ARTIGO: ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA DE BEM IMÓVEL. CONSIDERAÇÕES SOBRE A QUITAÇÃO MÚTUA OBRIGATÓRIA NAS OPERAÇÕES REALIZADAS FORA DO ÂMBITO DO FINANCIAMENTO IMOBILIÁRIO. – Por Mauro Antônio Rocha

Mauro Antônio Rocha (1)

1. Da alienação fiduciária em geral.

A alienação fiduciária em garantia é um instituto jurídico conhecido desde o período clássico do Direito Romano, na figura da fidúcia cum creditore, que foi resgatado pelo Direito Brasileiro em meados do século passado e adaptado para atender às necessidades de uma sociedade de massas ainda incipiente, desordenada e necessitada de agilidade e dinamismo jurídico para seu desenvolvimento.

Apesar de ignorada pelo código civil de 1916 e ainda sem se afigurar como negócio jurídico contratual típico, a fidúcia sempre esteve presente no direito brasileiro, tendo sido regularmente utilizada como meio de concretização de negócios e garantias.

Nesse sentido, afirma Silva que deixando de ser negócio jurídico contratual típico, nem por isso ficou entre nós repudiado inteiramente. Filho órfão, e mesmo enjeitado, encontrou todavia abrigo em uma que outra manifestação esporádica. A doutrina o não desconhecia de todo, e os tribunais embora com certa relutância e alguma vacilação entenderam que não seria uma figura contratual contraria ao nosso sistema. (2)

Não por acaso, a garantia fiduciária surgiu no direito positivo brasileiro em 1965 – coincidentemente e ao mesmo tempo no projeto civilista do Código de Obrigações elaborado por Caio Mário Pereira da Silva e na Lei nº 4.728, proposta de uma nova ordem política para disciplinar os mercados financeiro e de capitais – num contexto de grande desenvolvimento econômico e de garantias reais (hipoteca, penhor e anticrese) insuficientes para a proteção dos recursos alocados para o financiamento da produção de bens de capital e da aquisição de bens de consumo.

Dispunha o derrogado artigo 66 da referida lei, que nas obrigações garantidas por alienação fiduciária de bem móvel, o credor tem o domínio da coisa alienada, até a liquidação da dívida garantida. E, concluía, no parágrafo segundo do mesmo artigo, que o instrumento de alienação fiduciária transfere o domínio da coisa alienada, independentemente da sua tradição, continuando o devedor a possuí-la em nome do adquirente, segundo as condições do contrato, e com as responsabilidades de depositário.

Desde então, com base na interpretação literal da norma, convencionou-se o uso dessa modalidade de garantia real apenas para os bens móveis de consumo e a algumas espécies de recebíveis financeiros.

Desse entendimento restritivo divergia Silva distinguindo os negócios jurídicos realizados ao amparo da lei especial daquelas outras transações por ela não abrangidas, de modo que, fora do mecanismo de execução regulamentado na Lei especial, a alienação fiduciária pode comportar a coisa imóvel, como a jurisprudência de nossos tribunais já admitia antes da Lei 4.728, admitindo a validade do contrato de alienação fiduciária de coisa imóvel, e validando o pactum fiduciae.(3)

2. Da alienação fiduciária de coisa imóvel.

Se, de fato, nunca houve vedação legal expressa à contratação dessa modalidade de garantia nas transações imobiliárias, a alienação fiduciária de coisa imóvel ingressou no ordenamento jurídico pátrio como uma das garantias admitidas para a realização de operações de financiamento imobiliário em geral (4) por meio da Lei nº 9.514, de 20 de novembro de 1997, que detalhou – em capítulo próprio – suas generalidades, características jurídicas, âmbito de aplicação, bem como os procedimentos específicos e adequados de reconhecimento da quitação da dívida pelo fiduciário e da execução extrajudicial no caso de inadimplemento da obrigação pelo fiduciante.

Pelo caráter inicial de garantia aceitável no âmbito do Sistema de Financiamento Imobiliário – e por ter sido regulamentada na mesma lei que criou o sistema, durante algum tempo a aplicação da alienação fiduciária sobre bens imóveis ficou restrita exclusivamente às operações de financiamento imobiliário.

Foi somente a partir da Lei nº 10.931, em 02 de agosto de 2004, que as outras operações imobiliárias, assim como as obrigações em geral passaram a ser efetivamente garantidas, inclusive por terceiros, por cessão fiduciária de direitos creditórios decorrentes de contratos de alienação de imóveis, por caução de direitos creditórios ou aquisitivos decorrentes de contratos de venda ou promessa de venda de imóveis e por alienação fiduciária de coisa imóvel.(5)

3. Da execução extrajudicial prevista na Lei nº 9.514/1997

A Lei nº 9.514/1997 estabeleceu um procedimento executivo extrajudicial e específico para a garantia fiduciária, conduzido pelo oficial de registro de imóveis – iniciado com a intimação do fiduciante para purgar a mora no prazo de quinze dias, que, se atendida enseja o convalescimento do contrato nas condições antes convencionadas e que, não atendida motiva a consolidação da propriedade em nome do credor, para posterior venda do imóvel em leilão público com a obrigatória entrega do que sobejar ao devedor ou, não havendo excedente, com a exoneração de responsabilidade pelo pagamento do saldo remanescente, daí decorrendo a mútua quitação do contrato.

Assim, de um lado a lei permitiu a contratação de alienação fiduciária por qualquer pessoa física ou jurídica – na condição de vendedor, construtor, incorporador, garantidor etc., não sendo privativa das operações ou das entidades integrantes do SFI, de outro lado, estabeleceu procedimentos de execução mais apropriados e adequados ao financiamento imobiliário – atividade privativa e exclusiva das instituições financeiras.

4. Das operações realizadas dentro e fora dos sistemas de crédito imobiliário

Parece evidente que a contratação de mútuo em dinheiro pelo comprador para a aquisição de bem imóvel com a constituição de alienação fiduciária em garantia constitui a atividade privativa de financiamento imobiliário que não se confunde com a aquisição do bem diretamente do vendedor, ainda que para pagamento parcelado do preço e com garantia fiduciária, que configura compra e venda com alienação fiduciária em garantia – indevidamente denominada de autofinanciamento.

No primeiro caso, o bem jurídico garantido pela alienação fiduciária é a quantia em dinheiro obtida em operação de mútuo financeiro reservado ao pagamento integral e à vista do bem imóvel diretamente ao vendedor. No segundo caso, o bem garantido fiduciariamente é o próprio imóvel adquirido com o compromisso de pagamento parcelado do preço.

Dessa forma, na transação de mútuo financeiro com garantia fiduciária o objetivo último da norma jurídica é garantir o retorno ao credor do capital aplicado, seja pelo adimplemento tempestivo das condições contratadas ou, extraordinariamente, pela venda do bem em leilão ou diretamente quando negativos os leilões, não se vislumbrando na lei autorização para a apropriação do bem pelo credor fiduciário, exceto na hipótese da inexistência de interessado na aquisição e, mesmo nessa situação extrema, normas de fiscalização da atividade financeira impõem prazo máximo de três anos para a exclusão desse ativo do patrimônio da instituição financeira.(6)

Diferente é a situação na transação de compra e venda com parcelamento do preço e garantia fiduciária. Nesta, o objetivo final da norma jurídica é garantir o adimplemento tempestivo das condições contratadas ou, extraordinariamente, na hipótese de inadimplemento pelo devedor, o retorno ao status quo ante, vale dizer, garantir a recuperação da propriedade do bem pelo credor.

Ocorre que a transação realizada diretamente pelo fornecedor ao consumidor caracteriza relação de consumo, tornando aplicáveis os dispositivos da Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990 – Código de Defesa do Consumidor, especialmente o art. 53, destinado a impedir o enriquecimento sem causa, que dispõe sobre a nulidade de cláusulas que estabeleçam a perda total das prestações pagas em benefício do credor que, em razão do inadimplemento, pleitear a resolução do contrato e a retomada do produto alienado.

Decorre do referido artigo 53 que, ao menos aparentemente, a lei de proteção ao consumidor desconsidera os obrigatórios e específicos critérios legais de quitação mútua que caracterizam os procedimentos de execução da garantia fiduciária.

Ao enfrentar o assunto, Chalhub manifestou da seguinte forma:

Sucede que inúmeras relações de consumo a que se aplica esse princípio têm peculiaridades que distinguem umas das outras e que, portanto, merecem tratamento jurídico e legal coerente com sua peculiar estrutura e função. 

É o caso da Lei nº 9.514/1997, que é lei especial e não é incompatível com a Lei nº 8.078/1990 (CDC), razão pela qual, a despeito de os princípios de proteção ao consumidor se aplicarem aos contratos de alienação fiduciária quando caracterizem relação de consumo, o acertamento de haveres nessa espécie de contrato deve seguir o critério específico estabelecido pelo art. 27 da Lei nº 9.514/1997 e não o critério genérico previsto no art. 52 do CDC, seja porque o critério da lei especial não conflita com o princípio enunciado naquele dispositivo do CDC, seja porque aquele é o critério próprio para execução de crédito garantido por direito real. Em outras palavras: o art. 53 enuncia um princípio geral de nulidade da cláusula que preveja a perda total das quantias pagas pelo devedor inadimplente e o art. 27 da Lei nº 9.514/1997 estabelece critério específico, pelo qual manda o credor devolver ao devedor a quantia que sobrar do leilão, depois de satisfeito o crédito garantido.(7) 

Em que pese o encadeamento lógico do raciocínio desenvolvido pelo autor – e ainda que se possa considerar certo que aos contratos de alienação fiduciária constituídos ao abrigo da Lei nº 9.514/1997 aplicam-se os procedimentos de realização da garantia e quitação do débito nela estabelecidos – outras formas de alienação fiduciária são também contratadas, de forma que a questão central relativa à aplicabilidade da quitação mútua às transações de venda e compra de imóveis fora dos sistemas de financiamento imobiliário permanece pendente de apreciação.

Não obstante o acima transcrito, afirma Chalhub (8), na mesma obra, que no que tange ao acertamento de conta entre devedor e credor, por efeito da extinção dos contratos de venda a prazo e de alienação fiduciária que caracterizam relação de consumo, o dispositivo do CDC pertinente é o art. 53, que considera nula a cláusula que preveja a perda total das quantias pagas pelo devedor.

Cabe, neste ponto, fazer uma distinção das transações imobiliárias em relação às normas de proteção ao consumo: (a) as transações realizadas no âmbito dos sistemas de financiamento se caracterizam pelo mútuo em dinheiro, de forma que a extinção da dívida decorre do retorno do capital ao credor – pelo pagamento ou pela alienação do bem oferecido em garantia – não se aplicando, portanto, a obrigação de devolução de valores ao devedor; (b) as transações realizadas fora dos sistemas de financiamento são de compra e venda de bem imóvel e a extinção da dívida decorre da quitação integral do valor parcelado – pelo pagamento, por meio de alienação do bem em leilão, ou pelo retorno da propriedade ao credor e, dessa forma, é aplicável a obrigação de devolução de valores recebidos ao devedor; (c) nas transações de venda e compra realizadas diretamente pelos proprietários (não fornecedores) a extinção da dívida também decorre da quitação integral do quantum parcelado – pelo pagamento ou por meio da alienação do bem oferecido em garantia – não se aplicando a devolução dos valores recebidos.

Assim, é lícito concluir que as pessoas físicas e jurídicas não integrantes dos sistemas de financiamento imobiliário estão autorizadas a contratar a alienação fiduciária em garantia do parcelamento do preço de venda mas, salvo melhor juízo, nos casos de execução extrajudicial da garantia, além dos procedimentos descritos na Lei nº 9.514/1997 deverão observar os mecanismos de proteção ao consumidor, de maneira a facilitar a retomada do bem e, ao mesmo tempo, garantir ao fiduciante a restituição de parte substancial dos valores pagos durante o contrato, em cumprimento ao disposto no art. 53 da lei consumerista.

Parece claro, também, que ao promover o acerto de contas fundado no direito do consumidor ficará o credor desobrigado de realizar os leilões previstos na Lei nº 9.514/1997, valendo o termo de quitação mútua como documento suficiente para o cancelamento da garantia fiduciária, consolidando definitivamente a propriedade em nome do credor, desnecessários, portanto, quaisquer outros instrumentos ou documentos.

5. Dos outros negócios jurídicos com garantia fiduciária de bem imóvel. 

No outro lado da mesma moeda estão os demais negócios jurídicos contratados com alienação fiduciária de garantia, tais como os empréstimos comerciais, as confissões de dívida etc.

Aqui, o fiduciante oferece bem imóvel de seu patrimônio em garantia de empréstimo comercial com ou sem destinação específica, de confissão de dívida, renegociação ou consolidação de contratos, entre outras operações, em transações próprias ou em benefício de terceiros, sendo bastante comum que o valor de avaliação do bem onerado seja inferior ou superior ao valor da dívida garantida.

Também nesses casos, na hipótese de inadimplência e não purgação da mora, o bem imóvel é levado a leilão e vendido pelo maior lance, independentemente do valor da dívida. Nesse contexto, por exemplo, se o imóvel objeto da garantia fiduciária tem valor inferior ao da dívida original, será levado a leilão pelo maior lance, uma vez que, ainda que vendido pelo seu real valor de mercado, o montante apurado será inferior ao devido e, neste caso, remanescerá o saldo devedor do contrato, para ser exigido do devedor ou de seus garantes, por meio de execução judicial das demais garantias fidejussórias, se houverem, não se aplicando, evidentemente, a obrigatoriedade de entrega do que sobejar, nem a desoneração do devedor quanto ao saldo devedor remanescente, tampouco o dispositivo de restituição total ou parcial dos valores recebidos, de que trata o código de proteção ao consumidor.

Nesta hipótese de garantia parcial, quando a garantia fiduciária foi oferecida por terceiro não devedor – e no contrato deverá constar tratar-se de garantia parcial – e ocorrer a arrematação do bem por valor superior ao valor da avaliação, ainda que inferior ao valor total da dívida, o credor estará obrigado a entregar ao fiduciante o que sobejar ao valor revisado do bem, tendo em vista que este é o limite da garantia oferecida. Porém, não se aplicará a regra da desoneração do devedor quanto ao saldo eventualmente remanescente ao apurado em leilão.

Noutro contexto, se o imóvel objeto da garantia fiduciária tem valor superior ao da dívida, será levado a leilão pelo valor revisado do bem e, se vendido, o valor que exceder à dívida será entregue ao fiduciário que – vale lembrar – poderá ser o devedor ou terceiro fiduciante. Não havendo vencedor do certame, será realizado o segundo leilão para venda pelo valor da dívida, resultando em sério e desproporcional desfalque patrimonial ao fiduciante, suscetível de configurar lance vil e enriquecimento sem causa do credor. Em qualquer das hipóteses acima, o terceiro fiduciante poderá efetuar o pagamento da dívida e subrogar-se no crédito em relação ao devedor.

6. Conclusões.

(I). A alienação fiduciária de bem imóvel em garantia pode ser contratada por qualquer pessoa física ou jurídica, não sendo privativa das operações realizadas no âmbito dos sistemas de financiamento imobiliário, nem dos seus integrantes;
(II). No financiamento imobiliário o bem jurídico garantido pela alienação fiduciária é a quantia em dinheiro obtida em operação de mútuo financeiro pelo devedor para pagamento do preço do bem imóvel e o objetivo último da norma é garantir o retorno do capital ao credor, seja pelo adimplemento tempestivo das condições contratadas ou, extraordinariamente, pela alienação do bem em leilão ou por venda direta;
(III). Nas operações realizadas fora dos sistemas de financiamento o bem garantido fiduciariamente é o próprio imóvel adquirido e o objetivo final da norma é garantir o adimplemento tempestivo das condições contratadas ou, extraordinariamente, o retorno ao status quo ante, vale dizer, a recuperação da propriedade do bem pelo credor e o reembolso do valor recebido ao devedor;
(IV). Às operações contratadas fora dos sistemas de financiamento imobiliário são aplicáveis os procedimentos descritos na Lei nº 9.514/1997 em consonância com outros mecanismos previstos no Código de Proteção ao Consumidor, de maneira a facilitar a retomada do bem pelo fiduciante e, ao mesmo tempo, garantir ao fiduciante a recuperação parcial dos valores pagos;
(V). Nas operações contratadas fora dos sistemas de financiamento imobiliário a devolução integral ou parcial dos valores recebidos ao devedor, fundado no direito do consumidor e destinado à quitação mútua do contrato, desobriga o credor de realizar os leilões previstos na Lei nº 9.514/1997, valendo o termo de quitação recíproca como documento suficiente para a consolidação definitiva da propriedade e cancelamento da garantia fiduciária;
(VI). Nas operações de empréstimo com garantia fiduciária, a venda em leilão do bem imóvel avaliado por valor menor do que a dívida original não implicará na desoneração do devedor em relação ao pagamento do saldo devedor remanescente;
(VII). Nas operações de empréstimo com garantia fiduciária, a venda em leilão do bem imóvel avaliado por valor igual ou superior ao valor da dívida original desobrigará o devedor quanto ao pagamento de eventual saldo devedor remanescente, podendo o terceiro fiduciante, mediante pagamento, subrogar-se na dívida;
(VIII). Nas operações de empréstimo com garantia fiduciária de bem imóvel, cujo valor de avaliação é inferior ao da dívida original, oferecido em garantia por terceiro não devedor, o valor que sobejar a liquidação proporcional do débito será obrigatoriamente entregue ao terceiro fiduciante pelo credor e não estará o devedor desobrigado quanto ao pagamento de eventual saldo devedor remanescente.

_________________________

1. Advogado graduado pela Universidade de São Paulo (USP). Pós-graduado em Direito Imobiliário e Direito Registral e Notarial. Coordenador Jurídico de Contratos Imobiliários da Caixa Econômica Federal.
2. Silva, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, 3.ed., pg. 361
3. Silva, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, 3.ed., pg. 367
4. Lei nº 9.514/1997, art. 17, IV.
5. Lei nº10.931/2004, art. 51.
6. Lei 4.595/1964, art. 35.
7. Chalhub, Melhin Namen. Alienação Fiduciária, Incorporação Imobiliária e Mercado de Capitais – Estudos e Pareceres. Rio de Janeiro: Renovar, 2012. p.15
8. Idem, p.14

FONTE: Blog do Mauro Antônio Rocha | 17/10/2015.

Publicação: Portal do RI (Registro de Imóveis) | O Portal das informações notariais, registrais e imobiliárias!

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Artigo: UMA BREVE HISTÓRIA DO REGISTRO CIVIL NA ANTIGUIDADE – Por Marcelo Gonçalves Tiziani

*Marcelo Gonçalves Tiziani

UMA BREVE HISTÓRIA DO REGISTRO CIVIL NA ANTIGUIDADE[1]

Sumário: 1. Introdução – História do Registro da Vida das Pessoas. 2. Uma Breve História do Registro Civil na Antiguidade: 2.1. O Famoso Código de Hammurabi; 2.2. O Mundo Romano; 2.2.1. A Fase de Sérvio Túlio – Início da Contagem Populacional; 2.2.2. A Fase de Augusto – Controle da Procriação ; 2.2.3. A Fase de Marco Aurélio – Universalização do Registro de Nascimento; 2.2.4. O Controle dos Óbitos; 2.2.5. O Casamento Romano; 2.2.6. A probatio per vocem et famam. 3. Conclusão. 4. Referências bibliográfica

  1. Introdução – História do Registro da Vida das Pessoas

Desde que surgiu, o ser humano vem fazendo questão de registrar sua existência, ou seja, de marcar sua passagem pelo universo. De uma forma ou de outra, as pessoas sempre valorizaram o resguardo da memória, fosse desenhando nas cavernas, fosse contando histórias em torno de fogueiras.

Mas, se, por um lado, essa memória buscava manter lendas e tradições de um grupo humano, por outro, relacionava-se ela, também, à vida das pessoas. Pelos registros encontrados pelos arqueólogos, é possível observar que as inscrições não tinham somente a função de controle das tradições, coesão social e polícia estatal, visavam elas, em última análise, marcar a existência da pessoa e suas nuances, como o nascimento e a morte, além de acontecimentos outros da vida.

Muitos exemplos podem ser colhidos. As pirâmides: são formas de registrar a vida do faraó. Nelas, estão escritos feitos, acontecimentos e sua morte, ou seja, a vida desse homem que era visto como uma encarnação divina.

Porém, o que queria essa pessoa? Ser lembrada pelas gerações futuras. Quis o faraó, apenas, registrar sua existência; pretendeu fazer que notassem que nasceu, viveu, foi um grande homem e que morreu. Nada mais.

O que se buscou afirmar até aqui, de forma ampla, não apenas jurídica, é que o registro do curso da humanidade faz parte da natureza do homem. Por onde passa, a humanidade faz questão de marcar sua existência. Sendo assim, é possível dizer que onde há o ser humano, há seu registro.

Entretanto, juridicamente, a importância dos dados sociais só ganhou relevância com o nascimento dos primeiros aglomerados humanos – o que não permite dizer que desde sempre existiu um sistema registros públicos. Houve, sim, momentos de gerenciamento dessas informações, mas não como nos moldes atuais.

É bom lembrar que as primeiras pessoas viviam em pequenos grupos, em que todos os seus membros, ou quase todos, eram conhecidos. Nessas situações, as relações jurídicas são simples e de fácil prova. Aqui, a demonstração do estado civil das pessoas é facilmente feita por meio de testemunhas – afinal, a vida dos indivíduos é, de certa forma, de conhecimento da coletividade.

Entretanto, em grandes ajuntamentos, nos quais há grande trânsito de pessoas, e onde os indivíduos, raramente, se conhecem, as relações sociais exigem um sistema de segurança jurídica mais aperfeiçoado, no qual a prova testemunhal passa a perder um pouco de sua aura.

Se, nos primórdios da humanidade, os registros tinham apenas fins de controle numérico da população, com o reconhecimento de seu papel estratégico nas funções estatais, as inscrições públicas passaram a ser política de Estado.

Dessa forma, o Registro Civil é instituição jurídica que vem se transformando ao longo da humanidade.

Se, por um lado, é matéria ainda não consolidada pela doutrina brasileira, por outro, essa área do Direito vem ganhando muito destaque atualmente, em virtude do seu reconhecimento social – a corroborar tal tendência, podem ser citados o fenômeno da desjudicialização, que delega ao Registro Civil novas atribuições, e a ideia de descodificação da disciplina, que induz à criação de legislação específica sobre o tema.

Assim, o que se pretende, com esse pequeno trabalho, é tentar trazer um pouco de história dessa registração do estado civil das pessoas na antiguidade. 

  1. Uma Breve História do Registro Civil na Antiguidade

2.1. O Famoso Código de Hammurabi

Como já mencionado, a ideia de manter a memória dos acontecimentos que sucedem na vida de uma pessoa é antiga, vem dos primórdios da humanidade.

Não obstante, a noção jurídica de registro público, ou seja, a importância coletiva, não só individual, dos fatos que atingem a pessoa é, de certa forma, recente, nasceu com o início das grandes civilizações.

Antes disso, havia uma variada forma de publicização da existência do ser humano. Em tal época, a publicidade ocorria segundo os costumes locais, geralmente por meio de cerimônias, públicas ou privadas, na presença de parentes ou de pessoas pertencentes ao grupo social – clã, gens, tribo – por ocasião do nascimento, do nome, da puberdade, das núpcias e da morte, sendo que cada um desses acontecimentos exigia um ritual próprio, segundo a tradição.

Ocorre que esse sistema da “fama pública”, que se utiliza de testemunhos para a comprovação da situação jurídica da pessoa humana, só funciona em  aglomerados singelos. Trata-se, em verdade, de ideia que vai bem em pequenos grupos humanos, em que quase todos se conhecem, mas que não traz a necessária segurança que grandes sociedades exigem.

Por tal razão, talvez seja no Código de Hammurabi que se possa ver o início de certo interesse jurídico estatal na inscrição dos acontecimentos que dizem respeito à existência da pessoa humana. É nesse diploma legal que se observa o início de alguma forma de registro dos atos do estado civil. Nessa época, o casamento era visto como um contrato. Sem tal solenidade, a mulher não era considerada esposa[2].

De fato, o enfoque dado pelo Código de Hammurabi é a natureza contratual do casamento. A lei não se interessa, na essência, com o registro do ato em si. Mas, ao exigir uma documentação[3] do matrimônio, acabou por criar uma forma de registração civil.

2.2. O Mundo Romano

2.2.1. Fase de Sérvio Túlio – Início da Contagem Populacional

Para o mundo itálico, por sua vez, foi em Roma que se viu a primeira centelha do registro civil, que parece retroceder ao rei Sérvio Túlio[4].

Segundo relatos do historiador Dionísio de Hallicarnasso, o referido rei impôs um censo à população. Por tal mecanismo, a cada 5 anos, o pater elaborava um documento chamado tabulae census, no qual declarava o patrimônio familiar, a situação pessoal do declarante – nome dos pais, idade e domicílio – e dos membros da família – esposa e número de filhos.

Além da obrigatoriedade da declaração do censo pelo chefe familiar, o mesmo rei, e sempre com o mesmo fim de recenseamento, criou um interessante sistema de contagem populacional. Ele obrigou a população a jogar uma moeda nos templos religiosos, quando ocorria um nascimento ou óbito, de tal modo que, através de sua contagem, era possível conhecer a quantidade da população e, principalmente, quantos homens estavam aptos a pegar em armas.

No caso do nascimento, atirava-se uma moeda junto ao templo da deusa Lucina, filha de Juno com Júpiter, já que protetora dos partos e das gestantes. Para a ocasião do falecimento, jogava-se no de Venus Libitina, pois era ela a deusa da morte, dos cadáveres e dos funerais. Quando da puberdade masculina, ato que representava a entrada de um homem na vida adulta, a moeda era para o templo de Juventas, divindade protetora dos adolescentes no momento de deixar a infância.

É possível perceber, então, que os romanos, já nos primórdios de seus dias, demonstravam o interesse na contagem da situação de seu povo. De forma criativa e ao mesmo tempo prática, o sistema de contagem de moedas redundava em arrecadação tributária e facilidade de aferição.

Assim, fica claro, que a ideia inicial, na cabeça dos romanos, era apenas arrecadatória e militar. Não havia preocupação, nesse período, de registrar o fato, controlando sua legalidade, mas apenas a preocupação em conhecer o efetivo bélico disponível – quando se fala da puberdade masculina – ou meramente arrecadatória, quando se fala das outras situações – nascimento e morte.

Em suma, o sistema inicial de resguardo dos dados das pessoas, nos primórdios de Roma, tinha natureza de mero censo.

2.2.2. A Fase de Augusto – Controle da Procriação

Entretanto, com o aumento de sua potência e as consequentes guerras e conquistas que acompanham tais transformações, Roma viu-se obrigada a interferir, diretamente, na procriação de sua elite, principalmente através do casamento. A ideia era aumentar a população, já que a filiação numerosa sempre foi um elemento essencial para o crescimento da civitas e da força politico-militar romana.

Assim, a expansão romana exigia cada vez mais pessoas nas fileiras militares, fazendo com que fosse uma dever do cidadão romano promover o aumento demográfico de Roma.

Ocorre que, com as conquistas, novos povos passaram a ter contato com os romanos, inclusive misturando-se a eles. Em tais situações, espera-se que haja, e de fato houve, uma miscigenação de culturas, com gentis casando-se com livres, escravos sendo libertos ou procriando com outros.

Com efeito, se, por um lado, a expansão romana trouxe riquezas e prestígio a seu povo, por outro, essa diversidade levou a um declínio de sua população livre – o chamado Populus Romanus –, fazendo com que o Imperador Otaviano Augusto, por meios de várias leis, especialmente de índole matrimonial, visando a estabilidade do Império, levasse a cabo uma reforma ético-matrimonial dos costumes romanos.

Os exemplos mais conhecidos e citados são as denominadas lex Iulia de Maritandis Ordinibus, lex Papia Poppaea e, finalmente, a lex Aelia Sentia. Todas essas leis regularam, de certa forma, o casamento, visando, em última análise, o controle populacional de Roma.

A primeira norma – lex Iulia de Maritandis Ordinibus – estabeleceu, basicamente, que estavam obrigados a contrair um iustum matrimonium os homens entre os 25 e os 60 anos e as mulheres entre os 20 e os 50 anos, sob pena de sanções, como as de limitação à ascensão a cargos públicos.

A lex Aelia Sentia, de 4 d.C., visou controlar a manumissão, ou seja, a libertação de escravos pelos seus senhores. Por esta norma, um escravo só poderia ser liberto quando tivesse, pelo menos, 20 anos de idade.

A seu turno, a lex Papia Poppea, de 9 d.C, regulava questões de ordem sucessória, além de atribuir recompensas às famílias com prole numerosa, decorrente do ius liberorum.

Porém, tais leis não tratavam, especificamente, do registro civil das pessoas naturais; visavam, apenas, a pureza racial da elite romana. Como ensina Juan Iglesias,  não há em Roma registros do estado civil[5].

Não obstante, indiretamente, pode-se dizer que tais leis criaram um sistema de registros públicos sobre o estado civil da pessoa natural. Afinal, foi necessário comprovar, perante os órgãos de Estado, o cumprimento das obrigações criadas por tais normas.

Como dito acima, a lei Aelia Sentia consentia benefícios ao romano de prole numerosa e, em contrapartida, impunha sanções ao cidadão sem descendência.

Assim, para a demonstração do adimplemento da procriação, ou seja, para fins de recebimento de benefícios estatais, ou até mesmo para evitar imposição de sanções, no mundo grego-egípcio[6], mas já sob domínio romano[7], foi criada a praxe de se declarar, perante autoridade pública, o nascimento de cidadão livre.

Com efeito, para a aplicação dessa normativa, foi necessário criar um sistema de registros de nascimento[8], constituído das declarações dos interessados perante a autoridade pública. Aqui começa a existir o interesse no registro civil da pessoa natural.

Logo, apesar de não serem regras específicas de registros públicos, indiretamente o nascimento – talvez o ato mais importantes da vida das pessoas – passou a ser registrado por órgão públicos especialmente designados para tanto, através de uma declaração – professio liberorum [9] – feita perante autoridade competente.

Fabio Lanfranchi[10], examinando alguns papiros egípcios sobre as declarações de nascimento no Direito Romano, traz o seguinte exemplo de professio, retirado do Papiro de Michigan 766, de 128 d.C:

 L. Nonio Torquato Asprenate II M. Annio

Libione co(nis(ulibus) Idib(us) April(ibus)

anno XII Imperatoris

Caesaris Traiani Hadriani Aug(usti)mense

Pharmuthi die XVII Alex(andreae) ad                                                                             

Aeg(yptum)

descriptum et recogntium ex tabula profe-

sionum quibus liberi nati sunt

quae tabula proposita erat in foro Aug(usti)

in qua scripitum fuid id quod infra scri-

ptum est M. Claudio Squilla Gallicano

T. Atilio Rufo Titiano co(n)s(ulibus) anno XII                                  

Imp(eratoris)

Caesaris Traiani Hadriani Aug(usti) T. Flavio

Titiano praef(ecto) Aeg(ypti) professiones                                                                         

liberorum

acceptae citra causarum cognitionem.

O que se percebe, nessa época, é que a captação das declarações era facultativa e sempre citra causarum cognitionem, ou seja, sem qualquer constatação ou exame preventivo dos fatos narrados.

Não existia, nessa fase, um sistema direto de aceitação do nascimento, senão indireto, cuja verdadeira finalidade era demonstrar que a pessoa estava cumprindo com suas obrigações como cidadão romano. Tanto assim era, que a declaração era recebida sem análise de sua veracidade. 

2.2.3. A Fase de Marco Aurélio – Universalização do Registro de Nascimento 

Tal sistema vigorou até a chamada Reforma de Marco Aurélio. Foi ele quem impôs a obrigatoriedade de registro dos nascimentos de todos os cidadãos romanos, legítimos ou ilegítimos, razão pela qual lhe é atribuída a origem do estado civil.

Os historiadores[11] dizem que, depois de ter estado no Egito, onde já se praticava o registro dos nascimentos por funcionários do Estado, Marco Aurélio introduziu, então, pela primeira vez, por decreto[12], a obrigação de registração dos nascimentos.

Dessa forma, todo cidadão, dentro de trinta dias do dies nominum, ou seja, do dia em que o infante recebia o nome – que para as mulheres ocorria no oitavo dia e para os homens no nono dia do nascimento – tinha a obrigação de registrar os próprios filhos, de modo que cada romano nascido pudesse produzir prova documental de sua origem territorial, parental e temporal.

Com base nessa reforma, ocorrida entre os anos de 174/6 d.C., foram extintas as antigas professiones e testationes e estabelecida uma só forma de declaração – profiteri – para todos, eliminado as restritivas disposições das leis Sentia e Poppaea.

Como o sistema de Augusto, sob Marco Aurélio, o registro dos nascimentos continuou sendo feito com base nas meras declarações recepcionadas por funcionários, que apenas anotavam o dito, sem, porém, qualquer verificação, ou seja, sem adentrar em sua legalidade. A novidade dessa reforma consistiu no fato de que o imperador impôs a obrigatoriedade de se fazer a declaração do nascimento, o que era até então facultativo, além de tê-la estendido para os nascidos fora do casamento, anteriormente reservada somente aos filhos legítimos.

Percebe-se, com efeito, que o nascimento recebeu, em Roma, bastante interesse estatal. Sendo certo que tal interesse era eminentemente militar – a ideia era a formação da força bélica romana – acabou ele por criar, mesmo que indiretamente, um sistema de coleta desses acontecimentos.

2.2.4. O Controle dos Óbitos

Porém, quanto aos demais atos e fatos do estado civil, mais especificamente o casamento e a morte, não chamavam eles tanto a atenção de Roma. Ao que tudo indica, tais acontecimentos eram mais vistos como de interesse privado.

Como dito, concernente ao óbito, infelizmente, não se pode dizer que houve legislação obrigando sua declaração. No mundo romano, diferentemente do nascimento, a morte não recebeu normatização para seu registro. Nesse campo, o interesse sempre foi mais censitário ou militar.

Não obstante, não se pode dizer que não havia em Roma uma sistemática de controle das mortes ali ocorridas. Como exemplo, pode ser relembrada a obrigação imposta pelo rei Sérvio Tulio de se lançar uma moeda no templo de Venus Libitina, quando da ocasião de um falecimento. Esses sistemas, é certo, tinham por finalidade primária a contagem do número de homens em condições de combater e não o registro do fato em si mesmo.

Ainda, como outro exemplo de inscrição de óbitos, podem ser citadas as chamadas “listas de frumentationes“. Tais listas traziam em seu bojo os nomes das pessoas que podiam receber água e víveres das autoridades romanas. Como elas eram atualizadas a cada ano, os nomes dos beneficiários falecidos eram substituídos por outros de pessoas vivas. Assim, nesse atualizar da lista, podia-se saber os casos de óbitos ocorridos.

Em suma, um sistema generalizado de registro de óbitos somente ocorria nas ocasiões de epidemia ou de outras catástrofes e não que se tratasse de uma prática generalizada.

Dessa forma, é possível afirmar que, independentemente do escopo perseguido pelo registro das mortes em Roma, tal forma de publicidade pessoal, assim como o ocorrido com os nascimentos, passou, de situações ocasionais e circunscritas a cidadãos homens e livres, a uma tendência geral e contínua. 

2.2.5. O Casamento Romano

Quanto ao matrimônio em Roma, era ele privado, religioso e, ainda, não solene. Como leciona Juan Iglesias, diferentemente do matrimônio moderno, o romano não surge pelo consentimento inicial senão que é preciso o contínuo ou duradouro. Ademais, não está sujeito a formalidades de nenhuma espécie, que seriam a celebração perante autoridade ou redação de um documento[13].

Concernente à conclusão do casamento, não havia necessidade que qualquer forma jurídica, se bem que, naturalmente, festas e cerimônias, que variavam com o tempo e os costumes, acostumassem acompanhar esse importante acontecimento.     Logo, não havia normativa específica para o registro e a publicidade do matrimônio romano, senão, aqui também, de forma oblíqua, através dos contratos de dote ou pactos nupciais (pacta nuptialia).

Ensina José Cretella Júnior que a cerimônia de casamento, quando as havia, consistia na oferenda a Júpiter, pelos noivos, de um bolo fabricado com espelta, espécie de trigo (farreum libum) que era repartido entre o casal. A cerimônia, que era realizada na presença de 10 testemunhas, do grande pontífice e do “flamen” de Júpiter, exigia uma série de palavras solenes e de diversos atos[14].

Ainda, segundo o mesmo autor, havia, nesse complexo ritual do casamento romano, uma cerimônia simbólica, a condução da mulher para a casa do marido (deductio uxoris in domum mariti), o que parece uma evocação à lenda do rapto das sabinas pelos romanos, como também, na maioria dos casos, a constituição de um dote, garantido por escrito (instrumentum dotale)[15].

Não havia, assim, uma forma de recepção por autoridades públicas das declarações de casamento. Existia, sim, o testemunho dos presentes à celebração, mas, não, um registro do ato.

Com efeito, é possível perceber que o romano teve pouco interesse no registro do casamento como forma de sua publicidade. Para ele, o matrimônio era assunto doméstico, tratado sob o mando das normas da família, salvo os contratos de dote ou pactos nupciais, que eram escritos e deram algum suporte material para os estudos atuais sobre o tema.

2.2.6. A probatio per vocem et famam

Por tudo o que foi escrito até aqui sobre o assentamento dos atos do estado civil pelo romanos, é possível observar que faltavam, em Roma, instituições, como as hodiernas, para a recepção dessas informações.

Pelo pouco que deles chegou aos dias de hoje, percebe-se que os registros públicos romanos visavam somente dados estatísticos da população, para fins fiscais e militares.

Consequentemente, por não existir um sistema de provas pré-constituídas e seguras para determinar com exatidão a idade, o casamento e a morte de alguém, além de suas relações de parentesco, nessa época, sempre que era necessário demonstrar o estado civil de um pessoa, voltava-se ao recurso da “fama pública”.

A probatio per vocem et famam se fazia por meio de testemunhos de parentes ou vizinhos, ou pela análise de algum juiz sobre os dados perquiridos.

A demonstração do estado civil da pessoa natural por meio da “fama pública”, ou seja, através de testemunhos, dava pouca segurança jurídica ao ato, mas, até certo ponto, era razoável para os costumes da época. Apesar de pragmáticos, os romanos também eram muito apegados a suas tradições. As relações de família, nesse período, eram vistas como de índole privada. Poucas vezes se notava a interferência estatal em sua organização.

  1. Conclusão

O mundo romano passou por diversas transformações durante sua existência: de um povo tradicionalmente pastoril, passou Roma a ser a maior potência ocidental do toda a história. Até hoje é possível sentir as influências de sua cultura no dia-a-dia do homem europeu-americano.

Para o romano, a ideia de um sistema de registro e controle dos atos e fatos do estado civil não vingou porque tudo isso era resolvido no âmbito familiar.

As inscrições públicas tinham fins estatísticos e  militares. E, mesmo no caso do nascimento, instituto que recebeu certa normatização, a finalidade principal era apenas o controle estatal da obrigação de procriação, à qual todo cidadão romano se submetia. Logo, não existiu em Roma um sistema de registro civil como os de hoje.

Não obstante, é preciso ressaltar que os romanos legaram muito sobre o tema ao homem contemporâneo.

As reformas de Augusto e Marco Aurélio não representaram apenas mais um ônus aos cidadãos, mas consolidaram a mentalidade das autoridades e dos nacionais acerca da necessidade de existir um regime de captação dos atos e fatos relacionados ao estado civil de sua gente. Essas mudanças instituíram um sistema de provas pré-constituídas do estado civil das pessoas naturais, aprimorando os regimes existentes em quase todos os ordenamentos jurídicos a partir dali.

A grande transformação trazida por essa nova sistemática foi a mudança de paradigma: a partir de então, um sistema de coleta dos fatos da vida da pessoa humana passou a fazer parte de qualquer civilização de vanguarda.

  1. Referências bibliográficas

BONFANTE, Pietro. Istituzioni di diritto romano. Milão: F. Vallardi, 1907.

CAMPOS, Flávio de. CLARO, Regina. A Escrita da História. São Paulo: Escala Educacional, 2009.

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FASOLINO, Francesco. Note in Tema di Pubblicita Personale: La Registrazione dei Decessi a Roma. Disponível em <http://www.teoriaestoriadel dirittoprivato.com/index.php?com=statics&option=index&cID=51).En> Acesso em 14-5-2015>.

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SARNO, Donato. Storia Dei Registri Dello Stato Civile. Matelica: Halley, 2010.

STEINWASCHER, Helmut Neto. A Procriação e o Interesse da Res Publica: Uma Análise das Leis Matrimoniais de Augusto. Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/2/2131/tde-06062013-153045/>. Acesso em: 14-05-2015.

______________

[1] Extraído da monografia – O Conceito do Direito do Registro Civil das Pessoas Naturais – apresentada para a conclusão do Curso de Pós-Graduação Lato Sensu em Direito Notarial e Registral Imobiliário junto à Escola Paulista da Magistratura – EPM.

[2]O preceito 128º do Código de Hammurabi diz que: se alguém toma uma mulher, mas não conclui um contrato com ela, esta mulher não é esposa. KING, Leonard Willian. O Código de Hammurabi.São Paulo: Madras Editora, 2004. p. 25.

[3]A Escola Paulista da Magistratura – EPM – tem uma exposição permanente sobre a história do livro. Ali, pode-se ver a evolução dos suportes físicos sobre os quais repousaram as escrituras ao longo do tempo, desde a argila, passando pelo couro e  papiro, até chegar ao papel, sem se esquecer da informática.

[4]Diz a lenda que Rômulo, irmão de Remo, fundou Roma no dia 21 de abril de 753 a.C. Desde então, e até 509 a.C., segundo a tradição, sucederam-se sete reis: Rômulo (753-715 a.C.); Numa (715-673 a.C.); Túlio Hostílio (673-642 a.C.); Anco Márcio (641-617 a.C.); Tarquínio (617-579 a.C); Sérvio Túlio (578-535 a.C.); Tarquínio, o Soberbo (534-509 a.C.). A Monarquia Romana durou de 753-509 a.C., quando se inicia a República Romana. LIBERATI, Anna Maria; BOURBON, Fabio. A Roma Antiga. Grandes Civilizações do Passado. Barcelona: Ediciones Folio, p. 20.

[5] IGLESIAS, Juan. Direito Romano. Coleção Direito Europeu. (org.) MOLINA, Antonio García-Pablos de. São Paulo: RT, 2011. p. 225.

[6] Em 332 a.C., Alexandre Magno expulsou os persas do Egito e assumiu o controle sobre a região. Com a morte de Alexandre (323 a.C.), o general grego Ptolomeu foi nomeado governante do Egito. Em 304 a.C., com a dissolução do Império Macedônico em razão de disputas internas de seus comandantes, Ptolomeu proclamou-se rei, fundando uma linhagem que governaria por três séculos e inaugurando um período que seria conhecido como ptolomaico. CAMPOS, Flávio de. CLARO, Regina. A Escrita da História. São Paulo: Escala Educacional, 2009, p. 86.

[7]Após a destruição de Cartago em 146 a.C. e a redução de seu território à condição de província, os romanos abriram caminho para a expansão de suas fronteiras no continente até conquistar e tomar Alexandria em 30 a.C. Bis in idem. p. 104.

[8] O óbito e o casamento tinham formas diversas de solenidade.

[9] Os romanistas discutem se a obrigatoriedade da declaração de nascimento se dirigia apenas aos filhos legítimos ou se também alcançava os ilegítimos. Vide. Carlos Sanchez-Moreno Ellart e Fabio Lanfranchi.

[10] LANFRANCHI, Fabio. Ricerche Sul Valore Giuridico Delle Dichiarazioni Di Nascita In Diritto Romano. Bolonha: Nicola Zanichelli, 1951. p. 31.

[11] Esses fatos nos chegam através da obra denominada Historia Augusta – biografias de imperadores romanos que vai de Adriano a Numeriano – tendo como um dos autores Júlio Capitolino. Iulius Capitolino, historiador romano, viveu entre o fim dos século III ao início do IV d.C e foi um dos autores da Historia Augusta, coleção de trinta e quatro biografias (Vitae) de imperadores romanos, compreendendo o período de 119 a 284 de nossa era. A ele é atribuída a biografia de Marco Aurélio (Vita Marci).

[12] Liberales causas ita munivit, ut primus iuberet (sc. Marco Aurelio) apud praefectos aerari Saturni unumquemque civium natos liberos profiteri intra tricesimum diem nomine imposito. Per provincias tabulariorum publicorum usum instituit, apud quos idem de originibus fieret, quod Romae apud praefectos  aerarii, ut si forte aliquis in provincia natus causam liberalem diceret, testationes inde ferret. Atque hanc totam legem de adsertionibus firmavit, aliasque de mensariis et auctionibus tulit. De statu etiam defunctorum intra quinquennium quaeri iussit.

[13] IGLESIAS, Juan. Direito Romano. Coleção Direito Europeu. (org.) MOLINA, Antonio García-Pablos de. São Paulo: RT, 2011. p. 678.

[14] CRETELLA JÚNIOR, José. Curso de Direto Romano. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 119.

[15] Bis in idem. p. 120.

*Marcelo Gonçalves Tiziani é Oficial de Registro Civil e Tabelião de Notas de Tuiuti/SP.

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Artigo: AS DIVERSAS ACEPÇÕES DO TERMO REGISTRO CIVIL DAS PESSOAS NATURAIS – Por Marcelo Gonçalves Tiziani

*Marcelo Gonçalves Tiziani

Sumário
1. Introdução. 2. As diversas acepções do termo Registro Civil: 2.1. Como Local; 2.2. Como Instituição Jurídica; 2.3. Como Registro Público; 2.4. Como Jurisdição Voluntária; 2.5. Como Serviço Público; 2.6. Como Função Pública. 3. As funções do Registro Civil das Pessoas Naturais. 4. Conclusão. 5. Referências bibliográficas.

1. Introdução

As atividades notarial e registral vêm passando por grandes transformações nos últimos tempos, o que faz com que sejam foco de grande atenção do público em geral.

Nesse contexto, a atividade de registro civil também vem recebendo grande atenção dos governos, fazendo com que seja necessário melhor entender essa vital função jurídica do Estado, sob pena de ser mal interpretada.

Esse pequeno trabalho visa debater a primeira lição sobre o tema: afinal, o que significa Registro Civil?

A responder tal assertiva, é possível observar que existem vários entendimentos sobre o que a expressão Registro Civil possa significar, tudo dependendo do enfoque dado.

Assim, a presente pesquisa tem por fim traçar, de forma reduzida, os principais entendimentos sobre esse assunto.

2. As diversas acepções do termo Registro Civil

Como mencionado acima, a expressão Registro Civil pode ser usada com diversas acepções:

2.1. Como Local

Essa posição vê o Registro Civil como uma repartição pública, organizada pelo Estado para a constatação de referidos fatos e circunstâncias.

Nas palavras de Enrique Alonso e Iglesias e Cástor V. Pacheco y Gómez, o registro civil é a repartição pública destinada a fazer constar, de um modo autêntico, todos os atos concernentes aos estado civil das pessoas1.

Esse entendimento leva em consideração o lugar em que o Registro Civil é realizado, ou seja, o cartório ou serventia extrajudicial. Aqui, o Registro Civil é a serventia. Para essa visão, existe uma universalidade de relações jurídicas e bens necessários ao bom atendimento do Registro Civil.

É possível criticar tal posicionamento pelo seu reducionismo – o Registro Civil é muito mais que uma mera seção de um departamento estatal. Porém, chama a atenção essa doutrina para o fato de que existe uma universalidade útil ao efetivo funcionamento do Registro Civil.

2.2. Como Instituição Jurídica

Outro entendimento doutrinário concebe o Registro Civil como instituição jurídica, indispensável às sociedades avançadas.

Eduardo Garcia-Galan y Carabias leciona que o registro civil é uma instituição necessária à sociedade, porque sua existência é necessária para que se possa individualizar a pessoa e conhecer sua genealogia2.

Diz Francisco Luces Gil que, nesse aspecto, o Registro Civil pode ser definido como uma instituição que tem por objeto dar publicidade aos fatos e atos que afetam o estado civil das pessoas, cooperar, em certos casos, na constituição de tais atos e proporcionar títulos de legitimação do estado civil3.

A ideia de Registro Civil como instituição jurídica de Estado entende essa atividade como uma necessidade social, tendente a reger os órgãos públicos e as relações jurídicas relacionados ao estado civil da pessoa natural.

Realmente, a visão do Registro Civil como instituição jurídica, permanente e de Estado, é importante para chamar a atenção da sociedade para a relevância política dessa função. As sociedades mais avançadas incorporaram, definitivamente, em suas estruturas a necessidade de controle dos acontecimentos que atingem o estado das pessoas naturais. Impossível, hodiernamente, uma sociedade sem um Registro Civil.

2.3. Como Registro Público

María L. de la Fuente diz que o Registro Civil pode definir-se como um registro público que tem por objeto fazer constar, oficialmente, os fatos e atos que se referem ao estado civil e aqueles outros relativos à identidade e demais circunstâncias ou condições da pessoa, relacionados na lei4.

Nesse sentido, Guillermo Fernandez Vivancos coloca que os atos concernentes ao estado civil das pessoas devem constar num Registro chamado Registro Civil, ou Registro do Estado Civil, que compreende as inscrições ou anotações de nascimento, casamento, emancipações, reconhecimentos e legitimações, óbito e nacionalidade5.

Essa é a posição da Organização das Nações Unidas (ONU), através de sua divisão de estatísticas (UNSTATS), para quem o Registro Civil é definido como a contínua, permanente, compulsória e universal gravação das ocorrências e características dos eventos vitais pertencentes à população, como previsto por decreto ou regulamento, em conformidade com os requisitos legais de um país6.

Nesse contexto, o Registro Civil pode ser visto como um conjunto de livros, em que constam os fatos e circunstâncias concernentes ao estado civil das pessoas.

Se por um lado esse entendimento pode ser criticado porque o Registro Civil não é um mero cadastro do nascimento, casamento e óbito das pessoas, por outro deve ser levado em consideração, por reconhecer importância na criação e conservação dos registros públicos.

2.4. Como Jurisdição Voluntária

Essa concepção entende que o Registrador exerce jurisdição voluntária, na medida em que desempenha administração pública de direitos ou interesses privados. Nesse contexto, somente a jurisdição contenciosa, destinada à composição da lide, é função essencial ao Poder Judiciário.

Como fala José Frederico Marques, a jurisdição voluntária não pressupõe um litígio ou situação contenciosa, mas um ato jurídico ou negócio que deve passar pelo crivo da autoridade judiciária, em consequência da administração pública que o Estado exerce sobre os interesses privados que nesse ato se consubstanciam7. Aqui, leva-se em conta apenas a figura do terceiro imparcial, no caso o Registrador, incumbido de dar concreta aplicação da lei.

Como exemplo de que os atos de registro se revestem de jurisdição, Edson Prata indica os seguintes casos: a) habilitação e celebração de casamento; b) dispensa de impedimentos; c) declaração de ausência; d) registro de nascimento, óbitos, casamentos, emancipações, interdição, ausência; e) separação consensual8. Assim, esse atos são oriundos de procedimentos de jurisdição voluntária direcionados à formação e à publicidade do estado civil.

A dúvida acerca dessa teoria reside no conceito, ainda muito discutido, do que seja jurisdição voluntária. Porém, vale a pena ressaltar esse posicionamento, haja vista a importância jurídica da atuação do Oficial na formação dos atos de Registro Civil.

2.5. Como Serviço Público

A concepção do Registro Civil como serviço público é extraída de interpretação literal da Constituição Federal, ao dispor, no caput de seu artigo 236, que os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público.

Como leciona Reinaldo Velloso dos Santos, o Registro Civil das Pessoas Naturais é atividade exercida por profissionais do Direito, denominados Oficiais de Registro, que prestam serviço público por delegação do Poder Público …9.

Para esse entendimento, a natureza jurídica da atividade de Registro Civil é de serviço público. Serviço, por consistir no desempenho de uma atividade pessoal realizada pelo Registrador, e público, por ser de titularidade estatal, haja vista sua relevância social.

Apesar da crítica de Oswaldo Aranha Bandeira de Mello a esse entendimento, para quem não se deve confundir função pública, atividade jurídica do Estado, com serviço público, prestação material de coisa ou comodidade10, essa concepção é relevante por reconhecer a seriedade econômica e social do Registro Civil.

2.6. Como Função Pública

A teoria do Registro Civil como função pública decorre da relevância e, mesmo, de sua titularidade, ou seja, da importância social do controle dos acontecimentos do estado civil e da titularidade estatal dessa função. Para essa posição, entende-se por função pública, em oposição a serviço público, a atividade jurídica do Estado.

Com a complexidade da vida em sociedade e, por conta disso, diante da enorme quantidade de leis e suas peculiaridades, os Estados se viram premidos a funcionar, também, como prestadores de atividades jurídicas a seus cidadãos. Visando a pacificação social, a prestação jurídica passou a ser finalidade estatal, ou seja, função pública.

Como fala Luís Paulo Aliende Ribeiro, a função pública notarial e de registro apresenta, no Brasil, contornos peculiares e exclusivos …11.

Luiz Guilherme Loureiro entende que as atividades notariais e de registro constituem funções públicas … 12.

Logo, a atividade de Registro Civil das Pessoas Naturais, para essa doutrina, é vista como função pública, ou seja, se trata de atividade jurídica do Estado, com vistas à consecução da segurança jurídica que as inscrições públicas merecem.

Haja vista a importância social dos registros públicos, no Brasil, segundo essa corrente doutrinária, as inscrições dos atos e fatos relacionados ao estado civil das pessoas naturais ganharam “status” de função pública, como verdadeira atuação jurídica na esfera privada da vida das pessoas.

3. As funções do Registro Civil das Pessoas Naturais

Das ideias trazidas acima, é possível destacar as principais funções da atividade pública de registro civil das pessoas naturais, que são:
3.1. a constância e publicidade dos fatos e circunstâncias concernentes ao estado civil;
3.2. a cooperação na formulação de alguns atos que afetam o estado, função que tem crescido de importância ultimamente;
3.3. a criação de autênticos títulos de legitimação do estado civil, muito mais do que a mera facilitação de simples meios probatórios.

4. Conclusão

Ao RCPN nem sempre é dada a devida importância que essa área da ciência jurídica merece. Ao colocar os atos de registro e averbação no Código Civil, numa tentativa de recodificação da matéria, o legislador passa a impressão de que o Registro Civil das Pessoas Naturais seja mero apêndice do Direito Civil. O que não é verdade.

O Registro Civil é estudado por uma especialidade do Direito, o denominado Direito do Registro Civil das Pessoas Naturais, ramo autônomo do Direito Público que tem por finalidade regulamentar a função estatal destinada ao gerenciamento dos atos e fatos do estado civil da pessoa humana, para fins de prova, conservação e inclusão social, além de fornecimento de dados estatísticos fundamentais.

Dessa forma, o RCPN é verdadeiro manancial de informações sobre as pessoas; é um espelho da situação jurídica de cada individuo; é o guardião da capacidade da pessoa natural.

Assim, a função social do microssistema registral é latente: é nele que o cidadão encontra a certeza da qualificação de seus dados pessoais; é nele que a sociedade deposita sua confiança na certeza das informações ali arquivadas.

No Brasil, optou-se, para o exercício dessa peculiar função, pela delegação e profissionalização da atividade. Por aqui, somente pessoas físicas, especialistas na ciência do Direito, e desde que aprovas em concurso público de provas e títulos, podem receber a delegação de registros públicos. Ainda bem que seja assim.

Apesar de sua indiscutível importância, pouco estudo é dado à matéria. Tradicionalmente, o Registro Imobiliário recebeu mais contribuição doutrinária em sua elaboração, o que deu a ele maior relevância.

Logo, a função de Registro Civil das Pessoas Naturais é muito relevante para as sociedades de massa, razão pela qual merece mais estudos e atenção por parte dos operadores do Direito.

5. Referências bibliográficas
CARABIAS, Eduardo Garcia-Galan. El Registro Civil. Madrid: Ed. Plutarco, 1941.
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RIBEIRO, Luís Paulo Aliende. Regulação da Função Pública Notarial e Registral. São Paulo: Saraiva, 2009.
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VIVANCOS, Guillermo Fernandez. Guia del Registro Civil. Madrid: Graficas Voluntas, 1946.

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Notas de rodapé

1. El registro civil es la oficina pública destinada a hacer constar de um modo auténtico todos los actos concernientes al estado civil de las personas. IGLESIAS, Enrique Alonso; GÓMEZ, Cástor V. Pacheco. El Registro del Estado Civil en España. Madrid, 1926. p. 63.
2. El registro civil es una instituición necesaria a la sociedad, porque a su existencia se debe el que pueda individualizarse la persona y conocer sua genealogía. CARABIAS, Eduardo Garcia-Galan. El Registro Civil. Madrid: Ed. Plutarco, 1941. p. 5.
3. En este último aspecto puede ser definido como “la instituición que tiene por objeto dar publicidad a los hechos y actos que afectan al estado civil a las personas, cooperar, en ciertos casos, a la constituición de tales actos y, proporcionar títulos de legitimación de estado civil. GIL, Francisco Luces. Derecho Registral Civil – com modelos e formulario. Barcelona: Bosch, 1976, p. 17.
4. El Registro Civil puede definirse como un registro público que tiene por objeto, hacer constar oficialmente, los hechos y actos que se refieren al estado civil y aquellos otros relativos a la identidad y demás circunstancias o condiciones de la persona. FUENTE, María L. Tratado del Registro Civil. Valencia: Tirant lo blanch, 2013, p. 87.
5. Los actos concernientes al estado civil de las personas se deben hacer constar en un Registro llamado Registro Civil, o Registro del estado civil, que compreende las inscripciones o anotaciones de nacimiento, matrimonio, emancipaciones, reconocimientos y legitimaciones, defuciones y vecindad. VIVANCOS, Guillermo Fernandez. Guia del Registro Civil. Madrid: Graficas Voluntas, 1946. p.9.
6. Civil registration is defined as the continuous, permanent, compulsory and universal recording of the occurrence and characteristics of vital events pertaining to the population as provided through decree or regulation in accordance with the legal requirements of a country. Civil registration is carried out primarily for the purpose of establishing the legal documents provided by the law. These records are also a main source of vital statistics. Complete coverage, accuracy and timeliness of civil registration are essential for quality vital statistics. A civil registration system refers to all institutional, legal, technical settings needed to perform the civil registration functions in a technical, sound, coordinated, and standardized manner throughout the country, taking into account cultural and social circumstances particular to the country. ONU. Disponível em: http://unstats.un.org/unsd/demographic/sources/civilreg/. Acesso em 18/07/2015.
7. MARQUES, José Frederico. Ensaio sobre a Jurisdição Voluntária. Campinas, Millennium, 2000, p. 228.
8. PRATA, Edson. Jurisdição Voluntária. São Paulo: EUD, 1979, p. 192
9. SANTOS, Reinaldo Velloso dos. Introdução ao Registro Civil das Pessoas Naturais. In: Introdução ao Direito Notarial e Registral (coord.) DIP, Ricardo.Porto Alegre: SAFE, 2004. p.43.
10. MELLO, Oswaldo Aranha Bandeira de. Princípios Gerais de Direito Administrativo. Vol. I. Rio de Janeiro: Forense, 1969. p. 149.
11. RIBEIRO, Luís Paulo Aliende. Regulação da Função Pública Notarial e Registral. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 135.
12. LOUREIRO, Luiz Guilherme. Registros Públicos – Teoria e Prática. São Paulo: ed. Método, 2011. p. 1.

________________

Autor: Marcelo Gonçalves Tiziani
Titulação acadêmica: Especialista em Direito Processual Civil – Univ. São Francisco – USF – Bragança Paulista/SP; Especialista em Direito Notarial e Registral – Univ. Uniderp – Campo Grande/SP; Especialista em Direito Notarial e Registral Imobiliário – Escola Paulista da Magistratura; Graduado pela PUC Campinas/SP
Profissão: Oficial de Registro Civil das Pessoas Naturais e Tabelião de Notas do Município de Tuiuti/SP

Fonte: Arpen/SP | 21/08/2015.

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