Artigo: A real vedação do artigo 1.393 do Código Civil: usufruto sucessivo – Por Maraísa Fonseca Zancheta


*Maraísa Fonseca Zancheta

Não raras vezes no cotidiano notarial e registral e até mesmo da advocacia, deparamo-nos com usuários dos serviços e/ou clientes com ocorrências envolvendo o direito real de usufruto, seja objetivando a sua constituição, seja pretendendo se desvencilhar deste direito real já constituído – em situações em que o nu-proprietário e o usufrutuário contratam com um terceiro ou, ainda, quando o nu-proprietário, pela via onerosa, pretende se tornar proprietário pleno mediante aquisição deste direito real.

A respeito desta temática, então, pode-se asseverar que um dos grandes pontos controversos guarda íntima relação com a vedação contida no teor do artigo 1.393 do Código Civil, o qual, em suma, dispõe não poder ser transferido o direito real de usufruto por alienação.

O conteúdo do supracitado artigo evidencia que o usufruto pertence à classe dos direitos não transmissíveis. Previsão legal que é bastante plausível, uma vez que a partir de sua constituição, permitir a alienação do usufruto em ordem sucessiva seria permitir que este instituto perdesse totalmente sua natureza jurídica, porquanto é da própria essência deste direito real o caráter temporário de sua existência.

A temporalidade do direito real de usufruto, segundo o doutrinador Carlos Roberto Gonçalves, advém da previsão legal de que sua existência “extingue com a morte do usufrutuário (CC, 1.410, I) ou no prazo de trinta anos se constituído em favor de pessoa jurídica, e esta não se extinguir antes (CC, 1.410, III)” (2008, p. 449), de forma que fazer do usufruto um novo usufruto, ou seja, coibir que o nu-proprietário venha a exercitar o domínio pleno da propriedade é totalmente inadmissível e contrário ao ordenamento jurídico vigente.

Saliente-se, contudo, que mencionada vedação não é em termos absolutos, conforme ensina o exímio Registrador Imobiliário, Ademar Fioranelli, em seu artigo intitulado O Usufruto e o Novo Código Civil. Vejamos:

(…) não há proibição, também, que o nu-proprietário, conjuntamente com o usufrutuário, transfiram o pleno domínio a terceiro. O motivo é simples. Nesse caso, pela adjunção de todos os elementos da propriedade – uso, gozo e disponibilidade – consolida-se o domínio pleno da propriedade. Não há a figura do usufruto sucessivo – o que ocorreria se, diferentemente, a propriedade fosse novamente bipartida. Nessa operação, há o cancelamento indireto do usufruto, mantido o seu registro apenas como origem e base da alienação efetuada.

Não teria sentido, ou mesmo fundamento jurídico, exigir-se, para alcançar o mesmo propósito, a prévia renúncia do usufruto pelo usufrutuário, para a posterior transferência do domínio pleno do imóvel pelo proprietário. Em qualquer dos exemplos não há a perpetuação proibida do direito real do usufruto, pela consolidação do domínio pleno na pessoa do adquirente. O que se deve prestigiar é a vontade das partes em ato menos oneroso e não proibido pelo legislador. (…) (grifo nosso) (Disponível em http://www.mesquitamello.adv.br/artigos/6.pdf. Acesso em: 20 ago. 2012)

Essa possibilidade consistente na alienação conjunta dos direitos que possuem, por parte dos nus-proprietários e dos usufrutuários a um terceiro, fazendo com que este se torne proprietário pleno da coisa, vem sendo aceito pela doutrina majoritária (Caio Mário, Ademar Fioranelli, Serpa Lopes), e também pela jurisprudência.

Em decisão proferida em 28 de janeiro de 2011, a 1ª Vara de Registros Públicos do Estado de São Paulo aplica o entendimento do registrador Ademar Fioranelli, inclusive transcrevendo parte de sua produção jurídica a respeito do tema, vejamos:

EMENTA NÃO OFICIAL. A lei veda o usufruto sucessivo não a alienação, pelo proprietário, da nua propriedade a um e o usufruto a outro. (…) Nessa mesma linha de pensamento podemos afirmar com segurança, reportando-nos a mais um ângulo da questão, que se repete amiúde na vida dos cartorários, que nenhum impedimento haverá de admitir a registro escritura em que o nu-proprietário, conjuntamente com o usufrutuário, aliene a terceiro o imóvel, já que neste se consolida a plena propriedade. (Processo n.º 0047652-58.2010.8.26.0100, dúvida suscitada pelo 6º Oficial de Registro de Imóveis de São Paulo, 1ª Vara de Registros Públicos, Rel. Gustavo Henrique Bretas Marzagão, data do julgamento: 28/01/2011).

Na mesma linha de permissão foi o entendimento da 3ª Vara Cível da comarca de Curitiba ao julgar o Agravo de Instrumento n.º 437.572-6:

AGRAVO DE INSTRUMENTO – AÇÃO DE RESCISÃO DE CONTRATO CUMULADA COM REINTEGRAÇÃO DE POSSE EM FASE DE EXECUÇÃO DE ACORDO JUDICIAL – ESCRITURA ASSINADA A DESTEMPO DEVIDO A ATRASO NA EXPEDIÇÃO DE ALVARÁ – FATO QUE NÃO PODE SER IMPUTADO AOS VENDEDORES – CONDIÇÃO CONSIDERADA CUMPRIDA – EXTINÇÃO DO USUFRUTO ANTE A CONSOLIDAÇÃO “PLENA POTESTAS” – ALIENAÇÃO DA NUA-PROPRIEDADE E DO USUFRUTO CONCOMITANTEMENTE – POSSIBILIDADE – EXEGESE DO ARTIGO 1.410 , INCISO VI , DOCÓDIGO CIVIL  – POSSIBILIDADE. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO. (Rel. Des. Março Antonio de Moraes Leite, data do julgamento: 11/12/2007).

Estar a par dos entendimentos esposados anteriormente e, acima de tudo, lançar mão destes nas orientações emitidas aos usuários e clientes que dependem da prestação de serviços notarial, registral e jurídica em geral – em se tratando da advocacia – é preservar a celeridade dos atos e a economia para os interessados, sem atentar contra a segurança jurídica dos negócios jurídicos celebrados, de forma que as partes possam, por caminho consideravelmente menos tortuoso, alcançar o mesmo propósito, ou seja, transferir a nua propriedade em favor de um e o usufruto em favor de outro ou, até mesmo, ver pelo instituto da consolidação previsto no artigo 1.410, inciso VI do Código Civil, todos os direitos inerentes à propriedade se concentrar na pessoa do nu-proprietário.


*Advogada atuante no ramo Notarial e Registral do Estado de Mato Grosso. Pós-graduada em direito empresarial e advocacia empresarial. Contato: maraisa@zanchetaadvocacia.com.br.
Fonte: Notariado | 23/02/2015.

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Artigo: Breves considerações sobre o Valor Venal e o Valor de Referência – Por Gustavo Casagrande Canheu


*Gustavo Casagrande Canheu

Alguns munícipios paulistas, liderados pela capital do estado (Decreto Municipal nº 46.228/2005), têm criado, como nova base de cálculo do ITBI (imposto que incide sobre as transmissões onerosas de bens imóveis), o chamado “valor venal de referência”, ou ainda “valor de mercado”, que substitui o antigo valor venal, ainda utilizado como base de cálculo para outro imposto, o IPTU (imposto que incide sobre a propriedade predial e territorial urbana).

Como se sabe, a maioria dos municípios paulistas conta com plantas genéricas de valores altamente defasadas, isto é, as avalições que deu ensejo à cobrança do IPTU estão abaixo dos valores reais dos imóveis posto que há muito não são atualizadas, e algumas nunca o foram. Mudar a planta genérica é caro, demanda alto investimento com o mapeamento e a análise minuciosa de cada propriedade privada. E mais, tem forte reflexo político negativo, já que aumentar a base de cálculo do IPTU leva ao aumento do valor a ser pago por todos os munícipes (leia-se eleitores), por vezes em percentuais que ultrapassam os 100%.

A saída encontrada, então, para não mexer no bolso de toda a população, mas apenas daqueles que realizarem transmissões onerosas de bens imóveis, foi criar outra base de cálculo para o ITBI, ainda que tecnicamente seja ela a mesma do IPTU, isto é, o valor de mercado do bem transacionado. Essa inovação legislativa fruto de leis municipais específicas (no caso do município de São Paulo, é apenas um decreto), acaba por criar para um mesmo bem imóvel duas avaliações distintas, uma para o IPTU e outra para o ITBI, e o pior, ambas feitas pela mesma Fazenda Pública (municipal).

Nos autos da Apelação nº 1004131-85.2013.8.26.0053, a 14ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo, entendeu que a adoção de valores venais distintos para os aludidos tributos afronta o princípio da legalidade, uma vez que dispõe “o artigo 38 do Código Tributário Nacional que a base de cálculo do ITBI é o valor venal dos bens ou direitos transmitidos, conforme a redação do artigo 7º, da lei nº 11.154/91”, ou seja, “o referido imposto e o IPTU têm a mesma base de cálculo” (j. 10/04/2014, v. unânime, r. Des. João Alberto Pezarini).

O entendimento em questão parte de premissa simples: a expressão “valor venal”, sempre utilizada, significa valor de venda, isto é, valor de mercado. Portanto, numa simples interpretação literal da expressão vê-se que a saída encontrada pelos munícipios para não atingir o bolso de todos os contribuintes, mas mesmo assim arrecadar mais nos negócios de transmissão onerosa de bens, beira a ilegalidade. Valor venal e valor de mercado ou de referência para negócios imobiliários são absolutamente a mesma coisa. Soa muito estranho dizer que um município ora considera que seu imóvel vale “X” e ora considera que ele vale “Y”. Ou é errada a primeira avalição ou a segunda (as vezes até as duas), e isso permite ao contribuinte o questionamento judicial de uma ou de outra.

Por outro lado, não se pode olvidar que é cediça a desatualização dos chamados valores venais do IPTU, o que sempre levou uma disfarçada sonegação no momento da escrituração da transmissão onerosa de uma propriedade imobiliária. Talvez por isso, em observância ao princípio da supremacia do interesse público, o STJ firmou o entendimento de que a forma de apuração da base de cálculo e a modalidade de lançamento do IPTU e do ITBI são diversas, razão que justifica a não vinculação dos valores desses impostos (REsp 1.202.007/SP, Rel. Ministra Eliana Calmon, Segunda Turma, DJe 15/05/2013). No mesmo sentido: AgRg no AREsp 206.701/SP, Rel. Ministro Benedito Gonçalves, Primeira Turma, DJe 02/08/2013; AgRg no Ag 1.385.877/RS, Rel. Ministro Sérgio Kukina, Primeira Turma, DJe 03/06/2013; AgRg no AREsp 261.606/SP, Rel. Ministro Arnaldo Esteves Lima, Primeira Turma, DJe 22/2/13; AgRg no REsp 1.226.872/SP, Rel.Min. Castro Meira, Segunda Turma, DJe 23/4/12; AgRg nos EDcl no Agravo em Recurso Especial nº 36.076/SP, Rel. Min. Benedito Gonçalves, Primeira Turma, j. 27/08/13).

Em suma, ainda que discutível a existência de dois valores venais fixados pela mesma Fazenda Pública, entendemos, pelos motivos acima expostos, que os Tabeliães de todo o país estão obrigados, nas escrituras em que haja transmissão onerosa de bens imóveis, a seguir como valor do bem negociado, desde que maior do que o declarado pelas partes, o chamado valor de referência ou de mercado, quando existente, devendo ele ser a base de cálculo tanto dos emolumentos quando dos impostos incidentes. Eventual discordância da parte deverá ser submetida ao Poder Judiciário, em procedimento judicial próprio, muito embora o entendimento jurisprudencial atual não seja nada animador.

Fonte: Notariado | 24/02/2015.

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