STJ: O Superior Tribunal de Justiça e os conflitos sobre cotas para pretos e pardos em concursos públicos e outras seleções.


O acesso a oportunidades de estudo e trabalho por meio da reserva de vagas em concursos públicos e seleções para instituições de ensino – como no caso do Sisu – é um tema em constante debate no Brasil, especialmente após a aprovação da Lei 12.711/2012, conhecida como Lei de Cotas.

A partir dessa norma, a adoção da política nacional de cotas foi difundida para que os governos estaduais criassem modelos semelhantes em suas próprias universidades. Paralelamente, novos regramentos surgiram para garantir a reserva de vagas a candidatos negros em certames do Poder Executivo (Lei 12.990/2014) e do Poder Judiciário (Resolução 203/2015 do Conselho Nacional de Justiça).

Nos anos subsequentes à publicação da Lei 12.711/2012, a sua abrangência foi ampliada para novos grupos sociais vulneráveis, até chegar à situação atual em que são contemplados pretos, pardos, indígenas, quilombolas e pessoas com deficiência, além de estudantes de baixa renda provenientes de escolas públicas.

Algumas leis surgidas nesse período previam um prazo para reavaliação das políticas de cotas. Quanto à seleção para as instituições de educação superior, o reexame originou a Lei 14.723/2023, a qual incluiu os quilombolas e reduziu o teto de renda exigido dos estudantes mais pobres para acesso às vagas. No caso da Lei 12.990/2014 – ainda em vigor por decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) –, as discussões estão em andamento no Congresso Nacional, por meio do PL 1.958/2021.

Ao longo de todo esse processo de institucionalização das ações afirmativas, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem atuado para dirimir conflitos na aplicação das regras de cotas, especialmente aquelas destinadas a compensar a discriminação contra a população negra. Esta matéria reúne alguns dos julgados mais recentes da corte a respeito de divergências na identificação racial de candidatos e outras controvérsias sobre os direitos legalmente assegurados a pretos e pardos.

Autodeclaração indeferida não elimina candidato de ampla concorrência

Além de solucionar divergências jurídicas em torno das cotas, os precedentes do tribunal são levados em consideração nas discussões sobre a atualização legislativa. Um exemplo disso é o PL 1.958/2021, que incorpora a posição da corte no sentido de que o candidato pode disputar as vagas destinadas à ampla concorrência mesmo que tenha a sua autodeclaração racial indeferida.

A Primeira Turma firmou esse entendimento em novembro de 2024, ao julgar o REsp 2.105.250, de relatoria do ministro Sérgio Kukina. No caso, o colegiado anulou uma decisão do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF2) para restaurar o mandado de segurança que garantiu vaga a um candidato na Escola Preparatória de Cadetes do Ar (Epcar).

De acordo com o processo, o candidato alegou que era negro, mas a banca de heteroidentificação não homologou a autodeclaração e o eliminou do certame, embora ele também tivesse obtido classificação dentro das vagas destinadas à ampla concorrência.

Kukina avaliou que o edital do concurso deve ser interpretado em sintonia com as disposições do caput e do parágrafo único do artigo 2º da Lei 12.990/2014, os quais preveem que a não homologação da autodeclaração do candidato implica apenas sua eliminação do certame em relação às vagas reservadas.

Para o relator, a análise das comissões de heteroidentificação tem certo grau de subjetividade, de modo que é natural haver divergência de opiniões diante de cada caso concreto.

“Tomando-se o princípio da razoabilidade como congruência, a não homologação de uma autodeclaração não imputa a esta, de forma automática, a pecha de falsa, sob pena, inclusive, de se estar a presumir a má-fé do candidato”, destacou o ministro.

A atuação das comissões de heteroidentificação – importantes para evitar fraudes na autodeclaração dos candidatos – é alvo de constantes questionamentos no STJ e no STF.

Candidato excluído por comissão não prevista teve vaga assegurada

No julgamento do MS 24.589, em novembro de 2020, sob a relatoria do ministro Napoleão Nunes Maia Filho (aposentado), a Corte Especial definiu que “é legal, em concurso público, o estabelecimento de critério adicional à própria autodeclaração para o enquadramento nas vagas reservadas aos candidatos negros. Isso porque o STF já decidiu que, a fim de garantir a efetividade da política em questão, também é constitucional a instituição de mecanismos para evitar fraudes pelos candidatos”.

Isso não significa, porém, que a organização do concurso seja livre para instituir uma nova fase da seleção em andamento, sem previsão no edital – ainda que a pretexto de coibir tentativas de fraude nas autodeclarações.

Em 2018, ao julgar o RMS 54.907, a Primeira Turma, por maioria de votos, assegurou vaga em cota racial para um candidato excluído de concurso por comissão não prevista no edital. Ele concorria ao cargo de analista judiciário no Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT) e preencheu a autodeclaração como preto ou pardo, tendo sido informado de que essa condição poderia ser objeto de procedimento de verificação.

Após o candidato obter êxito nas provas, um novo edital o convocou para se submeter a uma entrevista de verificação da condição declarada, ocasião em que ele foi excluído do certame sob a alegação de que não atendia aos critérios para ser enquadrado no fenótipo justificador da reserva de vagas.

O relator do recurso do candidato, ministro Sérgio Kukina, reconheceu ser legítimo o uso de critérios subsidiários para a verificação da condição declarada, mas disse que, no caso, as regras do concurso não poderiam ter sido modificadas com o certame em andamento.

“A posterior implementação de uma fase específica para tal finalidade, não prevista no edital inaugural e com o certame já em andamento, não se revestiu da necessária higidez jurídica, não se podendo, na seara dos concursos públicos, atribuir validade a cláusula editalícia supostamente implícita, quando seu conteúdo possa operar em desfavor do candidato”, salientou o magistrado.

Regras sobre cotas se sujeitam ao princípio da vinculação ao edital

Um caso parecido, envolvendo um aluno cotista da Universidade Federal de Pelotas, foi julgado pela Segunda Turma em agosto de 2019. O colegiado manteve a decisão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4) que considerou nula a exclusão do aluno por, supostamente, não se enquadrar nos requisitos estipulados pela instituição para preenchimento das vagas reservadas.

Ao analisar o processo, que tramitava em segredo de justiça, o ministro Og Fernandes, relator, verificou que o aluno foi aprovado para o curso escolhido pelo sistema de cotas, autodeclarando-se pardo. Só no ano seguinte, porém, a instituição editou uma portaria que estabeleceu o critério fenotípico para análise da autodeclaração e dispensou a avaliação de critérios relacionados à ancestralidade do declarante.

Ainda que válida a utilização de parâmetros outros que não a tão só autodeclaração do candidato, há de se garantir, no correspondente processo seletivo, a observância dos princípios da vinculação ao edital, da legítima confiança do administrado e da segurança jurídica.

Processo em segredo de justiça

Ministro Og Fernandes

De acordo com o relator, a decisão de segunda instância foi correta, pois a disputa de cargos públicos reservados pelo critério da cota racial admite o uso de parâmetros diversos que não apenas a autodeclaração do candidato, mas é preciso observar os princípios da vinculação ao edital, da legítima confiança do administrado e da segurança jurídica.

“O princípio da vinculação ao instrumento convocatório impõe o respeito às regras previamente estipuladas por ambas as partes, as quais não podem ser modificadas com o certame já em andamento ou quando já finalizado”, afirmou Og Fernandes.

Comissão de heteroidentificação deve observar fenótipo do candidato

Em outubro de 2023, a Primeira Turma do STJ reiterou que o critério das comissões para a confirmação do direito à concorrência especial deve se basear no fenótipo, e não meramente no genótipo – ou seja, na ancestralidade do candidato (RMS 69.978).

O fenótipo se refere às características visíveis de uma pessoa, como cor da pele, textura do cabelo e traços faciais. O genótipo, por sua vez, considera a composição genética, que inclui informação sobre seus ancestrais e herança genética.

O julgamento, sob a relatoria do ministro Paulo Sérgio Domingues, seguiu a mesma posição adotada pela Segunda Turma no AREsp 1.407.431, em maio de 2019. Nesse caso, o ministro Mauro Campbell Marques, relator, lembrou que o entendimento já havia sido firmado pelo STF na ADPF 186.

“O STF validou o fenótipo como critério definidor do direito à concorrência especial, autorizando em princípio que essa afirmação fosse feita por autodeclaração do candidato, mas submetida, fosse o caso, a um procedimento de validação por comissão especial do certame”, registrou.

MS não é a via processual adequada para contestar parecer de comissão

Ainda em relação à atuação das comissões de heteroidentificação, a Primeira Turma decidiu que é inadequado o uso do mandado de segurança para a defesa de candidato que pretende continuar concorrendo em concurso público na cota reservada para pessoas pretas ou pardas, quando a banca não confirma a sua autodeclaração racial.

O entendimento foi firmado em recurso em mandado de segurança (RMS 58.785) interposto por candidato que teve sua autodeclaração invalidada em um concurso público. Ele havia se declarado pardo, mas a condição não foi confirmada pela comissão examinadora, mesmo após apreciação de recurso administrativo instruído com fotos e laudos emitidos por dermatologistas.

O ministro Sérgio Kukina, relator do processo, apontou duas razões que explicam a inadequação do uso do mandado de segurança. A primeira delas é que o parecer emitido pela comissão, quanto ao fenótipo do candidato, tem, em princípio, natureza de declaração oficial, com fé pública, e por isso não pode ser anulado senão mediante qualificada e robusta contraprova.

Em segundo lugar, o relator ressaltou que o impetrante qualifica como “subjetiva” a avaliação da comissão, ao argumento de que outras pessoas com características fenotípicas semelhantes à sua tiveram chanceladas suas autodeclarações. Para Kukina, entretanto, não é possível, de fato, estabelecer parâmetros absolutos, objetivamente aferíveis ou numericamente mensuráveis sobre o assunto.

Cotas devem ser observadas em todas as fases do concurso

No julgamento do REsp 2.076.494, em abril de 2024, a Primeira Turma reformou acórdão do TJDFT e garantiu a reserva de vagas para candidatos negros em todas as etapas do concurso para os cargos de escrivão e agente da Polícia Civil do Distrito Federal.

Por meio de ação civil pública, o Ministério Público sustentou que os candidatos negros aprovados na prova objetiva, com pontuação suficiente para ter a sua prova discursiva corrigida nas vagas de ampla concorrência, deveriam ser contabilizados apenas na lista geral, abrindo espaço para que mais pessoas negras avançassem no certame pela lista de cotistas. O TJDFT, porém, negou o pedido por avaliar que, nos termos da Lei 12.990/2014, esse entendimento se aplicaria apenas ao resultado final do concurso, e não às fases classificatórias e eliminatórias.

Os percentuais de reserva de vagas para candidatos negros devem ser aplicados em todas as fases do certame, e em relação a todas aquelas oferecidas no concurso, de modo a promover, ao máximo, a política pública em tela.

REsp 2.076.494

Ministra Regina Helena Costa

A relatora do caso, ministra Regina Helena Costa, observou que a Lei 12.990/2014 prevê a reserva para candidatos negros de 20% das vagas em concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração federal.

Especificamente em seu artigo 3º – continuou a relatora –, a lei explicita que “os candidatos negros concorrerão concomitantemente às vagas reservadas e às vagas destinadas à ampla concorrência, de acordo com a sua classificação no concurso”.

Conforme Regina Helena Costa, a constitucionalidade da lei foi reconhecida pelo STF na ADC 41. No julgamento, a Suprema Corte afirmou que os percentuais de reserva de vagas para pessoas negras devem ser aplicados em todas as fases do certame, de modo a promover, com máxima efetividade, a política pública de cotas.

Garantia ao contraditório e à ampla defesa após exclusão de candidato

Em dezembro de 2019, a Segunda Turma determinou que a comissão do concurso para ingresso na magistratura do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) abrisse prazo para a apresentação de pedido de reconsideração da decisão que excluiu um candidato das vagas reservadas ao sistema de cotas.

Deve-se entender, em consonância com a orientação que se consolidou no Supremo, que a exclusão do candidato pelo critério da heteroidentificação, seja pela constatação de fraude, seja pela aferição do fenótipo ou qualquer outro fundamento, exige o franqueamento do contraditório e da ampla defesa.

RMS 62.040

Ministro Herman Benjamin

No julgamento do RMS 62.040, o colegiado entendeu que, nos procedimentos destinados a selecionar quem tem ou não direito a concorrer às vagas reservadas, deve-se garantir o direito ao contraditório e à ampla defesa. Com isso, tanto as declarações dos candidatos quanto os atos dos entes que promovem a seleção devem se sujeitar a algum tipo de controle.

Segundo o ministro Herman Benjamin, relator do caso, o edital do concurso trouxe uma disposição nula ao prever que o julgamento da comissão teria força de “decisão terminativa sobre a veracidade da autodeclaração”.

“Como, no caso dos autos, a própria comissão do concurso exerceu a função de verificar as características fenotípicas dos candidatos autodeclarantes, o contraditório e a ampla defesa poderão ser exercidos por meio de pedido de reconsideração”, decidiu o ministro.

Esta notícia refere-se ao(s) processo(s):

REsp 2105250

MS 24589

RMS 54907

RMS 69978

AREsp 1407431

RMS 58785

REsp 2076494

RMS 62040

Fonte: Superior Tribunal de Justiça.

Publicação: Portal do RI (Registro de Imóveis) | O Portal das informações notariais, registrais e imobiliárias!

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1VRP/SP: RCPJ. Espólio não é sujeito de direito e deveres, porquanto sequer pode ser considerado é pessoa, não podendo celebrar contrato de sociedade ou nela figurar como sócio.


Processo 1041992-41.2025.8.26.0100
Pedido de Providências – Registro civil de Pessoas Jurídicas – JS Oliveira Empreendimentos e Participacoes S C Ltda – Diante do exposto, JULGO PROCEDENTE o pedido de providências, para manter o óbice registrário. Deste procedimento não decorrem custas, despesas processuais ou honorários advocatícios. Oportunamente, ao arquivo. P.R.I.C. – ADV: RODRIGO FORLANI LOPES (OAB 253133/SP), GILBERTO CIPULLO (OAB 24921/SP), NATHÁLIA PINESSO RIGUEIRO PARRON (OAB 336678/SP)
Íntegra da decisão:
SENTENÇA
Processo nº: 1041992-41.2025.8.26.0100
Classe – Assunto Pedido de Providências – Registro civil de Pessoas Jurídicas
Requerente: 4º Oficial de Registro de Títulos e Documentos e Civil de Pessoa Jurídica da Capital
Requerido: JS Oliveira Empreendimentos e Participações S C Ltda
Juíza de Direito: Dra. Renata Pinto Lima Zanetta
Vistos.
Trata-se de pedido de providências formulado pelo 4º Oficial de Registro de Títulos e Documentos e Civil de Pessoa Jurídica de São Paulo, a requerimento de JS Oliveira Empreendimentos e Participações S/C Ltda., diante de negativa em se proceder a averbação de instrumento particular de alteração e consolidação do contrato social.
O Oficial informa que foi apresentada para averbação o instrumento particular de alteração de contrato social posterior ao falecimento do sócio Joaquim dos Santos Oliveira, pela qual as cotas pertencentes aos antigos sócios José Manoel Mendes Fernandes e Antônio Josué dos Santos Oliveira seriam transferidas ao espólio de Joaquim dos Santos Oliveira, de modo que esse espólio permaneceria no quadro societário, como único sócio da sociedade; que a averbação foi recusada por sucessivas notas devolutivas, uma vez que, conforme entendimento já pacificado nesta 1ª Vara de Registros Públicos da Capital, o espólio não pode figurar como sócio de pessoa jurídica; que, ademais, as cotas titularizadas pelos sócios José Manoel Mendes Fernandes e Antônio Josué dos Santos Oliveira teriam sido transferidas ao espólio de Joaquim dos Santos Oliveira por meio de instrumento particular de cessão de quotas (no primeiro caso) e de ação de dissolução parcial de sociedade (no segundo caso) sem que tenham sido apresentados a registro os documentos pertinentes a cada uma dessas operações societárias; que, inconformada, a parte suscitada requereu a reconsideração da devolutiva; que nada obstante, os motivos da recusa devem prevalecer, visto que o espólio não tem personalidade jurídica e não é uma pessoa apta a ser titular de direitos e obrigações, não podendo figurar como sócio de pessoa jurídica, por lhe faltar a essência de qualquer pessoa, que é a vontade; que o fato juridicamente relevante para o caso é que a transferência de cotas dependeria, para sua consumação, da apresentação a registro dos documentos pertinentes para a formalização da averbação registral da respectiva transferência, não sendo suficiente, para fins registrais, a eventual existência de uma decisão judicial desacompanhada do consequente instrumento de alteração do contrato social, em conformidade com o artigo 1.003 do Código Civil; que na época da suposta transferência de cotas, era necessária a anuência do outro sócio que não participou da operação, o qual veio a falecer posteriormente, daí porque, agora, a eventual pretensão de averbação de alteração contratual decorrente daquela antiga transação dependeria do suprimento judicial da vontade do sócio remanescente que faleceu; que em relação aos efeitos da ação de dissolução de sociedade, cujos documentos formais também não foram apresentados para a respectiva consumação registral, há situação semelhante de inviabilidade de apresentação do instrumento de alteração do contrato social, já que o sócio que deveria assinar tal documento faleceu; que na época oportuna, tanto o sócio retirante como os sócios remanescentes deixaram de formalizar a alteração do contrato social que seria resultante da ação de dissolução parcial da sociedade; que não se mostra suficiente a anuência do inventariante do espólio de Joaquim dos Santos Oliveira, já que o inventariante não é sócio, assim como nem mesmo o espólio pode ser considerado sócio com direito a tomada de decisões sobre os rumos da sociedade; que o espólio tem, a rigor, um mero direito de crédito contra a sociedade, que deve ser pago pela sociedade aos herdeiros do falecido ou pode haver o ingresso dos herdeiros na sociedade como forma de quitação dessa dívida; que antes de ingressarem na sociedade como sócios, os herdeiros do falecido sócio não têm o direito de interferir nas operações da sociedade, deliberar sobre questões societárias, tampouco o inventariante; que compete somente aos sócios decidirem sobre a nomeação de administradores não sócios, consoante artigo 1.061 do Código Civil; que, como se pode constatar, a sociedade encontra-se numa situação de acefalia administrativa, em face do falecimento do sócio Joaquim dos Santos Oliveira e das supostas retiradas dos sócios José Manoel e Antônio Josué dos Santos Oliveira; que para sanar a situação, a forma mais simples seria que os herdeiros do falecido sócio que tenham interesse em ingressar na sociedade firmassem, juntamente com os sócios retirantes, um instrumento de alteração do contrato social, tratando de todas as operações societárias ocorridas, que abrangem o falecimento de Joaquim dos Santos Oliveira e as retiradas de José Manoel e de Antônio Josué dos Santos Oliveira, deliberando sobre o destino das cotas sociais em razão de cada uma dessas operações societárias e culminando por apontar o novo quadro societário e respectiva distribuição das cotas sociais; que outro caminho seria nomeação judicial de administrador provisório, nos termos do artigo 49 do Código Civil, enquanto não finalizado o inventário com a destinação das cotas do sócio falecido; que, neste contexto, os óbices apontados, conforme notas devolutivas, devem ser mantidos (fls. 01/05).
Documentos vieram às fls. 06/40.
Em impugnação apresentada nos autos, a parte interessada aduziu que a averbação buscada foi recusada em duas ocasiões, por meio de notas devolutivas (prenotação n. 437.923, de 06 de janeiro de 2025 e prenotação n. 438.936, de 30 de janeiro de 2025), nas quais se apontou que espólios não poderiam figurar como sócios de pessoa jurídica e, ainda, que as cotas antes titularizadas pelos sócios José Manoel Mendes Fernandes e Antônio Josué dos Santos Oliveira foram transferidas a Joaquim sem que esses atos tenham sido apresentados a registro, o que, todavia, não procede; que é permitido ao espólio do sócio, por intermédio de seu inventariante (no caso, Ricardo Linhares Oliveira), atuar em prol da sociedade, visando o cumprimento de seu objeto social e o atingimento da função social; que a herança, nos termos dos artigos 1784 e 1791 do Código Civil, defere-se como um todo unitário e se transmite aos herdeiros com a abertura da sucessão, ou seja, ocorreu desde o momento do falecimento de Joaquim de Oliveira Santos, em julho de 2021; que a transmissão patrimonial no momento do falecimento do titular anterior (princípio da saisine) corresponde a sub-rogação pessoal, cujo objetivo no momento do falecimento é apenas o de não permitir que o patrimônio do falecido fique sem titularidade; que em relação a participações societárias, o artigo 1.028 do Código Civil dispõe que o falecimento do sócio não implica em imediata inclusão de seus sucessores na sociedade, de forma que, enquanto não finalizado o procedimento de inventário, o sócio falecido é substituído por seu espólio, representado pelo seu inventariante, a quem incumbe a administração dos bens, nos termos dos artigos 618 e 619 do Código de Processo Civil; que no caso de condomínio de quota, os direitos a ela inerentes somente podem ser exercidos pelo condômino representante, ou pelo inventariante do espólio de sócio falecido; que apesar do inventariante não ser elevado à categoria de sócio, incumbe a ele nos termos do artigo 1.056, § 1º, do Código Civil, o exercício dos direitos inerentes às quotas; que as deliberações societárias após o falecimento de sócio e antes da partilha devem ser operacionalizas por seu inventariante, devendo ser analisadas pelo prisma dos atos ordinários de gestão, destinados à conservação e à preservação do patrimônio hereditário consubstanciado nas quotas sociais; que, quanto à exigência formulada pelo Oficial para que o instrumento particular de compra e venda de participação societária firmado entre os Joaquim e o antigo sócio José Manoel, bem como a redistribuição das cotas até então pertencentes ao terceiro sócio, sejam ratificadas pelo Juízo da 11ª Vara de Família e Sucessões do Foro Central da Capital, onde se processa o inventário dos bens deixados pelo sócio Joaquim dos Santos Oliveira, é desnecessária; que a Vara de Família e Sucessões não é competente para julgar nenhuma outra demanda que não seja a tramitação dos autos do inventário de Joaquim dos Santos Oliveira e, ademais, o referido instrumento já está assinado por ambas as partes e devidamente quitado; que a alteração contratual pretendida é, tão somente, a formalização jurídica de um ato já consumado; que a ausência de qualquer medida judicial ou extrajudicial, bem como a inexistência de atos de cobrança pelo credor original ou por seus sucessores (visto que José Manuel também já é falecido), confirmam que qualquer pretensão decorrente do contrato de venda e compra de participação societária foi irremediavelmente alcançada pela prescrição e, consequentemente não há que se falar em suprimento judicial de vontade; que existe procuração pública outorgada por Joaquim aos três filhos vivos – Marcia, Leandro e Ricardo Linhares (este último, inventariantes) -, com prazo de validade indeterminado, na qual consta a outorga poderes de administração da empresa a eles, de forma que o desejo por materializar, formalizar e registrar os atos já consumados da sociedade não encontram nenhum tipo de impedimento, sendo desnecessário aguardar a partilha de bens; que, nesses termos, requer o afastamento dos óbices apontados pelo Oficial (fls. 46/57). Juntou documentos (fls. 58/160).
O Ministério Público ofertou parecer, opinando pela manutenção dos óbices (fls. 163/165).
É o relatório. FUNDAMENTO e DECIDO.
De proêmio, cumpre ressaltar que o Registrador dispõe de autonomia e independência no exercício de suas atribuições, podendo recusar títulos que entender contrários à ordem jurídica e aos princípios que regem sua atividade (artigo 28 da Lei n. 8.935/1994), o que não se traduz como falha funcional.
No sistema registral, vigora o princípio da legalidade estrita, pelo qual somente se admite o ingresso de título que atenda aos ditames legais. Por isso, o Oficial, quando da qualificação registral, perfaz exame dos elementos extrínsecos do título à luz dos princípios e normas do sistema jurídico (aspectos formais), devendo obstar o ingresso daqueles que não se atenham aos limites da lei.
É o que se extrai do item 13, Cap. XVIII, das NSCGJ: “Deverá ser recusado registro a título, documento ou papel que não se revista das formalidades legais exigíveis, devendo a respectiva nota devolutiva indicar, de modo claro, objetivo e fundamentado o vício obstativo do registro e eventuais exigências para regularização”.
No mérito, o pedido é procedente, para manter o óbice.
No caso concreto, constata-se que a parte suscitada pretende a averbação, junto ao 4º Registro de Títulos e Documentos e Civil de Pessoa Jurídica de São Paulo, do instrumento particular de alteração de contrato social da JS Oliveira Empreendimentos e Participações SC Ltda., formalizado em 27 de novembro de 2024, por meio do qual o espólio de Joaquim dos Santos Oliveira figuraria como único sócio (fls. 14/18).
Feita a qualificação registrária, o Oficial emitiu nota de devolução apontando a impossibilidade de o espólio figurar como sócio da pessoa jurídica, por não deter personalidade jurídica (fls. 06/07).
Pois bem.
O artigo 1.028 do Código Civil assim dispõe:
“Art. 1.028. No caso de morte de sócio, liquidar-se-á sua quota, salvo: I – se o contrato dispuser diferentemente;
II – se os sócios remanescentes optarem pela dissolução da sociedade; III – se, por acordo com os herdeiros, regular-se a substituição do sócio falecido”.
Por sua vez, o artigo 1.031 do Código Civil preconiza:
“Art. 1.031. Nos casos em que a sociedade se resolver em relação a um sócio, o valor da sua quota, considerada pelo montante efetivamente realizado, liquidar-se-á, salvo disposição contratual em contrário, com base na situação patrimonial da sociedade, à data da resolução, verificada em balanço especialmente levantado”.
É inafastável a aplicação do princípio da saisine, nos exatos termos do artigo 1.784 do Código Civil, já que, aberta a sucessão, a herança se transmite desde logo aos herdeiros, independentemente das previsões que constam do contrato social
Com efeito, não se pode confundir capacidade postulatória com capacidade jurídica. A capacidade postulatória refere-se à possibilidade de estar em juízo, pleiteando direito próprio ou defendendo-se contra pretensão de outrem. A capacidade jurídica, por seu turno, tem natureza material, vinculada à capacidade de ser parte em relação jurídica de direito material, tal como participar ou não de quadro societário.
Tais institutos, a rigor, não se confundem.
Nessa linha de ideias, o artigo 981 do Código Civil é expresso ao prever que “celebram contrato de sociedade as pessoas que reciprocamente se obrigam a contribuir, com bens ou serviços, para o exercício de atividade econômica e a partilha, entre si, dos resultados”.
À evidência, espólio não é sujeito de direito e deveres, porquanto sequer pode ser considerado é pessoa, não podendo celebrar contrato de sociedade ou nela figurar como sócio.
Na espécie, denota-se que o instrumento particular de alteração de contrato social da JS Oliveira Empreendimentos e Participações SC Ltda. foi formalizado posteriormente ao falecimento do sócio Joaquim dos Santos Oliveira e, por meio do ato, as cotas pertencentes aos antigos sócios José Manoel Mendes Fernandes e Antônio Josué dos Santos Oliveira seriam transferidas ao Espólio de Joaquim dos Santos Oliveira, de forma que o espólio permaneceria no quadro societário como único sócio.
Sucede que, como discorrido, o ingresso no quadro societário e a participação nas deliberações sociais dependem de ato de subscrição praticado por pessoa física ou jurídica, dotada de personalidade jurídica, não podendo o espólio atuar neste âmbito.
Na lição do eminente Desembargador Marcelo Fortes Barbosa Filho, em comentário ao artigo 1.028 do Código Civil:
“Assim, morto o sócio, propõe-se, como regra geral, o empreendimento de uma resolução parcial do contrato celebrado, provocando, na forma do disposto no art. 1.031, a liquidação isolada e singular de sua quota social. Aos herdeiros é atribuído, mediante a redução do capital social, o valor correspondente à quota do de cujus, preservado o restante. Apesar de desfalcado seu acervo patrimonial, a sociedade sobrevive. Há, porém, três circunstâncias exceptivas, perante as quais outra solução será adotada. Num primeiro plano, caso os sócios entendam ser inviável a manutenção do ajuste, a dissolução da sociedade e a extinção da pessoa jurídica serão irremediáveis, devendo ser sopesada, aqui, fundamentalmente, a importância da quota social ou, caso se trate de sócio de serviço, da atuação do falecido. Num segundo plano, podem já ter sido inseridas, no contrato social, com a finalidade de fornecer segurança quanto a futuros procedimentos, por meio de cláusula específica, regras concretas e incidentes, conforme a vontade coletiva consolidada, sempre diante da morte de um dos sócios, podendo-se imaginar, dentre as variações viáveis, a aquisição, por meio do pagamento de um valor fixo, da quota pelos demais sócios ou a amortização da quota, mediante a capitalização de reservas, pela pessoa jurídica. Num terceiro plano, os sócios remanescentes e os sucessores podem celebrar um acordo e viabilizar a admissão pura e simples de determinado sucessor ou de todos os herdeiros como sócios ou, ainda, de um terceiro, operando-se a substituição do falecido. Nos dois últimos casos, restará, enfim, mantida a integridade não somente da personalidade jurídica da sociedade, mas, também, do capital social.” (Código Civil Comentado, Doutrina e Jurisprudência. Coordenador Ministro Cezar Peluso, Ed. Manole, 2024, p. 963)
Nesse sentido, o parecer exarado pelo MM. Juiz Assessor da Corregedoria, Dr. Paulo César Batista dos Santos, aprovado pelo então Corregedor Geral da Justiça, Dr. Geraldo Francisco Pinheiro Franco, nos autos do processo CGJ n. 1110650- 98.2017.8.26.0100:
“REGISTRO CIVIL DE PESSOAS JURÍDICAS. Pretensão de averbação de alteração contratual, para inclusão de espólio como sócio. Inviabilidade da averbação. As quotas sociais que pertenciam ao sócio falecido agora integram a herança e foram transmitidas aos herdeiros. Impossibilidade de participação do espólio no quadro societário. Recurso desprovido”.
Finalmente, é importante destacar que, em caso de eventuais irregularidades na sociedade ou conflitos de interesses, a matéria deve ser debatida na via judicial, com respeito ao contraditório.
Portanto, mostra-se correta a nota devolutiva apresentada pelo Oficial.
Diante do exposto, JULGO PROCEDENTE o pedido de providências, para manter o óbice registrário.
Deste procedimento não decorrem custas, despesas processuais ou honorários advocatícios.
Oportunamente, ao arquivo. P.R.I.C.

São Paulo, 15 de abril de 2025.
Renata Pinto Lima Zanetta  – Juíza de Direito.

Fonte: DJE/SP – 23.04.2025.

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