Artigo: O estranho caso do inimputável capaz – Parte I – Por Vitor Frederico Kümpel


*Vitor Frederico Kümpel

Ao longo das semanas, estamos nos debruçando sobre a lei 13.146 de 6 de julho de 2015, que para maioria dos 127 dispositivos entrará em vigor em 3 de janeiro de 2016. Tem sido uma experiência e tanto analisar as (in)consistências da lei ao longo dos vários artigos publicados.

Como bem mencionou Tartuce, duas correntes têm sido firmadas ao logo do tempo: uma denominada “dignidade-liberdade” e que vê positiva as modificações no âmbito civil, inclusive, e outra, dita “dignidade-vulnerabilidade”1, a que nos alinhamos e que enxerga uma série de atrocidades a que passa o Direito Civil notadamente por desproteger a quem o sistema tem por obrigação tutelar.

Após o Estatuto da Pessoa com Deficiência determinar a plena capacidade civil para a pessoa com deficiência2, conforme já aventado em matéria anterior, passamos a observar se alguma mudança teria ocorrido no que toca ao decreto-lei 2.848 de 7 de dezembro de 1940, o nosso tão conhecido Código Penal Brasileiro.

Foi até com certo alívio que verificamos não ter ocorrido modificação no que toca à imputabilidade penal, prevista nos artigos 26 a 28 d.

A lei 13.146/2015, por ficção, estabeleceu que toda pessoa com deficiência é formal e materialmente igual aos demais, estatuindo inclusive que discriminação é toda forma de distinção (Art. 4º, § 1º), inclusive sob o prisma normativo, o que fez gerar uma serie de bizarrices sob o aspecto civil.

O artigo 26, caput do Código Penal estabelece que “[é] isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento”.

O paragrafo único dispõe que “a pena pode se reduzida de um a dois terços, se o agente, em virtude de perturbação de saúde mental ou por desenvolvimento mental incompleto ou retardado não é inteiramente capaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento”.

De acordo com o Estatuto, os dispositivos transcritos são discriminatórios. A grande questão formulada é: se o deficiente possui plena autodeterminação civil, tem total cognoscibilidade das complexas relações privadas, podendo sempre casar-se e constituir união estável (art. 6, inciso I), ser adotante, guardião, tutor e curador (art. 6, inciso VI), como é possível que não entenda o caráter ilícito de um fato e nem possa determinar-se de acordo com esse entendimento?

Se, de acordo com o Estatuto, a pessoa com deficiência tem total aptidão sempre para participar das múltiplas e complexas relações do cotidiano, como é possível que não entenda o caráter ilícito de um fato, principalmente proveniente do direito natural, como é o caso do homicídio, por exemplo? Repare que a dissonância chega a impressionar.

É bom lembrar que, muitas vezes o ilícito penal é fato gerador de responsabilidade civil. Na seara da responsabilidade civil, o curador é responsável pela reparação civil pelo curatelado (art. 932, II). O direito civil, de forma harmônica, estabelece a responsabilidade objetiva do curador exatamente por força da ausência de discernimento do curatelado. O direito material civil só prevê a imputabilidade do incapaz no presente caso específico, se o curador não dispuser de meios e o incapaz tiver total condição econômica de fazê-lo (art. 928, caput).

Ainda assim, a indenização é equitativa (art. 928, parágrafo único). Porém, é óbvio que sob a esfera penal há uma absoluta isenção de pena ao réu. Nessa sorte de coisas, o incapaz deficiente é inimputável e irresponsável civilmente como regra.

Com o advento e a entrada em vigor do Estatuto, o deficiente ou enfermo mental sem qualquer discernimento será, por regra geral, responsável, porém, inimputável. Por ficção, entenderá o ilícito civil e determinar-se-á de acordo com esse entendimento; porém, não entenderá esse mesmo ilícito, isto é, o fato gerador sob o aspecto penal. Como é possível entender e deixar de entender a mesma situação? Trata-se de desarmonia intolerável para o sistema, dissonância ontologicamente inaceitável.

Ou é possível se pensar, por absurdo, numa discriminação legislativa no âmbito penal, para os mais garantistas.

Pergunta interessante que pode ser formulada é: pode o juiz criminal reconhecer a inimputabilidade por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado verificando as presença dos requisitos teológico, psicológico e temporal e aplicar uma absolvição imprópria (medida de segurança) e condená-lo a indenizar? São tantas as bizarrices da lei que é melhor pararmos por aqui. Até a próxima!

Aguarde reflexões penais sobre o assunto.

*O artigo foi escrito em coautoria com Thalles Ferri e Bruno de Ávila Borgarelli.

__________

1 TARTUCE, Flávio. Alterações do Código Civil pela Lei 13.146/2015 – Segunda Parte. JusBrasil. Acesso em [14/10/2015]

2 O art. 6º, caput, da lei 13.146/2015 derroga os arts. 3º e 4º do Código Civil:

Art. 6o A deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa, inclusive para:

I – casar-se e constituir união estável;

II – exercer direitos sexuais e reprodutivos;

III – exercer o direito de decidir sobre o número de filhos e de ter acesso a informações adequadas sobre reprodução e planejamento familiar;

IV – conservar sua fertilidade, sendo vedada a esterilização compulsória;

V – exercer o direito à família e à convivência familiar e comunitária; e

VI – exercer o direito à guarda, à tutela, à curatela e à adoção, como adotante ou adotando, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas.

Fonte: Migalhas | 20/10/2015.

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ARTIGO: ESPÓLIO NÃO É HERDEIRO – Por José Hildor Leal


*José Hildor Leal

Sempre contestei o entendimento quanto à participação de espólio na cadeia sucessória, comparecendo como parte na escritura pública de inventário e partilha, representado por seu inventariante, para receber o quinhão que caberia em vida ao falecido.

Não há nenhum problema quando se trata de herdeiro pré-morto, caso em que ocorre o direito de representação. A situação que se discute se dá nas hipóteses de falecimento de uma pessoa antes da conclusão do inventário no qual detinha direitos hereditários, ou seja, sendo pós morto em relação ao autor da herança

Para facilitar a compreensão: A falece, e deixa como herdeiros B e C. Antes do inventário de A, ocorre o óbito de B. Daí que conforme a corrente à qual me oponho, no inventário de A, o filho pós morto, B, ao contrário de ser representado por seus respectivos herdeiros, comparece como parte, na escritura pública, designado como Espólio de B, representado por seu inventariante.

Em manifestações postadas em um grupo em que notários e registradores das diversas unidades federativas discutem temas de interesse da classe, fui voto vencido, com honrosas exceções que pugnavam da mesma ideia, quando repetia que o espólio, afora não ter personalidade jurídica, não é herdeiro e não pode ser parte no ato notarial, nessa condição.

Além dos debates nos quais defendi a opinião que manifesto, pude constatar em mais de uma oportunidade a existência de matrículas de imóveis consignando como proprietário o espólio de fulano de tal, a significar que as escrituras são feitas, e registradas, ferindo o melhor direito.

Ora, o espólio nada mais é do que o conjunto de bens que compõe a herança, e por óbvio que não possui personalidade jurídica. A sua representação, em juízo ou fora dele, somente pode ocorrer em casos restritos, como, por exemplo, para cumprimento de obrigação assumida pelo falecido, promessa de compra e venda quitada, inclusive na via administrativa, ou então para a alienação de bens visando obter recursos para custear as despesas do próprio inventário, nesse caso com autorização judicial.

Por isso, senti-me amparado com recente decisão judicial da qual tomei conhecimento, de cujo dispositivo principal destaco o seguinte:

Tabelião de notas – Escritura pública de inventário e partilha – Espólio, que não detém capacidade, não pode ser parte na escritura” (CGJ-SP, Processo nº 2015/50558).

Assim, sem ter a pretensão de modificar entendimentos contrários ao que foi exposto, fica o alerta quanto à interpretação jurisprudencial sobre o tema, reiterando, categoricamente: espólio não é herdeiro.

Fonte: Notariado | 23/10/2015.

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