Artigo: DA IMPOSSIBILIDADE DE APOSTILAMENTO DE DOCUMENTOS TRADUZIDOS POR TRADUTOR NÃO JURAMENTADO – RECONHECIMENTO DE FIRMA COMO FORMA DE BURLAR O SISTEMA DA CONVENÇÃO DA APOSTILA – Por Igor Emanuel da Silva Gomes


*Igor Emanuel da Silva Gomes

A Convenção sobre a Eliminação da Exigência de Legalização de Documentos Públicos Estrangeiros está em vigor no Brasil desde agosto/2016.

Também conhecida como Convenção da Apostila, tornou mais simples e ágil a tramitação de documentos públicos entre o Brasil e os mais de cem países que são partes daquele acordo. A vigência da Convenção da Apostila traz significativos benefícios para cidadãos e empresas que necessitem tramitar internacionalmente documentos como diplomas, certidões de nascimento, casamento ou óbito, além de documentos emitidos por tribunais e registros comerciais.

A Convenção da Apostila permite a “legalização única”, bastando ao interessado dirigir-se a um cartório habilitado no Estado e solicitar a emissão de uma “Apostila da Haia” para um documento. A apostila confere validade internacional ao documento, que poderá ser apresentado nos 111 países que já aderiram à Convenção.

Esse procedimento garante que cidadãos e empresas gastem menos recursos e tempo na tramitação internacional de documentos, o que contribui de forma decisiva para o fomento da atividade econômica. Segundo estudo conduzido pelo Banco Mundial, a adesão plena aos procedimentos da Convenção da Apostila aumenta a competitividade global e a capacidade de atração de investimentos externos do país.

A Convenção da Apostila é um documento que aproxima os países a um “acordo de fidelidade”, e exige das autoridades apostilantes, sob o manto da segurança jurídica, a “certificação da origem do documento”.

A Certificação da origem do documento público, em tese, não requer verificação de validade intrínseca do seu conteúdo, porquanto dispõe de sua natureza pública (parágrafo 25 do manual Convenção).

Já a Certificação da origem do documento particular, para segurança do tabelião/registrador (e imagem do Brasil perante países signatários) que irá reconhecer a firma constante do mesmo, deverá ter seu conteúdo analisado, pois o ato que autoriza o apostilamento advêm de uma autoridade emitente de ato público (tabelião).

Pouco mais de 6 (seis) meses do ingresso da Convenção da Apostila no ordenamento jurídico pátrio, já é possível encontrar notícias de cartórios que têm admitido o apostilamento de documentos traduzidos por particulares, em arrepio as disposições do Provimento nº 58/2016-CNJ e Decreto nº 13.609/1943. “Justificam” tal procedimento com a realização de reconhecimento das firmas de seus autores, e posterior cópia autenticada, visto que, em tese, é possível o apostilamento de “ato notarial ou validação oficial”.

Exemplo: O particular traduz seu documento na via que melhor lhe apraz financeiramente (tradutor não juramentado), e solicita o reconhecimento de firma da pessoa que traduziu (particular). A partir disso, solicita ao serviço notarial e/ou registral o apostilamento do ato notarial (reconhecimento de firma e/ou cópia autenticada).

É de se ressaltar que qualquer insurgência contra a regra imposta no Provimento nº 58/2016-CNJ, com o perdão da palavra, representa burla ao sistema da Convenção da Apostila.

Na redação original do artigo 13º do Provimento 58/2016-CNJ, era possível encontrar dispositivo no sentido de que a tradução feita por particular (tradutor não juramentado) fosse admitida.

Entretanto, essa possibilidade foi superada nos autos do Pedido de Providências nº 0007437-63.2016.2.00.0000 movido pela Associação dos Profissionais de Tradução Pública e Intérpretes Comerciais (representando vários entidades) em desfavor da Corregedoria Nacional de Justiça.

Nos autos daquele PP firmou-se convencimento no sentido de suspender os efeitos dos parágrafos 1º, 2º, 3º e 4º do art. 13, do Provimento CNJ 58/2016, determinando que o apostilamento de documentos exarados em língua estrangeira, nos moldes do Decreto n. 13.609, de 21 de outubro de 1943, seja traduzido por tradutor juramentado, e que a tradução seja objeto de apostilamento próprio.

É preciso ter sensibilidade e cumplicidade com os ideais da Convenção de Haia, pois refere-se à identidade internacional dos documentos nacionais.

Em que pese à possibilidade de realização de atos de validação oficial de documentos particulares (cópia autenticada, reconhecimento de firma), sua finalidade é dar projeção de documento público àquele documento particular. Porém, documentos públicos e/ou particulares que contrariem à legislação vigente não tem espaço ou relevância no âmbito jurídico – sendo nulos ou anuláveis.

A tradução realizada por tradutor não juramentado, além de não ser documento público, também não poderia ganhar tal projeção por meio de validação oficial (cópia autenticada, reconhecimento de firma) por haver expressa vedação legal – ofende o ordenamento jurídico pátrio (decisão CNJ).

Procedimento como este que estamos abordando vai de encontro (contra) ao projeto da Convenção da Apotila.

No documento público stricto sensu, a natureza pública do próprio documento, por fé pública de quem o emitiu, implica que o seu conteúdo é verdadeiro e correto. Ou seja, o documento público nato em tese é verdadeiro e correto.

Já o documento particular validado oficialmente por um tabelião (reconhecimento de firma – ato notarial público que não garante a validade do conteúdo), pode ser falso e/ou contrário ao ordenamento jurídico brasileiro. Portanto, não deverá ser validado para fins de apostilamento.

Neste cenário, o documento particular pode ser montado (via rec. de firma / autenticação) para ser apostilado. Por essa razão, requer-se por parte dos tabelionatos e registradores análise acurada de seu conteúdo para fins de apostilamento, sob pena de banalização (burla) da Convenção de Haia.

Observação: Tratamento absolutamente diferente deve ser empregado quando do apostilamento de “cópias autenticadas” de documentos de identificação pessoal reconhecidos oficialmente no Brasil, tais como: CNH, RG, CTPS, CARTEIRA PROFISSIONAL, PASSAPORT.

Especificamente neste tipo de documento, sua autenticidade não é atestada tão somente pela assinatura de seu emitente, visto que são digitalizadas, e impossível de se reconhecer a firma. Para esses casos, a verificação da autenticidade do documento é feita através da verificação dos elementos de segurança do documento, tais como: papel seguro, papel numismático, invólucro/forma, talho doce e outros.

Para estes casos, é possível a reprodução de fotocópia autenticada (validação oficial), e a partir do reconhecimento do sinal público do ato de autenticação, proceder o apostilamento do documento.

Nos termos do artigo 2º do Provimento nº 58/2016-CNJ,  o ato de aposição de apostila realizado pelas autoridades competentes “deve seguir rigorosamente o disposto na Resolução CNJ n. 228/2016 e seus anexos e no presente provimento. O parágrafo único do artigo impõe que o descumprimento das disposições contidas na mencionada resolução e no provimento pelas autoridades competentes para a aposição de apostila ensejará a instauração de procedimento administrativo disciplinar.

Concluímos dizendo que o apostilamento na esfera extrajudicial é mais uma forma de prestígio do Executivo, Judiciário e Legislativo para com classe cartorária, que, merecidamente, a partir da Constituição Federal de 1988, com a imposição de realização de concurso público para ingresso na atividade, têm entregado à sociedade brasileira serviços jurídicos de altíssima qualidade, efetividade, celeridade e segurança.

O notário/registrador deve realizar suas atribuições, inclusive o Apostilamento, com a maior distinção possível, revelando-se incapaz de contribuir com interpretações que busquem fragilizar a imagem do Brasil perante outros países, e/ou negar oxigênio a segurança jurídica de seus atos, ou atos normativos emanados de autoridades superiores.

São nossas considerações.

IGOR EMANUEL DA SILVA GOMES

Advogado militante, sócio fundador do escritório OGGIONI & GOMES Advogados Associados, graduado em direito na Faculdade de Direito de Cachoeiro de Itapemirim/ES, pós graduado em Direito Civil e Processual Civil pela Fundação Getúlio Vargas, especialista em Direito Notarial e Registral, colunista do Colégio Notarial do Brasil – Conselho Federal, Assessor Jurídico de Cartórios Extrajudicias, Assessor Jurídico do Colégio Notarial do Brasil – Seção Espírito Santo, ministra curso aplicados na de direito civil notarial.

Fonte: CNB/CF | 24/04/2017.

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Artigo: A PROCURAÇÃO PARA A LAVRATURA DE ESCRITURA DE ALIENAÇÃO DE IMÓVEIS PODE TER EFICÁCIA MESMO APÓS O FALECIMENTO DO MANDANTE – Por Letícia Franco Maculan Assumpção


*Letícia Franco Maculan Assumpção

Questão tormentosa que costuma se apresentar nos tabelionatos de notas é o pedido de lavratura de escritura em relação a negócios já realizados e quitados há muitos anos, sendo apresentada procuração que não foi revogada, mas havendo notícia de que o mandante já faleceu.

Sabe-se que o Código Civil, em seu art. 682 estabelece que cessa o mandato:

I – pela revogação ou pela renúncia;
II – pela morte ou interdição de uma das partes;
III – pela mudança de estado que inabilite o mandante a conferir os poderes, ou o mandatário para os exercer;
IV – pelo término do prazo ou pela conclusão do negócio.

Apesar do disposto no artigo acima reproduzido, a doutrina explica que a regra da causa extintiva que decorre da morte do mandante é atenuada em virtude das disposições do art. 674 do Código Civil, com fundamento no princípio do periculum in mora. Havendo risco de dano potencial, envolvendo o objeto do mandato, deverá o mandatário concluir negócio já iniciado, mesmo ciente da morte do mandante, de modo a prevenir eventuais prejuízos aos sucessores do mandante ou aos terceiros com quem o mandatário transacionar.

Pode-se entender que o perigo da demora pode se caracterizar pela simples necessidade de os promissários compradores terem que ingressar em juízo para obter a escritura definitiva, o que poderá acarretar danos aos sucessores do mandante e ao próprio mandatário, como o pagamento de custas processuais e honorários advocatícios, além de outros danos que possam ocorrer.

Além do disposto no art. 674 do Código Civil, também o art. 689 determina que “são válidos, a respeito dos contratantes de boa-fé, os atos com estes ajustados em nome do mandante pelo mandatário, enquanto este ignorar a morte daquele ou a extinção do mandato, por qualquer outra causa”.

J.M. CARVALHO SANTOS, ensina:

“Deve o mandatário concluir o negócio já começado, se houver perigo na demora. Pressupõe-se, como se vê, o mandato já em execução, quando se verifica a extinção dele por qualquer das causas apontadas, e se ocorre uma urgência tal que não possa o mandato ser abandonado, a não ser com graves prejuízos para os interesses do mandante, ou de seus sucessores, autoriza o Código prossiga o procurador a execução do mandato, sem aguardar novas ordens, nova procuração ou seu substituto. Condição exigida: se houver perigo na demora. Esta a razão decisiva e um dos pontos que bem nítida torna a diferença entre o mandato e a gestão de negócios, na qual o gestor, embora não haja urgência ou perigo na demora, é obrigado a continuar a sua gestão até que os representantes ou herdeiros assumam a direção do negócio começado. É dever do mandatário, verificada a hipótese aqui prevista, concluir o negócio já começado. Se assim não procede e com essa omissão for prejudicado o mandante, responderá o mandatário pelos prejuízos que este sofrer.” (sem grifos no original)

Também a jurisprudência tem atenuado os efeitos do art. 682 do Código Civil no que diz respeito à extinção do mandato pela morte do mandante, afirmando que, se o mandato houver sido outorgado pelo mandante com o propósito de representação em escritura pública referente a negócio jurídico firmado e quitado quando ainda em vida aquele, nada obsta que o mandatário o represente em referido ato, evitando prejuízos aos promissários compradores.

O entendimento do Poder Judiciário tem sido no sentido de que “o mandato passado para a lavratura de escritura de compromisso de compra e venda de imóvel não se extingue pela morte do promitente vendedor se a totalidade do preço já havia sido recebida em vida pelo mandante”:

“ANULAÇÃO DE ESCRITURA PÚBLICA – Anulação pretendida sob a alegação de nulidade da  alienação de imóveis realizada pela coapelada, na qualidade de mandatária, após o falecimento do mandante – Inaplicabilidade da regra do artigo 1316, II, do Código Civil de 1916 – Mandatária que apenas concluiu negócio começado pelo mandante, fazendo-o diante do evidente perigo na demora – Amparo na regra do artigo 1.308 do mesmo Estatuto. Demais documentos não se prestem a ensejar a anulação da sobredita escritura, já que deles não se extrai vínculo obrigacional entre o “de cujus” e os apelantes – Escritura lavrada que não contém máculas a ensejar a anulação pretendida – Improcedência corretamente decretada -– Sentença mantida – Recurso improvido. “O mandato passado para a lavratura de escritura de compromisso de compra e venda de imóvel não se extingue pela morte do promitente vendedor se a totalidade do preço já havia sido recebida em vida pelo mandante.” (5ª Câmara Cível do TJRJ, Apelação Cível nº 19.007, RDI 10/116-117; no mesmo sentido: 1ª Câmara Cível do TJPR, Apelação Cível nº 1.052/85, RDI 17-18/123-124).

Em 2009, o Tribunal de Justiça de São Paulo, pela sua Coordenadoria de Correições, Organização e Controle das Unidades Extrajudiciais já examinou caso em que foi lavrada escritura utilizando-se procuração, sendo que tinha ocorrido o falecimento do mandante após a conclusão do negócio, mas antes da lavratura da escritura, tendo determinado o registro. Destaca-se, por ser mais relevante, a seguinte parte do voto:

“Oportuna, ainda, as sábias ponderações do Desembargador AROLDO MENDES VIOTTI (na ocasião Juiz Auxiliar da Corregedoria), emitidas em 08.02.1989, no parecer referente à Apelação Cível nº 9.675-015, da Comarca de Itapeva:

“Restou apurado, assim, que o outorgante vendedor Verceslau Odrozvãoz dos Santos faleceu em 1973, anteriormente, portanto, ao negócio jurídico celebrado em 1981, no qual, representado por mandatário, vendeu imóvel ao apelante.

Ninguém questiona que o mandato se extingue, “ex vi legis”, pela morte do mandante (artigo 1.316, inciso II, do Código Civil). (…)

Ocorre que não deflui da sistemática legal a conclusão de que ato praticado por mandatário após o falecimento do mandante seja, necessariamente e em todos os casos, inválido ou ineficaz. Ao contrário, o artigo 1.321 do próprio Código Civil contempla hipótese em que tal conseqüência é expressamente afastada. A jurisprudência tem reconhecido outras situações em que admitida a não incidência daquela presunção de invalidade (cf. “Revista de Direito Imobiliário do I.R.I.B.”, volume 10, pág. 116, o volume 17/18, pág. 123).

Por isso, em que pese a estranheza e mesmo à suspeição que possam ser geradas por negócio jurídico como o instrumentado no titulo em exame, a sua eventual nulidade, a respectiva inidoneidade á produção dos efeitos a que tende, não emergem de pronto, não resultam de claro diagnóstico de ato vedado por lei. O vício que porventura no ato jurídico se contenha não é daqueles que produzem repercussão na esfera da legislação formal que incumbe aos registradores observar e tutelar. Em outras palavras: pelo motivo apontado, o título não pode ser considerado formalmente imperfeito; a nulidade, se existir, é insista, interna, ao título, não se revelando na esfera registrária em ordem a impedir o ingresso deste.”

O inteiro teor do Acórdão está disponível em:

https://www.extrajudicial.tjsp.jus.br/pexPtl/visualizarDetalhesPublicacao.do?cdTipopublicacao=5&nuSeqpublicacao=1705) e é abaixo reproduzido, com grifos nossos:

Coordenadoria de Correições, Organização e Controle das Unidades Extrajudiciais – Despachos/Pareceres/Decisões 56266/2006 – Acórdão _ DJ 562-6/6 – Data inclusão : 26/03/2009

ACÓRDÃO: Vistos, relatados e discutidos estes autos de APELAÇÃO CÍVEL Nº 562-6/6, da Comarca da CAPITAL, em que é apelante EDUARDO LAGONEGRO e apelado o 17º OFICIAL DE REGISTRO DE IMÓVEIS da mesma Comarca.

ACORDAM os Desembargadores do Conselho Superior da Magistratura, por votação unânime, em dar provimento ao recurso, de conformidade com o voto do relator que fica fazendo parte integrante do presente julgado.

Participaram do julgamento, com votos vencedores, os Desembargadores CELSO LUIZ LIMONGI, Presidente do Tribunal de Justiça e CAIO EDUARDO CANGUÇU DE ALMEIDA, Vice-Presidente do Tribunal de Justiça.

São Paulo, 30 de novembro de 2006

(a) GILBERTO PASSOS DE FREITAS, Corregedor Geral da Justiça e Relator

VOTO

REGISTRO DE IMÓVEIS – Escritura de Compra e Venda – Provável falecimento de outorgante vendedora representada por procurador e conseqüente extinção do mandato, que não autoriza a recusa do título – Qualificação registrária limitada ao juízo cognitivo formal – Recurso provido.

  1. Trata-se de dúvida suscitada pelo 17º Oficial de Registro de Imóveis desta Capital, julgada procedente (fls. 29/31).

O Oficial recusou o ingresso da escritura pública no registro do imóvel, apresentada em 15 de junho de 2.005 e prenotada sob número 110.775, porque há notícia do falecimento de uma das outorgantes vendedoras, Julieta do Amaral Marin, a qual estava representada por procurador, de modo que, nos termos do artigo 682, inciso II, do Código Civil, houve extinção do mandato.

A decisão recorrida, baseada na fundamentação do Oficial, manteve a recusa.

O recorrente sustenta que a notícia do falecimento de uma das vendedoras, por uma simples carta assinada pelo marido de uma das netas da falecida, não comprova o falecimento, nem a condição de herdeiro do subscritor. Informa, baseado nos documentos instruídos com o recurso, que adquiriu os direitos do imóvel por cessão de direitos de compromisso de compra e venda, de Daniel Rossi e Maria Albuquerque Melo, os quais, por sua vez, adquiriram o imóvel dos proprietários, por compromisso de compra e venda, e, assim sendo, a lavratura da escritura decorreu de negócio jurídico anteriormente firmado, o que confere caráter de irrevogabilidade do mandato, nos termos do artigo 674 do Código Civil.

A Procuradoria Geral de Justiça opinou pelo não provimento do recurso.

É o relatório.

  1. Há indícios de que Julieta do Amaral Marin é falecida, conforme carta enviada por um dos herdeiros de Julieta ao Oficial do 17º Serviço de Registro de Imóveis, acompanhada de instrumento particular de doação, cessão de direitos hereditários e de posse (fls. 08 e 10/11), embora afirme não haver prova do óbito e da condição de herdeiro do subscritor da referida carta.

O subscritor dessa carta, Paulo Fernando Forte Franchim, é casado com Lucila Maria Martins Franchim, pelo regime da comunhão universal de bens, conforme cópia de certidão de casamento (fls.9), observando-se que sua cônjuge é filha de Lucilla Marin Martins, que, por sua vez, é filha de Julieta, e, nesta condição, assinou juntamente com outros filhos, genros, noras e netos desta, o apontado instrumento particular de doação e cessão de direitos hereditários de partes ideais do domínio de imóvel (fls. 10/11).

Diante destes documentos, tudo indica que Julieta é falecida, embora não haja certidão de óbito.
No entanto, considerando que (a) indícios extraídos de carta e cópia de instrumento particular, ainda que veementes, induz apenas a juízo de probabilidade (não de certeza), sem força suficiente para quebra de presunção de veracidade do instrumento público (que leva a marca da fé pública), bem como que (b) a qualificação registrária tem caráter de exame formal (extrínseco), não se admitindo recusa por razões atreladas aos elementos intrínsecos do título, tal como “falsidade da procuração ou substabelecimento” (CSM, Apelação Cível nº 16.865-0/9-Praia Grande), fica difícil sustentar, no caso, a negativa de registro.

Ademais, mesmo que fosse possível ter como certo (não só como de boa probabilidade) o falecimento de Julieta do Amaral Marin antes da outorga da escritura apresentada para registro, isso, por si, também não autorizaria a negativa de registro.

É certo que a escritura de compra e venda em foco, lavrada aos 5 de abril de 2005, aponta Julieta do Amaral Marin como outorgante vendedora, representada por procuração.

É certo, ainda, que o artigo 682, inciso II, do Código Civil, prescreve a conseqüência extintiva do mandato para a hipótese de morte do mandante ou do mandatário.

É certo, também, que a hipótese do artigo 674 do mesmo Código, a respeito da possibilidade de o mandatário concluir o negócio já começado, mesmo ciente da morte do mandante, se houver perigo na demora, não se aplica ao caso em tela, pois, os contratos anteriores, datados de 11/9/1981 e 10/7/2000, apresentados com o recurso de apelação (fls. 46/48 e 49/51) não devem ser considerados como negócio já começado, em relação à escritura de compra e venda ora apresentada, lavrada em 2.005, para a finalidade pretendida.

Todavia, prescreve o artigo 689 do Código Civil que “são válidos, a respeito dos contratantes de boa-fé, os atos com estes ajustados em nome do mandante pelo mandatário, enquanto este ignorar a morte daquele ou a extinção do mandato, por qualquer outra causa”. Todavia, ainda, já se julgou no sentido de que “o mandato passado para a lavratura de escritura de compromisso de compra e venda de imóvel não se extingue pela morte do promitente vendedor se a totalidade do preço já havia sido recebida em vida pelo mandante” (5ª Câmara Cível do TJRJ, Apelação Cível nº 19.007, RDI 10/116-117; no mesmo sentido: 1ª Câmara Cível do TJPR, Apelação Cível nº 1.052/85, RDI 17-18/123-124).

Isso, pois, indica que, nada obstante a morte do mandante, o ato jurídico praticado pelo mandatário, em nome do mandante pode, em determinadas situações, ser válido. E, daí, pela simples possibilidade eventual de ser considerado válido, não cabe ao registrador, em qualificação registrária (marcada pela restrição cognitiva do título: formal, sem espaço de dilação probatória e de análise dos elementos intrínsecos do negócio), truncar o ingresso do respectivo título ao registro imobiliário sob a afirmação de sua invalidade, ficando esta assertiva reservada à esfera jurisdicional (essa sim, de ampla cognição: não só formal, mas também material, em que é possível a investigação dos elementos extrínsecos e intrínsecos do negócio).

Assim, aliás, já houve pronunciamento do Conselho Superior da Magistratura (Apelação Cível nº 51.301-0/2, da Comarca de Campinas, j. 05.11.1998, rel. Des. Sérgio Augusto Nigro Conceição):

“Verifica-se, portanto, que anteriormente à data em que lavrada a escritura de venda e compra já haviam ocorrido dois fatos que caracterizam hipóteses legais de extinção do mandato outorgado pelos titulares do domínio, ou seja, o falecimento da mandatária (Código Civil, artigo 1.316, II) e o subseqüente casamento do outro outorgante da procuração (Código Civil, artigo 1.316, III).

Inexiste nos autos ou na documentação apresentada ao registrador, no entanto, qualquer indício de que o mandatário conhecesse tais fatos extintivos do mandato, ou circunstância que abalasse a presunção de boa-fé daqueles que compareceram à lavratura do ato notarial, na verdade praticado em complementação ao compromisso de venda e compra firmado pelos alienantes em data próxima à da outorga da procuração, ocasião em que os mandatários receberam a parcela do preço que lhes cabia e atribuíram aos então compromissários compradores a obrigação, posteriormente cumprida, de pagar as parcelas de financiamento bancário.

Aplica-se à presente hipótese, portanto, a disposição do artigo 1.321 do Código Civil, com o reconhecimento, nesta esfera administrativa, da validade dos atos praticados pelo mandatário que ignorava a morte ou o subseqüente casamento dos mandantes, reservada para ação própria eventual discussão a esse respeito.

Esta a orientação deste Colendo Conselho Superior da Magistratura, expressa nos autos da Apelação Cível n.º 034.291, da Comarca de Itapetininga, relator Desembargador Márcio Martins Bonilha, j. 11.10.96.”

Oportuna, ainda, as sábias ponderações do Desembargador AROLDO MENDES VIOTTI (na ocasião Juiz Auxiliar da Corregedoria), emitidas em 08.02.1989, no parecer referente à Apelação Cível nº 9.675-015, da Comarca de Itapeva:

“A qualificação registrária sob o prisma da legalidade, no Ofício Predial, obedece a critérios formais: o exame é extrínseco e se circunscreve àquilo que no bojo do título se contém. Em princípio, não é dado ao oficial valer-se de subsídios extra-tabulares a exemplo de fatos de seu conhecimento pessoal para a caracterização de óbice registral concernente à observância da legalidade. Bem por isso é que adverte Afrânio de Carvalho: “Como a legalidade é aferida em vista tão somente do que o ‘ titulo mostra em sua face, a passagem pelo exame não impede que às vezes ele se revele mais tarde um sepulcro caiado devido a presença de vícios internos, invisíveis ou imperceptíveis a simples inspeção ou leitura do documento” (“Registro de Imóveis”, Forense, 3ª ed. 1982, pág. 278). E é igualmente por essa razão que, considerado o registro existente, a detecção de nulidade, por vistosa que se apresente, no título que o gerou, não enseja a aplicação do disposto no artigo 214 da Lei nº 6.015/73, de incidência reservada àquelas nulidades próprias do mecanismo do registro. (…)

Restou apurado, assim, que o outorgante vendedor Verceslau Odrozvãoz dos Santos faleceu em 1973, anteriormente, portanto, ao negócio jurídico celebrado em 1981, no qual, representado por mandatário, vendeu imóvel ao apelante.

Ninguém questiona que o mandato se extingue, “ex vi legis”, pela morte do mandante (artigo 1.316, inciso II, do Código Civil).(…)

Ocorre que não deflui da sistemática legal a conclusão de que ato praticado por mandatário após o falecimento do mandante seja, necessariamente e em todos os casos, inválido ou ineficaz. Ao contrário, o artigo 1.321 do próprio Código Civil contempla hipótese em que tal conseqüência é expressamente afastada. A jurisprudência tem reconhecido outras situações em que admitida a não incidência daquela presunção de invalidade (cf. “Revista de Direito Imobiliário do I.R.I.B.”, volume 10, pág. 116, o volume 17/18, pág. 123).

Por isso, em que pese a estranheza e mesmo à suspeição que possam ser geradas por negócio jurídico como o instrumentado no titulo em exame, a sua eventual nulidade, a respectiva inidoneidade á produção dos efeitos a que tende, não emergem de pronto, não resultam de claro diagnóstico de ato vedado por lei. O vício que porventura no ato jurídico se contenha não é daqueles que produzem repercussão na esfera da legislação formal que incumbe aos registradores observar e tutelar. Em outras palavras: pelo motivo apontado, o título não pode ser considerado formalmente imperfeito; a nulidade, se existir, é insista, interna, ao título, não se revelando na esfera registrária em ordem a impedir o ingresso deste.”

Pelo exposto, conheço e dou provimento ao recurso, para julgar improcedente a dúvida e admitir o registro do titulo prenotado em questão.

(a) GILBERTO PASSOS DE FREITAS, Corregedor Geral da Justiça e Relator
Ainda em São Paulo, foi julgado em 2005 um procedimento de dúvida, no seguinte sentido:

“EMENTA: Alienação de imóvel com base em procuração. Alienantes falecidos […]. Por se tratar de propósito jurídico maior (regularização fundiária) e tendo sido os instrumentos lavrados com a finalidade certa e declinada, o mandato mantém seus efeitos. Dúvida improcedente.” (Processo nº 000.04.083265-1, São Paulo, D.O.E. 09/02/2005).

Em Minas Gerais, o então Juiz da Vara de Registros Públicos de Belo Horizonte, Juiz Fernando Humberto dos Santos proferiu esclarecedora sentença nos autos n°: 0083821-07.2011, em procedimento de dúvida, tendo esclarecido que é possível a lavratura da escritura mesmo após o falecimento do mandante, desde que se demonstre que o negócio já tinha sido realizado e que a escritura observe exatamente os termos do negócio, não admitindo alteração:

“No caso em tela, mesmo que o falecimento do mandante tenha colocado fim ao mandato, é de se considerar que o mandatário, agindo de boa-fé, e respeitando os estreitos limites do mandato que lhe fora outorgado, poderá lavrar a escritura de compra e venda definitiva. No entanto, assinalo, não poderá estabelecer novas cláusulas ou alterar o estipulado no contrato primevo (promessa de compra e venda). É sabido que o direito brasileiro resguardou o direito das partes em concluírem, através do mandato, os negócios jurídicos iniciados e firmados. Quer isto dizer que, in casu, o mandatário tem sim o poder de lavrar a escritura formalizando o ato definitivo da compra e venda, mas, como já dito, respeitando obrigatoriamente os limites negociais já fixados na promessa realizada anteriormente.  A escritura lavrada não pode conter nenhuma divergência com o prometido.”

Há diversos outros julgados admitindo a eficácia da procuração para lavratura da escritura definitiva, mesmo com a morte do mandante, nos casos de mandato outorgado para dar cumprimento a contrato de compromisso de compra e venda, cujo preço já tenha sido recebido: APC 9.329 RJ – RDI n. 6; 1.052/85 TJPR RDI n. 17/18; 19.007 RJ – RDI n. 10; 24.416 SP RDI 3; 2882/91 RJ RDI 33, e decisão da 1ª VRP da Capital do Estado de São Paulo processo n. 000.04.083265-1 em que pese decisões (antigas) em sentido contrário : AC 4149-0/85 e 2597-0/87).

Conclui-se, pois, que, mesmo após o falecimento do mandante, o mandatário, agindo de boa-fé e respeitando os estreitos limites do mandato que lhe fora outorgado, poderá lavrar a escritura de compra e venda definitiva, desde que já tenha sido devidamente realizado e quitado o negócio em vida, o que deve ser demonstrado ao tabelião. O mandatário, no entanto, não poderá estabelecer novas cláusulas ou alterar o estipulado no contrato de promessa de compra e venda. A escritura lavrada não pode conter nenhuma divergência com o prometido.

*Letícia Franco Maculan Assumpção é graduada em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (1991), pós-graduada e mestre em Direito Público. Foi Procuradora do Município de Belo Horizonte e Procuradora da Fazenda Nacional. Aprovada em concurso, desde 1º de agosto de 2007 é Oficial do Cartório do Registro Civil e Notas do Distrito de Barreiro, em Belo Horizonte, MG. É autora de diversos artigos na área de Direito Tributário, Direito Administrativo, Direito Civil e Direito Notarial, publicados em revistas jurídicas, e dos livros Função Notarial e de Registro e Casamento e Divórcio em Cartórios Extrajudiciais do Brasil. É professora e coordenadora da pós-graduação em Direito Notarial e Registral do Centro de Direito e Negócios – CEDIN.

Fonte: CNB/CF | 19/05/2017.

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Publicação: Portal do RI (Registro de Imóveis) | O Portal das informações notariais, registrais e imobiliárias!

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