CSM/SP: Registro de imóveis – Dúvida – Recusa em registrar escritura pública de doação com reserva de usufruto com cláusulas restritivas em face da inexistência de indicação de justa causa – Inteligência dos arts. 1.848, “CAPUT” e 2.042 do código civil – Aplicação das exigências legais contemporâneas ao registro – ITCMD – Dever do oficial de registro de velar pelo recolhimento do tributo – Impossibilidade de reconhecimento de compensação, isenção ou dispensa do tributo na estreita via administrativa – Recurso desprovido.

Apelação Cível nº 1026118-04.2021.8.26.0602

Espécie: APELAÇÃO

Número: 1026118-04.2021.8.26.0602

Comarca: SOROCABA

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

CONSELHO SUPERIOR DA MAGISTRATURA

Apelação Cível nº 1026118-04.2021.8.26.0602

Registro: 2022.0000909928

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível nº 1026118-04.2021.8.26.0602, da Comarca de Sorocaba, em que é apelante OLGA APARECIDA DOS SANTOS, é apelado 2º OFICIAL DE REGISTRO DE IMÓVEIS E ANEXOS DA COMARCA DE SOROCABA.

ACORDAM, em Conselho Superior da Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: “Negaram provimento, v.u.”, de conformidade com o voto do Relator, que integra este acórdão.

O julgamento teve a participação dos Exmos. Desembargadores RICARDO ANAFE (PRESIDENTE TRIBUNAL DE JUSTIÇA) (Presidente), GUILHERME GONÇALVES STRENGER (VICE PRESIDENTE), XAVIER DE AQUINO (DECANO), BERETTA DA SILVEIRA (PRES. DA SEÇÃO DE DIREITO PRIVADO), WANDERLEY JOSÉ FEDERIGHI(PRES. DA SEÇÃO DE DIREITO PÚBLICO) E FRANCISCO BRUNO (PRES. SEÇÃO DE DIREITO CRIMINAL).

São Paulo, 26 de outubro de 2022.

FERNANDO ANTONIO TORRES GARCIA

Corregedor Geral da Justiça e Relator

APELAÇÃO CÍVEL nº 1026118-04.2021.8.26.0602

APELANTE: Olga Aparecida dos Santos

APELADO: 2º Oficial de Registro de Imóveis e Anexos da Comarca de Sorocaba

VOTO Nº 38.825-– Texto selecionado e originalmente divulgado pelo INR –

Registro de imóveis – Dúvida – Recusa em registrar escritura pública de doação com reserva de usufruto com cláusulas restritivas em face da inexistência de indicação de justa causa – Inteligência dos arts. 1.848, “CAPUT” e 2.042 do código civil – Aplicação das exigências legais contemporâneas ao registro – ITCMD – Dever do oficial de registro de velar pelo recolhimento do tributo – Impossibilidade de reconhecimento de compensação, isenção ou dispensa do tributo na estreita via administrativa – Recurso desprovido.

Cuida-se de apelação interposta por OLGA APARECIDA DOS SANTOS contra a r. Sentença (fls. 52/54) que julgou procedente a dúvida suscitada pelo 2º Oficial de Registro de Imóveis, Títulos e Documentos e Civil de Pessoas Jurídicas da Comarca de Sorocaba, mantendo-se os óbices registrários.

A Nota de Exigência (fls. 23) indicou como motivos de recusa do ingresso do título:

“1. Constar da Escritura se a doação é da meação disponível ou o justo motivo pelo qual foi gravado com as cláusulas.

2. Apresentar prova do recolhimento do ITCMD”.

Sustenta a recorrente, em suma, que não se aplica ao caso o disposto no artigo 848, do Código Civil, uma vez que a doação configura ato jurídico perfeito, consumado em 1998, quando não se exigia justa causa para a inserção de cláusulas de inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade. Por fim, sustenta a desnecessidade de recolhimento do ITCMD, uma vez ter sido recolhido o tributo exigido à época da lavratura do ato notarial.

A D. Procuradoria Geral de Justiça opinou pelo desprovimento do recurso (fls. 84/88).

É o relatório.

O recurso não merece provimento.

Trata-se de registro de escritura pública de doação com reserva de usufruto, gravada com as cláusulas de inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade, lavrada em 16 de fevereiro de 1998 perante o Registro Civil e Tabelião de Notas da Comarca de Jandira, prenotada em 14 de maio de 2021 no 2º Oficial de Registro de Imóveis, Títulos e Documentos e Civil de Pessoas Jurídicas da Comarca de Sorocaba.

Por meio de referido ato notarial Francisco Israel dos Santos e Olga Teodora dos Santos doaram, dentre outros, o imóvel matriculado sob o n.º 11.698, no 2º Oficial de Registro de Imóveis, Títulos e Documentos e Civil de Pessoas Jurídicas da Comarca de Sorocaba, à apelante e outros, com reserva de usufruto para si e imposição de cláusulas restritivas de inalienabilidade, incomunicabilidade e impenhorabilidade (fls. 24/31).

O registro do título foi negado, nos termos da nota devolutiva de fls. 23, objeto da dúvida, julgada procedente (fls. 52/54).

A qualificação registral visa verificar se o registro de determinado título pode ser promovido em conformidade com os princípios e as normas aplicáveis na data em que admitido seu ingresso, pois como esclarece Afrânio de Carvalho:

“A apresentação do título e a sua prenotação no protocolo marcam o início do processo do registro, que prossegue com o exame de sua legalidade, que incumbe ao registrador empreender para verificar se pode ou não ser inscrito. A inscrição não é, portanto, automática, mas seletiva, porque depende da verificação prévia de estar o título em ordem. Além de a qualificação do título constituir um dever de ofício, o registrador tem interesse em efetuá-la com cuidado, porquanto, se lançar uma inscrição ilegal, fica sujeito à responsabilidade civil.” (Registro de Imóveis, 4ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 276).

Logo, não importa o momento da lavratura do ato notarial, pois é na data da sua apresentação ao registro que será analisado, em atenção ao princípio “tempus regit actum”, sujeitando-se o título à lei vigente ao tempo de sua apresentação na Serventia Imobiliária.

Nesta ordem de ideias, irrelevante que a escritura pública telada tenha sido lavrada sob a égide do Código Civil de 1916, ocasião em que a justa causa para instituição das referidas cláusulas era dispensável, nos termos que estipulava o artigo 1.676, daquele Diploma Legal, uma vez que o título foi levado a registro em 2021, quando em vigor o Código Civil de 2002.

À luz do artigo 1.245, do Código Civil, a transferência de propriedade imóvel entre vivos (in casu, a doação) é feita mediante o registro do título translativo no Registro de Imóveis, destacando-se que, na hipótese, ao tempo da transferência, já estava em vigor o Código Civil de 2002, que exige a indicação da justa causa à validade das cláusulas restritivas.

Fixadas estas premissa, consoante dispõe o artigo 544, do Código Civil:

“A doação de ascendentes a descendentes, ou de um cônjuge a outro, importa adiantamento do que lhes cabe por herança.”

Assim, ausente, no ato notarial telado, menção à inclusão dos bens doados entre os que compõem a parte disponível, presume-se o adiantamento da legítima, nos termos do artigo 2.005, do Código Civil, in verbis:

“Art. 2.005. São dispensadas da colação as doações que o doador determinar saiam da parte disponível, contanto que não a excedam, computado o seu valor ao tempo da doação.”

O artigo 1.848, do Código Civil, por seu turno, estabelece que:

“Salvo se houver justa causa, declarada no testamento, não pode o testador estabelecer cláusula de inalienabilidade, impenhorabilidade, e de incomunicabilidade, sobre os bens da legítima.”

Daí se infere, pois, que a imposição de cláusulas restritivas sobre bens da legítima afigura-se admissível apenas com a declaração de justa causa no testamento.

Sobre os bens que compõem a parte disponível, não há restrição.

A despeito da ausência de previsão legal expressa, a partir da interpretação sistêmica ao artigo 544, do Código Civil, importando a doação, no caso telado, em adiantamento da legítima, referidas cláusulas restritivas apenas poderão ser impostas quando ocorra, a tanto, causa justificadora.

No ponto, relevante trazer os comentários de Mauro Antonini ao artigo 1848, do Código Civil:

“(…) o art. 1.848 não faz menção à necessidade de indicação de justa causa na doação. A despeito da falta de previsão legal expressa, a solução mais acertada parece ser considerar necessária a declaração de justa causa também na doação, quando represente adiantamento de legítima. A não se adotar tal entendimento, o doador, por meio de doação, conseguiria burlar a restrição do art. 1.848. Sendo a doação de ascendentes a descendentes, ou de um cônjuge a outro, adiantamento da legítima, por expressa previsão do art. 544, não há sentido em dar tratamento legal diferenciado à limitação da clausulação da legítima por testamento ou por doação. A coerência do sistema exige solução uniforme.”[1]

Entendimento diverso abriria a possibilidade de burla à restrição legal, bastando que o titular dos bens os doasse em vida aos filhos, para que pudesse gravá-los sem nenhuma justificativa.

Foi, nesse sentido, o entendimento deste C. Conselho Superior da Magistratura, exarado no v. acórdão de relatoria do então Corregedor Geral da Justiça, DESEMBARGADOR MAURÍCIO VIDIGAL, cuja ementa assim se transcreve:

“Registro de Imóveis – Dúvida – Recusa do Oficial em registrar escritura pública de doação com reserva de usufruto – Cláusulas restritivas – Inexistência de indicação de justa causa – Inteligência dos arts. 1.848, “caput”, e 2042 do Código Civil – Nulidade – Cindibilidade do título – Precedentes do Conselho Superior – Registro da escritura de doação, desconsiderada a cláusula restritiva – Recurso provido” (Apelação Cível nº 0024268-85.2010.8.26.0320).

Do corpo do r. Acórdão extrai-se que:

“Manifesta, pois, a intenção de o legislador reduzir os poderes do testador em relação à legítima. Por essa razão, presente a mesma “ratio legis” (“Ubi eadem ratio ibi idem ius”), não há como afastar a aplicação extensiva do art. 1848, “caput”, às doações feitas aos herdeiros, consideradas adiantamento de legítima (art. 544, do Código Civil). Não fosse assim, estaria aberta a via para burlar a restrição imposta pelo art. 1848, “caput”: bastaria que o titular dos bens os doasse em vida aos filhos, para que pudesse gravá-los sem nenhuma justificativa.

O Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo, em acórdão de 03 de março de 2009, Rel. Des. Luiz Antonio de Godoy, proferido na apelação cível no. 613.184-4/8-00 concluiu: “…com o advento do Código Civil de 2002, estabeleceu-se nova regra acerca da possibilidade de previsão de cláusula de inalienabilidade em seu art. 1848, “caput”… Insta ressaltar que, conforme corretamente anotado na sentença, referido dispositivo é, também, aplicável à doação considerada adiantamento de legítima, como se verifica na presente hipótese. A despeito de a doação ter ocorrido à época da vigência do Código Civil de 1916, não há como negar que a hipótese se enquadra no art. 2042, do Código Civil de 2002, que viabiliza a incidência do texto do art. 1848, “caput”, acima referido.”

Ultrapassado este ponto, incumbe ao Oficial de Registro a fiscalização do recolhimento dos impostos devidos por força dos atos que lhe forem apresentados.

É o que dispõe o artigo 289, da Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973:

“Art. 289 No exercício de suas funções, cumpre aos oficiais de registro fazer rigorosa fiscalização do pagamento dos impostos devidos por força dos atos que lhes forem apresentados em razão do oficio.”

A omissão do delegatário pode levar à sua responsabilidade solidária no pagamento do tributo (artigo 134, VI, do Código Tributário Nacional).

Aduz a ora apelante, no entanto, que à época da lavratura do ato notarial foi recolhido o imposto de transmissão.

Em se tratando do imposto sobre a transmissão de bens ou direitos, mediante doação, o fato gerador ocorrerá, no tocante aos bens imóveis, pela efetiva transcrição realizada no registro de imóveis.

Assim, a comprovação do pagamento é devida com lastro na lei em vigor sobre o ITCMD – Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação de Quaisquer Bens ou Direitos, qual seja, a Lei Estadual nº 10.705, de 28 de dezembro de 2000.

Não cabe ao registrador, pois, determinar se é caso de compensação, isenção ou dispensa do tributo, o que somente cabe ao órgão tributante, que deverá emitir documento neste sentido para viabilizar o registro.

Nesse cenário, portanto, não há como se concluir pela superação dos óbices apontados pelo Registrador.

Ante o exposto, pelo meu voto, nego provimento ao recurso.

FERNANDO ANTONIO TORRES GARCIA

Corregedor Geral da Justiça e Relator

NOTA:

[1] in Código Civil Comentado doutrina e jurisprudência, Coord. Min. Cezar Peluso: Comentários ao art. 1.848, fl. 1.837 /1.838. (DJe de 08.02.2023 – SP)

Fonte: INR Publicações.

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CSM/SP: Registro de imóveis – Escritura pública de doação – Qualificação negativa – Doador, representado, já falecido ao tempo da lavratura do ato – Mandato extinto (artigo 682, II, do código civil) – Mandatárias e donatária cientes do falecimento do mandante – Inaplicabilidade do artigo 674 do código civil – Princípio da legalidade – Apelação a que se nega provimento.

Apelação Cível nº 1128111-44.2021.8.26.0100

Espécie: APELAÇÃO

Número: 1128111-44.2021.8.26.0100

Comarca: CAPITAL

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

CONSELHO SUPERIOR DA MAGISTRATURA

Apelação Cível nº 1128111-44.2021.8.26.0100

Registro: 2022.0000926729

ACÓRDÃO-– Texto selecionado e originalmente divulgado pelo INR –

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível nº 1128111-44.2021.8.26.0100, da Comarca de São Paulo, em que é apelante CLAUDIA BEATRIZ SANTOS DA COSTA CRUZ, é apelado 5° OFICIAL DE REGISTRO DE IMÓVEIS DA COMARCA DE SÃO PAULO.

ACORDAM, em Conselho Superior da Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: “Negaram provimento, v.u.”, de conformidade com o voto do Relator, que integra este acórdão.

O julgamento teve a participação dos Exmos. Desembargadores RICARDO ANAFE (PRESIDENTE TRIBUNAL DE JUSTIÇA) (Presidente), GUILHERME GONÇALVES STRENGER (VICE PRESIDENTE), XAVIER DE AQUINO (DECANO), BERETTA DA SILVEIRA (PRES. DA SEÇÃO DE DIREITO PRIVADO), WANDERLEY JOSÉ FEDERIGHI(PRES. DA SEÇÃO DE DIREITO PÚBLICO) E FRANCISCO BRUNO (PRES. SEÇÃO DE DIREITO CRIMINAL).

São Paulo, 3 de novembro de 2022.

FERNANDO ANTONIO TORRES GARCIA

Corregedor Geral da Justiça e Relator

APELAÇÃO CÍVEL nº 1128111-44.2021.8.26.0100

APELANTE: Claudia Beatriz Santos da Costa Cruz

APELADO: 5° Oficial de Registro de Imóveis da Comarca de São Paulo

VOTO Nº 38.830

Registro de imóveis – Escritura pública de doação – Qualificação negativa – Doador, representado, já falecido ao tempo da lavratura do ato – Mandato extinto (artigo 682, II, do código civil) – Mandatárias e donatária cientes do falecimento do mandante – Inaplicabilidade do artigo 674 do código civil – Princípio da legalidade – Apelação a que se nega provimento.

Trata-se de apelação interposta por Claudia Beatriz Santos da Costa Cruz contra a r. sentença proferida pela MM. Juíza Corregedora Permanente do 5º Oficial de Registro de Imóveis da Comarca de São Paulo, que julgou procedente a dúvida suscitada e manteve a recusa do registro da escritura pública de doação por meio da qual Gastão Urbano Maia Filho, representado por Cláudia Beatriz Santos da Costa Cruz e Sissi Rocha de Miranda Ferreira, doou a Jussara Diniz Costa os imóveis objetos das matrículas nºs 10.589, 34.514 e 47.940, da referida serventia extrajudicial (fls. 87/89).

Nas razões recursais, após sustentar que a r. decisão prolatada pela MM. Juíza Corregedora Permanente abordou questões até então não discutidas no procedimento de dúvida registral relativas à imprescindibilidade da escritura pública para doação de imóvel de valor superior a 30 salários mínimos e tecer argumentos sobre a registrabilidade do contrato particular de doação, reafirma a recorrente, em síntese, a incontestável vontade do doador, formalizada por meio do ajuste particular de doação, a autorizar a ultimação dessa vontade com a outorga da escritura pública de doação pelas mandatárias, regularmente constituídas e nos limites dos poderes conferidos, pouco importando, a tal tempo, o falecimento do mandante, posto que o cumprimento do mandato se deu com lastro no artigo 674, do Código Civil. Pugna, ao final, pela reforma do r. decisório, com a consequente inscrição almejada (fls. 95/103).

A douta Procuradoria Geral de Justiça opinou pelo não provimento do recurso (fls. 126/128).

É o relatório.

De antemão, impende consignar que tanto o MM. Juiz Corregedor Permanente quanto este Colendo Conselho Superior da Magistratura, ao apreciarem as questões apresentadas no procedimento de dúvida, devem examinar todos os aspectos da legalidade do título.

Como se usa dizer no jargão registral (não sem alguma hipérbole, é verdade), no julgamento da dúvida a qualificação do título é devolvida por inteiro ao órgão para tanto competente, sem que disso decorra decisão extra petita ou violação do contraditório e ampla defesa, como decidido por este órgão colegiado na Apelação Cível nº 33.111-0/3, da Comarca de Limeira, em v. acórdão de que foi relator o DESEMBARGADOR MÁRCIO MARTINS BONILHA:

“Inicialmente, cabe ressaltar a natureza administrativa do procedimento da dúvida, que não se sujeita, assim, aos efeitos da imutabilidade material da sentença. Portanto, nesse procedimento há a possibilidade de revisão dos atos praticados, seja pela própria autoridade administrativa, seja pela instância revisora, até mesmo de ofício (cf. Ap. Civ. 10.880-0/3, da Comarca de Sorocaba). Não vai nisso qualquer ofensa ao direito de ampla defesa e muito menos se suprime um grau do julgamento administrativo. O exame qualificador do título, tanto pelo oficial delegado, como por seu Corregedor Permanente, ou até mesmo em sede recursal, deve necessariamente ser completo e exaustivo, visando escoimar todo e qualquer vício impeditivo de acesso ao cadastro predial. Possível, portanto, a requalificação do título nesta sede, ainda que de ofício, podendo ser levantados óbices até o momento não argüidos, ou ser reexaminado fundamento da sentença, até para alteração de sua parte dispositiva” (in “Revista de Direito Imobiliário”, 39/339).

Apresentada a registro a escritura pública de doação (fls. 08/11), o Oficial, ao qualificar o título, encontrou óbices ao seu ingresso no álbum registral (fls. 18/19), que remanesceram mantidos pela MM. Juíza Corregedora Permanente (fls. 87/89).

Esse é o título submetido à qualificação registral e sobre o qual recairá a requalificação nesta oportunidade, tornando assim despiciendo adentrar nos questionamentos trazidos pela recorrente acerca da registrabilidade do contrato particular de doação, apenas referido na escritura pública.

A doação é “o contrato em que uma pessoa, por liberalidade, transfere do seu patrimônio bens ou vantagens para o de outra” (artigo 538, do Código Civil).

Relativamente à norma referida, leciona Nelson Rosenvald:

“A doação é uma relação jurídica (contrato) pela qual uma pessoa física ou jurídica (doador ou benfeitor) assume a obrigação de transferir um bem jurídico ou uma vantagem para o patrimônio de outra pessoa (donatário ou beneficiário), decorrente de sua própria vontade e sem qualquer contraprestação. Fixadas essas premissas conceituais, exsurgem, com clarividência, os demais elementos caracterizadores da doação, ao lado de sua natureza negocial: i) o animus donandi (intenção do doador de praticar liberalidade); ii) a transferência de bens ou vantagens em favor do donatário; iii) a aceitação de quem recebe (que não precisa, necessariamente, ser expressa). A doação, destarte, consubstancia uma conjugação de elemento subjetivo e objetivo. Trata-se de uma simbiose entre a vontade do doador de realizar a liberalidade (além da vontade do donatário de receber o benefício) e a efetiva transferência do patrimônio transmitido” (Código Civil Comentado: doutrina e jurisprudência. Coordenador Ministro Cezar Peluso. 14 ª ed. São Paulo: Manole, 2020, p. 579).

No que concerne à transferência, far-se-á a doação pela forma escrita, mediante escritura pública ou instrumento particular (artigo 541, caput, do Código Civil), ou verbalmente, quando tiver como objeto bens móveis de pequeno valor (artigo 541, parágrafo único, do Código Civil).

E quando a transferência de bens ou vantagens do patrimônio do doador para o do donatário recair sobre imóvel cujo valor supere o equivalente a 30 salários mínimos, deve observar a forma solene, efetivando-se mediante escritura pública, sob pena de nulidade (artigos 108 e 166, IV, do Código Civil).

Nesse sentido:

“Registro de Imóveis – Dúvida – Doação – Objeto cujo valor é superior a 30 salários mínimos – Necessidade de formalização por meio de escritura pública – Inteligência do art. 108 do Código Civil – Dúvida procedente – Recurso não provido.” (TJSP; Apelação Cível 1094074-88.2021.8.26.0100; Rel. DES. FERNANDO ANTÔNIO TORRES GARCIA (Corregedor Geral); Órgão Julgador: Conselho Superior de Magistratura; Comarca de São Paulo; Data do Julgamento: 04/04/2022).

E assim foi feito.

As partes contratantes celebraram escritura pública de doação por meio da qual Gastão Urbano Maia Filho, representado por Cláudia Beatriz Santos da Costa Cruz e Sissi Rocha de Miranda Ferreira, doou a Jussara Diniz Costa os imóveis objetos das matrículas nºs 10.589, 34.514 e 47.940, do 5º Oficial de Registro de Imóveis da Comarca de São Paulo.

A procuração pública outorgada por Gastão Urbano Maia Filho a Cláudia Beatriz Santos da Costa Cruz e Sissi Rocha de Miranda Ferreira conferiu poderes “para o fim especial de receber através de compra e venda, permuta, doação ou qualquer outra forma de aquisição, e, posteriormente, DOAR os imóveis a seguir descritos ou a parte que lhe couber em favor de JUSSARA DINIZ COSTA…” (fls. 46/48).

Ocorre que, aos 28 de julho de 2021, quando da lavratura da escritura pública de doação, o doador Gastão Urbano Maia Filho já era falecido, e, nos termos do artigo 682, II, do Código Civil, estava extinto o mandato outorgado a Cláudia Beatriz Santos da Costa Cruz e Sissi Rocha de Miranda Ferreira aos 03 de dezembro de 2019.

O artigo 682, II, do Código Civil disciplina:

“Art. 682. Cessa o mandato:

(…)

II – pela morte ou interdição de uma das partes;

(…)”

Frise-se que a causa extintiva do mandato a morte era de pleno conhecimento das mandatárias e da beneficiária do ato de liberalidade, pois a donatária era mulher do doador, qualificando-se, inclusive, como viúva.

E não era mesmo o caso de, excepcionalmente, atribuir eficácia ao mandato após a morte do mandante, consoante o disposto no artigo 674, do Código Civil:

“Art. 674. Embora ciente da morte, interdição ou mudança de estado do mandante, deve o mandatário concluir o negócio já começado, se houver perigo na demora”.

Para que o mandatário, a despeito da extinção do mandato, esteja legitimado a ultimar a sua execução, de rigor a presença de dois pressupostos, como ensina Claudio Luiz Bueno de Godoy:

“Um, à evidência, se se menciona conclusão do negócio, está em que a execução do mandato deve ter sido iniciada. Outro, o de que sua interrupção possa trazer prejuízo ao mandante ou seus sucessores, o que se quer evitar, como imperativo de lealdade que permeia as relações obrigacionais”. (Código Civil Comentado: doutrina e jurisprudência. Coordenador Ministro Cezar Peluso. 14ª ed. São Paulo: Manole, 2020, p. 702).

E tais pressupostos não se realizaram na hipótese em testilha, apesar do consignado na escritura pública: “feita em cumprimento ao Contrato Particular de Doação firmado em 02/12/2019, não levado a registro junto ao Registro Imobiliário competente, o que fica expressamente dispensado em virtude desta Escritura, com fundamento no Artigo 674 do Código Civil Brasileiro” (fls. 08/11).

Com efeito, ao tempo da morte do mandante (sabe-se apenas que o falecimento se deu no ano de 2021 e foi anterior ao dia 28 de julho de 2021), não havia qualquer negócio iniciado pelas mandatárias a autorizar o cumprimento integral do mandato, se evidenciado o periculum.

O mencionado contrato particular de doação foi encetado aos 02 de dezembro de 2019, ao passo que o mandato aos 03 de dezembro de 2019.

Logo, as mandatárias, cientes da causa extintiva, não deveriam ter iniciado a execução do mandato.

No mais, as questões abordadas sobre a comunicação dos bens adquiridos na constância do casamento sob o regime da separação obrigatória (doador e donatária foram casados e o regime de bens era o da separação obrigatória) e o direito à herança devem ser tratadas na seara própria, extrapolando o que era necessário ser analisado para o desfecho do processo de dúvida registral, de natureza administrativa (artigo 204 da Lei nº 6.015/1973).

Nessa ordem de ideias, em observância ao princípio da legalidade norteador da atividade registral, a escritura pública de doação não reúne os requisitos legais para o acesso ao fólio real.

Ante o exposto, pelo meu voto, nego provimento à apelação.

FERNANDO ANTONIO TORRES GARCIA

Corregedor Geral da Justiça e Relator (DJe de 08.02.2023 – SP)

Fonte: INR Publicações.

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1VRP/SP: Registro de Imóveis. ITCMD. Cancelamento, renúncia ou morte do usufrutuário: não é possível exigir o pagamento de tributo sem lei que o institua.

Processo 1006295-27.2023.8.26.0100

Pedido de Providências – Registro de Imóveis – Elizabeth Cotait Maluf – Diante do exposto, JULGO IMPROCEDENTE o pedido para afastar a exigência de comprovação de complementação do ITCMD para averbação da extinção do usufruto. Deste procedimento não decorrem custas, despesas processuais ou honorários advocatícios. Oportunamente, remetam-se os autos ao arquivo. P.R.I.C. – ADV: ALEXANDRE FONSECA DE MELLO (OAB 222219/SP), LEANDRO MENDONÇA DE OLIVEIRA (OAB 275498/SP), ELLEN GARCIA DOS SANTOS (OAB 336257/SP)

Íntegra da decisão:

SENTENÇA

Processo Digital nº: 1006295-27.2023.8.26.0100

Classe – Assunto Pedido de Providências – Registro de Imóveis

Requerente: 13º Registro de Imóveis

Requerido: Elizabeth Cotait Maluf e outro

Juiz(a) de Direito: Dr(a). Luciana Carone Nucci Eugênio Mahuad

Vistos.

Trata-se de pedido de providências formulado pelo Oficial do 13º Registro de Imóveis da Capital a requerimento de Elizabeth Cotait Maluf e Heleno Haddad Maluf diante da negativa de averbação de cancelamento do usufruto gravado no Registro n.10 da matrícula n.40.925 daquela serventia pelo falecimento do usufrutuário (prenotação n.371.551).

A recusa se funda na exigência de recolhimento do ITCMD relativo à parcela do usufruto, uma vez que somente dois terços do imposto, relativos à nua-propriedade, foram recolhidos na época da doação.

Documentos vieram às fls. 07/34.

A parte interessada apresentou impugnação às fls.35/39, alegando que o tributo devido foi recolhido na época da doação, sem exigência complementar pela Fazenda Pública desde então; que o artigo 6º, I, “f”, da Lei n.10.705/2000, prevê expressa isenção do ITCMD no caso de extinção do usufruto com reversão do direito ao próprio instituidor; que o cancelamento do usufruto não caracteriza hipótese de incidência do ITCMD.

O Ministério Público opinou pelo afastamento do óbice (fls. 43/47).

É o relatório.

Fundamento e decido.

De início, é importante ressaltar que o Oficial dispõe de autonomia no exercício de suas atribuições, podendo recusar títulos que entender contrários à ordem jurídica e aos princípios que regem sua atividade (art. 28 da Lei n. 8.935/1994), o que não se traduz como falha funcional.

Esta conclusão se reforça pelo fato de que vigora, para os registradores, ordem de controle rigoroso do recolhimento do imposto por ocasião do registro do título, sob pena de responsabilidade pessoal (art. 289 da Lei n.6.015/73; art.134, VI, do CTN e art.30, XI, da Lei 8.935/1994).

No mérito, porém, e em que pese a cautela, o pedido é improcedente.

Vejamos os motivos.

O caso concreto envolve pedido de averbação de extinção de usufruto em virtude do falecimento do usufrutuário, José Roberto Cotait (fls. 07/08).

Sobre a transmissão por doação incide o ITCMD, cuja base de cálculo é equivalente a um terço do valor do bem na instituição do usufruto por ato não oneroso e dois terços do valor do bem na transmissão não onerosa da nua-propriedade (artigo 9º, §2º, itens 3 e 4, da Lei Estadual n.10.705/00).

Entretanto, somente houve pagamento do tributo relativo à doação da nua-propriedade, optando a parte pelo recolhimento diferido da parcela correspondente ao futuro cancelamento do usufruto (1/3), como autoriza o artigo 31, §3º, item 2, do Decreto Estadual n.46.655/02.

Referido dispositivo regulamentou o recolhimento do ITCMD, permitindo que, na hipótese de doação com reserva de usufruto em favor do doador, como ocorre na espécie, o imposto sobre o valor do usufruto seja recolhido por ocasião da consolidação da propriedade plena em favor do nu-proprietário.

Note-se que, no caso concreto, não se aplica a isenção prevista no artigo 6º, I, “f”, da Lei n.10.705/2000, pois não se trata de instituição de usufruto em favor de terceiro, mas de doação da nua-propriedade com reserva de usufruto pelo doador.

A isenção apontada pela parte interessada somente ocorre quando o proprietário do bem institui usufruto em favor de terceiro, mantendo consigo a nua-propriedade, que se consolida novamente após o instituidor retomar seu direito ao usufruto pelo cancelamento.

No caso dos autos, o proprietário do bem não instituiu usufruto, mas o reservou para si, doando apenas a nua-propriedade (fls.18/22).

Nesse contexto, o recolhimento sobre o valor integral da propriedade antes da lavratura da escritura de doação é facultativo, sendo permitido o adiamento do recolhimento da parcela correspondente ao futuro cancelamento do usufruto (artigo 31, §3º, itens 2 e 3, do Decreto Estadual n.46.655/02).

Corretas, portanto, as razões apontadas pelo Oficial.

Entretanto, a orientação da E. Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo para casos análogos é no sentido de que a legislação paulista não prevê a incidência do ITCMD quando da consolidação da propriedade plena ou quando da extinção do usufruto.

Assim, a complementação do ITCMD prevista no artigo 31 do Decreto n.46.655/2002 caracteriza hipótese de incidência que não poderia ter sido criada por decreto regulamentar.

Nesse sentido:

“Registro de Imóveis – Averbação de cancelamento de usufruto pela morte da usufrutuária – Consolidação da propriedade em nome do nuproprietário – Exigência do Sr. Oficial de complementação do ITCMD, por 1/3 do valor do bem, uma vez já ter havido recolhimento do tributo, por 2/3 do valor do bem, quando da instituição do usufruto – Exigência afastada pela MM. Juíza Corregedora Permanente – Consolidação da propriedade que não caracteriza hipótese de incidência do tributo – Precedente desta Corregedoria Geral – Decreto regulamentar nº 46.655/2002, que, na espécie, extrapola seus limites – Parecer pelo desprovimento do recurso” (Processos 1057883-83.2017.8.26.0100, 1057875-09.2017.8.26.0100 e 1058147-03.2017.8.26.0100, Pareceres nºs 415/2017-E, 416/2017-E e 399/2017-E. Cor. Des. Pereira Calças, ap. em 06 e 07 de dezembro de 2017).

No parecer n.399/2017-E, da lavra do MM. Juiz Assessor, Dr. Carlos Henrique André Lisboa, aprovado no processo de autos n.1058147-03.2017.8.26.0100, tal posicionamento vem aclarado:

“A consolidação da propriedade não pode ser tida como transmissão decorrente de sucessão legítima ou testamentária e muito menos de doação.

Por fim, o artigo 9o, § 2o, IV, da mesma Lei Estadual estabelece que, na transmissão não onerosa da nua propriedade, a base de cálculo do ITCMD é equivalente a 2/3 do valor do bem. Por outro lado, não há na Lei menção alguma à complementação desse valor por ocasião da consolidação da propriedade.

Não há dúvida de que o artigo 31 do Decreto n° 46.655/2002, que regulamenta a Lei Estadual n° 10.705/2000, expressamente prevê a necessidade de complementação do ITCMD. por ocasião da consolidação da propriedade plena na pessoa do nu-proprietário. Essa hipótese de incidência, todavia, diante dos limites estabelecidos pela Constituição Federal (artigo 155, I, da CF) e do silêncio absoluto da Lei Estadual que o instituiu, não poderia ser criada por decreto regulamentar”.

No mesmo sentido, seguiram julgamentos mais recentes:

“REGISTRO DE IMÓVEIS – Averbação de cancelamento de usufruto, pela morte da usufrutuária – Consolidação da propriedade em nome do nu-proprietário – Exigência do Sr. Oficial de complementação do ITCMD sobre o valor de 1/3 dos bens – Reiterados precedentes desta Eg. Corregedoria Geral da Justiça no sentido de que a hipótese não caracteriza incidência do tributo – Necessidade de prestígio aos precedentes em prol da previsibilidade e segurança jurídica – Recurso desprovido” (Processo 1120534-20.2018.8.26.0100, Parecer nº 357/2019-

E, Corregedor Des. Geraldo Francisco Pinheiro Franco, ap. em 22 de julho de 2019).

“Registro de Imóveis – Cancelamento de usufruto – Comprovação do recolhimento do Imposto sobre Transmissão “Causa Mortis” e de Doação – ITCMD – Incidente na diferença entre o valor total do imóvel e o valor que serviu como base de cálculo para a aquisição da nuapropriedade pela donatária Hipótese de incidência não prevista na Lei Estadual nº 10.705/2000 – Ausência de transmissão da propriedade no cancelamento do usufruto – Precedentes da Corregedoria Geral da Justiça – Recurso provido” (Processo 1005326-72.2020.8.26.0114, Parecer nº 410/2020-E, Corregedor Des. Ricardo Anafe, ap. em 25 de setembro de 2020).

Note-se que a causa de cancelamento, renúncia ou morte do usufrutuário, como indicado nas ementas citadas, não altera a conclusão.

Nesse contexto, de alinhamento à posição superior no sentido de que não é possível exigir o pagamento de tributo sem lei que o institua, o óbice formulado deve ser afastado.

Diante do exposto, JULGO IMPROCEDENTE o pedido para afastar a exigência de comprovação de complementação do ITCMD para averbação da extinção do usufruto.

Deste procedimento não decorrem custas, despesas processuais ou honorários advocatícios.

Oportunamente, remetam-se os autos ao arquivo.

P.R.I.C.

São Paulo, 06 de fevereiro de 2023.

Luciana Carone Nucci Eugênio Mahuad

Juíza de Direito (DJe de 08.02.2023 – SP)

Fonte: Diário da Justiça Eletrônico.

Publicação: Portal do RI (Registro de Imóveis) | O Portal das informações notariais, registrais e imobiliárias.

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