STJ: Recurso Extraordinário – Direito Civil – Venda de título da dívida agrária decorrente de desapropriação de imóvel rural dos cônjuges – Desnecessidade de outorga uxória para a disposição de direito pessoal – Validade do negócio jurídico – Ofensa reflexa à Constituição Federal – Matéria infraconstitucional – Recurso não admitido.


  
 

RE no AgInt no RECURSO ESPECIAL Nº 1911277 – PR (2020/0329591-3)

RELATOR : MINISTRO JORGE MUSSI

RECORRENTE : DEUZELITA GNATA FERNANDES

ADVOGADO : THIAGO MOURÃO DE ARAUJO – PR042152

RECORRIDO : SERAFIM RODRIGUES DE MORAES NETO

ADVOGADO : RICARDO LOPES TEIXEIRA – GO015192

RECORRIDO : WALTEMIR FERNANDES

ADVOGADO : SEM REPRESENTAÇÃO NOS AUTOS – SE000000M

EMENTA

RECURSO EXTRAORDINÁRIO. DIREITO CIVIL. VENDA DE TÍTULO DA DÍVIDA AGRÁRIA DECORRENTE DE DESAPROPRIAÇÃO DE IMÓVEL RURAL DOS CÔNJUGES. DESNECESSIDADE DE OUTORGA UXÓRIA PARA A DISPOSIÇÃO DE DIREITO PESSOAL. VALIDADE DO NEGÓCIO JURÍDICO. OFENSA REFLEXA À CONSTITUIÇÃO FEDERAL. MATÉRIA INFRACONSTITUCIONAL. RECURSO NÃO ADMITIDO.

DECISÃO – Decisão selecionada e originalmente divulgada pelo INR  –

Trata-se de recurso extraordinário interposto por DEUZELITA GNATA FERNANDES, com fundamento no art. 102, III, a, da Constituição Federal, contra acórdão deste Superior Tribunal de Justiça, assim ementado (e-STJ fl. 478):

AGRAVO INTERNO. RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL CIVIL. AUSÊNCIA DE AFRONTA AO ARTIGO 1.022, II, DO CPC/2015. TRANSFERÊNCIA COMPULSÓRIA DE IMÓVEL REALIZADA MEDIANTE PAGAMENTO COM TÍTULOS DA DÍVIDA AGRÁRIA – TDAs. DIREITO PESSOAL/OBRIGACIONAL. INEXIGÊNCIA DE OUTORGA UXÓRIA PARA A DISPOSIÇÃO DE DIREITO PESSOAL. INCIDÊNCIA DA SÚMULA 83/STJ. SUPOSTA AMEAÇA AO DIREITO DE MEAÇÃO. INCIDÊNCIA DA SÚMULA 7/STJ. DECISÃO MANTIDA. RECURSO NÃO PROVIDO.

1. Não há violação aos arts. 489 e 1.022 do Código de Processo Civil/2015 se o Tribunal de origem julga a controvérsia de forma suficientemente fundamentada, embora contrariamente aos interesses da parte recorrente.

2. O recurso especial é inviável quando o tribunal de origem decide em consonância com a jurisprudência do STJ (Súmula 83/STJ).

3. Não cabe, em recurso especial, reexaminar matéria fático-probatória (Súmula n. 7/STJ).

4. Agravo interno a que se nega provimento.

Sustenta a recorrente a existência de repercussão geral da matéria impugnada e aponta a violação dos arts. 5º, I, XXII e 226, § 5º, da Constituição Federal.

Afirma que, sem a devida outorga uxória, seria nulo o negócio jurídico de venda de títulos da dívida agrágria decorrentes de desapropriação de imóvel rural pertencente ao ex-casal, tendo em vista que “se trata de hipótese de alienação de bens que se sub-rogam na qualidade de bens imóveis” (e-STJ fl. 495), fazendo-se imprescindível a autorização legal do outro cônjuge, nos termos do art. 1.647, I, do Código Civil.

Reforça que “se a alienação do bem imóvel demandaria a autorização da recorrente para se operar, não há dúvidas que a alienação do bem sub-rogado (TDAs) deve obedecer ao mesmo comando” (e-STJ fl. 497).

Defende que os óbices descritos nos enunciados sumulares n. 7/STJ e n. 83/STJ não poderiam incidir na hipótese dos autos.

Ressalta que os julgados citados no acórdão recorrido como representativos do entendimento deste Sodalício sobre o tema, não coincidem com o caso em comento.

Requer, ao final, a admissão do recurso e sua remessa ao Supremo Tribunal Federal.

As contrarrazões foram apresentadas às e-STJ fls. 509/522.

É o relatório.

Compulsando-se os autos, verifica-se que a controvérsia cinge-se à questão da necessidade, ou não, da outorga uxória da recorrente para conferir validade ao negócio jurídico de venda de títulos da dívida agrária decorrentes de desapropriação de imóvel rural que pertencia aos cônjuges, estando o acórdão recorrido assim fundamentado (e-STJ fls. 481/487):

O agravo interno não merece prosperar.

Em que pesem as razões exaradas no presente recurso, reforço que a modificação do acórdão recorrido demanda o reexame do conjunto fáticoprobatório dos autos.

Cumpre reproduzir a decisão agravada, que segue mantida por seus próprios fundamentos:

[…]

Ao solucionar a controvérsia, o Tribunal de origem assim dispôs:

A sentença recorrida deve ser mantida.

Observa-se que a tese defendida pela apelante é de que os Títulos de Dívida Agrária expedidos em decorrência do processo de desapropriação sub-rogam o imóvel desapropriado e, assim, devem obedecer ao mesmo comando legal para a hipótese de alienação de imóvel pertencente ao casal, exigindo-se a outorga uxória disciplinada no art. 1.647, inciso I, do Código Civil.

A referida disposição legal mencionada determina a obrigatoriedade da autorização do cônjuge para atos civis que detenham implicações significativas no patrimônio do casal, justamente visando proteger o patrimônio do cônjuge não anuente.

[…]

Outrossim, a exigência da outorga conjugal está adstrita às hipóteses elencadas no próprio art. 1.647, CC.

Vejamos:

Art. 1.647. Ressalvado o disposto no art. 1.648, nenhum dos cônjuges pode, sem autorização do outro, exceto no regime da separação absoluta:

I – alienar ou gravar de ônus real os bens imóveis;

II – pleitear, como autor ou réu, acerca desses bens ou direitos;

III – prestar fiança ou aval;

IV – fazer doação, não sendo remuneratória, de bens comuns, ou dos que possam integrar futura meação.

Assim, a lei não exige a outorga conjugal para prática de todo e qualquer negócio jurídico realizado por um dos consortes, mas apenas naqueles casos que se amoldam às hipóteses inseridas no art. 1.647 do Código Civil.

E no caso concreto, a compra e venda levada a efeito pelos réus não se enquadra a nenhuma das hipóteses do dispositivo legal supracitado, sendo descabida a sua aplicação até mesmo por analogia. Veja-se que com o processo de desapropriação do imóvel pertencente ao casal ocorreu a perda da propriedade em razão do interesse do Estado, ocorrendo a transferência compulsória da propriedade particular para o domínio público, mediante prévia e justa indenização.

A indenização justa, no caso vertente, foi definida através da sentença proferida na ação de desapropriação para fins de reforma agrária nº 2008.36.00.008238-6 proferida pelo Juízo da 2ª Vara Federal de Sinop/MT (mov. 1.10). […].

Embora não conste nos autos cópia da matrícula do imóvel, é certo que com a desapropriação e a fixação de justa indenização, é incontroversa a perda da propriedade pela autora e seu ex-cônjuge, bem como a transferência do domínio ao Estado.

Tal como ocorre nos negócios jurídicos de simples compra e venda de imóveis, uma vez pago o preço ajustado e averbada a transferência da propriedade junto à matrícula do imóvel, o extinto proprietário nada mais poderá reivindicar sobre o bem. No caso concreto, a transferência compulsória do bem de propriedade do casal ao Estado ocorreu mediante o pagamento de indenização ajustada parte em dinheiro e parte em títulos de dívida agrária (TDAs) (mov. 1.7).

O que pretende a autora apelante é conferir aos títulos emitidos para fins de indenização a mesma proteção conferida pelo art. 1.647, do CC ao imóvel que antes pertencia ao casal.

Ocorre que referidos títulos da dívida pública nada mais são do que parte do preço ajustado pela transferência compulsória do imóvel, não podendo subentendê-los como bem imóvel, sendo evidente que eventual renegociação de tais títulos não esbarra em qualquer das hipóteses previstas no art. 1.647, do CC.

Somente se poderia falar em inalienabilidade dos TDAs caso o imóvel objeto da desapropriação estivesse gravado com cláusula de inalienabilidade, hipótese em que a mesma restrição poderia incidir sobre referidos títulos, tal como estabelece o art. 1.911, parágrafo primeiro, do CC.

[…].

De mais a mais, como bem observado pelo magistrado na sentença recorrida, a compra dos títulos a quo pelo réu apelado não representa nenhuma ameaça ao patrimônio partilhável que seria atribuído à autora, visto que a quantidade de TDAs adquiridas por aquele representa parcela evidentemente inferior à quantidade que a autora apelante faz jus na partilha dos bens que integram o patrimônio do casal.

[…] E assim, não se verificando qualquer abuso de direito no negócio jurídico entabulado entre os réus ou até mesmo violação indireta aos direitos da autora apelante, ante o princípio da boa-fé objetiva esculpido no art. 422 do Código Civil, o “Contrato de Compra e Venda de Direitos Creditórios de Processo de Desapropriação Pelo Incra” é válido e independe de outorga uxória.

O acórdão recorrido está em consonância com a jurisprudência do STJ, para a qual a natureza jurídica das TDAs é de bem móvel, sendo que a sua alienação não encontra óbice nas hipóteses do art. 1.647, do Código Civil. Nesse sentido:

[…]

Ademais, a Segunda Seção do STJ possui entendimento no sentido de que, em se tratando de direito pessoal/obrigacional como a compra e venda realizada na espécie, não se revela necessária a outorga marital ou uxória para o negócio ter validade. Confira-se:

[…]

Cumpre ressaltar, quanto à outorga uxória, que “Se, de um lado, mostra-se louvável a intenção do legislador de proteger o patrimônio da família; de outro, há de ser ela balizada pela proteção ao terceiro de boa-fé, à luz dos princípios que regem as relações cambiárias” (REsp 1644334/SC, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, DJe 23/8/2018), e na espécie, o Tribunal de origem foi categórico em afirmar que “a compra dos títulos a quo pelo réu apelado não representa nenhuma ameaça ao patrimônio partilhável que seria atribuído à autora, visto que a quantidade de TDAs adquiridas por aquele representa parcela evidentemente inferior à quantidade que a autora apelante faz jus na partilha dos bens que integram o patrimônio do casal”, premissa que, a par da aplicação do princípio pas de nullité sans grief, não pode ser revista em sede de recurso especial em razão da Súmula 7/STJ.

Em face do exposto, nego provimento ao recurso especial.

Nos termos do art. 85, § 11, do CPC/15, majoro em 10% (dez por cento) a quantia já arbitrada a título de honorários em favor da parte recorrida, observados os limites estabelecidos nos §§ 2º e 3º do mesmo artigo.

Intimem-se.

Desse modo, a análise da matéria ventilada depende do exame dos arts. 422, 1.647, I, do Código Civil, razão pela qual eventual ofensa à Constituição Federal, se houvesse, seria reflexa ou indireta, não legitimando a interposição do apelo extremo.

Ante o exposto, com fundamento no art. 1.030, V, do Código de Processo Civil, não se admite o recurso extraordinário.

Publique-se.

Intimem-se.

Brasília, 16 de março de 2022.

MINISTRO JORGE MUSSI

Vice-Presidente – – /

Dados do processo:

STJ – RE no AgInt no REsp nº 1.911.277 – Paraná – Rel. Min. Jorge Mussi – DJ 17.03.2022

Fonte: INR – Publicações

Publicação: Portal do RI (Registro de Imóveis) | O Portal das informações notariais, registrais e imobiliárias.

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