Artigo: A distorcida visão da corretagem de imóveis na planta – Por Marcelo Dória e Rosana Baffero

*Marcelo Dória e Rosana Baffero

No âmbito tributário, o consumidor só tem a ganhar sendo o responsável pela comissão.

Com frequência cada vez mais acentuada, Migalhas tem anunciado Julgados que apontam para um desprestígio da atividade de corretagem de imóveis, quando os honorários são cobrados em separado do valor do imóvel objeto da operação de compra e venda.

Há, de fato, uma avalanche de novas ações reclamando a devolução, quase sempre em dobro e acompanhada de pleito por danos morais, do quanto o consumidor pagou a título de comissão de corretagem.

Porém, não nos parece que os tribunais estejam avaliando adequadamente as consequências ao atribuir ilegalidade e abusividade a tais pagamentos.

Poderíamos aqui discorrer largamente acerca do fundamento legal de se cobrar a comissão em separado, a cargo do comprador. Ou mesmo nos apoiar na Jurisprudência uniformizada dos Juizados Especiais paulista1 e do Distrito Federal2. Mas preferimos estudar o resultado: qual seria o prejuízo para o consumidor? E como ficaria a questão da boa-fé objetiva, tão destacada inclusive pelo Dr. Rizzato neste mesmo informativo – para defender tese contrária -, quando o consumidor é informado, desde o início, qual é o preço total do negócio (preço do imóvel + comissão)?

Ora, quando o consumidor toma conhecimento da tabela de preços, sempre – e aqui podemos afirmar que, ao menos quando envolvidas empresas sérias de corretagem, sejamhouses (ligadas às incorporadoras), sejam corretoras puras –, lhe é informado o preço total do negócio, bem como que neste valor já estão computados os honorários da corretagem, a ser formalizada em documento distinto do compromisso e compra e venda.

Por efeito, quando o consumidor aceita o preço ofertado – ou mesmo quando consegue obter condições mais vantajosas, oportunidade em que mais ainda se destaca o trabalho do corretor a seu favor -, sabe que irá pagar o preço total do negócio, tomando seus recursos destinos diferentes: parte vai para a incorporadora, refletida no compromisso de compra e venda, parte vai para aqueles que se dedicaram a intermediar a operação de compra e venda.

Vejam que dissemos “intermediar”, porque essa a tarefa do corretor de imóveis: atuar na negociação entre comprador e vendedor, buscando o resultado útil, qual seja: para o consumidor, a compra; para a incorporadora, a venda. Não é o corretor um vendedor comum, como aquele que vende camisas no shopping center. É profissão regulamentada, com responsabilidades muito superiores, sempre supervisionado pelo atuante Conselho Regional – CRECI.

De todo modo, atuando para as duas Partes do negócio imobiliário, tem o corretor direito a receber seus honorários, de um, de outro, ou de ambos, sendo esta uma disposição negocial entre comprador e vendedor.

A tradição em imóveis “na planta” – mercado primário, ou de lançamentos – é que a corretagem esteja composta no valor total do negócio e seja paga pelo comprador. Não se trata de conduta abusiva: se o custo fosse da incorporadora, o consumidor pagaria o mesmo, ou até mais, pois estaria não mais de forma transparente no valor total do negócio, mas subliminarmente embutido no preço da compra e venda, ainda que pago, tudo, à incorporadora.

Refazemos a pergunta: qual o prejuízo ao consumidor em se adotar a comissão para seu pagamento direto?

Vemos apenas benefícios, sendo que um deles merece atenção: o da menor carga tributária a ser paga pelo consumidor.

Atente-se o leitor que o ITBI tem como base de cálculo apenas o valor do imóvel, o qual, na metodologia atual, não inclui a comissão. Caso a comissão estivesse no preço, também sobre estes honorários pagaria o consumidor o imposto de transmissão.

E não custa lembrar que o consumidor ainda pode incluir a comissão de corretagem na declaração de imposto de renda como despesa na aquisição do imóvel, que com o próprio se soma para fins de ganho de capital.

Ou seja, no âmbito tributário, o consumidor só tem a ganhar sendo o responsável pela comissão.

Não bastasse, equivocado entender que agiria a incorporadora, com o método tradicional, despida de boa-fé.

Nos parece o inverso: se o consumidor sabe que o preço do produto é aquele no qual já incluída a corretagem, depois buscar judicialmente o reembolso, simples ou em dobro e com danos morais, parece ser agir contra fato próprio.

Antes lhe beneficiava tributariamente; agora, quer se beneficiar de pagar menos pelo imóvel! Isso mesmo: aqueles que obtêm vitória judicial para que se devolva a comissão, ao final pagam menos do que o valor total do negócio que lhes fora informado, pois ficam livres da comissão.

Vejam o contrassenso das decisões que acolhem a tese da devolução: no mais das vezes, dizem que a responsabilidade pela comissão é da incorporadora. Pois bem, se é assim, não deveria o corretor devolver a comissão para o comprador e este pagar para a incorporadora para, então, esta assumir a responsabilidade pelo pagamento da comissão em favor do corretor? Este trabalhou e merece ser recompensado, ou não? E se foi pago pelo consumidor, é porque não foi pago pela incorporadora, por lógica.

Seguindo o raciocínio, se a incorporadora não cobrou a comissão de corretagem no preço do imóvel – o fazendo no preço total do negócio – não nos parece correto que o consumidor fique com o desconto e a incorporadora ou, pior, o corretor, fique com o prejuízo.

Decidir desta forma não é defender o consumidor, é apenas atacar corretores e incorporadora, premiando o consumidor com um enriquecimento – porque assim paga menos do que combinou com a incorporadora e corretor – sem causa.

Por fim, não se nega aqui haver situações em que o consumidor possa ser, aparentemente, prejudicado. Tal possibilidade se vislumbra quando, havendo distrato, o consumidor não vê devolvida a comissão paga ao corretor (cujo serviço foi cumprido na assinatura da compra e venda).

A par do perigo que é permitir indiscriminadamente distratos em contratos de imóveis sob incorporação (imaginem se em um projeto de 10 unidades, com o prédio já alcançando a décima laje, nove clientes desistem: sobram para a incorporadora todos os custos da obra com apenas um cliente! A ENCOL não deixa saudades…), basta que decisão judicial que o autorize determine à incorporadora que, no cálculo dos valores pagos pelo consumidor se some a quantia relacionada à corretagem, a incluindo na base do reembolso no percentual contratado ou definido pelo Juízo.

Muito mais coerente e com benefício e lealdade de todas as Partes envolvidas: corretor, consumidor e incorporadora.

_____________

1 TJ/SP, Turma de Uniformização do Sistema dos Juizados Especiais do Estado de São Paulo, Proc. 0000018-42.2014.8.26.0968, Rel. Juiz Fernão Borba Franco, j. de 3/7/14.

2 TJ/DF, Turma de Uniformização de Jurisprudência das Turmas Recursais, Proc. nº 2014 07 1 017302 9, Rel. Juíza Sandra Reves Vasques Tonussi, j. de 22/6/15.

_____________

*Marcelo Dória é advogado da banca Affonso Ferreira Advogados.

*Rosana Baffero é advogada.

Fonte: Migalhas | 15/09/2015.

Publicação: Portal do RI (Registro de Imóveis) | O Portal das informações notariais, registrais e imobiliárias!

Para acompanhar as notícias do Portal do RI, siga-nos no twitter, curta a nossa página no facebook, assine nosso boletim eletrônico (newsletter), diário e gratuito, ou cadastre-se em nosso site.


Artigo: 450 anos do Notariado Brasileiro – Por José Flávio Bueno Fischer

Por José Flávio Bueno Fischer*

Este ano, comemora-se uma data muito especial para os tabeliães brasileiros: 450 anos da criação do notariado na cidade do Rio de Janeiro.
De acordo com Deoclécio Leite de Macedo, brilhante paleógrafo brasileiro que dedicou parte de sua vida na tentativa de constituir a história do notariado brasileiro, compulsando velhos livros de registro em busca de elementos que naturalmente se acham esparsos, “o primeiro ofício de tabelião público do Judicial e Notas do Rio de Janeiro, de acordo com o costume português, foi criado juntamente com a cidade, pelo capitão Estácio de Sá, em 1º de março de 1565. Pero da Costa foi nomeado seu primeiro serventuário. Por provisão de Mem de Sá, em 20 de setembro de 1565, foi anexado a esse ofício o de escrivão das Sesmarias. Pero da Costa renunciou, então, ao ofício de tabelião do Judicial, acumulando, somente, as funções de tabelião de Notas e escrivão das Sesmarias.”[1]
Muitos, entretanto, afirmam que a experiência da atividade notarial no Brasil é anterior ao 1º Oficio do Rio de Janeiro e remonta às expedições portuguesas do grande capitão Martim Afonso de Souza, que teria trazido, a bordo da famosa esquadra por ele comandada, 2 tabeliães, oficiais que teriam sido escolhidos e nomeados ainda em Portugal, conforme se lê da Carta de Poder de 20 de novembro de 1530 conferida por D. João III. Registrava o monarca que para a tomada de posse das terras bem como “para as coisas da Justiça e governança da terra” seria necessário criar tabeliados. [2]
Na verdade, pouco importa saber a origem exata da história do notariado no Brasil. A própria instituição do notariado em escala mundial se perde nas brumas do tempo. O que vale dizer é que dentre as diversas funções ou profissões surgidas com o desenvolvimento da sociedade, a atividade do notário é uma das poucas que ainda perdura. “Enquanto as instituições mais veneráveis e poderosas ruíram com o passar dos séculos, o notariado atravessou incólume a Queda do Império Romano, as trevas da Idade Média e até mesmo a sangrenta revolta do povo contra a aristocracia. A Revolução Francesa demoliu antigas instituições, mas o notariado foi preservado e revigorado.”[3]
E, no Brasil, o mérito do notariado é enorme e atravessa gerações. Nas palavras de Carlos Fernando Brasil Chaves, presidente do Colégio Notarial do Brasil – Subseção São Paulo, é a verdadeira história guardada em livros oficiais, pois ela demonstra o comportamento da vida social, das relações interpessoais, da aquisição patrimonial, dos valores morais, do comportamento familiar, do altruísmo ou do egoísmo, ou seja, reflexo fundamental e indissolúvel das características da sociedade. Segundo ele, talvez nenhuma outra instituição seja capaz de retratar de forma tão fiel a transmutação da vida brasileira.[4]
Realmente, qual outra instituição poderia pretender tamanhas experiência e estabilidade senão aquela que serve à boa-fé dos negócios jurídicos, à segurança das convenções, à publicidade dos atos e fatos jurídicos, ao rechaço da fraude e a garantia da validade e da eficácia de todas as trocas e do comércio humano?[5]
O tabelião, que é profissional de direito, com conhecimentos jurídicos e técnicos, garante a identidade e capacidade das partes, a legalidade dos atos, a conservação desses e sua validade “erga omnes”, desempenhando um importante papel de mantenedor da paz social, eis que sua atuação previne litígios e traz segurança jurídica. Em outras palavras, a noção própria da função notarial é obter o bem comum, a paz social, o que é uma prerrogativa apenas do Notário do tipo latino.
Com efeito, o tabelião latino, compreendendo os notários de todos os 86 países membros da União Internacional do Notariado, dentre eles, os brasileiros, distingue-se muito do notário anglo-saxão, esse último típico dos países regidos pela Common Law, como os Estados Unidos e muitos países da União Européia. Enquanto as atribuições do notário anglo-saxão são limitadas à autenticação de assinaturas e de cópias, à tirada do protesto cambial e, em geral, a tomada de juramentos não judiciais, as do tabelião latino são muito mais abrangentes, englobando a feitura de documentos que constituem atos jurídicos. De acordo com Poisl, “essa autoria assumida pelo tabelião latino garante a plena eficácia do documento, pois que é fiadora da identidade, capacidade e legitimidade das partes, da legalidade de todo o texto, do cumprimento das exigências fiscais.”[6]
Enquanto o notário do sistema latino deve ser um profissional do Direito, com formação jurídica adequada para redigir os atos que lhe são apresentados, o notário do sistema anglo-saxão, o Notary Public, por não ter formação jurídica, está proibido de oferecer assistência às partes e de redigir quaisquer documentos em que se exija conhecimento especializado. Consequentemente, nesse último sistema, desconhece-se o documento autêntico, a sua eficácia de fé pública e a figura do notário como autor desta.
Desta forma, de acordo com Mônica Jardim, o sistema latino de notariado é o único que realmente realiza a prevenção de litígios, ou seja, “é o único que gera uma segurança jurídica preventiva ao lado da segurança corretiva, reparadora ou a posteriori, que decorre da decisão judicial.” Segundo ela, a “segurança preventiva não existe nos países anglo-saxónicos, nos quais a função notarial, na limitada medida em que existe, é externa, posterior e sobreposta ao documento.” O notário do sistema anglo-saxão é estranho ao conteúdo do documento e a fé pública ou autenticidade não atinge esse conteúdo.[7]
Veja-se o exemplo dos problemas oriundos da falta de transparência no mercado imobiliário norte-americano, que bem reflete o que aqui se quer demonstrar. No texto “Fraudes imobiliárias, cartórios e burocracia”, postado em 08.02.2009 no site www.observatoriodoregistro.com.br, Sérgio Jacomino noticia uma nova modalidade de fraude, a “identity theft mortgage”, algo como subtração de identidade pessoal e hipoteca, ou simplesmente roubo de casas. Isso porque como não há nos Estados Unidos um sistema registral que permita a conferência da real titularidade do domínio dos bens, os fraudadores, de posse de uns poucos dados sobre os imóveis e os proprietários, formalizam empréstimos bancários, oferecendo os imóveis em garantia, e até mesmo vendendo-os ou transferindo-os para seus próprios nomes.[8]
Se nos Estados Unidos houvesse a assistência de um profissional como os notários dos regimes da civil Law (Notariado Latino), como ocorre no Brasil, onde o tabelião é um profissional de Direito treinado para dar a necessária assessoria jurídica aos contratantes, interpretando as cláusulas contratuais, certamente as fraudes seriam coibidas de forma mais eficiente.
Desta forma, pode-se dizer, com segurança, que a presença do notário do sistema latino em todas as sociedades organizadas é imperiosa para assegurar a eficácia às convenções negociais e evitar fraudes, na medida em que seus atos são dotados de presunção de exatidão (fé pública) e legalidade. Aliás, quanto mais complexa a sociedade, e, portanto, maior a gama de negócios jurídicos a vincular as pessoas e contribuir para o progresso econômico, maior a importância dos notários, profissionais de direito que têm por missão dar segurança e publicidade a fatos jurídicos que a todos interessam e afetam.
A instituição do Notariado é “a expressão do tempo, do espaço e da cultura do país.”[9] Seu papel é fundamental na construção da pacificação social e da justiça. Por isso, independentemente da precisão histórica de sua origem no Brasil, vamos comemorar com louvor os 450 anos (ou mais) desta atividade tão essencial ao desenvolvimento do país!

_________________________

[1] MACEDO, Deoclécio Leite de. Tabeliães do Rio de Janeiro do 1º ao 4º Ofício de Notas: 1565-1822.Disponível em: http://www.arquivonacional.gov.br/Media/Deoclecio.pdf. Acesso em 15.09.2015.

[2] OBSERVATÓRIO DO REGISTRO. 450 anos de tabeliado no Brasil? Disponível em:http://cartorios.org/2015/01/26/450-anos-de-tabeliado-no-brasil/. Acesso em 15.09.2015.

[3] LOUREIRO, Luiz Guilherme. Registros Públicos. Teoria e Prática. 5ª. ed. rev. e atual. São Paulo, Método, 2014. p. IX

[4] CHAVES, Carlos Fernando Brasil. Uma instituição e a história do Brasil. Jornal do Notário. Ano XVII – Nº 167. Mai/Jun – 2015. Disponível em:http://www.cnbsp.org.br/__Documentos/Upload_Conteudo/revistas/84.pdf. Acesso em 15.09.2015.

[5] LOUREIRO, Luiz Guilherme. Registros Públicos. Teoria e Prática. 5ª. ed. rev. e atual. São Paulo, Método, 2014. p. IX

[6] POISL, Carlos Luiz. Em testemunho da verdade: Lições de notário. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris Editor, 2006. p. 20-21

[7] JARDIM, Mônica. A segurança jurídica preventiva como corolário da actividade notarial. Disponível em: https://woc.uc.pt/fduc/getFile.do?tipo=2&id=2314. Acesso em: 14.09.2015.

[8] PASSARELLI, Luciano Lopes. Responsabilidade civil do adquirente de bem imóvel que não registra seu título. In: Revista de Direito Imobiliário. Ano 33. n. 68. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, jan-jun. 2010. p. 09-61.

[9]   CHAVES, Carlos Fernando Brasil. Uma instituição e a história do Brasil. Jornal do Notário. Ano XVII – Nº 167. Mai/Jun – 2015. Disponível em: http://www.cnbsp.org.br/__Documentos/Upload_Conteudo/revistas/84.pdf. Acesso em 15.09.2015.

*José Flávio Bueno Fischer é 1º Tabelião de Novo Hamburgo/RS, Ex-presidente do CNB-CF e Membro do Conselho de Direção da UINL.

Fonte: Notariado | 22/09/2015.

Publicação: Portal do RI (Registro de Imóveis) | O Portal das informações notariais, registrais e imobiliárias!

Para acompanhar as notícias do Portal do RI, siga-nos no twitter, curta a nossa página no facebook, assine nosso boletim eletrônico (newsletter), diário e gratuito, ou cadastre-se em nosso site.


Artigo: O fundamental papel do notário no reconhecimento das “Novas” Famílias – Por José Flávio Bueno Fischer

*José Flávio Bueno Fischer

A evolução célere dos relacionamentos familiares no mundo contemporâneo requer a constante transformação do ordenamento jurídico, a fim de que ele se coadune com a realidade social de uma determinada época. Assim, não há um conceito de família predeterminado aplicável a todas as épocas e regiões, ele altera-se com o passar dos anos, até mesmo porque, muito antes de ser definido em lei, ele é definido pelo contexto social em que está inserido.
No Brasil, a pluralização das relações familiares exigiu um redimensionamento no conceito de família, afastando o casamento como marco único de sua existência. A busca pela felicidade levou ao desprendimento das amarras formais e ao surgimento de novas famílias, que floresceram baseadas no afeto.
Inicialmente, a família era constituída unicamente pelo matrimônio. O Código Civil anterior, de 1916, em sua versão original, “(…) trazia uma estreita e discriminatória visão da família, limitando-a ao grupo originário do casamento. Impedia sua dissolução, fazia distinções entre seus membros e trazia qualificações discriminatórias às pessoas unidas sem casamento e aos filhos havidos dessas relações”.[1]
Neste cenário, a Constituição de 1934, considerada a primeira Constituição a se preocupar em delinear a família em seu contexto[2], determinava a indissolubilidade do casamento, ressalvados somente os casos de anulação e desquite. E tamanha era a relevância social e moral conferida ao casamento na época, que as Constituições posteriores, de 1937, de 1946 e de 1967, mantiveram sua indissolubilidade. Somente com o advento da Lei do Divórcio, de 1977, foi possível a extinção do vínculo matrimonial, ”(…) eliminando a ideia da família como instituição sacralizada”.[3]
Entretanto, o grande marco de inovação no direito de família no Brasil não foi a Lei de 1977 e, sim, a Constituição Federal de 1988, que “(…) num único dispositivo, espancou séculos de hipocrisia e preconceito”.[4] Além de instaurar a igualdade entre homem e mulher, a Carta Magna admitiu a existência de outras espécies de família, reconhecendo a união estável e a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes, a chamada família monoparental[5]. Além disso, estabeleceu a igualdade entre os filhos, havidos ou não do casamento, ou por adoção.
Ou seja, a Carta Constitucional trouxe à sua seara outros arranjos familiares que não somente aquele oriundo do casamento, “(…) e o fez erigindo o afeto como um dos princípios constitucionais implícitos, na medida em que aceita, reconhece, alberga, ampara e subsidia relações afetivas distintas do casamento”.[6]
Posteriormente, em 11 de janeiro de 2003, entrou em vigor o atual Código Civil Brasileiro, publicado em 11 de janeiro de 2002. O projeto original data de 1975 e tramitou no Congresso Nacional antes mesmo da própria Constituição Federal de 1988. Por isso mesmo, o projeto original teve que sofrer modificações profundas diante das diretrizes da nova Constituição, e a despeito das inúmeras emendas e remendos, o texto não tem a clareza e a atualidade necessárias à sociedade dos dias de hoje.[7]
Assim, apesar de incorporar boa parte das mudanças legislativas que haviam ocorrido por meio da legislação esparsa e agregar orientações pacificadas pela jurisprudência, abolindo expressões e conceitos discriminatórios, como referências desigualitárias entre homens e mulheres, adjetivação da filiação, entre outros, o Código se furtou a promover alguns avanços importantes, a “(…) operar a subsunção, à moldura da norma civil, de construções familiares existentes desde sempre, embora completamente ignoradas pelo legislador infraconstitucional”[8], tais quais as relações entre pessoas do mesmo sexo, as denominadas uniões homoafetivas.
O Código Civil de 2002 disciplinou exaustivamente o casamento, tratou da união estável, mas nada disse acerca de outras construções familiares, tais quais as uniões entre pessoas do mesmo sexo. É como diz aquela máxima: os movimentos sociais são lebres e o direito é tartaruga. Construções familiares tais quais as uniões homoafetivas existem desde sempre e, mesmo assim, o legislador se omitiu a normatizá-las.
Felizmente, os notários brasileiros, ao lado do Poder Judiciário, têm andado na contramão dos legisladores. Há muito, as grandes inovações operadas no direito de família brasileiro têm sido trazidas por brilhantes juízes e tabeliães. Assim, a despeito da lacuna legal, as mais diversas formas de constituição de família estão recebendo proteção jurídica, com base nos mais preciosos princípios constitucionais: o da dignidade da pessoa humana e o da igualdade de direitos.
Com efeito, o princípio da dignidade da pessoa humana confere ao indivíduo a liberdade de viver suas relações de afeto de acordo com suas convicções íntimas, a liberdade de escolher com quem quer partilhar sua vida, sem ter que estar preso a dogmas sociais e religiosos. Diante disso, é possível concluir que ao conferir supremacia ao princípio da dignidade da pessoa humana, elegendo-o como um dos pilares da República (artigo 1º, inciso III)[9], a Constituição Federal brasileira passou a dar mais importância ao amor, aos laços fraternos, à solidariedade e à felicidade, em detrimento da antiga visão patrimonialista de nossa legislação anterior, em que a entidade familiar era voltada exclusivamente para a transmissão patrimonial e para a procriação, mesmo se isso importasse no prejuízo da realização pessoal de cada um.
Ou seja, “o texto constitucional consagrou expressamente a mudança do conceito de família, tendo em vista ter considerado o amor como o elemento central na sua formação”[10]. Agora, “a tônica reside no indivíduo, e não mais nos bens ou coisas que guarnecem a relação familiar”.[11] Assim, o novo modelo de família funda-se sobre os pilares da afetividade, da pluralidade e da felicidade, “(…) abrigando os mais diversos arranjos familiares, devendo-se buscar o elemento que permite enlaçar no conceito de entidade familiar todos os relacionamentos que têm origem em um elo de afetividade, independentemente de sua conformação”.[12]
Nesta linha, em maio de 2011, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4277 e da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 132, reconheceu a união estável entre pessoas do mesmo sexo[13] como entidade familiar, conferindo-a iguais direitos e obrigações das uniões heteroafetivas.
A Suprema Corte brasileira, neste julgamento histórico, reconheceu o afeto enquanto princípio constitucional implícito[14], chancelando a postura de vanguarda dos notários de todo Brasil, que muitos antes disso já lavravam em suas notas escrituras públicas de união entre pessoas do mesmo sexo. Para se ter uma ideia, no Tabelionato em que sou titular, a primeira escritura de declaração em que duas mulheres manifestaram conviver juntas e compartilhar seu patrimônio data de junho de 2003, oito anos antes da decisão da Corte Suprema, portanto.
Outro exemplo do papel fundamental dos tabeliães na proteção das novas formas de constituição de família é a escritura de união poliafetiva lavrada pela tabeliã de Tupã, cidade do interior de São Paulo, Cláudia do Nascimento Domingues, em agosto de 2012. Numa atitude pioneira, enfrentando uma sociedade de cunho essencialmente monogâmico, a notária lavrou a primeira escritura pública de união entre um homem e duas mulheres, declarando a convivência pública e duradoura, como entidade familiar, de três pessoas solteiras, maiores e capazes.
Diante destes dois exemplos de escrituras que desafiaram sua época, é indiscutível que o tabelião é essencial no reconhecimento destes “novos” direitos, destas novas formas de família, garantindo que o ordenamento jurídico acompanhe a evolução da sociedade de forma célere
Deste modo, o notário exerce função precípua na sociedade contemporânea: a de conferir proteção legal às mais variadas relações entre particulares, reconhecendo em um documento público um fato social individual, portando por fé-pública aquilo que os particulares precisam preservar e codificar para assegurar direitos e obrigações.
Estamos vivendo um momento histórico no Brasil, em que se tem lutado arduamente pela plena cidadania e igualdade de todas as pessoas. “Os ideais de pluralismo, solidarismo, democracia, igualdade, liberdade e humanismo voltaram-se à proteção da pessoa humana. A família adquiriu função instrumental para a melhor realização dos interesses afetivos e existenciais de seus componentes”.[15] Neste cenário, o notariado é peça chave, eis que o tabelião é o operador do direito com maior legitimidade para construir direitos individualmente considerados, proporcionando segurança jurídica aos cidadãos, de forma célere e eficaz. A noção própria da função notarial é obter o bem comum, a paz social, de forma que o tabelião precisa estar sempre atento e pronto a resguardar novos direitos.

_______________________

[1] DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Família – 8. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 30.

[2] LOUZADA, Ana Maria Gonçalves. Evolução do conceito de família. In: Diversidade Sexual e Direito Homoafetivo. 1. ed. São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 268.

[3] DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Família – 8. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 30.

[4] VELOSO, ZENO. Apud DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Família – 8. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 30.

[5] Constituição Federal de 1988. Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. § 1º – O casamento é civil e gratuita a celebração. § 2º – O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei. § 3º – Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento. § 4º – Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes. § 5º – Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher. § 6º O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio. § 7º – Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas. § 8º – O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações. (grifo nosso)

[6]  LOUZADA, Ana Maria Gonçalves. Evolução do conceito de família. In:DIAS, Maria Berenice (coord.). Diversidade Sexual e Direito Homoafetivo. 1. ed. São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 268.

[7] DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Família – 8. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 31.

[8]  DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Família – 8. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 32.

[9] Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I – a soberania; II – a cidadania; III – a dignidade da pessoa humana; IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V – o pluralismo político. Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.

[10] VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. Manual da homoafetividade: da possibilidade jurídica do casamento civil, da união estável e da adoção por casais homoafetivos. 2. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2012. p. 177.

[11] DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Família – 8. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 43.

[12] DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Família – 8. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 42.

[13] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Notícias. Disponível em:http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=178931. Publicado em: 05.05.2011. Acesso em: 23.07.2013.

[14] VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. Manual da homoafetividade: da possibilidade jurídica do casamento civil, da união estável e da adoção por casais homoafetivos. 2. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2012. p. 198.

[15] DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Família – 8. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 40.

*José Flávio Bueno Fischer é 1º Tabelião de Novo Hamburgo/RS, Ex-presidente do CNB-CF e Membro do Conselho de Direção da UINL.

Fonte: Notariado | 18/08/2015.

Publicação: Portal do RI (Registro de Imóveis) | O Portal das informações notariais, registrais e imobiliárias!

Para acompanhar as notícias do Portal do RI, siga-nos no twitter, curta a nossa página no facebook, assine nosso boletim eletrônico (newsletter), diário e gratuito, ou cadastre-se em nosso site.