A união estável septuagenária e o regime da separação obrigatória de bens – Por Mário Luiz Delgado


Múltiplas e díspares tem sido as interpretações dadas pelos tribunais aos dispositivos legais que regulam a união estável.

O cotidiano forense tem trazido à baila as diversas controvérsias que grassam em torno das repercussões jurídicas das uniões fáticas quando comparadas ao casamento.

No julgamento do REsp 1.254.252/SC, o STJ, lançou luzes sobre uma questão que permanece controvertida na doutrina e na jurisprudência, referente à extensão de direitos e deveres do casamento à união estável1.

O tema é recorrente, sendo muitos os autores partidários de um igualitarismo pleno entre todas as entidades familiares, a fundamentar, por exemplo, as diversas arguições de inconstitucionalidade do art. 1.790 do CC/02.

No que tange ao regime de bens, tem prevalecido no âmbito do STJ o entendimento de que o regime aplicável à união estável entre septuagenários é o da separação obrigatória. (Vide, por todos, o REsp 646.259/RS, Rel. Min. Luis Felipe Salomão). No julgamento do REsp 1.090.722, o ministro Massami Uyeda ressaltou expressamente que “a não extensão do regime da separação obrigatória de bens, em razão da senilidade do de cujus (falecido), constante do artigo 1.641, II, do Código Civil, à união estável equivaleria, em tais situações, ao desestímulo ao casamento, o que, certamente, discrepa da finalidade arraigada no ordenamento jurídico nacional, o qual se propõe a facilitar a convolação da união estável em casamento, e não o contrário”.

O entendimento, com todo respeito, infringe a máxima hermenêutica segundo a qual as normas que limitam direitos devem ser interpretadas restritivamente.

Já temos nos manifestado, em outras ocasiões, que essa pretensão de igualitarismo entre união estável e casamento viola o princípio constitucional da liberdade, vedando que se escolha, com base na formatação jurídica, a entidade familiar que melhor se amolde aos projetos do casal. Além de afastar completamente o interesse na conversão da união estável em casamento. O princípio da isonomia, por outro lado, não proíbe que entidades familiares distintas, não obstante igualmente protegidas pelo Estado, possuam regramentos legais diferenciados. Direitos e deveres do par casamentário podem ser diversos daqueles existentes entre o par convivencial.

Entretanto, deixando de lado a polêmica do igualitarismo das entidades familiares, o caso versado no REsp 1.254.252/SC diz respeito à aplicação do regime da separação obrigatória etária ao casamento (CC/02, art. 1.641, II), quando precedido de união estável iniciada antes de atingida a idade legal restritiva.

A matéria já havia sido apreciada em 2011, no julgamento do REsp 918.643, onde, por maioria de votos, se decidiu que “o reconhecimento da existência de união estável anterior ao casamento é suficiente para afastar a norma, contida no CC/16, que ordenava a adoção do regime da separação obrigatória de bens nos casamentos em que o noivo contasse com mais de sessenta, ou a noiva com mais de cinquenta anos de idade, à época da celebração. As idades, nessa situação, são consideradas reportando-se ao início da união estável, não ao casamento”.

O tema voltou a debate em 2014 e a 3ª turma, desta feita por unanimidade, consolidou o entendimento de que o regime da separação obrigatória deveria ser afastado, pois “se tivesse sido, desde logo, celebrado o casamento, quando iniciado o relacionamento entre as partes, o qual perdurou, no total, por mais de 30 anos, não haveria a obrigatoriedade da adoção do regime da separação obrigatória de bens, pois o de cujus ainda não completara 60 anos de idade”.

Ao contrário dos casos anteriormente aludidos, em que se estendeu regra restritiva do casamento à união estável, aqui o Tribunal se valeu da união estável para afastar a aplicação da norma restritiva ao próprio casamento.

As decisões referidas bem denotam a instabilidade da jurisprudência nesse tema. Múltiplas e díspares tem sido as interpretações dadas pelos tribunais aos dispositivos legais que regulam a união estável. Ora se ampliam, ora se restringem direitos dos companheiros quando comparados aos dos cônjuges. Em outras situações, se estendem aos cônjuges situações antes previstas apenas aos companheiros.

_______________

1 CIVIL. FAMÍLIA. RECURSO ESPECIAL. REGIME DE BENS. SEPARAÇÃO OBRIGATÓRIA. DOAÇÃO ANTERIOR AO MATRIMÔNIO. VIGÊNCIA DE UNIÃO ESTÁVEL. DOAÇÃO NA CONSTÂNCIA DO CASAMENTO. REQUISITOS FORMAIS. ARTIGOS ANALISADOS: ARTS. 258,PARÁGRAFO ÚNICO, II; 312 DO CC/16.1. Inventário de bens em razão de falecimento, cuja abertura foi requerida em 31.03.2003. Recurso especial concluso ao Gabinete em 01.06.2011.2. Discussão relativa à validade de doações efetuadas pelo de cujus à sua consorte, antes e após o casamento, realizado sob o regime da separação obrigatória de bens. 3. A ausência de decisão sobre os dispositivos legais supostamente violados, não obstante a interposição de embargos de declaração, impede o conhecimento do recurso especial. Incidência da Súmula 211/STJ.4. O reexame de fatos e provas em recurso especial é inadmissível.5. Não obstante, de acordo com a boa regra de hermenêutica, as normas que limitam o exercício de direitos devam ser interpretadas restritivamente, a mera utilização de outro instrumento, que não a escritura de pacto antenupcial para formalização do negócio, não é suficiente para conferir-lhe validade.6. Se tivesse sido, desde logo, celebrado o casamento, quando iniciado o relacionamento entre as partes, o qual perdurou, no total, por mais de 30 anos, não haveria a obrigatoriedade da adoção do regime da separação obrigatória de bens, pois o de cujus ainda não completara 60 anos de idade.7. Mesmo não sendo expresso, naquela época (1978), o princípio segundo o qual a Lei deverá reconhecer as uniões estáveis, fomentando sua conversão em casamento (art. 226, §3º, da CF), não havia – e não há – sentido em se admitir que o matrimônio do de cujus e da recorrida tenha implicado, para eles, restrição de direitos, ao invés de ampliar proteções.8. Ausente qualquer outro vício que macule a doação anterior ao casamento; e advinda incontroversamente da parte disponível do doador, a doação realizada na constância da união estável das partes, iniciada quando não havia qualquer impedimento ao casamento ou restrição à adoção do regime patrimonial de bens, não se reveste de nulidade somente porque algum tempo depois, as partes celebraram matrimônio sob o regime da separação obrigatória de bens.9. Recurso especial conhecido em parte e, nesta parte, provido.(RECURSO ESPECIAL Nº 1.254.252 – SC RELATORA : MINISTRA NANCY ANDRIGHI,. 22 de abril de 2014 -Data do Julgamento)

_______________

*Mário Luiz Delgado é advogado e sócio fundador do escritório MLD – Mário Luiz Delgado Advogados. Doutor pela USP, mestre pela PUC/SP e professor da Escola Paulista de Direito. Diretor de Assuntos Legislativos do IASP.

Fonte: Migalhas | 26/02/2015.

Publicação: Portal do RI (Registro de Imóveis) | O Portal das informações notariais, registrais e imobiliárias!

Para acompanhar as notícias do Portal do RI, siga-nos no twitter, curta a nossa página no facebook, assine nosso boletim eletrônico (newsletter), diário e gratuito, ou cadastre-se em nosso site.

 




Artigo: A Lei Federal nº 12.873/2013 e os seus reflexos na atividade notarial e registral – Por Velenice Dias de Almeida e Lima


*Velenice Dias de Almeida e Lima

A aludida lei federal foi criada com o objetivo de autorizar a Companhia Nacional de Abastecimento a utilizar o Regime Diferenciado de Contratações Públicas – RDC, instituído pela Lei nº 12.462, de 04 de agosto de 2011, para a contratação de todas as ações relacionadas à reforma, modernização, ampliação ou construção de unidades armazenadoras próprias destinadas às atividades de guarda e conservação de produtos agropecuários em ambiente natural, bem  como alterar, dentre outros, dispositivos das Leis  Federais nºs 8.212/91,  8.213/91 e da Consolidação das Leis do Trabalho.

A lei é uma conversão da Medida Provisória nº 619/2013 e trata de inúmeros assuntos. Recebeu da então presidenta do Brasil veto parcial e entrou em vigor parcialmente e, em momentos diferenciados.

No meio de um emaranhado de dispositivos trouxe alterações relativas à atividade notarial e registral. Diz o seu artigo 9º:

Art. 9o  Os contratos de financiamento do Fundo de Terras e da Reforma Agrária, de que trata a Lei Complementar no 93, de 4 de fevereiro de 1998, inclusive as operações do Programa Cédula da Terra contratadas no âmbito do Acordo de Empréstimo no 4.147-BR, celebrados por instituições financeiras, por meio de instrumentos particulares, terão força de escritura pública. (grife-se).

Parágrafo único.  Os contratos de financiamento de que trata o caput deverão ser transcritos no Cartório de Registro de Imóveis competente, no prazo de 15 (quinze) dias, contado da data de sua assinatura.

Art. 10.  Fica autorizado incluir as seguintes despesas acessórias relativas à aquisição de imóvel rural nos financiamentos de que trata a Lei Complementar nº 93, de 4 de fevereiro de 1998, inclusive as operações do Programa Cédula da Terra contratadas no âmbito do Acordo de Empréstimo no 4.147-BR:
I – tributos;
II – serviços de medição, incluindo topografia e georreferenciamento; e
III – emolumentos e custas cartorárias.
Parágrafo único.  As custas cartorárias decorrentes do processo de renegociação de dívida poderão ser incluídas nos respectivos contratos de financiamento, na forma determinada por resolução do Conselho Monetário Nacional.

Assim, com a publicação da referida lei no Diário Oficial da União em 25/04/2013, os legisladores brasileiros, com a ratificação (sanção) da presidenta do Brasil,EXCLUÍRAM a participação dos tabeliães de notas nos atos de formalização dos contratos de financiamento do Fundo de Terras e da Reforma Agrária, de que trata a Lei Complementar nº 93, de 04 de fevereiro de 1998, tanto nas aquisições quanto nas renegociações.
Prestigiou-se o instrumento público. Prestigiadas restaram, mais uma vez, as instituições financeiras. (grife-se).

Num primeiro arroubo de indignação, poder-se-ia pensar: desprestigiou-se o tabelião de notas!;desprestigiou-se a atividade notarial e registral! Será?

Felizmente a resposta é NÃO. O tabelião de notas continuará a exercer o seu ofício, com zelo e dignidade, garantindo às partes publicidade, autenticidade, segurança jurídica e eficiência, tal qual estipulado pela Constituição Federal de 1988 (art. 236), artigo este que é  regulamentado por estatuto próprio, qual seja: a Lei Federal nº 8.935/94.

A atividade notarial e registral continuará crescendo, se aperfeiçoando e modernizando, satisfazendo os anseios sociais dos que nela confiam a exemplo da lavratura de inventários e divórcios pelos mesmos tabeliães de notas rechaçados pelos legisladores e pela chefe desta Nação.

No entanto, poder-se-ia dizer o mesmo quando se pensa na segurança jurídica de tais contratações e/ou negociações? Quando se pensa no mutuário?

Aqui, infelizmente a resposta é SIM. Desprestigiou-se a segurança jurídica e o hipossuficiente da relação, qual seja: O MUTUÁRIO. Este sedento de terra e de uma forma de sustentar a si próprio e a sua família assinará qualquer contrato, seja de aquisição, seja de renegociação. E a pergunta que não quer calar: A Lei ao autorizar as instituições financeiras a firmarem contratos de financiamento do Fundo de Terras e da Reforma Agrária objeto da Lei Complementar nº 93, de 4 de fevereiro de 1998 e as operações do Programa Cédula da Terra contratadas no âmbito do Acordo de Empréstimo no 4.147-BR por instrumento particular, não estaria autorizando que as contratações fossem formalizadas por meio de um CONTRATO DE ADESÃO?

Diversas questões surgem. Pode-se citar algumas delas: Os contratos bancários são contratos de adesão? O mutuário aderente, sozinho, teria condições de analisar a legalidade, viabilidade de tais pactos? O tabelião de notas, profissional do direito, com sua missão constitucional de instrumentalizar juridicamente a vontade das partes pode ser excluído de tão complexo negócio jurídico? A instituição bancária teria a imparcialidade necessária para não ferir os princípios da boa-fé-objetiva e da segurança jurídica, dentre outros,que devem permear todos os contratos?
Àqueles que poderiam argumentar que os emolumentos cartorários para lavratura dos pactos são altos devem se lembrar que os tabeliães de notas ao lavrarem um instrumento público ficam adstritos, quanto aos emolumentos, a uma tabela de custas estipulada pelo Poder Judiciário. Aconselha-se, ainda, uma pesquisa junto às Instituições Financeiras acerca dos custos pela formalização de tais pactos. NÃO, ELES NÃO SÃO GRATUITOS. Muito pelo contrário! Via de regra, são valores bem superiores às despesas de cartórios.

Por fim, conclama-se os colegas, tabeliães de notas, a procederem a uma releitura do brilhante artigo do advogado Bruno Mattos e Silva, o qual também é autor do livro”Compra de Imóveis: aspectosjurídicos, cautelas devidas e análise de riscos” postada neste site.

Estas são as primeiras linhas de uma notária e registradora que deseja contribuir para o diálogo e a reflexão com os colegas e demais profissionais do direito, buscando a   melhoria e o aperfeiçoamento da atividade notarial e registral no Brasil.

Velenice Dias de Almeida e Lima é Notária é registradora na Comarca de Rosário Oeste-MT, Diretora de Protesto da ANOREG-MT e presidente do Instituto de Estudo de Protesto de Títulos do Brasil – Seção Mato Grosso – IEPTB/MT.

Fonte: Notariado – Artigo | 24/02/2015.
Publicação: Portal do RI (Registro de Imóveis) | O Portal das informações notariais, registrais e imobiliárias!

Para acompanhar as notícias do Portal do RI, siga-nos no twitter, curta a nossa página no facebook, assine nosso boletim eletrônico (newsletter), diário e gratuito, ou cadastre-se em nosso site.