TJ/SP – Registro de Imóveis – Dúvida Partilha causa mortis – Escritura pública – Renúncia por herdeiro contra o qual pesavam indisponibilidades decorrentes de ordens jurisdicionais – Cessão de parte dos bens do espólio a filho desse herdeiro – Óbice aos pretendidos registros decorrentes da partilha Indisponibilidade que, entretanto, não impunha ao herdeiro o dever de aceitar Fraude contra credores e fraude à execução que não podem ser apreciadas na via administrativa – Apelação a que se dá provimento para, afastado o óbice e reformada a r. sentença, permitir os registros almejado


Apelação Cível nº 1039545-36.2019.8.26.0506

Espécie: APELAÇÃO
Número: 1039545-36.2019.8.26.0506
Comarca: RIBEIRAO PRETO

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

CONSELHO SUPERIOR DA MAGISTRATURA

Apelação Cível nº 1039545-36.2019.8.26.0506

Registro: 2021.0000361660

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível nº 1039545-36.2019.8.26.0506, da Comarca de Ribeirão Preto, em que é apelante NEUSA TERESA OLIN, é apelado SEGUNDO OFICIAL DE REGISTRO DE IMOVEIS DA COMARCA DE RIBEIRAO PRETO.

ACORDAM, em Conselho Superior de Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: “Deram provimento, v.u.”, de conformidade com o voto do Relator, que integra este acórdão.

O julgamento teve a participação dos Exmos. PINHEIRO FRANCO (PRESIDENTE TRIBUNAL DE JUSTIÇA) (Presidente), LUIS SOARES DE MELLO (VICE PRESIDENTE), XAVIER DE AQUINO (DECANO), GUILHERME G. STRENGER (PRES. SEÇÃO DE DIREITO CRIMINAL), MAGALHÃES COELHO(PRES. DA SEÇÃO DE DIREITO PÚBLICO) E DIMAS RUBENS FONSECA (PRES. DA SEÇÃO DE DIREITO PRIVADO).

São Paulo, 4 de maio de 2021

RICARDO ANAFE

Corregedor Geral da Justiça e Relator

Apelação Cível nº 1039545-36.2019.8.26.0506

Apelante: Neusa Teresa Olin

Apelado: Segundo Oficial de Registro de Imóveis da Comarca de Ribeirão Preto

VOTO Nº 31.490

Registro de Imóveis – Dúvida Partilha causa mortis – Escritura pública – Renúncia por herdeiro contra o qual pesavam indisponibilidades decorrentes de ordens jurisdicionais – Cessão de parte dos bens do espólio a filho desse herdeiro – Óbice aos pretendidos registros decorrentes da partilha Indisponibilidade que, entretanto, não impunha ao herdeiro o dever de aceitar Fraude contra credores e fraude à execução que não podem ser apreciadas na via administrativa – Apelação a que se dá provimento para, afastado o óbice e reformada a r. sentença, permitir os registros almejados.

1. Neusa Teresa Olin apelou (fl. 134/148) da r. sentença (fl. 120/127) proferida pelo MM. Juiz Corregedor Permanente do 2º Oficial de Registro de Imóveis da Comarca de Ribeirão Preto, que julgou procedente a dúvida (fl. 01/08) e manteve a recusa (fl. 65/68) de registro stricto sensu de partilha causa mortis (escritura pública de inventário, cessão de direitos e partilha copiada a fl. 10/24; prenotação 495.086)

O termo de dúvida (fl. 01/09) esclarece que a partilha versa bens deixados pelo de cuius Ronaldo Sérgio Borges Tavares. Dentre esses bens constam os imóveis das matrículas nºs 69.164, 92.223 e 111.074 e, dentre os herdeiros, dois (Luís Evandro e Luís Humberto) renunciaram em favor do monte. A seguir, os herdeiros restantes e a companheira cederam parte do que lhes coube a favor de Gabriel Diniz Tavares e Renato Cangemi Tavares, filhos dos renunciantes Luís Evandro e Luís Humberto. Contudo, um dos herdeiros renunciantes qual seja, Luís Evandro tem em seu desfavor quatro ordens jurisdicionais de indisponibilidade de bens, como foi constatado assim pelo tabelião de notas quanto pelo ofício de registro de imóveis. Assim, independentemente da natureza da renúncia (abdicativa ou translativa), e considerando um precedente do Conselho Superior da Magistratura, não se pode proceder ao registro da partilha sem o prévio cancelamento das indisponibilidades pendentes sobre os bens do herdeiro renunciante. Menciona ainda, a nota de exigência, que o ato renunciativo foi seguida da cessão de parte dos bens aos filhos de Luís Evandro e Luís Humberto, fato esse que, aliado à indisponibilidade já referida, configura mais um motivo para a recusa da inscrição pretendida. Salientam outrossim as razões de dúvida que, respeitadas as regras vigentes, é dever do ofício de registro de imóveis analisar os títulos de modo a obstar qualquer situação que signifique burla a ordens de indisponibilidade, e nisso estão compreendidos os casos de cessão de direitos em escritura de alienação de direitos, nos quais é lícito impedir o registro em nome do adquirente final, como sucede na hipótese em discussão.

Diz a r. sentença que em desfavor do herdeiro renunciante Luís Evandro pendem várias ordens de indisponibilidade (fl. 65, itens 1.1, 1.2, 1.3 e 1.4), de modo que a sua renúncia pode implicar prejuízo a credores e evidencia alienação fraudulenta, o que também é indicado pelo fato de que ocorreu cessão em favor do filho dele próprio. Portanto, considerando-se o item 412 do Capítulo XX das Normas de Serviço dos Cartórios Extrajudiciais (NSCGJ) e os §§ 1º, 4º e 5º do art. 14 do Provimento n. 39, de 25 de julho de 2014, agiu bem o ofício de registro de imóveis ao recusar os registros pretendidos, ainda mais porque o herdeiro não pode prejudicar os seus credores renunciando à herança (Cód. Civil, art. 1.813), por responder com todos os seus bens, presentes e futuros, para o cumprimento de suas obrigações (Cód. de Proc. Civil, art. 789). Por fim, salienta o r. decisum que as indisponibilidades em questão têm origem jurisdicional, e não podem ser canceladas por decisão administrativa.

A apelante afirma que o mesmo título foi admitido a registro, sem óbices, em outros cartórios; sustenta que a interpretação dada ao problema, nestes autos, está equivocada, e que nenhum dos imóveis em questão (matrículas nºs 69.164, 92.223 e 111.074) pertence ou pertenceu aos herdeiros renunciantes, de maneira que não faz sentido que ela, meeira e herdeira, seja prejudicada em razão de atos com os quais não mantém nenhuma relação. Aduz que a regra do Cód. Civil, art. 1.813, só incide se houver ação jurisdicional pendente, e a existência de ou não de credores de herdeiro renunciante é matéria estranha ao inventário e à partilha extrajudicial, e o tema, por não estar restrito a aspecto formal, não pode ser conhecido na esfera administrativa. Defende a cisão do título, para que a negativa de registro atinja somente a parte da herança que teria tocado ao herdeiro renunciante onerado pelas indisponibilidades; desse modo, não serão prejudicados os interessados que não detêm nenhum vínculo com as obrigações dele. Luís Evandro agiu, em verdade, no exercício regular de um direito que lhe concede a Lei (Cód. Civil, arts. 1.804 e segs.), movido pelo fato de não manter nenhum contato ou vínculo afetivo com o de cuius. Ademais, a renúncia abdicativa opera ex tunc, desde a abertura da sucessão, de maneira que esses bens nunca fizeram parte do patrimônio do renunciante, e eventuais direitos de seus credores nem impedem a renúncia, nem são obstáculo a outras providências dos demais sucessores. Menciona que o precedente citado nas razões de devolução é concernente a uma cessão de direitos de compromissário comprador, e não a uma hipótese de renúncia a herança. Assevera que os testamentos não recaem sob a incidência do Prov. n. 13/2012, da Corregedoria Geral da Justiça. Conclui que, por todas essas razões, a r. sentença deve ser reformada, para que se façam os pretendidos registros stricto sensu.

A DD. Procuradoria Geral de Justiça ofertou parecer pelo não provimento do recurso (fl. 209/213).

É o relatório.

2. A r. sentença tem de ser reformada, não obstante as suas bem fundadas razões.

Sempre que trata do tema, a doutrina faz incluir a indisponibilidade (Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973, art. 247) no campo das proibições ao poder de dispor, pois ela:

(a) representa uma “inalienabilidade de bens, que pode provir das mais diversas causas”, diz Valmir Pontes (Registro de Imóveis, São Paulo: Saraiva, 1982, p. 179);

(b) constitui uma “forma especial de inalienabilidade e de impenhorabilidade”, segundo Walter Ceneviva (Lei dos Registros Públicos Comentada, 20ª ed., São Paulo: Saraiva, 2010, p. 625, n. 671);

(c) implica “a restrição ao poder de dispor da coisa, impedindo-se sua alienação ou oneração por qualquer forma”, conforme o ensinamento de Eduardo Pacheco Ribeiro de Souza (Noções Fundamentais de Direito Registral e Notarial, São Paulo: Saraiva, 2011, p. 109);

(d) “impede apenas a alienação, mas não equivale à penhora e não acarreta necessariamente a expropriação do bem”, no dizer de Francisco Eduardo Loureiro (in José Manuel de Arruda Alvim Neto et alii (coord.), Lei de Registros Públicos comentada, Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 1.291);

(e) “afeta os atributos da propriedade, perdendo o proprietário o poder de disposição, de modo que, para alienar ou onerar o bem é necessário o prévio cancelamento da indisponibilidade”, ensina Ana Paula P. L. Almada (in Registros Públicos, Rio de Janeiro: Forense, São Paulo: Método, 2020, p. 444); e

(f) possui natureza “evidentemente acautelatória, pois visa assegurar o resultado prático de não dispor do imóvel enquanto persistir a situação jurídica que autoriza a indisponibilidade de bens”, na opinião de Vitor Frederico Kümpel e Carla Modina Ferrari (Tratado Notarial e Registral Ofício de Registro de Imóveis, São Paulo: YK Editora, 2020, p. 2.843-2.843).

Eduardo Pacheco Ribeiro de Souza (op. cit., p. 109-110) ainda faz a seguinte precisão:

“Não obstante a inalienabilidade e a indisponibilidade signifiquem restrição ao poder de dispor da coisa, usualmente tem-se utilizado o termo inalienabilidade para as restrições decorrentes de atos de vontade, enquanto o termo indisponibilidade tem sido usado para se referir às restrições impostas pela lei, ou em razão de atos administrativos ou jurisdicionais. Diferença relevante assenta na finalidade: enquanto nos atos de vontade o que se busca atingir com a restrição é a proteção do beneficiário da cláusula (daquele que fica impedido de dispor), nos demais atos o objetivo, em regra, é dar efetividade a decisões administrativas e jurisdicionais, em desfavor de quem tenha alcançado seu poder de disposição.”

Estabelecido, assim, que a indisponibilidade é proibição ao poder de dispor, com finalidade acautelatória, resta por determinar o seu efetivo alcance no caso concreto. O problema coloca-se, porque, na hipótese em discussão, entenderam assim o ofício de registro de imóveis como o juízo corregedor permanente que o herdeiro, a quem a herança se transmite ipso iure com a morte do de cuius (Cód. Civil, art. 1.784), não pode renunciar ou, o que é o mesmo, tem de aceitar o que veio a seu patrimônio a causa de morte.

Em que pesem à bem fundada nota devolutiva e às boas razões da r. sentença apelada, essa interpretação não é a mais consentânea com o sistema da lei civil e a liberdade que se concede em matéria hereditária. Isso porque, como está no art. 1.813 do Cód. Civil, a existência de credores não impõe ao herdeiro que necessariamente aceite a herança: permite-se, em vez disso, e no seu lugar, que os credores aceitem, mas de nenhuma forma está na Lei que o herdeiro esteja impedido de renunciar – e se tal dever não está criado no Cód. Civil, muito menos aparece como decorrência das indisponibilidades em questão. Segundo a informação posta a fl. 65, com efeito, as indisponibilidades que recaem sobre o herdeiro renunciante advêm, todas elas, de decisões jurisdicionais, proferidas pela Justiça do Trabalho, as quais, portanto, não se fundam em regra nenhuma que abra exceção ao regime geral do Cód. Civil, o qual, repita-se, não impõe dever de aceitação.

Como ensina Pontes de Miranda:

“Em caso de concurso de credores, ou de devedores, a deliberação é segundo os princípios. No direito brasileiro, há o art. 1.586 do Código Civil, onde se diz: ‘Quando o herdeiro prejudicar os seus credores, renunciando a herança, poderão eles, com autorização do juiz, aceitá-la em nome do renunciante. Nesse caso, e depois de pagas as dívidas do renunciante, o remanescente será devolvido aos outros herdeiros’. Noutros sistemas jurídicos parte-se de princípio que colima com a regra jurídica acima transcrita: entende-se que se apoia em pensamento prático não ser influenciada pelos credores a manifestação de vontade do herdeiro” (Tratado de Direito Privado, tomo LV, § 5.590, 4).

“No direito brasileiro, o credor tem a pretensão à adição, a despeito de ter havido a renúncia pelo sucessor. Tem de ser exercida, satisfeitos os pressupostos e produzidas as provas, com o remédio jurídico processual da autorização judicial. O credor pede ao juiz tal autorização. Tem base jurídica exigir-se o rito ordinário, pois é indispensável a citação do renunciante, para a contestação e os demais atos processuais. O renunciante pode alegar e provar que não há insolvabilidade, que o demandante não é credor do que diz, que as dívidas foram posteriores à renúncia. Se o renunciante paga a dívida, ou as dívidas, cessa a demanda. A lei criou direito, pretensão e ação para o credor, se se compõem os requisitos que ela aponta como necessários. Não se trata de inserção do credor na situação jurídica do devedor insolvente e renunciante. Apenas se sub-roga ao renunciante, no que toca ao devedor, razão por que, no inventário e partilha, se legitima a todos os atos que o devedor renunciante tinha de praticar ou poderia praticar. Desde o momento em que se paga de todo o crédito, cessa a legitimação do credor para atos que concernem ao patrimônio ou à parte do patrimônio que seria do renunciante se renúncia não tivesse havido. Não se trata de ‘anulação’ a favor do credor, o que é erronia de alguns juristas (e. g., CARLOS MAXIMILIANO, Direito das Sucessões, 1, 86). Todas as renúncias a herança ficam expostas a essa eventual ineficacização por ter algum credor, ou por terem alguns credores, satisfeitos os pressupostos, exercido o direito de se sub-rogar nos direitos do renunciante, até a importância do que esse lhe devia antes da renúncia. No fundo, a ação do credor é constitutiva negativa, quanto à renúncia pelo devedor, e tem carga de eficácia condenatória, sem que isso altere o rito processual do inventário e da partilha. […] A desconstituição é até o quanto da dívida, ou das dívidas, seja um só o credor, ou sejam dois ou mais os credores. No que excede à soma devida, a eficácia da renúncia não é atingida. O resto vai aos outros sucessores, conforme os princípios, em virtude da permanência abdicativa.” (Pontes de Miranda, op. cit., § 5.592, 9)

Não se ignora, é certo, que tem algo de suspicaz a solução a que chegaram os demais herdeiros e a companheira do falecido, quando, feita a renúncia, aquinhoaram os filhos dos renunciantes com parte do espólio. Se houve aí, entretanto, fraude contra credores ou fraude à execução, esse é ponto que não cabe ao ofício de registro de imóveis conhecer, já porque a matéria extrapola o aspecto formal a que em regra se limita a qualificação registral, já porque qualquer das duas figuras depende de provimento jurisdicional para que se reconheça. De resto, o dever de velar pelos interesses dos beneficiados com a indisponibilidade não é do cartório, mas dos credores, a quem tocará, eventualmente, usar dos remédios jurídicos que possam ter.

A decisão proferida por este Conselho na Apel. Cív. 1121211-55.2015.8.26.0100 (j. 28.11.2017, DJe 26.7.2018), invocada como precedente na nota devolutiva a fl. 04/05, não tem aplicação a este caso, porque se trata de espécies diferentes. Naquele aresto confirmou-se que, tratando-se de consecutivas cessões de direitos sobre o imóvel, a indisponibilidade que pesava em desfavor de um dos cedentes impedia a regularidade da cadeia de transmissões e, por isso, obstava que procedesse ao registro stricto sensu do ato final entre o proprietário e o derradeiro cessionário. Aqui, porém, o problema está em que, segundo se sustenta na nota de exigência, o herdeiro não podia ter renunciado como renunciou. Numa e noutra hipótese, é claro, se cuida de saber se são eficazes (ou mesmo válidos) os atos dependentes daquele praticado por quem estava sob a indisponibilidade. Contudo, isso não basta, como se viu, para dar similaridade a ambas as espécies, porque lá estava certo que se tratava de legitimado que se demitiu de seu patrimônio, cedendo direitos a despeito da indisponibilidade, enquanto aqui se versa situação distinta, ou seja, o caso de um legitimado que, segundo disseram o ofício de registro de imóveis e a sentença, estava obrigado a adquirir, para, então, não poder alienar e, desse modo, não prejudicar seus credores – o que, repita-se, não é a solução da Lei, que permite a renúncia e faculta aos interessados que aceitem em lugar do renunciante.

Em suma: a pendência das indisponibilidades não impedia que o herdeiro renunciasse; a renúncia, portanto, foi válida e eficaz, e não há impedimento a que se proceda, agora, aos registros stricto sensu resultantes da partilha causa mortis.

3. À vista do exposto, pelo meu voto, dou provimento à apelação para, afastando-se o óbice registral e reformando-se a r. sentença, deferir os pretendidos registros stricto sensu da partilha (escritura pública copiada a fl. 10/24; matrículas nºs . 69.164, 92.223 e 111.074 do 2º Oficial de Registro de Imóveis da Comarca de Ribeirão Preto; prenotação 495.086).

RICARDO ANAFE

Corregedor Geral da Justiça e Relator (DJe de 09.08.2021 – SP)

Fonte: DJE/SP

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CSM/SP: Registro de Imóveis – Dúvida – Formal de partilha expedido nos autos de ação de divórcio consensual, com doação de imóvel ao filho – Qualificação negativa – Necessidade de aceitação do donatário maior – Ausência de recolhimento de imposto – Impossibilidade de reconhecimento de decadência do crédito tributário na via administrativa – Exigências mantidas – Recurso não provido.


Apelação Cível nº 1110376-32.2020.8.26.0100

Espécie: APELAÇÃO
Número: 1110376-32.2020.8.26.0100
Comarca: CAPITAL

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

CONSELHO SUPERIOR DA MAGISTRATURA

Apelação Cível nº 1110376-32.2020.8.26.0100

Registro: 2021.0000381023

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível nº 1110376-32.2020.8.26.0100, da Comarca de São Paulo, em que são apelantes RENATO LUÍS DE LINICA GUERRA e MARCELO RICARDO DE LINICA GUERRA, é apelado 10º OFICIAL DE REGISTRO DE IMÓVEIS DA COMARCA DA CAPITAL.

ACORDAM, em Conselho Superior de Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: “Negaram provimento, v.u.”, de conformidade com o voto do Relator, que integra este acórdão.

O julgamento teve a participação dos Exmos. Desembargadores PINHEIRO FRANCO (PRESIDENTE TRIBUNAL DE JUSTIÇA) (Presidente), LUIS SOARES DE MELLO (VICE PRESIDENTE), XAVIER DE AQUINO (DECANO), GUILHERME G. STRENGER (PRES. SEÇÃO DE DIREITO CRIMINAL), MAGALHÃES COELHO(PRES. DA SEÇÃO DE DIREITO PÚBLICO) E DIMAS RUBENS FONSECA (PRES. DA SEÇÃO DE DIREITO PRIVADO).

São Paulo, 19 de maio de 2021.

RICARDO ANAFE

Corregedor Geral da Justiça e Relator

Apelação Cível nº 1110376-32.2020.8.26.0100

Apelantes: Renato Luís de Linica Guerra e Marcelo Ricardo de Linica Guerra

Apelado: 10º Oficial de Registro de Imóveis da Comarca da Capital

VOTO Nº 31.515.

Registro de Imóveis – Dúvida – Formal de partilha expedido nos autos de ação de divórcio consensual, com doação de imóvel ao filho – Qualificação negativa – Necessidade de aceitação do donatário maior – Ausência de recolhimento de imposto – Impossibilidade de reconhecimento de decadência do crédito tributário na via administrativa – Exigências mantidas – Recurso não provido.

1. Trata-se de recurso de apelação interposto por Renato Luis de Linica Guerra Marcelo Ricardo de Linica Guerra contra a sentença que manteve a recusa de registro do formal de partilha expedido nos autos da ação de divórcio consensual (Processo nº 443/93) ajuizada perante a Vara Distrital de Mongaguá da Comarca de Itanhaém/SP, em que figuraram como partes Joaquim Gomes Guerra Filho e Kattarina Brosch Guerra, tendo por objeto o imóvel matriculado sob nº 28.399 do 10º Oficial de Registro de Imóveis de São Paulo, com doação ao filho Adriano Brosch Guerra (fl. 108/119).

Alegam os apelantes, em síntese, que reconhecida a eficácia do formal de partilha para registro da doação, dispensando-se a lavratura da escritura pública, nada mais pode ser exigido. Além disso, não há dúvidas sobre o aceite do donatário, pois sempre esteve na posse do bem até a sua morte, e a questão relativa ao pagamento do imposto devido pela doação está superada pela decadência do crédito tributário.

A douta Procuradoria de Justiça pugnou pelo não provimento do recurso a fl. 139/140.

É o relatório.

2. Pretendem os apelantes o registro do formal de partilha expedido nos autos da ação de divórcio consensual (Processo nº 443/93) de Joaquim Gomes Guerra Filho e Kattarina Brosch Guerra, em que convencionaram a doação do imóvel matriculado sob nº 28.399 ao filho Adriano Brosch Guerra.

O acordo foi homologado judicialmente em 12 de agosto de 1993 (fl. 44) e o trânsito em julgado foi certificado em 27 de agosto de 1993 (fl. 47).

E ao tempo da formalização do acordo o donatário tinha 46 anos de idade (fl. 77).

Os títulos judiciais, cumpre lembrar, não estão isentos de qualificação para ingresso no fólio real. E a qualificação negativa do título judicial não caracteriza desobediência ou descumprimento de decisão judicial.

No exercício desse dever, o Oficial encontrou óbice ao registro do formal de partilha. Então, ao emitir a nota de devolução (fl. 83) que deu ensejo ao presente procedimento de dúvida, consignou que: “Conforme se verifica das folhas homologadas pela r. sentença proferida em 12 de agosto de 1993, com relação ao imóvel da matrícula nº 28.399, ficou estipulado entre os cônjuges que: “doarão referido imóvel ao filho remanescente Adriano Brosch Guerra, doação esta que será feita com reserva do usufruto vitalício dos cônjuges…”. Portanto, para que seja possível o registro, necessário a formalização da doação por escritura pública, nos termos do artigo 108, do Código Civil.”

Suscitada a dúvida, a pedido dos apresentantes, o Oficial, em suas razões, reafirmou que houve apenas promessa de doação, daí a imprescindibilidade da escritura pública, e, ainda que fosse possível o registro do título apresentado, apontou a necessidade de expressa aceitação do donatário maior para o aperfeiçoamento da doação, a comprovação do pagamento do correspondente imposto e a complementação dos elementos de identificação do beneficiário (fl. 01/02).

Ao ser julgada a dúvida, a MM. Juíza Corregedora Permanente afastou os óbices relativos à escritura pública e qualificação do donatário, mantendo, contudo, as exigências do aceite do beneficiário e recolhimento do tributo (fl. 99/102).

A controvérsia, pois, cinge-se à possibilidade de registro do formal de partilha sem a necessidade da aceitação expressa do donatário maior de idade e recolhimento do correspondente imposto devido pela doação.

A doação é o contrato pelo qual uma das partes transfere bens ou vantagens de sua propriedade para o patrimônio da outra, decorrente de sua própria vontade e sem qualquer contraprestação (art. 1.165 do Código Civil de 1916; art. 538 do atual Código Civil).

A aceitação do beneficiário é elemento essencial para o aperfeiçoamento da doação.

Do título apresentado, não se extrai esse consentimento indispensável à perfectibilização do contrato.

E essa exigência, por sua vez, não é afastada pela morte do donatário.

Importante observar a natureza administrativa do procedimento de dúvida, que se limita à análise das questões pertinentes à registrabilidade do título, vedada, nesta seara, discussão relativa aos seus elementos intrínsecos, cujo exame somente pode ser feito na via judicial.

Inviável, portanto, na qualificação do título levado a registro, a interpretação da vontade das partes, não sendo possível ao Registrador afastar-se do exame do título.

Logo, diante dos estreitos limites deste procedimento administrativo de dúvida registrária, não há como ser reconhecida a alegada aceitação tácita derivada do comportamento adotado pelo beneficiário.

De outra parte, o Oficial de Registro tem o dever de fiscalizar o pagamento dos impostos devidos por força dos atos que lhe forem apresentados em razão do ofício e dentre estes impostos se encontra o relativo à doação, cuja prova do recolhimento, ou isenção, deve instruir o formal de partilha.

É o que dispõe o art. 289 da Lei nº 6.015/73:

“Art. 289. No exercício de suas funções, cumpre aos oficiais de registro fazer rigorosa fiscalização do pagamento dos impostos devidos por força dos atos que lhes forem apresentados em razão do ofício.”

A omissão do titular da delegação pode, inclusive, levar à sua responsabilidade solidária no pagamento do tributo, nos termos do art. 134, VI, do Código Tributário Nacional. Vale destacar, neste ponto, precedente deste Conselho Superior da Magistratura:

“REGISTRO DE IMÓVEIS. Formal de Partilha. Ausência de comprovação de recolhimento de Imposto de Transmissão causa mortis-ITCMD. Dever do Oficial de velar pelo seu recolhimento, exigindo a apresentação das respectivas guias, o que não ocorreu em relação a todos os herdeiros. Ausência de discussão quanto ao acerto do cálculo, mas sim ao não recolhimento do tributo, mesmo em valor supostamente inferior ao devido. Cindibilidade do título. Impossibilidade. Indeterminação do que tenha sido partilhado e a quem. Recurso desprovido.” (TJSP; Apelação Cível 1000506-36.2018.8.26.0128; Relator (a): Pinheiro Franco (Corregedor Geral); Órgão Julgador: Conselho Superior de Magistratura; Foro de Cardoso – Vara Única; Data do Julgamento: 23/11/2018; Data de Registro: 06/12/2018).

Inexistente tal prova, correta a recusa manifestada pelo Oficial ao registro do título porque não tem, entre suas atribuições, a de reconhecer a decadência do crédito tributário.

A decadência do crédito tributário não pode ser reconhecida no procedimento de dúvida, tendo em vista sua natureza administrativa, bem como pelo fato de que dele não participa o credor tributário, que é o titular do direito que seria declarado extinto.

Nesse sentido:

“REGISTRO DE IMÓVEIS. TRIBUTOS. IMPOSSIBILIDADE DO EXAME DE PRESCRIÇÃO E DECADÊNCIA NO ÂMBITO DA QUALIFICAÇÃO REGISTRAL. DEVER DO OFICIAL EM EXIGIR A PROVA DO PAGAMENTO DO ITBI. ESPECIALIDADE OBJETIVA. DESCRIÇÃO DO IMÓVEL IMPRECISA SEM POSSIBILIDADE DE COMPREENDER SUA EXATA LOCALIZAÇÃO. NECESSIDADE DE APURAÇÃO DO REMANESCENTE QUE NÃO PODE SER SUPRIDA POR LAUDO DE AVALIAÇÃO. RECURSO NÃO PROVIDO.” (TJSP; Apelação Cível 1000908-70.2019.8.26.0100; Relator (a): Pinheiro Franco (Corregedor Geral); Órgão Julgador: Conselho Superior de Magistratura; Comarca de São Paulo; Data do Julgamento: 09/08/2019; Data de Registro: 28/08/2019).

3. À vista do exposto, nega-se provimento à apelação.

RICARDO ANAFE

Corregedor Geral da Justiça e Relator (DJe de 09.08.2021 – SP)

Fonte: DJE/SP

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