Artigo: Processo extrajudicial de usucapião – Por PATRICIA ANDRÉ DE CAMARGO FERRAZ


A extrajudicialização de procedimentos têm se mostrado uma excelente alternativa aos cidadãos que precisam da intervenção jurídica, segura e célere do Estado em situações caracterizadas pela inexistência de conflito. São exemplos exitosos do que pode tramitar pela via judicial ou pela extrajudicial as retificações de registro e as apurações de remanescentes de imóveis, escrituras de inventário, partilha, separação e divórcio, regularizações fundiárias e as execuções de devedores fiduciantes. Os interessados em tais procedimentos têm majoritariamente optado pela via extrajudicial, onde a tramitação é mais célere e oferece o mesmo padrão de segurança jurídica.

O Código de Processo Civil introduziu o Art. 216-A na Lei n. 6.015, de 31 de dezembro de 1973, colocando à disposição do cidadão mais uma ferramenta jurídica, o processo extrajudicial de usucapião, já apelidado de “usucapião extrajudicial”. O instrumento tem despertado o interesse da comunidade jurídica e das pessoas possuidoras de imóveis de propriedade de outrem, todos com a expectativa de que o instrumento dê uma resposta ágil e segura às demandas de transformação de posses de imóveis em direitos de propriedade, tanto quanto os demais procedimentos “extrajudicializados”.

Ocorre que a aplicação e efetividade deste processo serão ínfimas, acaso mantidos os requisitos impostos pela lei para a sua realização e a limitação procedimental estabelecida no referido artigo.

Refiro-me especificamente à: a) necessidade de anuência expressa dos titulares de domínio e de direitos registrados ou averbados nas matrículas dos imóveis usucapiendo e confrontantes; b) definição da lei de que o silêncio de tais pessoas, acaso intimadas, é equiparado à discordância quanto à pretensão do postulante; e c) falta de previsão expressa da possibilidade de intimação por hora certa, em caso de suspeita de ocultação, e por edital, em caso de não localização, de tais pessoas pelo oficial de Registro de Imóveis.

Os primeiro e segundo requisitos se completam para emoldurar o previsível insucesso dos processos em questão. Ao operador do direito, tanto quanto ao cidadão comum que tenha qualquer contato com os fatos que podem levar à usucapião, é evidente que o dispositivo em comento, ao exigir extensa gama de anuências expressas nas usucapiões que tramitem no Registro de Imóveis, estabeleceu uma rede insuperável de concordâncias que não tem precedente em nossa legislação. Com efeito, não há negócio jurídico imobiliário para cuja realização seja necessária, por exemplo, a anuência expressa do credor hipotecário ou do locatário do imóvel vizinho àquele objeto da transação.

Também não faz parte de nossa cultura legislativa interpretar como discordância o silêncio dos chamados para se manifestarem em processos. Ao contrário, nosso ordenamento jurídico, tanto nos processos judiciais, como nos extrajudiciais, equipara o silêncio à anuência tácita. Nem poderia ser diferente. Imagine-se um vizinho que não tenha qualquer interesse na usucapião que tramite no cartório de sua cidade e para a qual foi chamado a se pronunciar. A ordem natural das coisas é que ele não se movimente se não tiver interesse em se opor ao processo. Não o tendo, permanecerá como estava. Por isso, não há sentido em previamente definir o seu silêncio como discordância.

O que se verificará na prática, então, serão basicamente três situações. A primeira, de advogados preparados que, tendo estudado o instrumento e o caso concreto, identifiquem a impossibilidade de colheita de anuência expressa de qualquer interessado e desistam da via extrajudicial, porque ela representará apenas perda de tempo, energia e dinheiro. A segunda, de profissionais que não atentem para as especificidades da lei e do caso concreto e que optem pela via extrajudicial, onde não terão sucesso. E a terceira, excepcional, de casos que preencham os requisitos legais e possam ser levadas com sucesso ao Registro de Imóveis.

É bom lembrar que, de regra, quando há anuência do titular do domínio para que o possuidor do imóvel lhe adquira a propriedade, o caso não é de usucapião, mas de venda e compra, com recolhimento do imposto de transmissão de bens imóveis, por parte do adquirente, e do imposto de renda sobre lucro imobiliário por parte do vendedor. Assim, mesmo na terceira hipótese aventada, será necessário atentar se não se simula pedido de usucapião para fraudar os fiscos municipal e federal.

A outra limitação do processo extrajudicial de usucapião é de natureza procedimental e, obviamente, sua correção só fará sentido se aperfeiçoado o ponto relativo à interpretação do silêncio dos intimados. Me refiro à falta de previsão quanto à possibilidade de intimação por hora certa e por edital dos interessados conhecidos (titulares de direitos relativos ao imóvel usucapiendo e dos proprietários dos confrontantes) pelo Registro de Imóveis. Há muito estes dois mecanismos já fazem parte da prática processual brasileira, seja na via judicial ou na extrajudicial (vide intimações por hora certa e por editais dos devedores fiduciantes e por editais nas regularizações fundiárias, retificações de registro, apurações de remanescentes e aberturas de matrículas de imóveis públicos). Não há razão lógica para que estes mecanismos facilitadores do bom andamento dos processos não sejam utilizados também nas usucapiões que venham a tramitar no Registro de Imóveis.

Sendo assim, parece-me indispensável alteração legislativa para que se exija a anuência expressa das pessoas efetivamente interessadas no imóvel usucapiendo, quais sejam, os titulares de domínio e dos titulares dos direitos inscritos na matrícula do imóvel usucapiendo e os titulares de domínio dos imóveis confrontantes. Acaso falte a anuência expressa de algum, o faltante deverá ser intimado pessoalmente para se manifestar e, acaso não localizado ou acaso se suspeite de que se oculta para não ser intimado, a expressa previsão de que seja intimado por edital ou por hora certa, conforme o caso. Ademais, seu o silêncio deverá ser interpretado como anuência tácita.

Com estas modificações pontuais, as mais importantes dentre as possíveis, o processo extrajudicial de usucapião poderá se revelar um dos mais efetivos mecanismos de concretização de direitos, com positivos efeitos sociais e econômicos. Além disso, a consequente redução do número de processos judiciais contribuirá para que o Poder Judiciário dedique sua estrutura à solução de conflitos reais.

Fonte: Carta Forense | 04/05/2016.

____

Publicação: Portal do RI (Registro de Imóveis) | O Portal das informações notariais, registrais e imobiliárias!

Para acompanhar as notícias do Portal do RI, siga-nos no twitter, curta a nossa página no facebook, assine nosso boletim eletrônico (newsletter), diário e gratuito, ou cadastre-se em nosso site.




Artigo: Identidade do natimorto em dignidade do seu óbito* – Por Jones Figueirêdo Alves


*Jones Figueirêdo Alves

A identidade do natimorto pela possibilidade de atribuição do seu nome em assento do óbito constitui ato registral de imensa dignidade à família e ao nascituro que nasce sem vida.

Neste propósito, petição “on-line” veiculada na internet há cerca de dois meses e subscrita por uma jovem mãe cuja filha Lara não teve o nome incluído no seu assento de natimorto, dirigida à Corregedoria Geral de Justiça do Rio de Janeiro, vem conclamar permissão normativa que assegure aos pais a identificação nominal dos seus filhos natimortos. O pleito de Luciana Santos Krull já obteve assinatura de quase oitenta mil apoiadores.

O Provimento nº 12/2014, da Corregedoria Geral de Justiça de Pernambuco, de nossa autoria, de 08/09/2014 (TJPE- DJe de 11/09/14, p. 69), um dos pioneiros no país, regulamentou o assento do óbito fetal facultando aos pais o direito de atribuição de nome no registro a ser assentado pelo Ofício do Registro Civil das Pessoas Naturais.

O que hoje acontece, de ordinário, é que o filho já esperado pelo nome que lhe seria dado, torna-se apenas um mero registro do feto que feneceu, como sombra de si mesmo e feto, enquanto tal, por não ter vindo à luz com vida, mesmo que por mínima fração de tempo, não terá nome na abertura do assento do seu óbito.

De efeito, ao nascituro que nasce sem vida, feto que falece no interior do útero ou no parto, como tal havido natimorto, após uma gestação superior a vinte semanas, não lhe é dado alcançar direito personalíssimo ao nome e sobrenome. Cumpre-se apenas o registro do óbito fetal, em livro próprio – “C-Auxiliar” (Lei nº 6.015/73, art. 53), com indicação dos pais, dispensado o assento de nascimento.

Pois bem. Essa espécie de mortalidade tem se constituído em evento jurídico a exigir novas atuações da doutrina, dos tribunais do país, da legislação e de políticas públicas de saúde, quando cerca de 3,3 milhões de crianças, a cada ano, no mundo, são natimortos, com morte intrauterina nos três últimos meses de gestação.

Nomeadamente são postas questões novas, a exemplo: (i) o feto anencéfalo é um natimorto cerebral; (ii) “a proteção que o Código Civil confere ao nascituro alcança o natimorto, no que concerne aos direitos da personalidade, tais como nome, imagem e sepultura” (Enunciado nº 01, da I Jornada de Direito Civil – CJF-STJ, em 11-13/09/2002); e (iii) existe o direito de os pais registrarem os filhos natimortos com nome e sobrenome.

No plano legislativo não ocorreram avanços. O então vice-presidente da República Michel Temer, no exercício do cargo de presidente da República, vetou integralmente, em 30/06/2015, o Projeto de Lei nº 88, de 2013 (nº 5.171/2013 na Câmara dos Deputados) que previa o registro do nome ao natimorto. Em sua justificativa, Temer argumentou que “a alteração poderia levar a interpretações que contrariariam a sistemática vigente no Código Civil, inclusive com eventuais efeitos não previstos para o direito sucessório”.

No plano administrativo, revisão normativa da Corregedoria Geral de São Paulo (onde anotam-se cinco mil natimortos por ano) ao seu Código de Normas de Serviço (Cap. XVII, Tomo II, item 32), facultou o direito de atribuição de nome do natimorto, sem necessidade de duplo registro (nascimento e óbito). E em Minas Gerais, o Provimento nº 260/CGJ/2013 prevê expressamente, em seu artigo 537, a faculdade dos pais em dar nome ao natimorto.

Na doutrina avançada de Teixeira de Freitas, anotou-se que “as pessoas por nascer existem, porque, suposto não sejam ainda nascidas, vivem já no ventre materno”. Lado outro, em seu voto pioneiro, o desembargador Rui Portanova assinalou que a omissão do nome ao natimorto constitui “uma crueldade para com os pais, que já passaram pelo traumático evento da criança morta, e não precisam passar por uma segunda “morte” do filho, desta vez causada pelo desprezo da ordem jurídica” (TJRS, 8ª CC, Apel. Cível nº 70020535118, 25/10/2007).

De fato, há um luto social diante do natimorto, filho dos pais que não o tiveram e cidadão que a sociedade não o recebeu. Mães de mãos vazias e parturientes de parto inútil compõem uma realidade de vida que não pode ser despercebida pelo direito.

*Artigo publicado no jornal Folha de Pernambuco em 22 de outubro

_____

* Jones Figueirêdo Alves é desembargador decano do Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE) e mês em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito da Universidade Clássica de Lisboa (FDUL)

Fonte: TJPE | 24/10/2016

_____

Publicação: Portal do RI (Registro de Imóveis) | O Portal das informações notariais, registrais e imobiliárias!

Para acompanhar as notícias do Portal do RI, siga-nos no twitter, curta a nossa página no facebook, assine nosso boletim eletrônico (newsletter), diário e gratuito, ou cadastre-se em nosso site.