CGJ/SP: Registro de Imóveis – Penhora de bem imóvel – Executado proprietário de fração ideal do imóvel – Os proprietários das frações ideais remanescentes são o pai e os irmãos do executado – Averbação recusada diante da ofensa ao princípio registral da continuidade – Registro posteriormente realizado porque o Juízo da execução, uma vez confrontado com o teor da nota devolutiva, reiterou a ordem de averbação, com afastamento da pertinência da exigência – Fato comunicado ao Corregedor Permanente – Cancelamento da averbação desautorizado – Precedentes do STJ – Impossibilidade de revisão da ordem judicial na via administrativa – Recurso provido.


Excelentíssimo Senhor Corregedor Geral da Justiça,

O Oficial do (…) Registro de Imóveis e Anexos da (…) Comarca de narrou: embora, em um primeiro momento, tenha recusado a averbação da penhora da totalidade do bem imóvel objeto da matrícula n° (…), pois o executado é proprietário apenas da fração ideal correspondente a 1/10 da coisa, depois, instado por nova ordem judicial, realizou-a. Por isso,levou os fatos ao conhecimento do MM Juiz Corregedor Permanente, à luz do princípio da segurança jurídica, para que examinada a pertinência do assento lavrado (fls. 02/10).

Depois das manifestações do Ministério Público e da interessada/exequente (…) (fls. 19/23 e 47/50), determinou-se, mediante sentença, o cancelamento da averbação (fls. 54/55). Em seguida, interposto recurso (fls. 57/62), recebido nos seus regulares efeitos, (fls. 66), a Procuradoria Geral de Justiça desprovimento do recurso (fls. 75/79). No mais, porque se discute ato passível de averbação, a apelação foi conhecida como recurso administrativo e os autos remetidos à Corregedoria Geral da Justiça (fls. 80/81 e 83).

É o relatório. OPINO.

Nos autos da execução n.° 196.01.2008.025007-9/000000-000, processo instaurado por (…), ora recorrente, em face de E (…), penhorou-se a totalidade do bem imóvel descrito na matrícula n° do Registro de Imóveis e Anexos de (fls. 11 e 13).

No entanto, o executado, casado com A sob o regime da comunhão parcial de bens, é apenas proprietário da fração ideal correspondente a 1/10 do bem imóvel: com efeito, a metade ideal pertence ao seu pai e os 4/10 remanescentes foram, mediante partilha, incorporados ao patrimônio de seus quatro irmãos (fls. 15/17).

Desse modo, correta a devolução do título, a sua desqualificação registral pelo Oficial, quando da primeira apresentação (fls. 12): ora, os demais proprietários não figuram como executados no processo judicial. Enfim, a exigência questionada estava em harmonia com o princípio registral da continuidade.

Porém, diante da posterior averbação, determinada por subsequente ordem judicial emanada do Juízo da execução (fls. 13 e 17 – Av. 8) – que, confrontado com a exigência, desconsiderou-a –, seria o caso de cancelar o assento registral, porque nulo.

Na realidade, o princípio da continuidade, penso, não comporta o temperamento defendido pela interessada. A regra do artigo 655-B do CPC, versando sobre a penhora da meação de cônjuge estranho à execução em bem imóvel indivisível, inadmite o alargamento pretendido.

A propósito, respaldando o fundamento deduzido, lembro recentes precedentes do Superior Tribunal de Justiça:

PROCESSUAL CIVIL – EXECUÇÃO – PENHORA DE FRAÇÃO DE IMÓVEL – POSSIBILIDADE – PENHORA SOBRE FRAÇÃO PERTENCENTE A TERCEIRO – DESCABIMENTO – PRECEDENTES.

1. Esta Corte em diversos julgados firmou o entendimento de ser possível a penhora de fração ideal de imóvel.

2. A fração ideal de bem indivisível pertencente a terceiro, contudo, não pode ser levada à hasta pública, devendo a constrição judicial incidir apenas sobre as frações ideais de propriedade dos executados.

3. A pretensão de rever a decisão da Corte de origem que, com base nas provas constantes dos autos, firmou a possibilidade de fracionamento do imóvel objeto da lide, encontra vedação na Súmula 07/STJ.

4. Recurso especial não provido. (Recurso Especial n.° 1.263.518/MG, relatora Ministra Diva Malerbi, julgado em 20.11.2012)(grifei).

PROCESSUAL CIVIL. TRIBUTÁRIO. PENHORA DE IMÓVEL. BEM INDIVISÍVEL. DIVERSOS CONDÓMINOS. HASTA PÚBLICA. IMPOSSIBILIDADE. CLÁUSULA DE USUFRUTO VITALÍCIO.

1. A controvérsia dos autos cinge-se à possibilidade de levar à hasta pública bem indivisível em condomínio e com cláusula de usufruto vitalício.

2. O Tribunal a quo assentou que “a despeito da possibilidade de, em tese, ocorrer a alienação de bem indivisível em condomínio, assegurando-se aos demais a reserva dos respectivos quinhões, razão assiste à decisão recorrida. O bem de matrícula n° 46963 (fl. 22) é de propriedade de dez pessoas em condomínio, entre elas o executado, além de possuir cláusula de usufruto vitalício. Já o bem de matrícula n° 12.859 possui cinco proprietários, incluindo a esposa do executado, e também possui cláusula de usufruto vitalício. Ademais, não é possível aferir a divisibilidade dos bens. Assim, nas condições em questão, fere juízo de proporcionalidade que se proceda a alienação total do bem para garantir a dívida”.

3. Em execução, a fração ideal de bem indivisível pertencente a terceiro não pode ser levada à hasta pública, de modo que se submete à constrição judicial apenas as frações ideais de propriedade dos respectivos executados.

4. Precedentes: REsp 1.196.284/RS, Rel. Min. Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 26.8.2010, DJe 16.9.2010; REsp 695.240/PR, Rel. Min. Castro Meira, Segunda Turma, julgado em 13.5.2008, DJe 21.5.2008.

Agravo regimental improvido. (Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial n.° 22.984/PR, relator Ministro Humberto Martins, julgado 10.04.2012) (grifei)

PROCESSUAL CIVIL. PENHORA DE BEM INDIVISIVEL IMÓVEL DE PROPRIEDADE DE VÁRIOS IRMÃOS. BEM GRAVADO COM ÓNUS REAL DE USUFRUTO. VIOLAÇÃO AO ART. 535, II, DO CPC. NÃO OCORRÊNCIA. POSSIBILIDADE DE PENHORA DA FRAÇÃO IDEAL DE PROPRIEDADE DO EXECUTADO. PRECEDENTES.

1. O Tribunal de origem se manifestou de forma clara e fundamentada no sentido de obstar a penhora do imóvel nomeado pela exequente, haja vista que o bem está gravado com ônus real (usufruto) e possui diversos proprietários, fatos que dificultariam a execução e, ainda, não satisfariam o direito do credor. O cabimento dos embargos de declaração está limitado às hipóteses de omissão, contradição ou obscuridade do julgado, cabendo, ainda, quando for necessária a correção de erro material ou premissa fática equivocada sobre a qual se embase o julgamento. Tais hipóteses não ocorreram no caso dos autos, pelo que não há que se falar em violação ao art. 535, II, do CPC.

2. Em que pese a dificuldade na alienação do bem imóvel em questão, é certo que a execução é realizada em benefício do credor, nos termos do art. 612 do CPC. A indivisibilidade do bem e o fato de o imóvel estar gravado com ônus real, in casu, usufruto, não lhe retiram, por si sós, a possibilidade de penhora, eis que os arts. 184 do CTN e 30 da Lei n. 6.830/80 trazem previsão expressa de que os bens gravados com ônus real também respondem pelo pagamento do crédito tributário ou dívida ativa da Fazenda Pública.

3. Eventual arrematante deverá respeitar o ônus real que recai sobre o imóvel. Tal ônus, por óbvio, pode dificultar a alienação do bem, mas não pode justificar a recusa judicial da penhora, sobretudo porque a execução é feita no interesse do credor. Em casos tais quais o dos autos, pode interessar aos co-proprietários a arrematação da parcela da nua propriedade que não lhes pertence.

4. Nos termos da jurisprudência desta Corte, a alienação de bem indivisível não recairá sobre sua totalidade, mas apenas sobre a fração ideal de propriedade do executado, o que não se confunde com a alienação de bem de propriedade indivisível dos cônjuges, caso em que a meação do cônjuge alheio à execução, nos termos do art. 655-B, do CPC, recairá sobre o produto da alienação do bem.

5. Recurso especial parcialmente provido para reconhecer a possibilidade de penhora sobre a fração ideal do imóvel de propriedade do executado. (Recurso Especial n.° 1.232.074/RS, relator Ministro Mauro Campbell Marques, julgado em 22.02.2011) (grifei)

Em resumo: valorada a vocação da penhora para a alienação judicial, da qual é ato preparatório, a averbação compromete o exato encadeamento subjetivo das sucessivas transmissões de direitos reais imobiliários. Ou seja, evidenciado o vício extrínseco ao titulo causal, caracterizada a nulidade de pleno direito, associada ao descumprimento de norma orientadora do sistema registral, justificado estaria o desprovimento do recurso.

Ademais, o cancelamento alinhar-se-ia com antigo precedente desta Corregedoria Geral da Justiça, que subsiste atual, expresso em parecer do hoje Desembargador Francisco Eduardo Loureiro, lançado, em 08 de fevereiro de 1996, nos autos do processo CG n.° 003436/95, onde – aprovado pelo Desembargador Márcio Martins Bonilha –, assinalado:

É entendimento sedimentado desta Corregedoria Geral da Justiça que o cancelamento direto do registro, independentemente de ação direta, pode ser postulado com base em atos ofensivos aos princípios norteadores da Lei de Registros Públicos (…). A decisão paradigma sobre o tema foi proferida no proc. n. 203/81 (…), da qual constou que a nulidade do artigo 214 “tem por fundamento a inobservância das formalidades legais e substanciais do próprio registro, entre as quais se destaca o da exigibilidade de título formalmente hábil, extrinsecamente apto e legalmente perfeito para embasá-lo.” A jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, citada na aludida decisão, é no mesmo sentido, prestigiando o entendimento administrativo. (…).

Ainda recentemente o Superior Tribunal de Justiça deixou fixado, a respeito do artigo 214 da LRP, que “sendo o próprio registro nulo, pode ser ele cancelado, independentemente de ação direta nos termos do artigo 214 da Lei n. 6.015/73” (STJ, Rec. Esp. n. 6.417-PR, 1ª Turma, Rel. Min. Garcia Vieira, public. in DJU 10.06.91, pág. 7831).

Ao lado disso, harmonizar-se-ia com orientação primeva do Superior Tribunal de Justiça, de acordo com a qual a pertinência das exigências formuladas pelo Oficial de Registro deve ser valorada pelo Juiz Corregedor Permanente da serventia predial, mesmo se a qualificação recair sobre títulos judiciais, também sujeitos ao juízo de qualificação registral:

PROCESSO CIVIL. COMPETÊNCIA. DÚVIDA SUSCITADA PELO OFICIAL DO REGISTRO IMOBILIÁRIO.

1 – Por ter caráter eminentemente administrativo, as dúvidas suscitadas pelo Oficial do Registro de Imóveis devem ser decididas pelo Juízo Estadual Corregedor do Cartório respectivo à Juiz da Lei de Organização Judiciária local.

II – Os documentos apresentados a registro, ainda quando se destinem a dar cumprimento a ordem judiciária, estão sujeitos à apreciação preliminar quanto à presença dos requisitos necessários à efetivação do ato.

III – Precedentes.

IV – Conflito conhecido, para declarar competente o MM Juiz suscitado. (Conflito de Competência n.° 484/SP, relator José de Jesus Filho, julgado em 31.10.1989) (grifei)

Por sua vez, a reforçar a posição do Corregedor em situações símiles, relativas ao juízo negativo de qualificação registral de título judicial, o Egrégio Superior Tribunal de Justiça entendia inexistir conflito de competência entre o Juízo da execução e o Juízo correcional:

COMPETÊNCIA. CONFLITO. JUSTIÇA LABORAL E JUIZ CORREGEDOR DE REGISTROS PÚBLICOS. INSCRIÇÃO DA PENHORA NO REGISTRO IMOBILIÁRIO. IMÓVEL ALIENADO EM FRAUDE DE EXECUÇÃO E REGISTRADO EM NOME DE TERCEIRO. VALIDADE DA PENHORA E PROSSEGUIMENTO DA EXECUÇÃO. ATIVIDADES JURISDICIONAL E ADMINISTRATIVA. CONFLITO INEXISTENTE.

I – O registro da penhora no álbum imobiliário é ato de natureza administrativa, sujeito à prévia verificação da legalidade pelo juiz corregedor de registros públicos.

II – Em face do princípio da continuidade, acertada é a decisão que obsta a inscrição da penhora no registro de imóvel não lançado no nome do executado.

III – A ausência de registro da penhora não interfere com a validade e a eficácia desse ato, podendo a execução prosseguir normalmente em direção à excussão do bem. IV – Inexiste conflito entre o juízo da execução e o juízo correcional, quando o primeiro se encontra no exercício pleno de sua função jurisdicional e o segundo exercendo atividade administrativa. (Conflito de Competência n.° 2.870-0/SP, relator Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, julgado em 25.08.1993) (grifei)

Todavia, antes do julgamento aludido, o Ministro Sálvio de Figueiredo, ao apreciar o Recurso em Mandado de Segurança n.° 193-0/SP, julgado em 04.08.1992, e nortear a divergência ao voto do relator originário – Ministro Fontes de Alencar, vencido na companhia do Ministro Barros Monteiro –, concluiu ser vedado ao Juiz Corregedor, embora orientado pela guarda da regularidade dos registros públicos, rever as ordens judiciais proferidas em processo contencioso:

É certo que, à primeira vista tudo está a indicar que a decisão do MM Juiz de Direito da 3.a Vara Cível não se afeiçoou ao bom direito, haja vista que não deveria aquele r. Juízo, através de cautelar inominada, ter determinado a indisponibilidade dos bens, com a respectiva averbação no álbum imobiliário.

É de convir-se, contudo, que, se assim agiu, bem ou mal, somente por meio das vias jurisdicionais próprias é que tal decisão poderia ser impugnada, contrariada e reformada. Com efeito, não obstante o MM Juiz da Vara dos Registros Públicos estivesse no exercício da sua atividade correcional, podendo determinar medidas com lastro no art. 214 da Lei n.° 6.015/73, vê-se que as averbações, bem ou mal, repita-se, tinham sido determinadas e realizadas sob o império de uma decisão proferida em feito jurisdicionalizado. Em síntese, tenho que autoridade judicial em função administrativa não pode modificar decisão jurisdicional, que somente pode ser desconstituída pelas vias adequadas.

Posição contrário, receio, poderia constituir perigoso precedente, de efeitos indesejáveis.

Idêntica compreensão, com imposição de limites à atuação judicial na via administrativa, deixou transparecer ao julgar o Conflito de Competência n.° 14.750/RS, em 10.04.1996, quando, em caráter preliminar, ressaltou que, evidenciada a invasão de competência jurisdicional pelo Juiz Corregedor Permanente, “a espécie de que ora se trata difere daquela versada no CC 2870-0/SP” (acima lembrado):

COMPETÊNCIA. CONFLITO. JUIZ DE DIREITO NO EXERCÍCIO DA ATIVIDADE ADMINISTRATIVA CORRECIONAL DOS REGISTROS PÚBLICOS QUE RECUSA O CUMPRIMENTO DO MANDADO DE CANCELAMENTO DE REGISTRO. TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO QUE EXERCENDO ATIVIDADE JURISDICIONAL DETERMINA O CANCELAMENTO DO REGISTRO DA ARREMATAÇÃO DECLARADA NULA POR TER SIDO REALIZADA POR PREÇO VIL. INVASÃO DA COMPETÊNCIA DO ÓRGÃO JURISDICIONAL PELO ÓRGÃO CORRECIONAL. CONFLITO CONHECIDO PARA DECLARAR A COMPETÊNCIA IN CASU DO ÓRGÃO JURISDICIONAL.

1 – Não é dado ao juiz correcional, no exercício de sua função administrativa, recusar o cumprimento ao mandado de cancelamento do registro de arrematação, declarada nula por decisão proferida em feito jurisdicionalizado.

II Ocorrendo tal circunstância, caracteriza-se a invasão da competência do órgão jurisdicional, cuja decisão somente pode ser desconstituída pelas vias próprias, sob pena de vulnerar-se o devido processo legal.

O Ministro Barros Monteiro, ao acompanhar o voto do Ministro Sálvio de Figueiredo, realçou:

 …, no exercício de função administrativa, o Juiz de Direito da Comarca de Taquara-RS cassou o V. Acórdão prolatado pelo Tribunal suscitante. Ao assim deliberar, invadiu ele a competência jurisdicional da aludida Corte.

Dentro desse contexto, as diretrizes originalmente estabelecidas pelo Superior Tribunal de Justiça resolviam adequadamente os conflitos entre o Juízo da execução e o correcional referentes à qualificação dos títulos judiciais, com definição do âmbito de atuação legítima do último: privado da atribuição de revisão das decisões jurisdicionais, da possibilidade de imiscuir-se no acerto destas, incumbe-lhe, de outro lado, e prevalentemente, zelar, em procedimento administrativo, pela observação dos princípios e das regras do sistema registral; apreciar a presença dos requisitos necessários à efetivação do registro.

Contudo, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça avançou no sentido de dar maior preponderância às decisões do Juízo da execução, mesmo nas situações relacionadas com tutela do sistema registral e cumprimento das normas próprias dos registros públicos: enfraqueceu, sob esse prisma, a posição do Juízo correcional das serventias imobiliárias.

Ao analisar o Conflito de Competência n.° 21.413, em 14.04.1999 – vencido o relator, Ministro Sálvio de Figueiredo, que se guiou pelo decidido nos Conflitos de Competência n.° 484/SP e n.° 2.870-0/SP (acima referidos) e reafirmou a submissão dos títulos judiciais à qualificação registral, a competência do Juiz Corregedor para examinar a registrabilidade do ato e a inexistência de conflito de competência –, a 2.a Seção do Superior Tribunal de Justiça tomou outra senda, na linha da divergência aberta pelo Ministro Barros Monteiro.

Ao enfrentar a recusa à inscrição da penhora, então lastreada na existência de hipoteca cedular, e que foi mantida mesmo depois da decisão ressalvando a preferência do crédito trabalhista, o Ministro relator para acórdão decidiu que não era “dado ao Juiz Correcional, no exercício de sua função administrativa, opor-se ao que fora ordenado, bem ou mal, sob o ‘império de decisão proferida em feito jurisdicionalizado”.

E acrescentou:

Tenho, pois, que caracterizado se acha o conflito positivo de competência na espécie em face da oposição ao registro do ato constritivo manifestada pelo Oficial do Registro Público, roborada pela decisão proferida pelo MM Juiz Corregedor da Comarca. Como a decisão de caráter administrativo não pode contrapor-se ao decisório jurisdicional, prevalece a competência da Justiça Especializada, na forma do supra aludido precedente.

Isto é, ficaram definidos, primeiro, a possibilidade de conflito entre o Juízo da execução e o correcional – malgrado este, sem invadir a jurisdição daquele, tenha exercido atividade administrativa –, e, no mais, a prevalência da decisão do Juízo da execução, se, confrontado com as exigências formuladas pelo Oficial, afastou a pertinência da desqualificação. Sob esse aspecto, o voto vencedor do Ministro Ruy Rosado de Aguiar é claro:

… tratando de apreciar a hipótese dos autos, verifico que a ordem judicial de registro de penhora, emanada do juízo trabalhista, foi obstada pelo Oficial porque, nos termos do art. 57 do Decreto-Lei n.° 413/69, os bens vinculados à cédula de crédito industrial não serão penhorados ou sequestrados por outras dívidas, impondo-se ao Oficial o dever de denunciar a existência do gravame à autoridade que determinou a diligência, sob pena de responder pelo prejuízo. Ora, nos termos da lei, tal denúncia deve ser feita “à autoridade que determinou a diligência”, isto é, ao Juiz do Trabalho que expediu a ordem, e a ele cabe decidir sobre a matéria, insistindo ou não na prática do ato, do que caberão os recursos previstos em lei.

A nova compreensão da questão restou prestigiada no julgamento do Conflito de Competência n.° 30.820/RO, relator Ministro António de Pádua Ribeiro, em 22.08.2001, quando, enfocada a desqualificação da carta de arrematação cujo registro vulneraria o princípio da continuidade, decidiu-se:

…, tenho que a atividade administrativa não deve ser de molde a afastar determinação exarada em provimento jurisdicional, ainda que, no presente caso, a efetivação do registro implique quebra da cadeia dominial.

Dessarte, como fiz ver do julgado anteriormente citado, não deve o Juiz Correcional, em atividade administrativa, recusar o cumprimento de mandado expedido por Juiz no exercício de sua jurisdição. (grifei)

Na mesma data, e com idêntico desfecho, julgou-se o Conflito de Competência n.° 31.866/MS, no qual também apreciada questão atrelada ao registro de carta de arrematação em ofensa ao princípio registral da continuidade.

De toda forma, impõe sublinhar a preocupação e as expectativas exteriorizadas pelo relator, Ministro Ruy Rosado de Aguiar, que, também no voto declarado no Conflito de Competência n.° 30.820/RO (acima mencionado), expressou-as:

Confesso que não deixo de encontrar defeito na orientação adotada, pois as ordens judiciais expedidas em processos de execução muitas vezes não levam na devida conta os princípios do registro público, cuja rigorosa formalidade é fator de segurança social. Daí a conveniência de que somente seja ordenado o registro de documento hábil.

No entanto, mais difícil será submeter a decisão de um Juízo à revisão do outro, criando infinitas disputas.

Assim, parece mais conveniente autorizar o cumprimento da decisão do Juízo da execução, ficando reservado à parte prejudicada, que tenha ou não tido oportunidade de se defender no curso do processo, exercer seu direito nas vias judiciais. Fica, ainda, ressalvado a qualquer interessado o direito de discutir os efeitos do ato praticado com ofensa ao sistema registral e sua legislação específica. Confia-se em que a juiz da execução, ao expedir mandados dessa natureza previamente atenderá ao disposto na Lei dos Registros Públicos.

E, uma vez observada a dificuldade pelo Oficial Público, não tomará isso como uma ofensa à autoridade, mas sim como boa oportunidade para regularizar o registro e assim evitar futuras demandas, com grave prejuízo aos interessados que confiam na correção dos registros, especialmente naqueles ordenados pelo juiz. (grifei)

Posteriormente, a orientação foi ratificada:

CONFLITO DE COMPETÊNCIA. REGISTRO. TRANSFERÊNCIA DE PROPRIEDADE. ARREMATAÇÃO DO BEM EM EXECUÇÃO TRABALHISTA. RECUSA. JUÍZO DA VARA DO TRABALHO. COMPETÊNCIA.

1. Não é possível ao juízo correcional, no exercício de função meramente administrativa, opor-se à determinação de juiz trabalhista, de cunho jurisdicional, fixando o registro de transferência de propriedade de imóvel arrematado em execução trabalhista.

2. Conflito conhecido para declarar competente o Juízo da Vara do Trabalho de Pato Branco/PR, o suscitante. (Conflito de Competência n.° 41.042/PR, relator Ministro Fernando Gonçalves, julgado em 25.05.2005) (grifei)

E mais recentemente, decisão monocrática exarada pelo Ministro Sidnei Beneti, em 26.03.2010, no Conflito de Competência n.° 106.446/SP, não destoou da atual jurisprudência:

2. Após a arrematação de bens nos autos de execução trabalhista, o JUÍZO DA 22ª VARA DO TRABALHO DE SÃO PAULO – SP determinou que o Oficial do 1º Registro de Imóveis da Capital – SP procedesse a imediata averbação na matrícula dos imóveis, sob pena de prisão em flagrante por crime de desobediência.

3. Depois de procedido a transferência do domínio dos imóveis, o 17° Oficial de Registro de Imóveis da Capital – SP representou à Corregedoria Permanente noticiando o fato, a qual determinou o cancelamento dos atos de arrematação na matrícula dos imóveis, a fim de restaurar-se a regularidade e a ordem dos registros públicos de imóveis (fls. 85/88).

4. Informado pelo arrematante do acontecido, o JUÍZO DA 22ª VARA DO TRABALHO DE SÃO PAULO – SP suscitou o presente conflito, à consideração de que não poderia, em hipótese alguma, ser cancelada a determinação de registro da arrematação, sob pena de gerar-se completa insegurança jurídica, pois as decisões judiciais proferidas por esta Justiça Especializada que tenham por objeto o registro público de um ato jurídico processual, somente podem ter declarada sua invalidade pela superior instância, mediante provocação do interessado, assim como as decisões proferidas pela Justiça Estadual somente podem ser objeto de análise pelo Tribunal de Justiça competente (fls. 118).

É o breve relatório.

6. – Em hipóteses como a presente, a C. Segunda Seção desta Corte firmou entendimento no sentido de ser o Juízo Trabalhista o único competente para decidir sobre o registro da carta de arrematação, com a incumbência de zelar pelo fiel cumprimento da Lei dos Registros Públicos.

7 – Pelo exposto, nos termos do art. 120, parágrafo único, do Código de Processo Civil, conhece-se do Conflito e declara-se competente o JUÍZO DA 22ª VARA DO TRABALHO DE SÃO PAULO – SP, suscitante, encaminhando-se-lhe os autos.

 … “(Conflito de Competência n.° 106.446/SP, relator Ministro Sidnei Beneti, julgado em 26.03.2010) (grifei)

Portanto, apesar da convicção pessoal, alinhada com os primeiros pronunciamentos do Superior Tribunal de Justiça, curvo-me à jurisprudência consolidada na última década, ou seja, se o Juízo da execução – uma vez confrontado com a desqualificação do título e, assim, com a nota devolutiva emitida pelo Oficial de Registro -, reitera a ordem de registro (lato sensu) do título judicial, o ato deverá ser efetivado.

Entretanto, realizado o registro, caberá ao Oficial comunicar o fato ao Juiz Corregedor Permanente, de sorte a justificar a prática do ato em afronta aos princípios e às regras registrais, ainda que insuscetível de cancelamento na via administrativa.

Pelo todo exposto, o parecer que respeitosamente submeto ao elevado exame de Vossa Excelência propõe o provimento do recurso para rever o cancelamento da av. nº (…) da matrícula n° (…).

Sub censura.

São Paulo, 20 de fevereiro de 2012

Luciano Gonçalves Paes Leme

Juiz Assessor da Corregedoria

DECISÃO: Aprovo o parecer do MM. Juiz Assessor da Corregedoria e, por seus fundamentos, que adoto, dou provimento ao recurso administrativo para rever a ordem de cancelamento da av. n.°(…) da matrícula n.° (…), do Registro de Imóveis e Anexos de (…). Publique-se. São Paulo, 22.02.2013. – (a) – JOSÉ RENATO NALINI – Corregedor Geral da Justiça.

Diário da Justiça Eletrônico de 07.03.2013
Decisão reproduzida na página 63 do Classificador II – 2013

Fonte: Grupo Serac – CGJ – SP | 15/01/2015.

Publicação: Portal do RI (Registro de Imóveis) | O Portal das informações notariais, registrais e imobiliárias!

Para acompanhar as notícias do Portal do RI, siga-nos no twitter, curta a nossa página no facebook, assine nosso boletim eletrônico (newsletter), diário e gratuito, ou cadastre-se em nosso site.




CGJ/SP: Registro de imóveis – Imóvel rural – Aquisição por pessoa física estrangeira – Autorização do INCRA – Requisito de validade inexistente – Falta de legitimação – Nulidade de pleno direito em tese caracterizada – Erro de qualificação – Saneamento pelo decurso do tempo – Princípios da segurança jurídica, proteção à confiança, da moralidade administrativa e boa-fé objetiva – Princípio da legalidade enfocado em sua totalidade – Validação do registro – Cancelamento administrativo afastado.


PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

CORREGEDORIA GERAL DA JUSTIÇA
Processo CG n° 1988/155
(481/2013-E)

Registro de imóveis – Imóvel rural – Aquisição por pessoa física estrangeira – Autorização do INCRA – Requisito de validade inexistente – Falta de legitimação – Nulidade de pleno direito em tese caracterizada – Erro de qualificação – Saneamento pelo decurso do tempo – Princípios da segurança jurídica, proteção à confiança, da moralidade administrativa e boa-fé objetiva – Princípio da legalidade enfocado em sua totalidade – Validação do registro – Cancelamento administrativo afastado.

Excelentíssimo Senhor Corregedor Geral da Justiça,

A aquisição imobiliária rural realizada pelo português Fernando Ricardo Rodrigues, casado com Albertina Dos Santos Rodrigues, cuja nacionalidade é desconhecida, objeto do r. 1 da matrícula n° 1.525 do RI da Comarca de Miracatu[1] não foi regularizada até o momento.[2]

A transferência foi concluída sem autorização do INCRA, exigida como requisito de validade, pois a área incorporada ao patrimônio do estrangeiro, embora não exceda a 50 módulos de exploração indefinida (MEIs), supera três MEIs[3]: falta, portanto ao adquirente, legitimidade para referida aquisição (artigos 1º, caput, 3º, §§ 1º e 2°, da Lei n° 5.709/1971[4], artigo 1º, caput, e § 2º do artigo 7 do Decreto n° 74.965/1974[5]).

Nada obstante o erro de qualificação registral, a importar em tese, se abstrata e perspectivamente valorado, a nulidade de pleno direito do registro (artigos 15, da Lei n° 5.709/1971[6], e 19, do Decreto n° 74.965/1974[7]), o cancelamento administrativo, admitido pelo artigo 214, caput, da Lei n° 6.015/1973[8], fica desautorizado in concreto.

Ainda que inaplicável a regra do § 5º do artigo 214 da Lei n° 6.015/1973[9], porque o interessado não é terceiro, senão o direta e originalmente favorecido pelos efeitos jurídicos da inscrição, o desfazimento resta vedado, diante da boa-fé e longo tempo decorrido desde o assento, ocorrido no dia 7 de março de 1978[10].

Sopesados os valores em conflito, ponderados particularmente os princípios da legalidade e da segurança jurídica, este, do qual emana a proteção à confiança, e tal como aquele associado ao princípio do estado de direito, prevalece: não é razoável, transcorridos mais de trinta anos, proceder, na via administrativa, ao cancelamento do registro, em ofensa à estabilidade das relações jurídicas e à boa-fé.

Miguel Reale, há décadas, já atribuía ao fator tempo potência para equiparar as situações de fato a situações jurídicas, malgrado a nulidade que marcou o nascimento daquelas, e, ao discorrer sobre a perempção suscetível de obstar o exercício do poder-dever de policiamento da legalidade, asseverou:

Se a decretação da nulidade é feita tardiamente, quando a inércia da Administração já permitiu se constituíssem situações de fato revestidas de forte aparência de legalidade, a ponto de fazer gerar nos espíritos a convicção de sua legitimidade, seria deveras absurdo que, a pretexto da eminência do Estado, se concedesse às autoridades um poder-dever indefinido de autotutela. Desde o famoso affaire Cachet, é esta a orientação dominante no Direito francês, com os aplausos de Maurice Hauriou, que bem soube pôr em realce os perigos que adviriam para a segurança das relações sociais se houvesse possibilidade de indefinida revisão dos atos administrativos[11]. (grifei)

Sob esse prisma, sublinha Almiro do Couto e Silva, o conflito entre justiça e segurança jurídica é ilusório, aparente, existiria tão somente se tomássemos “a justiça como valor absoluto, de tal maneira que o justo nunca pode transformar-se em injusto e nem o injusto jamais perder essa natureza.”[12] Esclarece:

… A tolerada permanência do injusto ou do ilegal pode dar causa a situações que, por arraigadas e consolidadas, seria iníquo desconstituir, só pela lembrança ou pela invocação da injustiça ou da ilegalidade originária.

Do mesmo modo como a nossa face se modifica e se transforma com o passar dos anos, o tempo e a experiência histórica também alteram, no quadro da condição humana, a face da justiça. Na verdade, quando se diz que em determinadas circunstâncias a segurança jurídica deve preponderar sobre a justiça, o que se está afirmando, a rigor, é que o princípio da segurança jurídica passou a exprimir, naquele caso, diante das peculiaridades da situação concreta, a justiça material. Segurança jurídica não é, algo que se contraponha à justiça; é ela a própria justiça. ...[13] (grifei)

A aplicação mecânica, automática e irrefletida da letra fria da lei, expressa em regra isoladamente considerada, e muito embora inspirada no princípio da legalidade, mas em descompasso com o da moralidade administrativa, sucumbe ao maior peso do princípio da segurança jurídica, no seu aspecto subjetivo de proteção à confiança, a preponderar, à luz da relação tensiva descortinada, em detrimento da supremacia neutra do interesse público, míope e estreitamente enfocada. A esse respeito, convém realçar a observação de Bruno Miragem:

A rigor, como se vê, a proteção da confiança constitui limite à atuação administrativa, em especial, ao exigir do exercício do poder pelo Estado-Administração, a consideração não apenas das razões de interesse público implicadas em determinada conduta administrativa, mas, igualmente, o respeito às situações havidas, constituídas regularmente ou – eventualmente que padeçam de eventual irregularidade, mas que de algum modo (em especial em razão do decurso do tempo e a boa-fé), se consolidaram, representando sua retirada do mundo jurídico, a frustração de expectativas legítimas e prejuízos àquele que originalmente beneficiado.[14]

O E. Supremo Tribunal Federal, ao decidir o Mandado de Segurança n° 22.357-0/DF, rel. Min. Gilmar Mendes, no dia 27 de maio de 2004, firmou a vinculação da Administração Pública ao princípio da segurança jurídica, subprincípio do Estado de Direito, em vista da necessidade de estabilidade de situações administrativamente criadas, e reconheceu a incidência do princípio da confiança nas relações jurídicas de direito público, justificada, entre outras circunstâncias, pela boa-fé dos interessados e repercussão jurídica do fator tempo.

Antes, no Mandado de Segurança n° 24.268-0/MG, julgado em 5.2.2004, o e. Min. Gilmar Mendes, ao salientar que a possibilidade de revogação dos atos administrativos não pode estender-se indefinidamente, havia invocado o princípio de proteção à confiança como elemento do da segurança jurídica, e, recentemente, no julgamento do Recurso Extraordinário n° 598.099/MS, em 10.8.2011, voltou a declarar a constitucionalidade de referido princípio.[15]

E segundo a sagaz e pungente visão doutrinária de Sérgio Ferraz e Adilson Abreu Dallari, com a qual concordo, sequer há, na realidade, choque entre o princípio da legalidade e o da segurança jurídica, porque a conformidade exigida por aquele é com o Direito, com a ordem jurídica encarada em sua totalidade, não com um pedaço seu, uma tira sua, com uma norma extraída de texto específico. Afirmam:

Não goza de prestígio em nossos dias a corrente do pensamento segundo a qual o princípio da segurança jurídica estaria em permanente conflito com o princípio da legalidade, ora vencendo um, ora prevalecendo outro, segundo as configurações do caso concreto. Crê-se, hoje, que tais princípios se complementam, bastando para tanto que entenda que, quando falamos em princípio da legalidade, o que contemplamos não é sujeição do ato à literalidade da lei, mas sua conformidade à lei e ao Direito (Lei 9.784/99, art. 2°, parágrafo único, I).[16]

A recomposição da legalidade, leciona por sua vez Celso António Bandeira de Mello, pode advir tanto da invalidação de atos eivados de vícios como, em abono dos princípios da segurança jurídica e da boa-fé, de sua convalidação ou ainda da estabilização pelo tempo das situações deles surgidas. [17]

Em suma, a imperiosa preservação de posições jurídicas individualizadas consolidadas no tempo, nascidas de atividade estatal, titularizadas por interessados de boa-fé, cujas justas expectativas na manutenção do estado atual são portanto legítimas, impossibilita a atuação administrativa direcionada ao cancelamento dos registros, que revelar-se-ia contraditória, dada a longuíssima inércia da Administração Pública, desproporcional, além de inútil, porquanto, concretamente, não se prestaria mais à defesa da soberania e do desenvolvimento nacional.

As particularidades do caso obstam o exercício do dever-poder de autotutela próprio da Administração Pública, ainda que a pretexto de resguardar, com estrabismo, o princípio da legalidade, que, ademais, traduz valor que, não sendo absoluto, deve ser balanceado em confronto com outros, igualmente dotados de status constitucional, como, na situação enfrentada, antes já se frisou, os acobertados pelos princípios da segurança jurídica e da moralidade administrativa.

A justiça material, acentuou-se com estribo em Almiro do Couto e Silva, nesses se encontra; a tutela da ordem jurídica, e assim da legalidade visualizada em sua totalidade, dá-se, aqui, por meio deles, também se ressaltou, com socorro ao magistério de Sérgio Ferraz e Adilson Abreu Dallari.

Quanto à invocação do princípio da moralidade administrativa, elencado no artigo 37 da CF, faço-a sob a influência do escólio de José Guilherme Giacomuzzi, para quem aquele transporta o princípio da boa-fé objetiva, seu conteúdo (objetivo) do qual decorre o mandamento de proteção à confiança – também projetado pelo princípio da segurança jurídica – e a imposição de “deveres objetivos de conduta administrativa, proibindo-se a contradição de informações, a indolência, a leviandade de propósitos.” [18]

Tal compreensão, aliás, restou confortada em precedente do C. Superior Tribunal de Justiça, no Recurso Especial n° 944.325/RS, rel. Min. Humberto Martins, julgado em 4.11.2008, quando reconhecida a proteção à confiança como “cláusula geral que ultrapassa os limites do Código Civil (arts. 113, 187 c/c art. 422) e chega ao Direito Público, como subprincípio derivado da moralidade administrativa.”

Dentro de um contexto de afrouxamento das fronteiras entre o direito público e o direito privado, no qual os espaços de ambos se interpenetram, suas esferas se conjugam, complementam-se, enriquecendo-os, impõe reconhecer “a aplicação do princípio da boa-fé nas relações jurídico-administrativas, carregando consigo todas as suas consequências. [19](grifei)

Entre essas, porque calham, e estão em sintonia com as considerações feitas, acentuo, a reboque de Egon Bockmann Moreira, a proibição ao venire contra factum proprium, a aplicação da máxima dolo agit qui petit quod statimredditurus est – a “negativa ao exercício inútil de direitos e deveres, sem respeito, consideração e efeitos práticos, de molde a não obter qualquer resultado proveitoso, mas causar dano considerável a terceiro” – e a impossibilidade doinciviliter agere, isto é, “condutas egocêntricas, brutais e cegas aos direitos de terceiros, violadoras da dignidade humana”.[20]

As peculiares circunstâncias analisadas, assim, levam à convalidação dos registros, à convalidação ex ope temporis que, vale dizer com auxílio de José dos Santos Carvalho Filho, “não decorre propriamente da retificação dos vícios de que o ato está contaminado, mas sim do decurso do tempo e, por conseguinte, da confiança que nele a coletividade já depositou.”[21]

Ou como prefere Weida Zancaner, operou-se o saneamento, não a convalidação, pelo decurso do tempo, que, no mais, afirma, “constitui uma das formas de estabilização das relações jurídicas e é capaz, portanto, de forma indireta, de validar atos viciados.”[22]

Nulos ou anuláveis, os atos administrativos inválidos, alerta Almiro do Couto e Silva, “sanam sempre que sobre eles cair uma camada razoável de tempo, com a tolerância da Administração Pública[23]. Assim também pensam, entre outros, Celso António Bandeira de Mello[24], Sérgio Ferraz e Adilson Abreu Dallari[25].

O decurso do tempo, seguindo a concepção de Weida Zancaner, representa tanto barreira à convalidação – suscetível,prima facie, mediante ato administrativo (autorização) do INCRA, agora prescindível – como estorvo, para quem reputa vedada a convalidação por meio do atendimento tardio do requisito procedimental inobservado, à invalidação dos registros, ao tornar intocáveis situações estabilizadas.[26]

Argumenta:

… a conjugação do princípio da segurança jurídica com o da boa-fé pode gerar outra barreira ao dever de invalidar. É o que sucederá, uma vez decorrido prazo razoável, perante atos ampliativos de direitos dos administrados nos casos em que haja no ordenamento jurídico alguma regra hábil para proteger a situação e que lhe teria servido de amparo se tivesse sido produzida sem vício.[27]

Os registros focados, na trilha da classificação dos atos inválidos idealizada por Weida Zancaner, seriam ou, consoante entendo, atos relativamente sanáveis, pois comportam convalidação pela Administração Pública – inviabilizada pela estabilização advinda pelo decurso do tempo – e saneamento por iniciativa dos particulares, ou atos relativamente insanáveis, que, embora não possam ser convalidados nem sanados por ato do particular afetado, foram purificados pelo expressivo período escoado desde a sua prática.[28]

A possibilidade de saneamento pelo interessado se alinha com a histórica jurisprudência administrativa desta E. CGJ, que o admite, em se tratando de aquisição de imóvel rural por estrangeiro sujeita às restrições da Lei n° 5.709/1971 e do Decreto n° 74.965/1974, tanto pela naturalização superveniente dos adquirentes[29] como em razão de posterior transferência da propriedade a brasileiros[30].

De qualquer forma, os princípios da segurança jurídica e da boa-fé, a par do transcurso de alongado lapso temporal e da presença de norma jurídica protetiva das situações caso tivessem nascido válidas (a que tutela o direito de propriedade), conduzem, na esteira dos ensinamentos de Weida Zancaner, à validação dos registros ampliativos de direitos, mesmo se considerados atos relativamente insanáveis.[31]

A solução se harmoniza com a regra do artigo 54, caput, da Lei n° 9.784/1999 que regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal, in verbis:

Artigo 54. O direito da Administração de anular os atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os destinatários decai em cinco anos, contados da data em que foram praticados, salvo comprovada má-fé. (grifei)

Do mesmo modo, alinha-se com a inteligência do inciso I do artigo 10 da Lei Estadual n° 10.177/1998 que disciplina o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Estadual, in ver bis:

Artigo 10. A Administração anulará seus atos inválidos, de oficio ou por provocação de pessoa interessada, salvo quando:

I – ultrapassado o prazo de 10 (dez) anos contado de sua produção;

(…)

E ainda com o parágrafo único do artigo 91 do Regimento Interno do Conselho Nacional de Justiça (RICNJ), aprovado pela Resolução n° 67, de 03 de março de 2009, in verbis:

Art. 91. (…).

Parágrafo único. Não será admitido o controle de atos administrativos praticados há mais de cinco (5) anos, salvo quando houver afronta direta à Constituição.

Todos então contemplando normas símiles que servem, no contexto, como vetores exegéticos e animam a validação, a legitimação dos registros das propriedades rurais imobiliárias, efetivados há mais de dez anos, mediante exercício de função pública, e em favor de quem, antes, confiou no assessoramento jurídico de tabelião de notas, agente público responsável pela formalização do título aquisitivos.

Agora, no tocante à Oficial responsável pelo registro e à Tabeliã de Notas pela lavratura das escrituras públicas[32] a dispensa daquela, que atuava como interina, por fim exorada de suas funções de escreventes, e a aposentadoria desta, em 1983[33], obstam a instauração de processo censório-disciplinar.

Por fim, no tocante aos crimes de prevaricação e falsidade ideológica identificados nos artigos 15, da Lei n° 5.709/1971, e 19, do Decreto n° 74.965/1974, descabe inaugurar qualquer apuração de responsabilidade criminal, porquanto, depois de vinte anos, prescrita a pretensão punitiva estatal.

Pelo exposto, o parecer que respeitosamente submeto à elevada apreciação de Vossa Excelência é no sentido de dar por saneado, pelo decurso do tempo, e no que toca à falta de autorização do INCRA, o r. 1 da matrícula n° 1.525 do Registro de Imóveis e Anexos da Comarca de Miracatu.

Sub censura.

São Paulo, 8 de novembro de 2013.

Luciano Gonçalves Paes Leme

Juiz Assessor da Corregedoria

DECISÃO: Aprovo o parecer do MM. Juiz Assessor da Corregedoria e, por seus fundamentos, que adoto, dou por saneado, pelo decurso do tempo, e no que toca à falta de autorização do INCRA, o r. 1 da matrícula n° 1.525 do Registro de Imóveis e Anexos da Comarca de Miracatu. Procedam-se às anotações e às comunicações pertinentes, dando ciência ao Oficial do Registro de Imóveis e Anexos da Comarca de Miracatu. Publique-se. São Paulo, 14.11. 2013. – (a) – JOSÉ RENATO NALINI – Corregedor Geral da Justiça.

Notas:

______________

[1] Fls. 1.519.

[2] Fls. 1.540, item 1.

[3] Fls. 1.510.

[4] Artigo 1º. O estrangeiro residente no País e a pessoa jurídica estrangeira autorizada a funcionar no Brasil só poderão adquirir imóvel rural na forma prevista nesta Lei.

Artigo 3º. A aquisição de imóvel rural por pessoa física estrangeira não poderá exceder a 50 (cinquenta) módulos de exploração indefinida, em área contínua ou descontínua.

§ 1º. Quando se tratar de imóvel com área não superior a 3 (três) módulos, a aquisição será livre, independendo de qualquer autorização ou licença, ressalvadas as exigências gerais determinadas em lei.

§ 2º. O Poder Executivo baixará normas para a aquisição de área compreendida entre 3 (três) e 50 (cinquenta) módulos de exploração indefinida.

[5] Artigo 1°. O estrangeiro residente no País e a pessoa jurídica estrangeira autorizada a funcionar no Brasil só poderão adquirir imóvel rural na forma prevista neste regulamento.

Artigo 7. (…)

§ 2° A aquisição de imóvel rural entre 3 (três) e 50 (cinquenta) módulos de exploração indefinida dependerá de autorização do INCRA, ressalvado o disposto no artigo 2°.

[6] Artigo 15. A aquisição de imóvel rural, que viole as prescrições desta Lei, é nula de pleno direito. (…).

[7] Artigo 19. É nula de pleno direito a aquisição de imóvel rural que viole as prescrições legais: (…).

[8] Artigo 214. (..) As nulidades de pleno direito do registro, uma vez provadas, invalidam-no, independentemente de ação direta

[9] Artigo 214. (…)§ 5º. A nulidade não será decretada se atingir terceiro de boa-fé que já preenchido as condições de usucapião do imóvel, (grifei)

[10] Fls. 1.929-1.930.

[11] Revogação e anulamento do ato administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 1968, p. 85-86.

[12] Princípios da legalidade da Administração Pública e da segurança jurídica no Estado de Direito Contemporâneo. In: Revista de Direito Público. São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 84, p. 46-63, outubro-dezembro/1987. p. 47.

[13] Ibidem.

[14] A nova Administração Pública e o Direito Administrativo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 244-245.

[15] Há, no mesmo sentido, precedente do C. Superior Tribunal de Justiça: Recurso em Mandado de Segurança, rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho. j. 30.10.2008.

[16] Processo administrativo. 3ª ed. São Paulo: Malheiros, 2012. p. 116.

[17] Curso de Direito Administrativo. 29ª ed. São Paulo: Malheiros. 2012. p. 483-485.

[18] A moralidade administrativa e a boa-fé da Administração Pública: o conteúdo dogmático da moralidade administrativa. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 2013. p. 231 -283

[19] José Guilherme Giacomuzzi. idem, p. 270.

[20] Processo administrativo: princípios constitucionais e a Lei 9.784/1999. 4ª ed. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 125.

[21] Processo administrativo federal: comentários à Lei n° 9.784, de 29.1.1999. 5ª ed. São Paulo: Atlas, 2013. p. 59.

[22] Da convalidação e da invalidação dos atos administrativos. 3ª ed. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 90-91.

[23] Idem, p. 60.

[24] Idem, p. 492-493.

[25] Idem,p. 271-272.

[26] Idem, p. 72-76.

[27] Idem, p. 75

[28] Idem, 110-111.

[29] Processo CG n° 53.438/1979, Des. Adriano Marrey, j. 9.12.1980.

[30] Processo CG n° 82.194/1987, parecer n° 133/88 de 21.3.1988, Juiz Auxiliar da Corregedoria Aroldo Mendes Viotti; Processo CG n° 86.353/1989, parecer n° 259/89 de 31.3.1989, Juiz Auxiliar da Corregedoria Aroldo Mendes Viotti; Processo CG n° 87.339/1989, parecer n° 818/89 de 7.11.1989. Juiz Auxiliar da Corregedoria Aroldo Mendes Viotti; Processo CG n° 367/1995, parecer n° 633/95 de 14.7.1995, Juiz Auxiliar da Corregedoria Marcelo Martins Berthe.

[31] Idem, p. 114-117.

[32] Fls. 1.519.

[33] Fls. 1.544.

______________

Fonte: DJE/SP – Grupo Serac – PARECERES DOS JUÍZES AUXILIARES DA CGJ nº 007 | 27/01/2015.

Publicação: Portal do RI (Registro de Imóveis) | O Portal das informações notariais, registrais e imobiliárias!

Para acompanhar as notícias do Portal do RI, siga-nos no twitter, curta a nossa página no facebook, assine nosso boletim eletrônico (newsletter), diário e gratuito, ou cadastre-se em nosso site.