Artigo: Ao falar com o Tabelião, abra o seu coração – Por José Flávio Bueno Fischer


* José Flávio Bueno Fischer

Certamente, todos nós, notários e registradores, temos guardadas incontáveis situações esdrúxulas, curiosas e engraçadas, senão trágicas, que nos são confidenciadas diariamente no exercício de nossa profissão.

E para que possamos realmente auxiliar e encontrar uma solução adequada, dando forma jurídica à questão, é preciso que as pessoas sejam absolutamente transparentes e verdadeiras na narrativa de seus problemas quando nos procuram. E, diante de nosso compromisso profissional e ético de manter sigilo e confidencialidade sobre os fatos a nós confiados, nossos clientes podem ter toda a tranquilidade em dividir conosco suas histórias e suas aflições.

Algumas situações especiais, pela experiência que nos trouxeram, ficam nítidas na memória como se tivessem sido recentes. Lembro que há muito tempo atrás, atendi um senhor que buscava informações sobre testamento. Casado e com filhos adultos – todos já com famílias constituídas – queria fazer um testamento para garantir que o seu patrimônio ficasse para os herdeiros, em partes iguais. Pois bem. Expliquei a ele que, neste caso, não havia necessidade de realização do testamento, eis que a sucessão, após a sua morte, se daria exatamente como ele desejava, na forma da lei. Mas ele insistia, dizendo que fora orientado, fora do Tabelionato, de que se não fizesse o testamento não garantiria aos seus herdeiros as suas legítimas.

Voltei a explicar como se daria a sucessão “causa mortis”, demonstrei no papel como se daria a linha sucessória, eis que casado ele na comunhão universal de bens, com filhos havidos unicamente dessa união.

O homem, porém, representava não estar satisfeito e convencido com minhas explicações, motivo pelo qual disse que retornaria ao Tabelionato com sua mulher, para que tais orientações fossem repassadas a ela por mim, com o que concordei prontamente.

No dia seguinte, vieram conversar comigo o homem e sua mulher, ambos de incrível simpatia, e me contaram muitas coisas sobre sua vida, as dificuldades atravessadas, o companheirismo sempre havido entre os dois, a superação das fases difíceis e as conquistas conseguidas conjuntamente.
No calor da conversa, falamos sobre a vontade deles em relação à sucessão dos filhos, todos muito dedicados e atenciosos com os pais – o que, via de regra, é uma exceção, pois, na maioria dos casos, apenas um, de vários filhos, se importa com os pais, principalmente na velhice – e, dada a igualdade de tratamento e amor recebido de todos, não tinham os pais a intenção de beneficiar nenhum dos filhos, para o que a lei se encarregaria de dar cumprimento ao seu desejo, pagando-se, na sucessão “causa mortis”, a legítima a cada um dos herdeiros.

Então questionei, novamente, qual a causa da grande preocupação deles com o patrimônio que futuramente caberia aos filhos, visto não terem intenção nem de beneficiar um dos filhos, até o limite da parte disponível, nem de ajustar a forma de distribuição prévia da herança entre os sucessores via testamento.

Para minha surpresa, a mulher me disse que, por amizade a uma pessoa próxima, havia “emprestado” o seu nome para constituir a sociedade de uma empresa por cotas de responsabilidade limitada, sendo detentora de 90% do capital social! Essa pessoa próxima, por sua vez, embora tivesse injetado capital na empresa, não podia ter nada em seu nome, devido a problemas anteriores de abalo e restrição de crédito. Da administração dessa sociedade, a minha cliente nada sabia, apenas assinava todos os documentos que lhe solicitavam como sócia majoritária, inclusive empréstimos e financiamentos em bancos…

Daí entendi o grande temor do casal, pois a condição empresarial da mulher – mera titular de participação societária onde tinha a absoluta maioria do capital social, sem nada saber sobre a administração e gerência da empresa – era uma ameaça evidente que poderia comprometer todo o patrimônio amealhado pelo casal durante a vida, que não fora fácil, como eles mesmos haviam narrado a mim anteriormente.

Assim, orientei meus clientes para que tentassem modificar essa situação o mais breve possível, e que não era o testamento – de eficácia futura – que traria a tranquilidade almejada. Embora os laços de amizade e gratidão com a pessoa que “geria” realmente a empresa, nesse momento de suas vidas, a manutenção desse status poderia não apenas comprometer a futura sucessão de seus filhos, mas, principalmente, a tranquilidade patrimonial deles, marido e mulher, nesses anos de agora, da boa idade, da colheita de todos os bons frutos plantados no decorrer de sua história.

O casal, convencido do grande risco a que estava submetido o seu patrimônio, e agradecido pelas orientações recebidas, foi embora com o firme propósito de providenciar, o quanto antes, a retirada da mulher da condição de sócia da empresa.

Por isso, repito aos meus clientes: ao falar com o Tabelião, na intenção de buscar aconselhamento e assessoria jurídica para situações familiares, patrimoniais ou de qualquer outra esfera em suas vidas, que sejam sinceros, abram o seu coração e narrem o que verdadeiramente assombra os seus pensamentos e o seu sono. Somente assim poderemos dar a orientação jurídica adequada e eficaz, para o que estaremos sempre à disposição.

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* José Flávio Bueno Fischer é 1º Tabelião de Novo Hamburgo. Ex-presidente do CNB-CF. Membro do Conselho de Direção da UINL.

Fonte: Notariado | 25/05/2015.

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Artigo: O direito de acrescer entre donatários casados na comunhão universal de bens – Por José Flávio Bueno Fischer


* José Flávio Bueno Fischer

O artigo 551 do Código Civil reza que, “salvo declaração em contrário, à doação em comum a mais de uma pessoa entende-se distribuída entre elas por igual”. É a denominada doação conjuntiva, que estabelece que um bem doado a mais de uma pessoa deve ser distribuído em partes iguais, salvo manifestação contrária do doador no momento da liberalidade.Já o parágrafo único do dispositivo legal em questão prevê que, “se os donatários, em tal caso, forem marido e mulher, subsistirá na totalidade a doação para o cônjuge sobrevivo”. Isto é, se os beneficiados na doação são marido e mulher, a regra é o direito de acrescer, e, portanto, o bem doado subsiste, na totalidade, para o cônjuge sobrevivente, não integrando o inventário e, consequentemente, excluindo o direito sucessório dos herdeiros.

Neste sentido, leciona Ricardo Fiuza: “No caso dos donatários casados entre si, há uma perfeita mutualidade legal para o direito de acrescer: o cônjuge sobrevivo assume, por direito exclusivo, em substituição, a proporção igualitária do outro que faleceu, subsistindo a totalidade da doação em seu favor, não passando o bem aos herdeiros necessários” (FIUZA, Ricardo. Novo Código Civil comentado. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 489) .
Assim, a configuração do direito de acrescer entre cônjuges exige, além da morte de um deles, que os donatários sejam (i) casados entre si; (ii) que o bem tenha sido doado aos dois, tendo ambos comparecido e aceitado o ato; e, (iii) que não tenha sido individualizado, pelo doador, o percentual de cada donatário.

O legislador não faz distinção quanto ao regime dos bens do casal para a incidência do direito de acrescer, na medida em que, preenchidos os requisitos acima, ele se configura em qualquer regime, até mesmo na separação convencional de bens. Inclusive, conforme Maria Berenice Dias, “apesar de a lei falar em marido e mulher, às claras que também se aplica quando os beneficiários vivam em união estável”. (DIAS, Maria Berenice. Manual das Sucessões. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 234) .

Polêmica, porém, é a situação dos donatários casados pelo regime da comunhão universal de bens. E é aqui que existem posições contrárias na doutrina e na jurisprudência. Se ambos, marido e mulher, comparecem no momento da liberalidade, não há dúvida quanto à incidência do artigo 551, parágrafo único. O problema reside quando a doação é feita a pessoa casada na comunhão universal de bens, sem cláusula de incomunicabilidade, e seu cônjuge não comparece ao ato de doação.

A comunhão universal de bens tem como regra a comunicabilidade de todo o patrimônio do casal (artigo 1.667, CC), salvo as hipóteses previstas no artigo 1.668, em especial o inciso I, que prevê que, “são excluídos da comunhão, os bens doados ou herdados com cláusula de incomunicabilidade e os sub-rogados em seu lugar”. Desta forma, alguns doutrinadores e parte da jurisprudência entendem que se a doação é feita a pessoa casada pelo regime da comunhão universal de bens, sem cláusula de incomunicabilidade, presume-se, por força do regime, que tenha sido feita a ambos, independente de ter comparecido ao ato somente um dos membros do casal donatário.

O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE 75.600, decidiu exatamente neste sentido, que dado o bem a um dos cônjuges, sem cláusula de incomunicabilidade, nem outra restrição, no regime da comunhão, entende-se que a doação foi feita a ambos.[1]

Nesta linha, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, no julgamento da Apelação Cível nº 9145289-64.2007.8.26.0000, decidiu que embora não tenham figurado expressamente marido e mulher na escritura, operou-se doação em comum por força do regime de bens do casamento, o que torna aplicável o art. 1.178 do CC/1916, com redação idêntica ao artigo 551 do atual Código Civil. [2]

Entretanto, em sentido contrário, alguns estudiosos e outra parte da doutrina entendem que a incidência do artigo 551, parágrafo único, está condicionada a ter figurado como donatários ambos os cônjuges, inclusive no regime da comunhão universal de bens. Isto porque a doação a um cônjuge, com cláusula de comunicabilidade ao outro por força do regime, não é o mesmo que doação a ambos os cônjuges. Na primeira situação, há somente um donatário, sendo o outro cônjuge-meeiro pela comunhão. No segundo caso, ambos são donatários. Apenas na segunda hipótese, portanto, haverá o direito de acrescer, subsistindo a totalidade da doação para o cônjuge sobrevivo.

É o que diz o Superior Tribunal de Justiça nos julgamentos do REsp 324593/SP[3] e do REsp 6.358/SP[4].  Nestes julgados, a Corte Superior decidiu que prevalece a aplicação do parágrafo único do artigo 551 somente se a aceitação da doação ocorreu por ambos donatários, marido e mulher.

Corroborando este entendimento, vale a lição de Pontes de Miranda: “No art. 1178, parágrafo único, estabelece-se o direito do cônjuge sobrevivo à totalidade da doação. Nada tem isso com a sorte da doação conforme o regime matrimonial de bens. O que o parágrafo único faz entender-se é que, se os donatários são cônjuges, a parte do cônjuge que premorre passa ao sobrevivo. Nada tem isso com a doação a um dos cônjuges, se o regime é da comunhão de bens, ou outro regime. O parágrafo único supõe pluralidade, aí duas pessoas, que foram os outorgados, e em atenção à situação jurídica entre eles estatui que toda a doação vai ao que está vivo. Se já a haviam recebido, não há invocabilidade do parágrafo único”. (Tratado de Direito Privado – Parte Especial, Tomo XLVI, Ed. Borsoi, Rio de Janeiro, 1964, p. 237) (grifo nosso)
Há, portanto, duas correntes distintas em relação a incidência do artigo 551, parágrafo único, do Código Civil,  quando a doação é feita a pessoa casada pelo regime da comunhão universal de bens, sem cláusula de incomunicabilidade: I) uma que entende pela incidência do artigo mesmo que tenha comparecido ao ato somente um dos membros do casal, uma vez que, por força do regime de casamento, considera-se a doação como feita a ambos; e, II) a outra que entende pela incidência do artigo somente se tiverem comparecido ao ato, aceitando-o, marido e mulher, eis que doação a um cônjuge, com cláusula de comunicabilidade ao outro por força do regime, não é o mesmo que doação a ambos os cônjuges. O artigo exige pluralidade de outorgados e, em atenção à situação jurídica entre eles, estatui que toda a doação vai ao que está vivo.

Face esta controvérsia jurídica, nasce o problema: como deve agir o tabelião para resguardar o interesse e a vontade das partes, bem como prevenir futuros litígios, quando estiver diante de uma doação a pessoa casada na comunhão universal de bens?

Entendemos que o notário, como agente da paz social, deve esclarecer o doador acerca da divergência doutrinária e jurisprudencial sobre o tema, orientando-o no sentido de que ambos os cônjuges donatários devem aceitar a doação e firmar a escritura acaso sua vontade seja garantir a incidência e eficácia do artigo 551, parágrafo único, do Código Civil, com a consequente subsistência da totalidade da doação ao cônjuge sobrevivo.

Ainda que alguns possam considerar despicienda tal medida, ao compartilharem da corrente que entende pela incidência do referido artigo mesmo que tenha comparecido ao ato somente um dos cônjuges, o notário, ao orientar ambos os cônjuges a aceitar a doação, estará afastando o risco de futura interpretação judicial negando o direito de acrescer por ter comparecido na escritura apenas um dos donatários, a exemplo das duas decisões do Superior Tribunal de Justiça acima citadas.

É claro que se outra for a vontade do doador, de beneficiar apenas um dos cônjuges, a doação poderá ser feita com cláusula de incomunicabilidade, transformando o bem doado em exclusivo do donatário. Neste caso, não há que se falar em incidência do direito de acrescer.
Agindo assim, o tabelião estará resguardando preciosos pilares da função notarial: a preservação da vontade das partes, a prevenção de litígios e a paz social.

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[1] (Relator(a):  Min. ALIOMAR BALEEIRO, Primeira Turma, julgado em 18/06/1973, DJ 14-09-1973 PP-06742 EMENT VOL-00921-02 PP-00423).

[2] (Relator(a): João Carlos Garcia; Comarca: São Paulo; Órgão julgador: 9ª Câmara de Direito Privado; Data do julgamento: 16/11/2010; Data de registro: 11/01/2011; Outros números: 994070289993).

[3] (Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 16/09/2003, DJ 01/12/2003, p. 347)

[4] ( Rel. Ministro DIAS TRINDADE, TERCEIRA TURMA, julgado em 29/04/1991, DJ 17/06/1991, p. 8204)

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* José Flávio Bueno Fischer, 1º Tabelião de Novo Hamburgo/RS, ex-presidente do CNB-CF e membro do Conselho de Direção da UINL.

Fonte: Notariado | 26/06/2015.

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