Artigo – Necessidade de regulamentação sobre a data do casamento na conversão administrativa da união estável em casamento – Por Letícia Franco Maculan Assumpção


* Letícia Franco Maculan Assumpção

A conversão da união estável em casamento, procedimento no qual a celebração é dispensada, tem por fundamento legal o disposto no art. 226, § 3º, da Constituição da República 1, segundo o qual, para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável como entidade familiar2, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento. A determinação constitucional foi regulamentada pelo art. 8º da Lei nº 9.278/963 e pelo art. 1.726 do Código Civil4.

A forma administrativa de conversão da união estável em casamento, que se dá mediante requerimento feito pelos conviventes ao Oficial do Registro Civil, não foi disciplinada pelo Código Civil, mas a Lei nº 9.278/96 não foi revogada no que se refere ao procedimento administrativo, razão pela qual permanece a opção.

Tanto é assim que os Códigos de Normas do Extrajudicial5 da maioria dos estados da federação têm regido a questão de forma muito semelhante, estabelecendo a possibilidade da conversão da união estável em casamento tanto judicialmente quanto mediante procedimento administrativo, idêntico ao processo de habilitação para casamento comum, dispensando apenas a celebração6.

Nos referidos Códigos de Normas, a diferença entre o procedimento judicial e o administrativo de conversão de união estável em casamento é que, na forma administrativa, tem havido vedação do reconhecimento da data de início da união estável, o que somente pode ser feito no procedimento judicial. É o que ocorre nos Códigos de Normas de Minas Gerais, de São Paulo, do Espírito Santo, da Bahia, do Distrito Federal e do Rio Grande do Sul. Cabe questionar essa restrição, que não tem fundamento legal e que não está de acordo com a tendência de desjudicialização. O Oficial de Registro Civil poderia atuar da mesma forma que o Juiz de Direito atua, tomando por termo as declarações das testemunhas e dos nubentes sobre a data do início da união estável. Não se justifica afastar essa importante tarefa do Oficial de Registro Civil. A restrição é ainda mais absurda se considerado que o Notário, nas escrituras declaratórias de união estável e de sua dissolução, faz constar de forma expressa na escritura a data de início da convivência7.

Uma exceção é o Código de Normas do Paraná, segundo o qual, no requerimento apresentado pelos conviventes, haverá a indicação da data do início da união estável, devendo constar a referida data na certidão de casamento8. Sugere-se que seja novamente analisada a questão nos diversos estados da federação para que o procedimento do Paraná passe a ser adotado.

A conversão administrativa da união estável em casamento é um procedimento célere que prestigia o que foi previsto no texto constitucional, ou seja, facilita o casamento, mas há um grave problema: a falta de segurança jurídica no que tange à data que deve ser considerada como de realização do casamento. Nos casamentos em que há celebração, o casamento se realiza no momento em que os nubentes manifestam, perante o juiz de paz, a sua vontade de estabelecer vínculo conjugal, e o juiz de paz os declara casados, nos termos do art. 1.514 do Código Civil9. Assim, a data relevante é a da celebração, quando os nubentes passam ao estado civil de casados, mas na conversão da união estável em casamento não há celebração e não há lei disciplinando qual seria a data considerada como de realização do casamento. Portanto, pode-se indagar: na conversão de união estável em casamento administrativa seriam os conviventes considerados casados na data em que foi feito o requerimento de conversão ao Oficial de Registro ou na data em que foi feito o registro do casamento, após decorridos os prazos legais para a habilitação sem a constatação de impedimento?

A resposta a essa pergunta gera repercussões sérias. Examine-se um caso concreto em que os conviventes apresentam o requerimento de conversão ao Oficial, mas, antes expedida a certidão de habilitação ou mesmo antes do registro da conversão, um deles falece. Estarão eles casados ou não? Se o entendimento for no sentido de que os efeitos da conversão retroagem à data do requerimento, sim, estarão casados. Já se o entendimento for no sentido de que estarão casados apenas na data do registro, não terá havido casamento. Outra situação: se os conviventes apresentam hoje o requerimento de habilitação e a lei vigente estabelece que o regime legal para aqueles que se casam sendo maiores de 70 (setenta) anos é o da separação de bens. Se a lei vier a ser alterada no curso da habilitação, passando o limite de idade a ser de 80 (oitenta) anos, qual será o regime aplicável? Analisando a Lei nº 9.278/96, defende-se neste trabalho que, no procedimento administrativo de conversão da união estável em casamento, devem os conviventes, uma vez habilitados, ser considerados casados desde a data em que apresentaram o requerimento, gerando o registro efeitos retroativos. Isso porque a referida lei determina:

Art. 8° Os conviventes poderão, de comum acordo e a qualquer tempo, requerer a conversão da união estável em casamento, por requerimento ao Oficial do Registro Civil da Circunscrição de seu domicílio. (sem grifos no original)

Observe-se que a lei exige o requerimento ao Oficial e nada mais. E é no requerimento, feito ao Oficial de Registro, que as partes capazes manifestam a sua livre e espontânea vontade de que a união estável seja convertida em casamento, apresentando duas testemunhas, conforme têm sido regulamentado nos diversos códigos de normas. Não há outra oportunidade para tanto, já que nesse procedimento não há celebração. Apresentado o requerimento por ambos os conviventes ao Oficial de Registro Civil, o requisito previsto em lei para a conversão já terá sido observado. Outro argumento, de ordem prática, é que, por não haver celebração, o único momento em que o Oficial de Registro tem contato com os conviventes é na data do requerimento. O processo terá seu curso e, expedida a certidão de habilitação, em seguida será registrado o casamento. Portanto, o Oficial sequer terá conhecimento de falecimento ocorrido durante o processo de habilitação ou antes do registro. Mas, repita-se, na interpretação ora defendida, isso não importa, a manifestação de vontade foi feita pelos conviventes quando do requerimento ao Oficial e os efeitos do casamento, pois, devem ser dados a partir do requerimento. 

Situação muito semelhante, em que é admitido efeito retroativo, é o casamento religioso celebrado sem prévio processo de habilitação para casamento. O Código Civil10, nesse caso, retroage os efeitos à data da celebração religiosa, admitindo que, requerida pelo casal a habilitação posteriormente, a qualquer tempo, e não sendo encontrado impedimento, seja registrado o casamento civil. Para a conversão da união estável em casamento, no entanto, faltou regulamentação no Brasil no sentido de que a data de realização do casamento, após o curso do processo de habilitação, é aquela em que houve o requerimento ao Oficial.

A Corregedoria Geral de São Paulo, no processo nº CG 747/200411, decidiu, com força normativa, de acordo com a interpretação ora defendida, de que seja considerada a data do requerimento como data de realização do casamento, em caso concreto no qual havia sido requerida a conversão da união estável em casamento, mas um dos requerentes veio a falecer antes do registro. A ementa está abaixo reproduzida:
 
REGISTRO CIVIL – Conversão da união estável em casamento – Requerimento regularmente subscrito por ambos os conviventes – Posterior falecimento do varão – Processo de habilitação concluído, com expedição do correspondente certificado – Desnecessidade de celebração e, conseqüentemente, de assinatura dos cônjuges no assento – Possibilidade de sua lavratura – Ato do Oficial – Pedido submetido, de resto, ao crivo do Juiz Corregedor Permanente – Inteligência do art. 226, § 3º, da Constituição da República e do art. 1.726 do Código Civil – Análise do item 91, com os subitens 91.1 a 91.5, do capítulo XVII das Normas de Serviço da E. Corregedoria Geral da Justiça – Recurso provido – Força normativa, inclusive para que pleitos quejandos sejam sempre submetidos ao Juiz Corregedor Permanente, sem prejuízo do disposto naqueles subitens, enquanto não sobrevier ampla modificação das Normas de Serviço para adaptá-las à nova legislação. 
 
Do inteiro teor da referida decisão reproduz-se os seguintes excertos, pela pertinência:

Para correto enfoque do tema proposto, cumpre trazer à colação o texto que rege a matéria no plano constitucional e deve servir de norte à interpretação dos dispositivos ordinários que possam ser invocados. Cogita-se da orientação insculpida no parágrafo 3º do  artigo 226 da Magna Carta, segundo a qual, "para efeito de proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento".

O emprego do vocábulo facilitar induz, por óbvio, no que diz respeito às normas concernentes à comentada conversão, ao entendimento menos oneroso para os conviventes, assim como tão consentâneo à singeleza procedimental quanto possível.

[…]

Não faz sentido exigir que os conviventes, transmudados em cônjuges, assinem o assento, uma vez que a legislação pertinente, tratando da conversão da união estável em matrimônio, exige um único e apropriado momento para a manifestação da vontade de ambos: o da apresentação do pedido formal nesse sentido. Desse teor o artigo 8º da Lei nº 9.278/96 e, agora, o artigo 1.726 do Código Civil.

Eis o que basta. Esta – e não outra – a correta interpretação que merecem as disposições legais e normativas e apreço, por harmoniosa em relação ao comando do parágrafo 3º do artigo 226 da Constituição da República, segundo o qual, já se sabe, dita conversão será facilitada pelo ordenamento.

[…]

Aqui o alvo colimado é de constitucional limpidez: facilitar a transformação da união firme em casamento. Daí a exegese que se impõe, com o reconhecimento de que a formulação conjunta do pedido basta para espelhar a vontade, prescindindo-se de solenidade ou celebração e, ipso facto, de comparecimento dos interessados (assim como de testemunhas) para assinatura do assento. Firmará o registrador, tão-somente, ao lavrá-lo como ato de ofício.

O próprio Código Civil, em hipótese semelhante, qual seja a do casamento religioso informalmente celebrado, prevê expressamente a possibilidade de enunciação do consentimento antes da habilitação, ao admitir que, realizada esta a qualquer tempo, registre-se tal matrimônio, com o reconhecimento de efeitos civis (art. 1.516).

Voltando, porém, à hipótese concreta ora em análise, convém observar que em nada altera as conclusões expostas o perecimento do varão. 
 
Aperfeiçoada a manifestação de vontade pela manifestação do requerimento de fls. 08 (devidamente subscrito pelo falecido, que também assinou as declarações de fls. 10 e 11), já cumpridas as providências necessárias à habilitação, com expedição do correspondente certificado (fls. 15), e submetido o pedido ao Juiz (bem como, agora, a esta Corregedoria Geral, concluindo-se pela viabilidade), basta que o Oficial, independentemente de quaisquer solenidades ou formalidades adicionais, pratique o ato administrativo que exclusivamente lhe compete, lavrando e firmando o respectivo assento. Neste deverá, dada peculiaridade do caso, ser anotado o falecimento, nos termos dos artigos 106 e 107 da Lei nº 6.015/73, observando-se reciprocidade m relação ao assento de óbito, para que lá passe a constar a conversão da união estável em matrimônio.

CONCLUSÃO

O entendimento ora defendido, de que, se não for constatado impedimento no processo de habilitação, consideram-se casados os conviventes na data em que foi feito o requerimento ao Oficial, parece ser o melhor tanto por preservar a vontade das partes em caso de eventual falecimento no curso da habilitação quanto por observar o pouco que a Lei nº 9.278/96 determinou. No entanto, a dúvida pode gerar sérios transtornos, pelo que é essencial que haja regulamento nacional sobre o tema.

Na situação atual, se no caso concreto houver alguma questão que cause dúvidas, como aquelas acima exemplificadas, a decisão final quanto à data em que se realizou o casamento não caberá ao Oficial de Registro, mas sim ao Judiciário. Sugere-se, apenas, que o Oficial de Registro faça incluir, tanto no livro quanto na certidão respectiva, a data em que o requerimento foi apresentado. Tal procedimento em nada prejudica as partes e pode facilitar a análise da questão quando de eventual discussão judicial.

____________ 

1. Estabelece o mencionado art. 226, § 3º: Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento. 

2. Não houve alteração da redação do art. 226, § 3º da Constituição da República, que continua mencionando a união estável “entre o homem e a mulher”, mas o Supremo Tribunal Federal – STF, aio de 2011, deu interpretação constitucional no sentido de que há união estável na convivência contínua e duradoura entre pessoas do mesmo sexo, com o objetivo de constituição de família. Ver Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF nº 132 e Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI nº 4277.

3. O art. 8º da Lei nº 9.278/96 assim determina: Os conviventes poderão, de comum acordo e a qualquer tempo, requerer a conversão da união estável em casamento, por requerimento ao Oficial do Registro Civil da Circunscrição de seu domicílio.

4. O art. 1.726 do Código Civil tem a seguinte redação: Art. 1.726. A união estável poderá converter-se em casamento, mediante pedido dos companheiros ao juiz e assento no Registro Civil.

5. Os Códigos de Normas do Extrajudicial são consolidações de resoluções, provimentos e orientações oriundos das Corregedorias-Gerais de Justiça dos Estados relacionados aos serviços prestados por notários e registradores.

6. A questão é tratada da seguinte forma pelo Código de Normas do Extrajudicial de Minas Gerais, Provimento nº 260/CGJ/2013: 
 
Art. 522. A conversão da união estável em casamento será requerida pelos conviventes ao oficial de registro civil das pessoas naturais da sua residência.

§ 1º Para verificar a superação dos impedimentos e o regime de bens a ser adotado no casamento, será promovida a devida habilitação e lavrado o respectivo assento nos termos deste título.

§ 2º Uma vez habilitados os requerentes, será registrada a conversão de união estável em casamento no Livro “B”, de registro de casamento, dispensando-se a celebração e as demais solenidades previstas para o ato.

§ 3º Não constará do assento data de início da união estável, não servindo este como prova da existência e da duração da união estável em período anterior à conversão. 
 
Art. 523. Para conversão em casamento com reconhecimento da data de início da união estável, o pedido deve ser direcionado ao juízo competente, que apurará o fato de forma análoga à justificação prevista nos arts. 861 e seguintes do Código de Processo Civil. Parágrafo único. Após o reconhecimento judicial, o oficial de registro lavrará no Livro “B”, mediante apresentação do respectivo mandado, o assento da conversão de união estável em casamento, do qual constará a data de início da união estável apurada no procedimento de justificação.

Art. 524. O disposto nesta seção aplica-se, inclusive, à conversão de união estável em casamento requerida por pessoas do mesmo sexo.

7. Nesse sentido o Código de Normas do Extrajudicial de Minas Gerais, art. 229, § 3º: Na escritura de dissolução de união estável, deverá constar a data, ao menos aproximada, do início da união estável, bem como a data da sua dissolução, podendo dela constar também qualquer declaração relevante, a critério dos interessados e do tabelião, sendo a escritura pública considerada ato único independentemente do número de declarações nela contidas. 

8. Estabelece o Código de Normas do Paraná (sem grifos no original): 

CONVERSÃO DA UNIÃO ESTÁVEL EM CASAMENTO

· Ver arts. 1.723 a 1.727 do Código Civil.

Art. 280. A conversão da união estável em casamento deverá ser requerida pelos conviventes ao oficial do registro civil das pessoas naturais de seu domicílio.

Art. 281. Será admitido o processamento do pedido de conversão da união estável em casamento apresentado por pessoas do mesmo sexo.

. Ver ADPF 132 e ADI 4277 do STF;

. Ver Procedimento nº 2011.0251229-0/000;

Art. 282. O requerimento será apresentado pelos conviventes e será acompanhado de declaração de que mantêm união estável, que têm perfeita ciência de todos os efeitos desta declaração e que não estão impedidos para o casamento. 

· Ver art. 8.º da Lei nº 9.278, de 10.05.1996.

Parágrafo único. No requerimento haverá a indicação da data do início da união estável. 
 
Art. 283. O requerimento e os documentos serão autuados como habilitação, observando-se o disposto na seção 6 deste capítulo.

Art. 284. Nos editais haverá expressa indicação de que se trata de conversão de união estável em casamento.

Art. 285. Decorrido o prazo legal do edital e observadas as disposições do item anterior, será lavrado o assento da conversão da união estável em casamento, independentemente de qualquer solenidade, prescindindo o ato da celebração do matrimônio.

Art. 286. O assento da conversão da união estável em casamento será lavrado no Livro "B", exarando-se o determinado nos arts. 70, 1º ao 8º e 10 da Lei de Registros Públicos.

Art. 287. Os espaços próprios do nome e assinatura do celebrante do ato serão inutilizados, anotando-se no respectivo termo que se trata de conversão de união estável em casamento, tal como exigido no art. 8º da Lei nº 9.278, de 10.05.1996.

Art. 288. A conversão da união estável dependerá da superação dos impedimentos legais para o casamento e sujeitará os companheiros a todas as normas de ordem pública pertinentes ao casamento

Art. 289. A ausência de indicação de regime de bens específico, instrumentalizado em contrato escrito, obrigará os conviventes, no que couber, ao regime de comunhão parcial de bens, conforme exigência do art. 1.725 do Código Civil.
 
· Ver art. 1.725 do Código Civil.

Art. 290. Constará da certidão de casamento por conversão da união estável o termo inicial da convivência.

9. Código Civil: Art. 1.514. O casamento se realiza no momento em que o homem e a mulher manifestam, perante o juiz, a sua vontade de estabelecer vínculo conjugal, e o juiz os declara casados.

10. Código Civil: art. 1.516, § 2º. O casamento religioso, celebrado sem as formalidades exigidas neste Código, terá efeitos civis se, a requerimento do casal, for registrado, a qualquer tempo, no registro civil, mediante prévia habilitação perante a autoridade competente e observado o prazo do art. 1.532.

11. Publicado no Diário Oficial do Poder Judiciário de São Paulo, Caderno 1, Parte I, em 24 de novembro de 2004.

____________

* Letícia Franco Maculan Assumpção é graduada em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (1991), pós-graduada e mestre em Direito Público. Foi Procuradora do Município de Belo Horizonte e Procuradora da Fazenda Nacional. Aprovada em concurso, desde 1º de agosto de 2007 é Oficial do Cartório do Registro Civil e Notas do Distrito de Barreiro, em Belo Horizonte, MG. É autora de diversos artigos na área de Direito Tributário, Direito Administrativo, Direito Civil e Direito Notarial, publicados em revistas jurídicas, e do livro Função Notarial e de Registro. É Presidente do Colégio do Registro Civil de Minas Gerais e do CNB/MG

Publicação: Portal do RI (Registro de Imóveis) | O Portal das informações notariais, registrais e imobiliárias!

Para acompanhar as notícias do Portal do RI, siga-nos no twitter, curta a nossa página no facebook, assine nosso boletim eletrônico (newsletter), diário e gratuito, ou cadastre-se em nosso site.




Artigo: O Alvará Municipal e as Serventias Extrajudiciais – Por Moacyr Petrocelli de Ávila Ribeiro


* Moacyr Petrocelli de Ávila Ribeiro

Ultimamente os municípios têm investido com freqüência contra as unidades de serviços notariais e de registros para a cobrança da chamada “taxa de licença”, como forma de viabilizar a expedição pelas prefeituras do respectivo alvará de funcionamento para os cartórios.

Para enfrentar a questão, de saída, há de considerar que os serviços notariais e de registros possuem natureza pública. Já não é novidade que a atividade notarial e registral, desde o advento da Constituição Federal de 1988, possui roupagem peculiar, caracterizando-se pelo exercício privado de uma função pública, mediante delegação do Poder Público (art. 236, caput, da CF).

Nesse trilho, os serviços de registro e notariais são públicos, não afastando esta característica o fato de serem prestados em caráter privado por particulares. Segundo a doutrina, inclusive, seus atores enquadram-se na categoria de particulares em colaboração com o Estado, de modo que as unidades para as quais receberam a delegação do Poder Público são consideradas parte integrante da organização judiciária, como serventias do foro extrajudicial.

Em outros dizeres, apesar dos atos notariais e de registro serem exercidos em caráter privado – porque eles não são remunerados pelos cofres públicos, mas sim pelo pagamento de custas e emolumentos que lhes fazem os interessados nos respectivos serviços –, tal circunstância não desnatura a natureza dos referidos serviços, que são sabidamente públicos. São, em realidade, atividades jurídicas próprias do Estado, cuja prestação é traspassada para os particulares mediante delegação. Vale dizer, notários e registradores atuam como delegados do Poder Público.

Nesse caminho, colhe-se elucidativo raciocínio de José Cretella Júnior: “Relembre-se que o serviço público tem esse caráter, não em si e por si, em essência – serviço público material – mas ‘em razão de quem o fornece’. Se o Estado titulariza certo serviço – ensino, transporte, a atividade é, formalmente, serviço público. Os serviços notariais e de registro cabem, por sua relevância, ao Estado, mas os Poderes Públicos, por delegação, permitem que sejam exercidos em caráter privado”. 1

Com arrimo nessas ponderações iniciais, faz-se necessário considerar que os serviços notariais e de registros não podem ser equiparados às atividades comerciais comuns ou mesmo assemelhados a qualquer serviço prestado em iniciativa privada. Colaciona-se nessa linha de pensamento manifestação precisa de Ana Luísa de Oliveira Nazar de Arruda: “Muito salutar é, entretanto, salientar efusivamente que um cartório não pode ser equiparado a uma empresa privada, em que se prestam serviços de caráter privado, essencialmente disponíveis, muitas vezes supérfluos, e de natureza eminentemente contratual. Os serviços notariais e de registro são de natureza compulsória, de caráter público, cuja prestação interessa a toda sociedade”. 2

Sedimentada esta premissa, indaga-se: afinal, o que é alvará?

Hely Lopes Meirelles sempre ensinou que “Alvará é o instrumento de licença ou da autorização para a prática de ato, realização de atividade ou exercício de direito dependente de policiamento administrativo. É o consentimento formal da Administração à pretensão do administrado, quando manifestada em forma legal.” 3

A partir do conceito fornecido pela clássica doutrina administrativista vê-se que “alvará” nada mais é do que um ato administrativo pelo qual a Administração Pública confere licença ou autorização para a prática de ato ou para o exercício de atividade sujeitos ao poder de polícia do Estado – tomada aqui a expressão “Estado” no seu sentido amplo, significando qualquer das pessoas jurídicas de direito público, na esfera federal, estadual e municipal.  

Nessa senda, não parece correto admitir que o funcionamento da unidade de serviço extrajudicial – que presta serviço público à população e cuja existência decorre de Lei, havendo regras definidas nas Leis Federais 6.015/73, 8.935/94. 9.492/97 e 10.169/00, entre outras – possa estar condicionado à concessão de alvará por parte da municipalidade. Ora, se como adrede examinado, a atividade do notário e do registrador é considerada serviço público disciplinado por lei, não há outra conclusão a se chegar. Falta aos municípios legitimidade para autorizar a prestação ou o funcionamento dos serviços notariais e de registros. Entender noutro sentido, com a devida vênia, leva ao absurdo de se permitir, por exemplo, a exigência de alvará municipal para a instalação e funcionamento do fórum de determinada comarca, ou de qualquer outro órgão público seja do Estado, seja da União.

Em passo seguinte, a esta altura já com certa maturidade doutrinária, não se discute mais que na novelsistemática constitucional, o poder delegante a que se refere a Lex Mater, no caput do art. 236, é, inexoravelmente, o Poder Judiciário. Afinal, se este é o Poder responsável pela fiscalização e decretação do fim da delegação – nos termos da Lei vetora da atividade notarial e registral (Lei nº 8.935/1994) –, nada mais natural que seja atribuída ao Judiciário a competência para outorgar as delegações notariais e de registros.

Nesse ângulo, ainda na dogmática jurídico-constitucional, o § 1º do art. 236 da Constituição – norma constitucional de eficácia limitada, na clássica dicção de José Afonso da Silva – estabelece, que “Lei regulará as atividades, disciplinará a responsabilidade e criminal dos notários, os oficiais de registro e de seus prepostos, e definirá a fiscalização de seus atos pelo Poder Judiciário”.  

A premissa constitucional é muito clara e espanca qualquer dúvida. Não há, pois, necessidade de qualquer esforço hermenêutico para concluir que o Poder Judiciário é o responsável pela fiscalização dos serviços notariais e de registros.

Completando o preceito constitucional, a Lei nº 8.935/1994 disciplinou detalhadamente o regime jurídico a ser aplicado aos notários e registradores e em capítulo específico (Capítulo VII) esmiuçou como deve ser a fiscalização do Poder Judiciário frente às serventias extrajudiciais. Observe-se em detalhe a polida redação do art. 37, que para sua intelecção dispensa outras ponderações: “A fiscalização judiciária dos atos notariais e de registro, mencionados nos arts. 6º a 13, será exercida pelo juízo competente, assim definido na órbita estadual e do Distrito Federal, sempre que necessário, ou mediante representação de qualquer interessado, quando da inobservância de obrigação legal por parte de notário ou de oficial de registro, ou de seus prepostos”.

Coloca-se em evidência que não é outro o objetivo dessa zelosa fiscalização a ser materializada pelo Judiciário Estadual senão para que os serviços notariais e de registros “sejam prestados com rapidez, qualidade satisfatória e de modo eficiente, podendo sugerir à autoridade competente a elaboração de planos de adequada e melhor prestação desses serviços, observados, também, critérios populacionais e sócio-econômicos, publicados regularmente pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística” (art. 38 da Lei nº 8.935/1994).

Com efeito, considerando-se o alvará como instrumento que materializa uma fiscalização positiva em relação à determinada atividade, é de rigor advertir que na hipótese dos serviços notariais e de registros, essa fiscalização é incumbência exclusiva do Poder Judiciário. Nessa ampla moldura, eventual interferência do Poder Executivo Municipal na fiscalização dos cartórios extrajudiciais mostra-se juridicamente inoportuna e incabível, capaz inclusive de balançar a harmoniosa convivência dos Poderes da República, comprometendo-se o pacto federativo.

Diga-se de passagem, sequer legitimação constitucional para esta atuação dos municípios existe. Peremptória, nesse sentido, foi a conclusão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul: “(…) Trata-se de matéria incontroversa, havendo expressas disposições legais a discipliná-la no sentido de que compete ao Poder Judiciário fiscalizar as atividades realizadas pelos notários, oficiais de registros e respectivos delegados, não podendo, pois, o Município exercer poder de polícia com relação a estes serviços. Nos termos do art. 236, § 1º, da CF/88 e art. 37 da Lei n. 8.935/84, compete ao Poder Judiciário estadual fiscalizar as atividades realizadas pelos notários, oficiais de registros e seus respectivos prepostos, sendo indevida a exigência, pelo ente municipal, de licença prévia de funcionamento e cobrança de taxa de fiscalização ou vistoria (TJRS – Apelação Cível 70042273854, 2ª Câmara Cível, Rel. Des. Arno Werlang, DJ 13.12.2012). Também nessa linha confiram-se os julgados:TJRS – Apelação Cível nº 70015176829, Primeira Câmara Cível, Rel. Luiz Felipe Silveira Difini, julgado em 09/08/2006; TJRS – Apelação e Reexame Necessário nº 70010126001, Primeira Câmara Cível, Rel. Henrique Osvaldo Poeta Roenick, julgado em 15/12/2004. 

Quadra anotar ainda que não bastassem todos esses fundamentos jurídicos, há um imperativo de ordem prática que também deve ser considerado. No mais das vezes, o que se vê no mundo dos fatos é que a fiscalização municipal se limita única e exclusivamente à mera arrecadação de taxas periódicas e nada mais. É dizer em palavras outras que sequer o poder de polícia municipal – que serve de substrato para a exação tributária na modalidade “taxa” – é efetivamente levado a efeito pelo Poder Executivo Municipal, resumindo-se à cobrança do tributo sem qualquer conduta ou providência de ordem fiscalizatória para com aspectos técnicos referentes à instalação, funcionamento, higiene, saúde, segurança, ordem ou tranqüilidade públicas.

Entrementes, os municípios costumam fundamentar sua atuação fiscalizatória na necessidade de verificação do correto uso e ocupação do solo, localização física dos prédios, atendimento à legislação de acessibilidade, dentre outras questões. Cabe dizer que nessa ótica verifica-se nítida desconsideração por parte dos municípios da peculiar natureza jurídica dos serviços notariais e de registros, que, como amplamente explorado, não se confundem com as atividades das empresas privadas. Nessa linha de raciocínio, observe-se pedagógica manifestação do Tribunal de Justiça do Distrito Federal: “O poder de policia a ser exercido por serviços desta natureza, ainda que relacionado à questão urbanística, é da competência exclusiva da Corregedoria do Tribunal de Justiça, de forma que a exigência pelo Distrito Federal de Alvará de Funcionamento é indevida.(…) Avaliar se o imóvel é ou não seguro para a atividade, se está de acordo com as normas urbanísticas e ambientais, com o zoneamento, com os padrões legalmente estabelecidos para o funcionamento dos prédios”, para efeito de exigência de expedição de alvará de funcionamento, é rigorosamente providência desnecessária, uma vez que esse exame é feito quando da construção do prédio pela Emissão do Alvará de construção, depois, pela expedição de carta de Habite-se. Manifesto o desvio de finalidade com que se houve a autoridade coatora” (TJDFT – 2ª T. Cível, Apelação Cível e Remessa de Ofício nº 2000.01.1 081982-9, Rel. Des. Edson Alfredo Smaniotto, julgado em 01/12/2003). 

Eloquente, a propósito, é o argumento de que as normatizações administrativas a cargo das Corregedorias Gerais da Justiça dos Estados – verdadeiras responsáveis pela orientação, coordenação e fiscalização das unidades de serviços extrajudiciais – têm evoluído sensivelmente no regramento das condições e exigências para a prestação dos serviços notariais e de registros, detalhando minuciosamente os padrões a serem observados pelos seus titulares. Mencione-se, por exemplo, valiosa previsão contida nas Normas do Serviço Extrajudicial da Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo, que em seu Capítulo XIII, item 20.1, determina: “Observadas as peculiaridades locais, ao Juiz Corregedor Permanente caberá a verificação dos padrões necessários ao atendimento deste item, em especial quanto a: a) local, condições de segurança, conforto e higiene da sede da unidade do serviço notarial ou de registro; (…) c) adequação de móveis, utensílios, máquinas e equipamentos, fixando prazo para a regularização, se for o caso; (…) g) fácil acessibilidade aos portadores de necessidades especiais, mediante existência de local para atendimento no andar térreo (cujo acesso não contenha degraus ou, caso haja, disponha de rampa, ainda que removível); h) rebaixamento da altura de parte do balcão, ou guichê, para comodidade do  usuário em cadeira de rodas; i) destinação de pelo menos uma vaga, devidamente sinalizada com o símbolo característico na cor azul (naquelas serventias que dispuserem de estacionamento para os veículos dos seus  usuários) e, finalmente, um banheiro adequado ao acesso e uso por tais cidadãos”.

De mais a mais, comprovando-se não tratar de mero argumento de retórica, em termos essencialmente práticos, tem se verificado no contexto hodierno uma objetiva e eficaz fiscalização realizada pelo Poder Judiciário nas serventias extraforenses, bastando para se chegar a esta certeza uma simples análise das atas de correição, nas quais se encontram elencados diversos pontos como instalações, equipamentos, acessibilidade, higiene, segurança entre outros. Irrefutável, pois, que as condutas fiscalizatórias das prefeituras municipais esbarram em atribuições de outro Poder. Alinhando-se ao entendimento de ser exclusividade do Poder Judiciário a fiscalização das unidades extrajudiciais o Supremo Tribunal Federal já se manifestou sem deixar dúvidas: “Taxa em razão do poder de polícia. A Lei matogrossense nº 8.033/2003 instituiu taxa em razão do exercício do poder de polícia. Poder que assiste aos órgãos diretivos do Judiciário, notadamente no plano da vigilância, orientação e correição da atividade em causa, a teor do § 1º do art.236 da Carta-cidadã” (STF – ADI nº 3151, julgado 08/06/2005, Rel. Min. Carlos Ayres Brito, DJ de 28/04/2006).

Por derradeiro, cabe acrescentar outro estribado argumento alhures apresentado por Marco Antonio de Oliveira Camargo. 4  Considerando-se, à guisa de raciocínio, as serventias de registro civil das pessoas naturais, a Lei nº 8.935/1994 determina peremptoriamente que “em cada sede municipal haverá no mínimo um registrador civil das pessoas naturais”. Desse modo, se a lei exige sua existência em todos os municípios não tem cabimento as prefeituras municipais dificultar ou impedir a instalação e funcionamento desse serviço trivial aos cidadãos. Parece teratológico considerar possível que a municipalidade possa censurar o funcionamento deste essencial serviço público. Imagine-se, nesse passo, o absurdo que seria se determinado município recusasse a concessão do alvará de funcionamento de uma serventia de registro civil das pessoas naturais – o que, para quem defende a legitimidade da fiscalização municipal, seria em tese possível, já que a concessão ou não do alvará é ato discricionário da municipalidade. Quem faria os registros de nascimento e de óbito? Os munícipes ficariam impedidos de se casar?

Em razão do princípio da continuidade dos serviços públicos, assim como da essencialidade dos serviços notariais e de registros à população é ululante que o ente municipal não pode impedir a prestação destes serviços indispensáveis.  Aliás, sob este prisma a questão já foi enfrentada pelo Tribunal de Justiça do Estado do Mato Grosso, tendo sido afastada conduta manifestamente ilegal de determinado município: “Reexame Necessário de Sentença. Mandado de Segurança. Fechamento de cartório de registro civil como meio coercitivo no recebimento pela prefeitura municipal de taxa de alvará e localização dessa entidade judicial. Ilegalidade do ato. Ordem concedida. Sentença reexaminada confirmada. Traduz-se em ato ilegal e abusivo o Decreto Legislativo Municipal que determina o fechamento de Cartório de Registro Civil como meio coercitivo no recebimento dos tributos devidos por essa entidade judicial"(TJMT – RN 1.002, 2ª Câmara Cível, Rel. Des. José Ferreira Leite, julgado 26.11.1996) .5

Por todos os argumentos articulados é de se concluir que as serventias extrajudiciais não estão sujeitas à ingerência fiscalizatória dos municípios, de modo que eventuais condutas das autoridades municipais nesse sentido, em realidade, desnaturam todo o arcabouço jurídico que rege a atividade notarial e registral.

__________

Referências

1. CRETELLA JÚNIOR, José. Comentários à Constituição de 1988, vol. IX, p. 4.611.

2. ARRUDA, Ana Luísa de Oliveira Nazar. Cartórios extrajudiciais: Aspectos Civis e Trabalhistas. Editora Atlas, p.17.

3. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. Malheiros Editores, 22ª Edição. p.122 e 123.

4. CAMARGO, Marco Antonio de Oliveira. Da desnecessidade de alvará e taxa municipal, publicado em 06/12/2010, no blog do Colégio Notarial do Brasil, acessível em http://www.notariado.org.br/blog/?link=visualizaArtigo&cod=204)

5. RIBEIRO, José. Serviços Notariais e registrais. Imposto sobre serviço – ISS. As serventias e o alvará municipal. Disponível emhttp://www.irib.org.br/html/boletim/boletim-iframe.php?be=3247

__________

Publicação: Portal do RI (Registro de Imóveis) | O Portal das informações notariais, registrais e imobiliárias!

Para acompanhar as notícias do Portal do RI, siga-nos no twitter, curta a nossa página no facebook, assine nosso boletim eletrônico (newsletter), diário e gratuito, ou cadastre-se em nosso site.