirido após a separação de fato, sem comunicação ao patrimônio conjugal.

Documentos vieram às fls.10/51.

O feito foi redistribuído para esta Vara e recebido como pedido de providências (fls.52/53 e 56).

Tendo em vista o decurso do trintídio legal da última prenotação, determinou-se a reapresentação do requerimento à serventia extrajudicial (fl.56).

Com o atendimento, o Oficial se manifestou às fls.64/67, alegando que a retificação do registro depende da apresentação de escritura de rerratificação, com o comparecimento de todas as partes contratantes, uma vez que o erro está no título apresentado a registro, o qual envolve negócio jurídico bilateral; que não se trata de erro evidente, de fácil constatação, notadamente porque implicará mudança da titularidade do imóvel, com consequente risco a terceiros; que há possibilidade de averbação do divórcio diante da certidão apresentada à fl.49, mas sem registro da exclusividade do domínio, vez que pendente a partilha do bem; que a separação de fato do casal não caracteriza hipótese de término da sociedade conjugal (artigo 1.571 do Código Civil). Nesses termos, ratificou as exigências formuladas nas notas devolutivas de fls.20/29.

O Ministério Público opinou pela procedência parcial, concordando com a retificação do estado civil da proprietária e com a averbação de seu divórcio, mas entendeu não ser possível a caracterização do imóvel como bem particular por não ser automática a incomunicabilidade e por faltar anuência expressa do cônjuge prejudicado (fls.71/73).

É o relatório.

Fundamento e decido.

No mérito, o pedido de providências deve ser acolhido.

Vejamos os motivos.

O artigo 213, I, “g”, da Lei de Registros Públicos, autoriza que o Oficial retifique registro ou averbação a requerimento do interessado nos casos de “inserção ou modificação dos dados de qualificação pessoal das partes, comprovada por documentos oficiais, ou mediante despacho judicial quando houver necessidade de produção de outras provas”.

De fato, no caso concreto, o registro e o título que deu suporte a ele são perfeitamente harmônicos e congruentes.

Contudo, ambos trazem informação equivocada, prontamente aferível por documento oficial, a qual deve ser corrigida, sobretudo em proteção do interesse público e da segurança jurídica dos registros.

Note-se que não se trata de mero elemento volitivo inserido no título por livre manifestação das partes.

O estado civil dos contratantes é dado objetivo essencial ao aperfeiçoamento da especialidade subjetiva por indicar situação jurídica relevante, que não se altera pela simples indicação equivocada no título.

O único efeito da indicação equivocada é conduzir a erro eventual interessado no registro.

Por esse motivo, a lei autoriza retificação até mesmo de ofício pelo Oficial, bastando comprovação do equívoco por documentos oficiais e isso independentemente da participação dos contratantes envolvidos, que deverão se socorrer da via judicial adequada caso julguem necessário.

Nesse sentido decidiu a E. Corregedoria Geral da Justiça de São Paulo no Recurso Administrativo n.1053839-79.2021.8.26.0100, com a seguinte ementa (destaques nossos):

“REGISTRO DE IMÓVEIS – Retificação – Recurso administrativo – Título e registro stricto sensu que trazem erro quanto ao estado civil dos adquirentes – Compradores que eram separados judicialmente, mas que constam como casados no regime da comunhão universal de bens – Certidão do registro civil que demonstra o verdadeiro estado civil – Desnecessidade de prévia retificação do título, pois a prova do estado civil se faz por certidão do ofício de registro civil das pessoas naturais – Título que, por outro lado, traz os dois cônjuges como compradores – Impossibilidade de aferir a real intenção de ambos, na esfera administrativa, contra a letra do negócio celebrado – Retificação que não pode ser deferida nessa parte – Parecer pelo parcial provimento do recurso, deferindo-se a retificação do estado civil, com fundamento na Lei nº 6.015/1973, arts. 212, caput, e 213, I, g” (CGJSP – Recurso Administrativo: 1053839-79.2021.8.26.0100; Localidade: São Paulo; Data de Julgamento: 01/10/2021; Data DJ: 08/10/2021; Des. Ricardo Mair Anafe)

No mesmo sentido, Luiz Guilherme Loureiro observa:

“Em virtude do princípio da legitimidade ou da presunção de veracidade, o Registro deve refletir a verdade não só no que se refere ao titular do direito registrado, mas também quanto à natureza e ao conteúdo deste direito. Assim, qualquer inexatidão do assento deve ser retificada a fim de que reflita perfeitamente a realidade” (Registros Públicos – Teoria e Prática – 2ª ed. – Editora Método).

No caso concreto, o Registro n.01 da matrícula n.64.309, relativo à escritura lavrada em 26/02/1993, identifica a adquirente Madalena Pereira da Costa Nunes como viúva (fls.18/19).

Entretanto, as certidões de casamento copiadas às fls.47/50 comprovam que Madalena se casou com Joares da Silva Nunes em 17/01/1981 e permaneceu nesse estado até 11/03/1996, quando decretado o divórcio judicial do casal.

De rigor, portanto, a retificação do registro mencionado para que retrate o real estado civil da adquirente, ora proprietária, com averbação posterior do divórcio.

Para que a matrícula reflita perfeitamente a realidade, é importante averbar, ainda, que o imóvel foi adquirido com capital exclusivo de Madalena, circunstância esta que afasta a comunicação e leva à hipótese de bem particular.

A justificativa apresentada pela parte requerente para a declaração equivocada da condição de viúva é que Madalena estava separada de fato de seu marido e, posteriormente, passou a viver em união estável até que houve o falecimento de seu companheiro, o que antecedeu a lavratura do título aquisitivo, causando confusão.

Nota-se que, na petição inicial da ação de divórcio que promoveu, o excônjuge, Joares da Silva. confirmou a separação de fato do casal e o desfazimento do projeto familiar poucos meses após o casamento, ainda no ano de 1981, assumindo ele mesmo outra relação afetiva a partir de 1985, sendo que não havia bens a partilhar (fls.43/45). Madalena, permaneceu revel no feito em questão (fls. 36/42).

Assim, considerando a manifestação de ambos os cônjuges, que têm liberdade para escolher seu regime de bens, podendo, inclusive, alterar as regras ao longo do matrimônio, não resta dúvida de que o imóvel em tela, adquirido em 1993, é fruto de capital exclusivamente pertencente a Madalena, o que afasta a comunicação.

Interpretando de modo menos literal o artigo 1659, inciso II, do Código Civil, e primando pelas exegeses teleológica e sistemática, concluímos que o afastamento da comunicação mediante manifestação do cônjuge afetado não ofende a legislação aplicável ao regime de bens.

É nesse sentido o Parecer n.389/11-E da lavra do MM. Juiz Dr. Roberto Maia Filho, aprovado pelo então Corregedor Geral da Justiça, Dr. Maurício Vidigal, no julgamento do Processo CGJ n.95456/2011, com a seguinte ementa (destaque nosso):

“REGISTRO DE IMÓVEIS – Pedido de retificação do registro no qual constou tratar-se de aquisição de imóvel comum ao casal, dado o regime da comunhão parcial – Inobservância pelo registrador da expressa e taxativa declaração dos cônjuges, constante do título, de que se tratava de bem adquirido com capital exclusivo de um deles – Circunstância que afasta a comunicação e leva à hipótese de bem particular – Registro que não pode se divorciar da manifestação da vontade do casal aposta no título – Não caracterizada ofensa às regras legais para referido regime de bens do casamento – Dado provimento ao recurso”.

Havendo consenso entre o casal, é prescindível a via jurisdicional.

Na espécie, portanto, diante da manifestação do ex-cônjuge confirmando a inexistência de bens a partilhar, ao lado da aquisição do imóvel exclusivamente em nome de Madalena após a separação de fato do casal (e ainda que ela estivesse oficialmente casada sob o regime da comunhão parcial de bens), deve ser acolhido o pedido pela averbação indicativa de que o imóvel é bem particular, não se comunicando com o patrimônio do ex-cônjuge, a fim de refletir perfeitamente a realidade jurídica do domínio.

Diante do exposto, JULGO PROCEDENTE o pedido de providências para determinar a retificação do Registro n.01 da matrícula n.64.309 do 7º RI, de modo a constar que, por ocasião da lavratura da escritura de venda e compra, a adquirente Madalena Pereira da Costa Nunes não era solteira, mas casada com Joares da Silva Nunes pelo regime da comunhão parcial de bens, bem como para autorizar a averbação, na sequência, de seu divórcio (fls. 49/50) e da condição de bem particular, que não se comunica com o patrimônio de ex-cônjuge, Joares da Silva Nunes.

Deste procedimento, não decorrem custas, despesas processuais ou honorários advocatícios.

Oportunamente, ao arquivo com as cautelas de praxe.

P.R.I.C.

São Paulo, 28 de abril de 2022.

Luciana Carone Nucci Eugênio Mahuad

Juiz de Direito (DJe de 02.05.2022 – SP)

Fonte: Tribunal de Justiça de São Paulo

Publicação: Portal do RI (Registro de Imóveis) | O Portal das informações notariais, registrais e imobiliárias.

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STF: Recurso Especial – Direito civil – Ação declaratória de paternidade socioafetiva – Reconhecimento da multiparentalidade – Tratamento jurídico diferenciado – Pai biológico – Pai socioafetivo – Impossibilidade – Recurso provido – 1. O Supremo Tribunal Federal, ao reconhecer, em sede de repercussão geral, a possibilidade da multiparentalidade, fixou a seguinte tese: “a paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios” (RE 898060, Relator: Luiz Fux, Tribunal Pleno, julgado em 21/09/2016, Processo Eletrônico Repercussão Geral – Mérito DJe-187 Divulg 23-08-2017 Public 24-08-2017) – 2. A possibilidade de cumulação da paternidade socioafetiva com a biológica contempla especialmente o princípio constitucional da igualdade dos filhos (art. 227, § 6º, da CF). Isso porque conferir “status” diferenciado entre o genitor biológico e o socioafetivo é, por consequência, conceber um tratamento desigual entre os filhos – 3. No caso dos autos, a instância de origem, apesar de reconhecer a multiparentalidade, em razão da ligação afetiva entre enteada e padrasto, determinou que, na certidão de nascimento, constasse o termo “pai socioafetivo”, e afastou a possibilidade de efeitos patrimoniais e sucessórios – 3.1. Ao assim decidir, a Corte estadual conferiu à recorrente uma posição filial inferior em relação aos demais descendentes do “genitor socioafetivo”, violando o disposto nos arts. 1.596 do CC/2002 e 20 da Lei n. 8.069/1990 – 4. Recurso especial provido para reconhecer a equivalência de tratamento e dos efeitos jurídicos entre as paternidades biológica e socioafetiva na hipótese de multiparentalidade.

RECURSO ESPECIAL Nº 1.487.596 – MG (2014/0263479-6)

RELATOR : MINISTRO ANTONIO CARLOS FERREIRA

RECORRENTE : V DA S V

RECORRENTE : L G

ADVOGADOS : ANA CAROLINA BROCHADO TEIXEIRA – MG077771

ANNA CRISTINA DE CARVALHO RETTORE – MG140441

ALEXANDRE MIRANDA OLIVEIRA – MG076606N

EMENTA

RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL. AÇÃO DECLARATÓRIA DE PATERNIDADE SOCIOAFETIVA. RECONHECIMENTO DA MULTIPARENTALIDADE. TRATAMENTO JURÍDICO DIFERENCIADO. PAI BIOLÓGICO. PAI SOCIOAFETIVO. IMPOSSIBILIDADE. RECURSO PROVIDO.

1. O Supremo Tribunal Federal, ao reconhecer, em sede de repercussão geral, a possibilidade da multiparentalidade, fixou a seguinte tese: “a paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios” (RE 898060, Relator: LUIZ FUX, Tribunal Pleno, julgado em 21/09/2016, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL – MÉRITO DJe-187 DIVULG 23-08-2017 PUBLIC 24-08-2017).

2. A possibilidade de cumulação da paternidade socioafetiva com a biológica contempla especialmente o princípio constitucional da igualdade dos filhos (art. 227, § 6º, da CF). Isso porque conferir “status” diferenciado entre o genitor biológico e o socioafetivo é, por consequência, conceber um tratamento desigual entre os filhos.

3. No caso dos autos, a instância de origem, apesar de reconhecer a multiparentalidade, em razão da ligação afetiva entre enteada e padrasto, determinou que, na certidão de nascimento, constasse o termo “pai socioafetivo”, e afastou a possibilidade de efeitos patrimoniais e sucessórios.

3.1. Ao assim decidir, a Corte estadual conferiu à recorrente uma posição filial inferior em relação aos demais descendentes do “genitor socioafetivo”, violando o disposto nos arts. 1.596 do CC/2002 e 20 da Lei n. 8.069/1990.

4. Recurso especial provido para reconhecer a equivalência de tratamento e dos efeitos jurídicos entre as paternidades biológica e socioafetiva na hipótese de multiparentalidade.

ACÓRDÃO – Decisão selecionada e originalmente divulgada pelo INR –

A Quarta Turma, por unanimidade, deu provimento ao recurso especial, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Luis Felipe Salomão (Presidente), Raul Araújo e Marco Buzzi votaram com o Sr. Ministro Relator.

Ausente, justificadamente, a Sra. Ministra Maria Isabel Gallotti.

Brasília-DF, 28 de setembro de 2021 (Data do Julgamento)

Ministro ANTONIO CARLOS FERREIRA

Relator

RELATÓRIO

O EXMO. SR. MINISTRO ANTONIO CARLOS FERREIRA (Relator): Trata-se de recurso especial fundamentado no art. 105, III, “a” e “c”, da CF, interposto contra acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, assim ementado (e-STJ fl. 198):

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DECLARATÓRIA DE PATERNIDADE SOCIOAFETIVA. VÍNCULO AFETIVO COMPROVADO. INCLUSÃO DA PATERNIDADE SOCIOAFETIVA NO ASSENTO CIVIL. CONCESSÃO DE EFEITOS JURÍDICOS. IMPOSSIBILIDADE. AUSÊNCIA DE PREVISÃO LEGAL. ACRÉSCIMO DO PATRONÍMICO DO PAI AFETIVO.POSSIBILIDADE.

Defere-se a averbação do nome do pai socioafetivo no registro civil de nascimento da autora quando demonstrada a existência do vínculo afetivo paterno-filial entre enteada e padrasto, mas sem a concessão de qualquer efeito jurídico patrimonial, não previsto pelo ordenamento jurídico. O nome de família do padrasto também poderá ser averbado no registro civil de nascimento da autora, nos termos do art. 57, § 8° da Lei de Registros Públicos, ou seja, mediante expressa concordância deste e sem prejuízo dos apelidos de família da enteada. Recurso conhecido e parcialmente provido.

Os embargos de declaração foram rejeitados (e-STJ fls. 220/223).

No recurso especial (e-STJ fls. 228/243), os recorrentes alegam, além de dissídio jurisprudencial, violação dos seguintes dispositivos legais:

(i) art. 535, I e II, do CPC/1973, tendo em vista a existência de contradição no acórdão recorrido, ao determinar “a inclusão do nome do Recorrente L. como pai na certidão de nascimento da Recorrente V. – de modo que ela teria 2 (dois) pais: o biológico, o socioafetivo além da mãe – contudo essa segunda paternidade não geraria efeitos jurídicos patrimoniais, tão somente existenciais” (e-STJ fl. 230), e

(ii) arts. 20 da Lei n. 8.069/1990 e 1.596, 1.694 e 1.829, I, do CC/2002, sob o argumento de que “o acórdão recorrido declarou a paternidade socioafetiva entre os autores, entretanto negou efeitos jurídicos a esta declarada paternidade […], na medida em que determinou que, ao lado da inscrição do pai socioafetivo no registro da primeira autora, deveria constar o termo ‘pai socioafetivo'” (e-STJ fl. 233). Afirmam que, “reconhecida a multiparentalidade, não há quaisquer restrições em termos de efeitos a serem gerados entre vinculação socioafetiva e biológica” (e-STJ fl. 236). Alegam a desnecessidade de mudança legislativa especificamente para disciplinar os efeitos gerados pelo reconhecimento da “vinculação socioafetiva e biológica” (e-STJ fl. 236).

Foram apresentados julgados do TJSP para defender a tese de que, “reconhecida a multiparentalidade, não há quaisquer restrições em termos de efeitos a serem gerados entre vinculação socioafetiva e biológica” (e-STJ fl. 236).

Buscam, em suma (e-STJ fl. 243):

a) considerando prequestionados todos os temas, requer seja reformado o v. acórdão recorrido pela negativa de vigência aos arts. 1.596, 1.694, 1.829, I, todos do Código Civil de 2002, bem como ao art. 20 do Estatuto da Criança e do Adolescente ou por divergência jurisprudencial aos artigos supra, como demonstrado por meio do dissídio apontado (já juntado aos autos às fls. 107-111) que trazem a correta e literal interpretação dos mencionados dispositivos para que, assim, seja aplicada a mais absoluta igualdade constitucional, seja para a produção de efeitos da paternidade socioafetiva, seja para não constar a discriminação de qual pai é o socioafetivo e qual é o biológico no registro de nascimento da Recorrente Vanessa;

b) ad argumentandum tantum, caso entendam não terem sido prequestionados os dispositivos legais apontados, impende seja reconhecida a violação ao art. 535, I e do CPC, para que, após cassados os v. acórdãos recorridos, seja determinado o retorno dos autos à instância a quo para novo julgamento dos embargos de declaração.

Por se tratar de jurisdição voluntária, não foi aberta vista para contrarrazões (e-STJ fl. 267).

O parecer do Ministério Público Federal foi no sentido do parcial provimento do recurso especial (e-STJ fls. 331/340).

É o relatório.

VOTO

O EXMO. SR. MINISTRO ANTONIO CARLOS FERREIRA (Relator): Na origem, trata-se de ação consensual declaratória de multiparentalidade ajuizada pelos recorrentes, cujos fatos encontram-se descritos na petição inicial (e-STJ fls. 2/3):

1 – A primeira requerente é filha biológica de C. M. Da S. V. e J. H. V. J. (doc. 3 – Certidão de nascimento).

2 – O pai biológico da primeira autora faleceu em 14 de maio de 1994, quando ela tinha apenas 12 anos (doc. 4 – Certidão de Óbito do pai biológico). Dois anos depois, a mãe da primeira requerente passou a viver em união estável como segundo requerente, família constituída e estruturada que perdura até os dias de hoje, conforme declarações anexas.

3 – Desde então, o segundo requerente tomou para si o exercício da função paterna na vida da primeira requerente, que de sua enteada, com um parentesco jurídico e meramente formal, passou a ser filha – vez que esta passou a exercer o efetivo estado de filiação -, situação plenamente aceita, demandada e corroborada pela então menor. De órfã de seu pai biológico, a primeira requerente passou a ter um novo pai.

4 – Diante dessa realidade, as partes pretendem hoje tornar jurídica essa situação fática então existente – não para excluir a paternidade biológica, mas para somar a ela o vínculo construído durante 15 anos, ora denominado pela doutrina e jurisprudência como vínculo de socioafetividade.

O Juízo de primeira instância julgou extinto o processo sem resolução do mérito, por impossibilidade jurídica do pedido, nos termos do art. 267, VI, do CPC/1973, conforme os seguintes fundamentos (e-STJ fl. 117):

O fato é que, mesmo sendo evidente no caso concreto o vínculo afetivo entre os autores e necessária a evolução do direito de forma a acolher as mais diversas composições familiares, é, ainda, impossível admitir que se declare a multiparentalidade sem que esta tenha previsão e regramento legais.

Assim é que doutrina e jurisprudência mais recentes vem entendendo que a paternidade deve ser determinada por um ou outro critérios, seja biológico, afetivo ou por presunção, mas nunca cumulando-se vários sujeitos no exercício das funções paternas. A configuração da paternidade por um dos caminhos atualmente recepcionados pelo direito induz à extinção de vínculos paternos anteriores, porquanto só se pode ter um único pai.

Interposta apelação, o Tribunal de origem deu parcial provimento ao recurso, “a fim de julgar parcialmente procedente o pedido inicial e determinar o acréscimo do nome do pai sócio-afetivo L. L. G., em seguida do nome do pai biológico, bem como autoriz[ar] a inclusão do patronímico ‘G.’ ao nome da primeira apelante, sem prejuízo do apelido de família, de modo que passará a assinar V. da S. G. V” (e-STJ fl. 206).

A Corte estadual, no entanto, consignou que, no registro de nascimento, deveria constar a denominação “pai socioafetivo” ao lado do nome do padrasto (e-STJ fls. 204/205 – grifei):

E dada a publicidade da relação de fato consolidada entre os autores, marcada pelo afeto mútuo e envolvimento pessoal, inexiste óbice para que a primeira autora tenha em seu registro o nome do padrasto, indicado sob a denominação de “pai socioafetivo”, juntamente com o nome do pai biológico, como inclusive, indica a alteração legislativa operada na Lei de Registros Públicos, acima mencionada.

E ainda, o Tribunal a quo excluiu, do reconhecimento da multiparentalidade, os efeitos patrimoniais e sucessórios, nos seguintes termos (e-STJ fls. 205/206):

Por fim, sobre a pretensão autoral referente à concessão de efeitos patrimoniais e sucessórios decorrentes do possível reconhecimento de paternidade socioafetiva, importa ressaltar que a sucessão legítima, também designada ab intestato, é aquela derivada exclusivamente da lei, que se encarrega de indicar quais pessoais serão consideradas titulares do acervo hereditário.

E se o ordenamento jurídico pátrio não dispõe sobre a possibilidade de sucessão legítima na relação de filiação afetiva, o Poder Judiciário não pode atuar como legislador positivo e autorizar uma sucessão “legítima não prevista em lei, ainda que seja este o desejo das partes, sob pena de subversão do próprio instituto. Ainda que no âmbito das relações privadas seja permitido tudo aquilo que não tenha expresso impedimento em lei, a questão posta sob julgamento extrapola sobremaneira os limites pessoais, refletindo em questões de interesse público, que merece considerável cautela por parte do Julgador.

O reconhecimento da relevância do afeto e companheirismo nas relações familiares não legitima que o Magistrado – a quem é conferido um papel de co-participação no processo de criação do Direito -, mediante indevida ingerência na atividade legiferante, atribua direitos à parte sem que haja previsão legal.

Tal fato não impede que a vontade das partes – notadamente do sucessor – seja realizada, e exatamente por isso o ordenamento jurídico prevê a sucessão testamentária, que é aquela derivada de disposição de última vontade do sucessor, expressa em testamento elaborado de acordo com as condições estabelecidas por lei. Neste caso, o próprio autor da herança elege os seus sucessores, observando a legítima.

No presente recurso especial, buscam os recorrentes seja “aplicada a mais absoluta igualdade constitucional, seja para a produção de efeitos da paternidade socioafetiva, seja para não constar a discriminação de qual pai é o socioafetivo e qual é o biológico no registro de nascimento da Recorrente V.” (e-STJ fl. 243).

Registre-se, desde logo, que o Tribunal de origem afirmou existir uma relação fática de pai e filha entre os recorrentes, sendo comprovada a ligação de afeto que os une (e-STJ fl. 204):

O afeto que incontestavelmente une a primeira autora ao segundo autor, capaz de fazer com que queiram ser publicamente reconhecidos como “filha e pai”, constituindo uma família sólida em harmonia, ao lado da respectiva mãe e companheira, se encontra estampado nos presentes autos de processo. Não apenas na declaração prestada pela profissional que acompanhou o processo terapêutico da autora, mas fundamentalmente nas declarações de próprio punho das partes (fis.55/56), que externam a consciência e o exercício livre e eletivo da paternidade.

E ainda, consta no acórdão recorrido que os descendentes de L. L. G. concordaram expressamente com o reconhecimento da condição de V. da S. V. como filha (e-STJ fl. 205):

Neste contexto, importante salientar que os herdeiros do segundo autor concordam expressamente com o reconhecimento da condição de filha da primeira autora, estando assim registrado por cartas escritas de próprio punho por eles (fls. 58/61), sendo mais uma razão para o deferimento do pedido de inclusão do nome do pai socioafetivo no registro civil da autora, porquanto preenchidos todos os requisitos.

É possível aferir que, admitida a multiparentalidade, a controvérsia diz respeito apenas à possibilidade de tratamento jurídico diferenciado entre o pai biológico e o socioafetivo.

A questão da multiparentalidade foi decidida em repercussão geral pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE n. 898.060/SC, tendo sido reconhecida a possibilidade da filiação biológica concomitante à socioafetiva, por meio de tese assim firmada:

A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios.

Por pertinente, transcrevo a ementa do julgado:

Recurso Extraordinário. Repercussão Geral reconhecida. Direito Civil e Constitucional. Conflito entre paternidades socioafetiva e biológica. Paradigma do casamento. Superação pela Constituição de 1988. Eixo central do Direito de Família: deslocamento para o plano constitucional. Sobreprincípio da dignidade humana (art. 1º, III, da CRFB). Superação de óbices legais ao pleno desenvolvimento das famílias. Direito à busca da felicidade. Princípio constitucional implícito. Indivíduo como centro do ordenamento jurídico-político. Impossibilidade de redução das realidades familiares a modelos pré-concebidos. Atipicidade constitucional do conceito de entidades familiares. União estável (art. 226, § 3º, CRFB) e família monoparental (art. 226, § 4º, CRFB).Vedação à discriminação e hierarquização entre espécies de filiação (art. 227, § 6º, CRFB). Parentalidade presuntiva, biológica ou afetiva. Necessidade de tutela jurídica ampla. Multiplicidade de vínculos parentais. Reconhecimento concomitante. Possibilidade. Pluriparentalidade. Princípio da paternidade responsável (art. 226, § 7º, CRFB). Recurso a que se nega provimento. Fixação de tese para aplicação a casos semelhantes.

1. O prequestionamento revela-se autorizado quando as instâncias inferiores abordam a matéria jurídica invocada no Recurso Extraordinário na fundamentação do julgado recorrido, tanto mais que a Súmula n. 279 desta Egrégia Corte indica que o apelo extremo deve ser apreciado à luz das assertivas fáticas estabelecidas na origem.

2. A família, à luz dos preceitos constitucionais introduzidos pela Carta de 1988, apartou-se definitivamente da vetusta distinção entre filhos legítimos, legitimados e ilegítimos que informava o sistema do Código Civil de 1916, cujo paradigma em matéria de filiação, por adotar presunção baseada na centralidade do casamento, desconsiderava tanto o critério biológico quanto o afetivo.

3. A família, objeto do deslocamento do eixo central de seu regramento normativo para o plano constitucional, reclama a reformulação do tratamento jurídico dos vínculos parentais à luz do sobreprincípio da dignidade humana (art. 1º, III, da CRFB) e da busca da felicidade.

4. A dignidade humana compreende o ser humano como um ser intelectual e moral, capaz de determinar-se e desenvolver-se em liberdade, de modo que a eleição individual dos próprios objetivos de vida tem preferência absoluta em relação a eventuais formulações legais definidoras de modelos preconcebidos, destinados a resultados eleitos a priori pelo legislador. Jurisprudência do Tribunal Constitucional alemão (BVerfGE 45, 187).

5. A superação de óbices legais ao pleno desenvolvimento das famílias construídas pelas relações afetivas interpessoais dos próprios indivíduos é corolário do sobreprincípio da dignidade humana.

6. O direito à busca da felicidade, implícito ao art. 1º, III, da Constituição, ao tempo que eleva o indivíduo à centralidade do ordenamento jurídico-político, reconhece as suas capacidades de autodeterminação, autossuficiência e liberdade de escolha dos próprios objetivos, proibindo que o governo se imiscua nos meios eleitos pelos cidadãos para a persecução das vontades particulares. Precedentes da Suprema Corte dos Estados Unidos da América e deste Egrégio Supremo Tribunal Federal: RE 477.554-AgR, Rel. Min. Celso de Mello, DJe de 26/08/2011; ADPF 132, Rel. Min. Ayres Britto, DJe de 14/10/2011.

7. O indivíduo jamais pode ser reduzido a mero instrumento de consecução das vontades dos governantes, por isso que o direito à busca da felicidade protege o ser humano em face de tentativas do Estado de enquadrar a sua realidade familiar em modelos pré-concebidos pela lei.

8. A Constituição de 1988, em caráter meramente exemplificativo, reconhece como legítimos modelos de família independentes do casamento, como a união estável (art. 226, § 3º) e a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes, cognominada “família monoparental” (art. 226, § 4º), além de enfatizar que espécies de filiação dissociadas do matrimônio entre os pais merecem equivalente tutela diante da lei, sendo vedada discriminação e, portanto, qualquer tipo de hierarquia entre elas (art. 227, § 6º).

9. As uniões estáveis homoafetivas, consideradas pela jurisprudência desta Corte como entidade familiar, conduziram à imperiosidade da interpretação não-reducionista do conceito de família como instituição que também se forma por vias distintas do casamento civil (ADI nº. 4277, Relator(a): Min. AYRES BRITTO, Tribunal Pleno, julgado em 05/05/2011).

10. A compreensão jurídica cosmopolita das famílias exige a ampliação da tutela normativa a todas as formas pelas quais a parentalidade pode se manifestar, a saber: (i) pela presunção decorrente do casamento ou outras hipóteses legais, (ii) pela descendência biológica ou (iii) pela afetividade.

11. A evolução científica responsável pela popularização do exame de DNA conduziu ao reforço de importância do critério biológico, tanto para fins de filiação quanto para concretizar o direito fundamental à busca da identidade genética, como natural emanação do direito de personalidade de um ser.

12. A afetividade enquanto critério, por sua vez, gozava de aplicação por doutrina e jurisprudência desde o Código Civil de 1916 para evitar situações de extrema injustiça, reconhecendo-se a posse do estado de filho, e consequentemente o vínculo parental, em favor daquele utilizasse o nome da família (nominatio), fosse tratado como filho pelo pai (tractatio) e gozasse do reconhecimento da sua condição de descendente pela comunidade (reputatio).

13. A paternidade responsável, enunciada expressamente no art. 226, § 7º, da Constituição, na perspectiva da dignidade humana e da busca pela felicidade, impõe o acolhimento, no espectro legal, tanto dos vínculos de filiação construídos pela relação afetiva entre os envolvidos, quanto daqueles originados da ascendência biológica, sem que seja necessário decidir entre um ou outro vínculo quando o melhor interesse do descendente for o reconhecimento jurídico de ambos.

14. A pluriparentalidade, no Direito Comparado, pode ser exemplificada pelo conceito de “dupla paternidade” (dual paternity), construído pela Suprema Corte do Estado da Louisiana, EUA, desde a década de 1980 para atender, ao mesmo tempo, ao melhor interesse da criança e ao direito do genitor à declaração da paternidade. Doutrina.

15. Os arranjos familiares alheios à regulação estatal, por omissão, não podem restar ao desabrigo da proteção a situações de pluriparentalidade, por isso que merecem tutela jurídica concomitante, para todos os fins de direito, os vínculos parentais de origem afetiva e biológica, a fim de prover a mais completa e adequada tutela aos sujeitos envolvidos, ante os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III) e da paternidade responsável (art. 226, § 7º).

16. Recurso Extraordinário a que se nega provimento, fixando-se a seguinte tese jurídica para aplicação a casos semelhantes: “A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios”.

(RE 898060, Relator(a): LUIZ FUX, Tribunal Pleno, julgado em 21/09/2016, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL – MÉRITO DJe-187 DIVULG 23-08-2017 PUBLIC 24-08-2017 – grifei).

Do referido julgamento, pode-se extrair que a possibilidade de cumulação da paternidade socioafetiva com a biológica contempla especialmente o princípio constitucional da igualdade dos filhos (art. 227, § 6º, da CF), sendo expressamente vedado qualquer tipo de discriminação e, portanto, de hierarquia entre eles.

Assim, aceitar a concepção de multiparentalidade é entender que não é possível haver condições distintas entre o vínculo parental biológico e o afetivo. Isso porque criar status diferenciado entre o genitor biológico e o socioafetivo é, por consequência, conceber um tratamento desigual entre os filhos, o que viola o disposto nos arts. 1.596 do CC/2002 e 20 da Lei n. 8.069/1990, ambos com idêntico teor:

Os filhos, havidos ou não da relação de casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.

No caso dos autos, segundo o decidido pelo TJMG, haveria limitações no reconhecimento da filiação socioafetiva concomitante à genética, tendo em vista que, na certidão de nascimento da recorrente, deveria constar o termo “pai socioafetivo”, sem nenhum efeito patrimonial e sucessório. De forma que manter o entendimento da instância de origem seria o mesmo que conferir à recorrente V. da S. V. uma posição filial inferior em relação aos demais descendentes de L. L. G.

Não por outro motivo, a Terceira Turma, ao reconhecer a multiparentalidade no julgamento do REsp n. 1.704.972/CE, enfatizou a ausência de hierarquia entre as paternidades. Confira-se:

RECURSO ESPECIAL. DIREITO DE FAMÍLIA. SOCIOAFETIVIDADE. ART. 1.593 DO CÓDIGO CIVIL. PATERNIDADE. MULTIPARENTALIDADE. POSSIBILIDADE. SÚMULA Nº 7/STJ. INDIGNIDADE. AÇÃO AUTÔNOMA. ARTS. 1.814 E 1.816 DO CÓDIGO CIVIL DE 2002.

1. Recurso especial interposto contra acórdão publicado na vigência do Código de Processo Civil de 1973 (Enunciados Administrativos nºs 2 e 3/STJ).

2. A eficácia preclusiva da coisa julgada exige a tríplice identidade, a saber: mesmas partes, mesma causa de pedir e mesmo pedido, o que não é o caso dos autos.

3. Na hipótese, a primeira demanda não foi proposta pelo filho, mas por sua genitora, que buscava justamente anular o registro de filiação na ação declaratória que não debateu a socioafetividade buscada na presente demanda.

4. Não há falar em ilegitimidade das partes no caso dos autos, visto que o apontado erro material de grafia foi objeto de retificação.

5. À luz do art. 1.593 do Código Civil, as instâncias de origem assentaram a posse de estado de filho, que consiste no desfrute público e contínuo dessa condição, além do preenchimento dos requisitos de afeto, carinho e amor, essenciais à configuração da relação socioafetiva de paternidade ao longo da vida, elementos insindicáveis nesta instância especial ante o óbice da Súmula nº 7/STJ.

6. A paternidade socioafetiva realiza a própria dignidade da pessoa humana por permitir que um indivíduo tenha reconhecido seu histórico de vida e a condição social ostentada, valorizando, além dos aspectos formais, como a regular adoção, a verdade real dos fatos.

7. O Supremo Tribunal Federal, ao julgar o Recurso Extraordinário nº 898.060, com repercussão geral reconhecida, admitiu a coexistência entre as paternidades biológica e a socioafetiva, afastando qualquer interpretação apta a ensejar a hierarquização dos vínculos.

8. Aquele que atenta contra os princípios basilares de justiça e da moral, nas hipóteses taxativamente previstas em lei, fica impedido de receber determinado acervo patrimonial por herança.

9. A indignidade deve ser objeto de ação autônoma e seus efeitos se restringem aos aspectos pessoais, não atingindo os descendentes do herdeiro excluído (arts. 1.814 e 1.816 do Código Civil de 2002).

10. Recurso especial não provido.

(REsp 1704972/CE, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 09/10/2018, DJe 15/10/2018 – grifei).

Inclusive, a Corregedoria Nacional de Justiça, alinhada ao precedente vinculante da Suprema Corte, editou o Provimento n. 63, de 14 de novembro de 2017 (DJe de 17 de novembro de 2017), instituindo modelos únicos de certidão de nascimento, casamento e óbito, a serem adotados pelos ofícios de registro civil das pessoas naturais, e dispondo sobre o reconhecimento voluntário e a averbação da paternidade e da maternidade socioafetivas, sem realizar nenhuma distinção de nomeclatura quanto à origem da paternidade ou da maternidade na certidão de nascimento – se biológica ou socioafetiva.

Conclui-se, dessa forma, que a Corte estadual, ao conferir tratamento diferenciado entre a paternidade biológica e a socioafetiva, violou o disposto nos arts. 1.596 do CC/2002 e 20 da Lei n. 8.069/1990.

Prejudicada a análise de afronta ao art. 535 do CPC/1973.

Ante o exposto, DOU PROVIMENTO ao recurso especial para reconhecer a equivalência de tratamento, inclusive na certidão de nascimento, e dos efeitos jurídicos entre as paternidades biológica e socioafetiva na hipótese de multiparentalidade.

É como voto. – – /

Dados do processo:

STJ – REsp nº 1.487.596 – Minas Gerais – 4ª Turma – Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira – DJ 01.10.2021

Fonte: INR – Publicações

Publicação: Portal do RI (Registro de Imóveis) | O Portal das informações notariais, registrais e imobiliárias.

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TJSP: Apelação – Ação anulatória de negócio jurídico (doação) – Sentença de procedência – Inconformismo das rés – Descabimento – Imóvel adquirido em 1988, na constância da união estável (reconhecida por escritura pública) havida entre a doadora e o falecido pai da donatária – Aquisição antes da vigência da Lei 9.278/96 que introduziu a presunção legal de esforço comum na aquisição do patrimônio dos conviventes durante a vivência conjunta – Incidência da Lei 9.278/96 apenas sobre os bens adquiridos a partir de sua vigência – Inaplicabilidade com relação ao patrimônio preexistente – Princípio geral da irretroatividade (art. 6º da LINDB) – Doação do imóvel com reserva de usufruto feita pela mãe à filha por meio de escritura pública em 2015, não levada a registro – Inexistência de ciência ou anuência do autor quanto à doação – Necessidade – Doadora que foi a declarante do óbito ocorrido em 2017, informando sua qualidade de companheira do de cujus, mas se qualificou como solteira na escritura pública de doação, sem informar acerca da escritura de reconhecimento de união estável – Validade do negócio jurídico maculada por informação inverídica – Sentença mantida (art. 252, do RITJSP) – Recurso desprovido.

ACÓRDÃO – Decisão selecionada e originalmente divulgada pelo INR –

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível nº 1125253-45.2018.8.26.0100, da Comarca de São Paulo, em que são apelantes EDNEIDE BARBOSA DA SILVA (ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA) e IRACEMA SILVA MEIRELES SUZANO (ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA), são apelados SEBASTIÃO MEIRELLES SUZANO (ESPÓLIO) e MARIA REGINA OLIVEIRA SUZANO (INVENTARIANTE).

ACORDAM, em sessão permanente e virtual da 8ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: Negaram provimento ao recurso. V. U., de conformidade com o voto do relator, que integra este acórdão.

O julgamento teve a participação dos Desembargadores SILVÉRIO DA SILVA (Presidente) E THEODURETO CAMARGO.

São Paulo, 26 de fevereiro de 2022.

PEDRO DE ALCÂNTARA DA SILVA LEME FILHO

Relator(a)

Assinatura Eletrônica

Apelação n°: 1125253-45.2018.8.26.0100

Apelante(s): Edneide Barbosa da Silva (Assistência Judiciária) e Iracema Silva Meireles Suzano (Assistência Judiciária)

Apelado(s): Espólio de Sebastião Meireles Suzano (por sua Inventariante Maria Regina Oliveira Suzano)

Comarca: São Paulo 6ª Vara Cível do Foro Central

1ª Instância: Proc. nº 1125253-45.2018.8.26.0100

Juiz: Lúcia Caninéo Campanhã

Voto nº 31838

EMENTA. Apelação. Ação anulatória de negócio jurídico (doação). Sentença de procedência. Inconformismo das rés. Descabimento. Imóvel adquirido em 1988, na constância da união estável (reconhecida por escritura pública) havida entre a doadora e o falecido pai da donatária. Aquisição antes da vigência da Lei 9.278/96 que introduziu a presunção legal de esforço comum na aquisição do patrimônio dos conviventes durante a vivência conjunta. Incidência da Lei 9.278/96 apenas sobre os bens adquiridos a partir de sua vigência. Inaplicabilidade com relação ao patrimônio preexistente. Princípio geral da irretroatividade (art. 6º da LINDB). Doação do imóvel com reserva de usufruto feita pela mãe à filha por meio de escritura pública em 2015, não levada a registro. Inexistência de ciência ou anuência do autor quanto à doação. Necessidade. Doadora que foi a declarante do óbito ocorrido em 2017, informando sua qualidade de companheira do de cujus, mas se qualificou como solteira na escritura pública de doação, sem informar acerca da escritura de reconhecimento de união estável. Validade do negócio jurídico maculada por informação inverídica. Sentença mantida (art. 252, do RITJSP). Recurso desprovido.

Apelação interposta contra a sentença de fls. 651/656, cujo relatório se adota, que julgou procedente a ação anulatória de negócio jurídico (doação) movida pelo Espólio de Sebastião Meireles Suzano, representado por sua Inventariante Maria Regina Oliveira Suzano, em face de Edneide Barbosa da Silva e Iracema Silva Meireles Suzano, confirmando a tutela deferida, para anular a Escritura de Doação com Reserva de Usufruto, lavrada em setembro de 2015, pela qual foi doado o imóvel objeto da matrícula 59.439 do 2º SRI pela ré Edneide em benefício da ré Iracema. Diante da sucumbência, condenou as rés ao pagamento das custas, despesas processuais, bem como honorários advocatícios, estes fixados em 10% do valor atribuído à causa.

Embargos de declaração opostos pelas rés (fls. 667/668), foram rejeitados (fls. 673/674).

As rés apelam, pelas razões apresentadas às fls. 687/690.

Recurso tempestivo, isento de preparo por serem as apelantes beneficiárias da justiça gratuita e respondido (fls. 695/707).

É o relatório.

Sustentam as apelantes que a união estável apenas foi consagrada no ordenamento jurídico pátrio em 1988 com a promulgação da Constituição Federal (art. 226) e que, à época da aquisição do imóvel pela corré E. em 1987 “Ela era solteira e adquiriu sozinha o bem”, “não havia união estável” entre ela e o falecido S., o qual “era casado com M. de O. M., de quem se separou judicialmente apenas em 1992 (certidão de casamento de fls. 577) e, em 1993 dela se desquitou, passando a residir com a Sra. E.”. Aduzem que “apesar de a união estável ser constitucionalmente reconhecida como entidade familiar, o art. 1.723, §1º, do Código Civil vedou a configuração da união estável se um dos conviventes for casado”, sendo o imóvel incomunicável com os bens do falecido S.. Dizem, ainda, que “segundo o art. 1.725 do Código Civil, na união estável, salvo contrato escrito entre os companheiros, aplica-se às relações patrimoniais, no que couber, o regime da comunhão parcial de bens” e, nesse contexto, o imóvel objeto da ação adquirido pela corré E., anteriormente à configuração da união com o falecido S., é incomunicável, a teor do art. 1.661 do Código Civil de 2002, de modo que a doação feita à filha I. em 2015 é válida (fls. 687/690).

Em que pese os argumentos das apelantes, o recurso não comporta provimento.

Como bem assinalado na sentença pelo d. Magistrado a quo, cujos fundamentos a seguir transcritos adoto como razões de decidir, nos termos do art. 252, do Regimento Interno deste E. Tribunal de Justiça [1] (com a substituição dos nomes das partes mencionados pelas suas iniciais, em obediência ao Provimento CSM nº 2.241/2015):

“Trata-se de pedido de anulação da escritura de doação de imóvel objeto da matrícula 59.439 do 2º SRI, negócio esse celebrado entre as requeridas supostamente em prejuízo ao espólio autor, o que já caracteriza o seu interesse de agir, por conta da união estável da doadora com o falecido.

Alega o requerente que o Sr. S. M. S. convivia em união estável com a requerida E. desde o ano de 1977, fato declarado por ambos em Escritura Pública lavrada em 06 de novembro de 2012.

Durante o relacionamento, adquirido o imóvel em questão, porém registrado apenas em nome da requerida Sra. E., que posteriormente o doou à filha comum do casal, ora ré I., sem a devida autorização do Sr. S.

Aduz que o instrumento de doação é viciado por omitir algumas informações e conter outras falsas, de modo que deve ser anulado o negócio.

As requeridas, por sua vez, sustentam que quando da aquisição do imóvel, em 1987, ainda não configurada união estável, quitado exclusivamente pela Sra. E., não havendo que se falar em qualquer irregularidade quanto à doação posteriormente realizada no ano de 2015.

Incontroverso que o Sr. S. e a ora ré Sra. E. mantiveram união estável por diversos anos, sendo a ré Sra. I. filha comum do casal.

Verifica-se, aliás, que inclusive lavrada Escritura Pública de Declaração, no ano de 2012, oportunidade em que o Sr. S. e a Sra. E. expressamente declararam que viviam em união estável, como se casados fossem, há 35 anos, ou seja, desde o ano de 1977, “em colaboração econômica para o sustento mútuo, todo esse tempo” (fls. 20/22).

Ocorre que embora o imóvel localizado na Rua Iperoig, nº 899, apto. 51, registrado sob a matrícula 59.439 do 2º SRI tenha sido adquirido durante o relacionamento do casal, tal fato ocorreu no ano de 1988 (R.2 fls. 25), enquanto a presunção legal de esforço comum na aquisição do patrimônio dos conviventes durante a vivência conjunta foi trazida pela Lei nº 9.278/96, que regulamenta a união estável como entidade familiar.

E no caso, deve-se ainda observar que consta como adquirente tão somente a ré E., que hipotecou o imóvel à Caixa Econômica Federal, comprometendo-se à quitação do financiamento em 300 prestações mensais(R.2 e R.3 fls. 25/26), cancelada a hipoteca em 19 de novembro de 2012 (Av-4, fls. 26).

No mais, o Sr. S. permaneceu casado com a Sra. M. de O. M. até o ano de 1992 (fls. 232/237).

Nesse contexto, e considerando que apenas no ano de 1994, com o advento da Lei nº 8.971/94, regulado o direito dos companheiros a alimentos e à sucessão, e em 1996 enfim regulamentada a união estável como entidade familiar, através da Lei nº 9.278/96, não se podendo presumir o esforço comum desde logo, deve-se reconhecer a comunicabilidade apenas quanto às prestações quitadas no curso da união estável a partir do ano de 1996.

Em casos análogos assim se decidiu:

Ação de reconhecimento e dissolução e união estável. Reconhecimento pos mortem. Reconhecimento parcial do pedido. Inconformismo quanto a meação de imóvel. Decisão que declarou a mãe da autora e o requerido viveram em união estável de 1978 até o falecimento dela em 2016, com direito à meação sobre o imóvel em 50% objeto da matrícula 66.518 do RI de Sumaré. Hipótese em que deve ser afastada a partilha do lote de terreno, tendo em vista que não restou comprovado o esforço comum para a aquisição do bem. Partilha de bens que deve observar o regime de bens e o ordenamento jurídico vigente ao tempo da aquisição. Precedentes do Superior Tribunal de Justiça. Lote de terreno adquirido antes da vigência da Lei 9.278/96, que introduziu a presunção legal de esforço comum na aquisição do patrimônio dos conviventes durante a vivência conjunta, e do Código Civil de 2002. Caso em que cabia à autora comprovar que sua mãe contribuiu para a compra do bem com seu esforço, direto ou indireto, conforme disciplinado pelo ordenamento jurídico vigente na época da respectiva aquisição. Fato, todavia, que não restou firmemente comprovado. Exclusão do imóvel é medida que se impõe. Recurso provido. (TJSP; Apelação Cível 1016250-16.2018.8.26.0114; Relator (a): Coelho Mendes; Órgão Julgador: 10ª Câmara de Direito Privado; Foro de Campinas – 4ª Vara de Família e Sucessões; Data do Julgamento: 20/04/2021; Data de Registro: 22/04/2021)

Nulidade de negócio jurídico. Doação sem outorga uxória. União estável. Sentença de improcedência fundada na prescrição da pretensão. Decisão baseada no art. 177 do CC/16 e art. 2.028 do CC/2002, aplicável as doações inoficiosas. Incorreção. Demanda que se funda em direito de família (direito à meação) e não em direito sucessório (direito à herança) da autora na qualidade de companheira (art. 1.790, do CC), em concorrência com filhos do falecido. Improcedência mantida, por fundamento diverso. Doador convivente em união estável com a autora. Bens imóveis que, se comuns, exigiriam a manifestação da vontade da autora no ato de liberalidade. Situação que desafia a inexistência do negócio, por ausência de manifestação da vontade. Regime da comunhão parcial de bens que se aplica à união estável, à ausência de contrato escrito (art. 1.725 do Cód. Civil). Imóveis adquiridos e doados na constância da união, antes o advento da Lei nº 9.278/1996. Presunção de esforço comum inadmitida. Impossibilidade de retroação legal. Precedentes do STJ. Esforço comum não comprovado (art. 373, I do CPC/15). Imóveis considerados bens particulares. Fato jurídico que exigiria outorga uxória para doação aos descendentes (artigo 1.647, I, do CC/02, antigo artigo 235, I do CC/16). Plano da validade. Ato anulável. Pretensão prescrita. Art. 178, parágrafo 9º, I, “a” do CC/16. Prazo prescricional de 4 anos. Sentença reformada. Recurso desprovido. (TJSP; Apelação Cível 1034553-68.2014.8.26.0001; Relator (a): Rômolo Russo; Órgão Julgador: 7ª Câmara de Direito Privado; Foro Regional I – Santana – 2ª Vara Cível; Data do Julgamento: 03/06/2020; Data de Registro: 03/06/2020)”.

De fato, antes do art. 5º da Lei nº 9.278/96 [2] não havia um comando normativo próprio que regulamentasse o regime patrimonial decorrente da união estável. Assim, referida lei incide apenas sobre os bens adquiridos a partir de sua vigência, posto que inaplicável com relação ao patrimônio preexistente, diante do princípio geral da irretroatividade previsto no art. 6º da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro.

Sobre o tema, oportuno destacar a lição de GUSTAVO TEPEDINO e ANA CAROLINA BROCHADO TEIXEIRA:

“O constituinte deixou a tarefa de definir a união estável, bem como as condições necessárias para a sua caracterização, para o legislador ordinário. Assim, com o objetivo de regulamentar a união estável, após o advento da Constituição, foram editadas duas leis: a Lei 8.971, de 29 de dezembro de 1994, e a Lei 9.278, de 10 de maio de 1996, que precederam a incorporação da matéria pelo Código Civil de 2002.”

O texto constitucional se refere à união estável como nova entidade familiar e coube às leis infraconstitucionais o regramento específico sobre a matéria, apoiada na rica construção jurisprudencial produzida até então. Não obstante a Lei 8.971/1994 não tenha conceituado união estável, conferiu aos companheiros o direito aos alimentos desde o comprovado o prazo de mais de cinco anos de união ou a existência de prole e estabeleceu alguns direitos sucessórios, dispondo sobre o usufruto vidual dos conviventes e a meação, em caso de morte de um deles, desde que comprovado o esforço comum na aquisição do patrimônio.

Aproximadamente 1 ano e meio depois da entrada em vigor da referida lei, foi promulgada a Lei 9.278/1996, que tratou da união estável de forma mais técnica e complementar ao que dispunha a lei anterior. Estabeleceu os pressupostos para a caracterização da união estável em seu art. 1º, segundo o qual “é reconhecida como entidade familiar, a convivência duradoura, pública e contínua, de um homem e uma mulher, estabelecida com o objetivo de constituição de família”. Verifica-se que, já em 1996, o legislador exigiu a presença dos mesmos requisitos constantes do atual art. 1.723 do Código Civil.”  [3]

“Discussão relevante refere-se ao direito intertemporal, a fim de se verificar a normativa aplicável aos longos relacionamentos estáveis, submetidos a diversas disciplinas normativas. Da ausência de normas expressas e da prevalência da jurisprudência, houve a positivação do condomínio previsto pelo art. 5º da Lei 9.278/1996 e, posteriormente, a presunção absoluta para partilha de bens pela comunhão parcial de bens, determinada pelo art. 1.725 do Código Civil. É necessário, então, delimitar a aplicação de cada norma durante seu tempo de vigência, tendo em vista relacionamentos que perduram na constância de legislações diversas respeitando-se o comando do art. 6º da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro e, assim, verificar a data de aquisição de cada bem, a fim de se invocar a norma então vigente.

A lei nova aplica-se aos fatos pendentes, ou seja, às uniões estáveis em curso; todavia, seus comandos não serão aplicados indistintamente em relação a todos os bens adquiridos, especialmente, aqueles obtidos antes de sua vigência, sob pena de infração ao direito adquirido e ao ato jurídico perfeito. Além disso, não é possível que direito material de cunho patrimonial tenha eficácia retroativa, sob pena de expropriar o patrimônio adquirido sob a vigência de normas diversas, o que afronta a segurança jurídica que se espera minimamente do direito patrimonial.

Nessa direção, decidiu o STJ, ao fundamento de que a Lei 9.278/1996 não tem comando expresso que determine sua retroatividade, razão pela qual “a presunção legal de esforço comum na aquisição do patrimônio dos conviventes foi introduzida pela Lei 9.278/1996, devendo os bens amealhados no período anterior a sua vigência, portanto, serem divididos proporcionalmente ao esforço comprovado, direto ou indireto, de cada convivente, conforme disciplinado pelo ordenamento jurídico vigente quando da respectiva aquisição (Súmula 380/STF)”. E arremata: “Os bens adquiridos anteriormente à Lei 9.278/1996 têm a propriedade e, consequentemente, a partilha ao cabo da união disciplinada pelo ordenamento jurídico vigente quando respectiva aquisição, que ocorre no momento em que se aperfeiçoam os requisitos legais para tanto e, por conseguinte, sua titularidade não pode ser alterada por lei posterior em prejuízo ao direito adquirido e ao ato jurídico perfeito (CF, art. 5º, XXXVI e Lei de Introdução ao Código Civil, art. 6º)”. [4]

Na mesma esteira a doutrina de FRANCISCO JOSÉ CAHALI [5]:

“Daí por que se ter na Lei n. 9.278/96 a pioneira previsão legislativa de efeitos patrimoniais da união estável, introduzindo, enquanto fonte normativa, o regime jurídico próprio dessa relação.

Como lei nova, sua incidência segue o princípio geral de irretroatividade previsto no art. 6º da Lei de Introdução ao Código Civil, admitida a aplicação imediata à situação jurídica em curso.

Esse panorama, em superficial análise, poderia levar a crer que a lei nova incide diretamente nas uniões estáveis em curso, fazendo prevalecer o comando contido na norma a todos os efeitos jurídicos da união.

Entretanto, a amplitude na produção de efeitos encontra limita na disposição maior, contida no art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal, segundo o qual “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”.

Compatibilizando essas duas regras, temos a imediata aplicação da novel legislação à situação em curso, mas sem atingir os efeitos da união estável já produzidos e os atos jurídicos já aperfeiçoados.

[…] a titularidade dos bens se consuma no momento da respectiva aquisição, tornando-se um ato jurídico perfeito, com a realidade jurídica então existente, além de outorgar ao titular o direito adquirido, tornando o negócio jurídico imune à nova legislação.”.

Por tais razões, não merece reparo a sentença quando reconheceu a comunicabilidade apenas quanto às prestações do imóvel em questão que foram quitadas no curso da união estável a partir do ano de 1996.

No tocante à Escritura de Doação, a sentença anuloua sob o fundamento de possuir declaração falsa, porque a ré e o falecido “declararam expressamente, através de escritura pública, que conviviam em união estável, declarando-se aquela companheira do falecido em sua certidão de óbito de 14 de agosto de 2017”“Não obstante, na Escritura de Doação, declarou-se como “solteira” (fls. 220), informação inverídica e hábil a macular a validade do negócio jurídico perpetrado”.

É certo que sob o aspecto formal, o ordenamento jurídico brasileiro não prevê expressamente a união estável como estado civil, o que é motivo de crítica de alguns doutrinadores, consoante voto da lavra da Ministra NANCY ANDRIGHI mencionado no artigo “STJ publica decisão sobre informações de União Estável em certidão de óbito”publicado pelo Instituto Brasileiro de Direito de Família IBDFAM [6].

Ocorre que, no caso dos autos, a união estável foi reconhecida expressamente pela ré e pelo falecido S., por meio de Escritura Pública de União Estável lavrada em 06/11/2012 no 5º Tabelionato de Notas de Olinda/PE, ocasião em que declararam que viviam em união estável, como se casados fossem, há 35 anos (ou seja, desde o ano de 1977), em colaboração econômica para o sustento mútuo, todo esse tempo (fls. 20/22).

Por sua vez, a doação do imóvel feita pela ré E. à filha I., também ré nos presentes autos, foi realizada no dia 09/09/2015, mediante Escritura de Doação com Reserva de Usufruto, lavrada pelo 7º Tabelião de Notas de São Paulo (fls. 420/423).

Ademais, in casu, a doação só era eficaz entre a doadora e a donatária, uma vez que a Escritura de Doação não foi levada a registro no respectivo Cartório de Registro de Imóveis, medida indispensável para conferir publicidade ao ato jurídico e produzir efeitos erga omnes.

Quando S. faleceu, em 14/08/2017, a ré E., que foi a declarante do óbito, fez questão de declarar que era companheira do de cujus, informando com detalhes acerca da existência da Escritura de União Estável, conforme se verifica das “Observações/Averbações” da certidão de óbito (fls. 28).

Na ocasião da lavratura da Escritura de Doação, entretanto, a corré E. declarou ser “solteira”sem sequer mencionar a existência da Escritura Pública de União Estável, de modo que a doação foi realizada sem a anuência do falecido, que estava se recuperando de um AVC ocorrido há 47 dias, conforme afirmado pelas próprias corrés.

A informação inverídica acaba por macular a validade do negócio jurídico perpetrado, ensejando sua anulação.

Ante o exposto, meu voto nega provimento ao recurso.

Pedro de Alcântara da Silva Leme Filho

Relator

Notas:

[1] O Colendo Superior Tribunal de Justiça tem prestigiado este entendimento quando predominantemente reconhece “a viabilidade de o órgão julgador adotar ou ratificar o juízo de valor firmado na sentença, inclusive transcrevendo-a no acórdão, sem que tal medida encerre omissão ou ausência de fundamentação no decisum” (REsp. nº 662.272-RS, 2ª Turma, Rel. Min. João Otávio de Noronha, j. de 4.9.2007; REsp nº 641.963-ES, 2ª Turma, Rel. Min. Castro Meira, j. de 21.11.2005; REsp nº 592.092-AL, 2ª Turma, Rel. Min. Eliana Calmon, j. 17.12.2004 e REsp nº 265.534 DF, 4ª Turma, Rel. Min. Fernando Gonçalves, j. de 1.12.2003).

[2] Art. 5° Os bens móveis e imóveis adquiridos por um ou por ambos os conviventes, na constância da união estável e a título oneroso, são considerados fruto do trabalho e da colaboração comum, passando a pertencer a ambos, em condomínio e em partes iguais, salvo estipulação contrária em contrato escrito.

§ 1° Cessa a presunção do caput deste artigo se a aquisição patrimonial ocorrer com o produto de bens adquiridos anteriormente ao início da união.

§ 2° A administração do patrimônio comum dos conviventes compete a ambos, salvo estipulação contrária em contrato escrito.

[3] Fundamentos do Direito Civil: Direito de Família, vol. 6/Ana Carolina Brochado Teixeira; organização Gustavo Tepedino, Rio de Janeiro: Forense, 2020, p.176.

[4] Op. cit, p.195/196.

[5] CAHALI, Francisco José. Contrato de convivência na união estável. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 154-155.

[6] Disponível em: <https://ibdfam.org.br/noticias/6452/STJ+publica+decis%C3%A3o+sobre+informa%C3%A7%C3%B5es+de+Uni%C3%A3o+Est%C3%A1vel+em+certid%C3%A3o+de+%C3%B3bito> Acesso em: 25 fev. 2021. – – /

Dados do processo:

TJSP – Apelação Cível nº 1125253-45.2018.8.26.0100 – São Paulo – 8ª Câmara de Direito Privado – Rel. Des. Pedro de Alcântara da Silva Leme Filho – DJ 04.03.2022

Fonte: INR-Publicações

Publicação: Portal do RI (Registro de Imóveis) | O Portal das informações notariais, registrais e imobiliárias.

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