Processo 1150738-37.2024.8.26.0100
Dúvida – Registro de Imóveis – Concessionária Linha Universidade S/A – Diante do exposto, JULGO PROCEDENTE a dúvida suscitada para manter o óbice registrário. Deste procedimento não decorrem custas, despesas processuais ou honorários advocatícios. Oportunamente, ao arquivo. P.R.I.C. – ADV: ANA MARA FRANÇA MACHADO (OAB 282287/SP)
Íntegra da decisão:
SENTENÇA
Processo nº: 1150738-37.2024.8.26.0100
Classe – Assunto Dúvida – Registro de Imóveis
Suscitante: 1º Oficial de Registro de Imóveis da Capital
Suscitado: Concessionária Linha Universidade S/A
Juíza de Direito: Dra. Renata Pinto Lima Zanetta
Vistos.
Trata-se de dúvida suscitada pelo 1º Oficial de Registro de Imóveis de São Paulo, a requerimento de Concessionária Linha Universidade S/A, diante de negativa em se proceder ao registro de carta de adjudicação extraída dos autos do processo n. 1028117-34.2014.8.26.0053 (ação de desapropriação por utilidade pública), envolvendo os imóveis objeto das matrículas ns. 38.805 e 116.152 daquela serventia.
O Oficial informa que a desqualificação do título foi motivada pelo não atendimento, pelo interessado, das seguintes exigências apontadas nas notas devolutivas anteriores: não constam dos autos respectivos sentença judicial, com trânsito em julgado, que tenha determinado a incorporação do imóvel ao patrimônio da Fazenda do Estado de São Paulo, bem como o valor de sua indenização, razão pela qual o interessado deverá promover a devida complementação; que a r. Decisão de fls. 1.107 apenas deferiu a expedição de carta de adjudicação, com fulcro no § 4º do artigo 34-A do Decreto-lei n. 3.365/41, incluído pela Lei n. 14.421/22, no entanto, o Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, ao julgar o Incidente de Arguição de Inconstitucionalidade Cível n. 0011064-07.2023.8.26.0000, em votação unanime, declarou a inconstitucionalidade do aludido § 4º do artigo 34-A do Decreto-lei n. 3.365/41, incluído pela Lei n. 14.421/22; que, pelas razões expostas, foram mantidas as exigências (fls. 01/04).
Documentos vieram às fls. 05/39.
Em manifestação dirigida ao Oficial, e em impugnação nos autos, a parte suscitada alega que a ação de desapropriação foi distribuída, sob os autos n. 1028117- 34.2014.8.26.0053, da 10ª Vara da Fazenda Pública desta Comarca da Capital, e os expropriados apresentaram contestação, dando-se por citados; que foi nomeado perito judicial para a realização do laudo pericial do imóvel para fins de estabelecer o valor indenizatório, tendo o laudo sido apresentado nos autos e a suscitada realizado o depósito do valor apurado pelo devidamente atualizado; que, com o depósito judicial, o juízo deferiu a imissão da posse em favor da suscitada e o mandado foi cumprido por Oficial de Justiça em 21 de junho de 2017; que, diante da apresentação de contestação e de imissão na posse concretizada, peticionou nos autos, requerendo a expedição da carta de adjudicação em favor da Fazenda Estadual com fulcro no artigo 34-A, § 4º, do Decreto-Lei n. 3.365/1941, o que foi deferido; que as exigências formuladas na nota devolutiva devem ser afastadas: as peças solicitadas pelo Oficial não constam dos autos, tendo em vista que o processo se encontra em fase de instrução, devendo ser cumprida a decisão judicial que deferiu a expedição da carta de adjudicação com fundamento no § 4º do artigo 34-A do Decreto-Lei n. 3.365/1941, para o registro da transferência da propriedade em favor do expropriante; que o intuito desse dispositivo legal é conferir celeridade ao processo de desapropriação, permitindo o registro do imóvel desapropriado em nome do ente público, ainda no curso do processo, o que não impede ao expropriado a busca pelo valor justo da indenização; que a compreensão do § 4º do artigo 34-A deve ser realizada conjuntamente com o artigo 32, que impõe à expropriante que o “pagamento do preço será prévio e em dinheiro”, sendo que apenas o valor controvertido será objeto de debates judiciais; que, no caso em questão, as áreas desapropriadas foram objeto de avaliação pericial e o valor apurado a título de indenização foi depositado pela expropriante; que a Ação de Inconstitucionalidade mencionada pelo suscitante considerou-se a questão de a Constituição Federal exigir a prévia indenização para permitir a transferência de titularidade do imóvel, no entanto, tal questão será dirimida nos autos com a prolação da sentença, oportunamente; que o registro da imissão na posse já era previsto na Lei de Desapropriações (artigo 15, § 4º, do Decreto-Lei n. 3.365/1941), e com o registro da imissão provisória pode ocorrer a abertura de uma matrícula em nome do ente expropriante; que, nesse contexto, inexistem prejuízos ao expropriado em razão do registro antecipado da propriedade previsto no artigo 34-A, § 4º, do Decreto-Lei n. 3.365/1941 (fls. 40/43).
O Ministério Público opinou pela manutenção do óbice (fls. 47/79).
É o relatório.
FUNDAMENTO e DECIDO.
De início, cumpre ressaltar que o Registrador dispõe de autonomia e independência no exercício de suas atribuições, podendo recusar títulos que entender contrários à ordem jurídica e aos princípios que regem sua atividade (artigo 28 da Lei n. 8.935/1994), o que não se traduz como falha funcional.
No sistema registral, vigora o princípio da legalidade estrita, pelo qual somente se admite o ingresso de título que atenda aos ditames legais. Por isso, o Oficial, quando da qualificação registral, perfaz exame dos elementos extrínsecos do título à luz dos princípios e normas do sistema jurídico (aspectos formais), devendo obstar o ingresso daqueles que não se atenham aos limites da lei.
É o que prevê o item 117 do Capítulo XX das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça (NSCGJ): “Incumbe ao oficial impedir o registro de título que não satisfaça os requisitos exigidos pela lei, quer sejam consubstanciados em instrumento público ou particular, quer em atos judiciais”.
Releva destacar, ainda, que os títulos judiciais não estão isentos de qualificação para ingresso no fólio real.
Em verdade, o título derivado de decisão proferida por juiz togado também deve atender a requisitos formais próprios de todo título para que seja admitido como hábil ao registro, sujeitando-se à qualificação.
O Egrégio Conselho Superior da Magistratura já decidiu que a qualificação negativa não caracteriza desobediência ou descumprimento de decisão judicial (Apelação Cível n. 413-6/7). Neste sentido, também a Ap. Cível n. 464-6/9, de São José do Rio Preto:
“Apesar de se tratar de título judicial, está ele sujeito à qualificação registrária. O fato de tratar-se o título de mandado judicial não o torna imune à qualificação registrária, sob o estrito ângulo da regularidade formal. O exame da legalidade não promove incursão sobre o mérito da decisão judicial, mas à apreciação das formalidades extrínsecas da ordem e à conexão de seus dados com o registro e a sua formalização instrumental”.
E, ainda:
REGISTRO PÚBLICO. ATUAÇÃO DO TITULAR. CARTA DE ADJUDICAÇÃO. DÚVIDA LEVANTADA. CRIME DE DESOBEDIÊNCIA. IMPROPRIEDADE MANIFESTA. O cumprimento do dever imposto pela Lei de Registros Públicos, cogitando-se de deficiência de carta de adjudicação e levantando-se dúvida perante o juízo de direito da vara competente, longe fica de configurar ato passível de enquadramento no artigo 330 do Código Penal – crime de desobediência – pouco importando o acolhimento, sob o ângulo judicial, do que suscitado (STF, HC 85911 / MG – MINAS GERAIS, Relator: Min. MARCO AURÉLIO, j. 25/10/2005, Primeira Turma).
Sendo assim, não há dúvidas de que a origem judicial não basta para garantir ingresso automático dos títulos no fólio real, cabendo ao oficial qualificá-los conforme os princípios e as regras que regem a atividade registral.
No mérito, a dúvida é procedente.
A Lei n. 6.015/73 disciplina os títulos registráveis, em regra, no artigo 167 que concerne ao título sob o aspecto material como causa ou fundamento de um direito ou obrigação passível de ingresso no fólio real, e no artigo 221 que cuida do rol dos títulos, em sentido formal, como instrumentos que traduzem os títulos elencados no art. 167.
O rol do artigo 167, inciso I, da LRP, elenca os direitos que ingressam no fólio real por ato de registro em sentido estrito:
“Art. 167 – No Registro de Imóveis, além da matrícula, serão feitos.
I – o registro:
(…)
34) da desapropriação amigável e das sentenças que, em processo de desapropriação, fixarem o valor da indenização;
(…)
36) da imissão provisória na posse, quando concedida à União, aos Estados, ao Distrito Federal, aos Municípios ou às suas entidades delegadas, e respectiva cessão e promessa de cessão;”
No caso concreto, a interessada pretende o registro de carta de adjudicação extraída dos autos da ação de desapropriação n. 1028117-34.2014.8.26.0053, em trâmite perante a 10ª Vara de Fazenda Pública desta Comarca da Capital, envolvendo os imóveis objetos das matrículas ns. 38.805 e 116.152 do 1º Registro de Imóveis da Capital, em favor do ente expropriante (fls. 06/17).
Não consta do título, porém, sentença judicial transitada em julgado que tenha determinado a incorporação do imóvel ao patrimônio da Fazenda do Estado de São Paulo e fixado o valor da indenização, nos termos do art. 167, I, “34”, da LRP, e do art. 29 do Decreto-Lei 3.365/41.
Além disso, o Oficial bem observou que o § 4º do artigo 34-A do Decreto-lei n. 3.365/41, incluído pela Lei n. 14.421/22, no qual fundou o título, foi declarado inconstitucional pelo Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, no julgamento do Incidente de Arguição de Inconstitucionalidade Cível n. 0011064-07.2023.8.26.0000.
De fato, com a edição da Lei 14.421/2022 foi incluído o § 4º ao artigo 34-A, do Decreto-Lei 3.365/41, que estabelece o seguinte:
“Art. 34-A. Se houver concordância, reduzida a termo, do expropriado, a decisão concessiva da imissão provisória na posse implicará a aquisição da propriedade pelo expropriante com o consequente registro da propriedade na matrícula do imóvel.
(…)
§ 4º. Após a apresentação da contestação pelo expropriado, se não houver oposição expressa com relação à validade do decreto desapropriatório, deverá ser determinada a imediata transferência da propriedade do imóvel para o expropriante, independentemente de anuência expressa do expropriado, e prosseguirá o processo somente para resolução das questões litigiosas.”
Sucede, todavia, que houve declaração de inconstitucionalidade formal e material deste dispositivo pelo C. Órgão Especial do E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, no julgamento, em 06.12.2023, do Incidente de Arguição de Inconstitucionalidade Cível de nº 0011064-07.2023.8.26.0000, Relatora a E. Desembargadora Silvia Rocha, cuja ementa segue (destaques nossos):
“Incidente de arguição de inconstitucionalidade do § 4º do artigo 34-A do Decreto-lei nº 3.365/1941, incluído pela Lei nº 14.421/2022 (conversão da Medida Provisória nº 1.104/2022), que determina a imediata transferência do domínio de imóvel objeto de desapropriação por utilidade pública para o ente expropriante, independentemente da concordância do expropriado, após a apresentação de contestação, se não houver oposição expressa sobre a validade do decreto expropriatório, e o prosseguimento do processo apenas para a resolução das questões litigiosas – Incidente suscitado pela C. 1ª Câmara da Seção de Direito Público deste Tribunal, nos autos de Agravo de Instrumento interposto em ação de desapropriação de imóvel contra decisão que deferiu tutela de evidência – Alegação de que o dispositivo impugnado desrespeita os artigos 5º, XXIV, e 182, § 3º, da Constituição Federal, que tratam de desapropriação e impõem o pagamento de indenização justa e prévia – Pedido de declaração incidental de inconstitucionalidade. – Existência de inconstitucionalidade formal – Abuso do poder de emenda parlamentar – Medida Provisória nº 1.104/2022 convertida na Lei nº 14.421/2022 Inclusão pela emenda do dispositivo impugnado no Decreto-lei nº 3.365/1941 – Ausência de pertinência temática – Não observância do artigo 7º, II, da Lei Complementar nº 95, de 1998 – Como o Supremo Tribunal Federal já decidiu, “Viola a Constituição da República, notadamente o princípio democrático e o devido processo legislativo (…), a prática da inserção, mediante emenda parlamentar no processo legislativo de conversão de medida provisória em lei, de matérias de conteúdo temático estranho ao objeto originário da medida provisória”. – Existência de inconstitucionalidade material – A Constituição Federal estabelece que as desapropriações por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, só podem ser feitas (excetuadas situações excepcionais nas quais o caso em tela não se encaixa) mediante o pagamento de “justa e prévia indenização em dinheiro” – Colisão do § 4º do artigo 34-A do Decreto-lei nº 3.365/1941, que autoriza a transferência do domínio do bem expropriado para o expropriante antes mesmo da definição do valor da indenização, e sem que ele com isso consinta, com os artigos 5º, XXIV, e 182, § 3º, da Constituição Federal – Forma transversa de confisco de bens – Necessidade de pagamento de indenização justa antes da transferência do domínio – Indenização justa não é, necessariamente, a que a Administração afirma ser, mas a indenização livremente pactuada entre o expropriante e o expropriado, ou a fixada em processo judicial, após a produção de prova técnica, observado o devido processo legal – Irrelevância de a lei prever a possibilidade de pagamento parcial, pelo ente público, e de levantamento de valores incontroversos Declaração de inconstitucionalidade do § 4º do artigo 34-A do Decreto-lei nº 3.365/1941 – Incidente acolhido” (TJSP; Incidente De Arguição de Inconstitucionalidade Cível 0011064-07.2023.8.26.0000; Relator: Silvia Rocha; Órgão Julgador: Órgão Especial; Foro de São Bernardo do Campo – 1ª Vara da Fazenda Pública; Data do Julgamento: 06/12/2023; Data de Registro: 07/12/2023)
Como se vê, restou reconhecido que o dispositivo trazido pelo § 4º do artigo 34-A do Decreto-Lei n. 3.365/41 colide com as disposições constitucionais trazidas pelo artigo 5º, inciso XXIV (“a lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta Constituição”) e pelo artigo 182, § 3º (“As desapropriações de imóveis urbanos serão feitas com prévia e justa indenização em dinheiro”).
É importante pontuar que, em decorrência do sistema de precedentes implementado pelo Código de Processo Civil, as decisões proferidas em sede de controle de constitucionalidade realizado pelo Pleno ou pelo Órgão Especial (cláusula de reserva de plenário), ainda que de forma concreta/difusa, são vinculantes para todos os membros do respectivo Tribunal, a teor do disposto no artigo 927, inciso V, do mesmo diploma.
Nesse sentido, esclarecem Fredie Didier Jr. e Leonardo Carneiro da Cunha sobre o Incidente de Arguição de Inconstitucionalidade:
“Embora esse incidente seja um instrumento processual típico do controle difuso, a análise da constitucionalidade da lei é feita em abstrato. Trata-se de incidente processual de natureza objetiva (é exemplo de processo objetivo, semelhante ao processo da ADIN ou da ADC). A decisão sobre a constitucionalidade da lei é precedente obrigatório; essa “decisão do tribunal pleno não valerá somente para o caso concreto em que surgiu a questão de constitucionalidade. Será paradigma (leading case) para todos os demais feitos em trâmite no tribunal que envolvam a mesma questão”. Essa decisão tem eficácia vinculativa para o tribunal e para os juízos a ele vinculados (art. 927, V, CPC). O incidente de arguição de inconstitucionalidade é, assim, um procedimento de formação concentrada de precedente obrigatório, além de ser instrumento de concretização da regra constitucional do full bench.” (Curso de Direito Processual Civil: meios de impugnação às decisões judiciais e processo nos tribunais.14ª ed. São Paulo: JusPodvm, 2017, p. 780)
Portanto, a decisão (transitada em julgado) do C. Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo que reconheceu e declarou a inconstitucionalidade (material e formal) do § 4º do artigo 34-A do Decreto-lei n. 3.365/41, incluído pela Lei n. 14.421/22, no julgamento do Incidente de Arguição de Inconstitucionalidade Cível nº 0011064-07.2023.8.26.0000, tem eficácia vinculativa para os juízos a ele vinculados.
Ora, se o tema já foi debatido pelo Órgão Especial do Tribunal de Justiça – com específica competência funcional prevista no artigo 97 da Constituição Federal – que acolheu a arguição para proclamar a inconstitucionalidade de norma, com formação concentrada de precedente obrigatório, o Oficial pode, e deve, observar o precedente.
Destarte, ficam mantidas as exigências formuladas na nota devolutiva.
Diante do exposto, JULGO PROCEDENTE a dúvida suscitada para manter o óbice registrário.
Deste procedimento não decorrem custas, despesas processuais ou honorários advocatícios.
Oportunamente, ao arquivo.
P.R.I.C.
São Paulo, 06 de novembro de 2024.
Renata Pinto Lima Zanetta – Juíza de Direito
Fonte: DJE/SP 12.11.2024.
Publicação: Portal do RI (Registro de Imóveis) | O Portal das informações notariais, registrais e imobiliárias!
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