Apelação Cível nº 1026118-04.2021.8.26.0602
Espécie: APELAÇÃO
Número: 1026118-04.2021.8.26.0602
Comarca: SOROCABA
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
CONSELHO SUPERIOR DA MAGISTRATURA
Apelação Cível nº 1026118-04.2021.8.26.0602
Registro: 2022.0000909928
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível nº 1026118-04.2021.8.26.0602, da Comarca de Sorocaba, em que é apelante OLGA APARECIDA DOS SANTOS, é apelado 2º OFICIAL DE REGISTRO DE IMÓVEIS E ANEXOS DA COMARCA DE SOROCABA.
ACORDAM, em Conselho Superior da Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: “Negaram provimento, v.u.”, de conformidade com o voto do Relator, que integra este acórdão.
O julgamento teve a participação dos Exmos. Desembargadores RICARDO ANAFE (PRESIDENTE TRIBUNAL DE JUSTIÇA) (Presidente), GUILHERME GONÇALVES STRENGER (VICE PRESIDENTE), XAVIER DE AQUINO (DECANO), BERETTA DA SILVEIRA (PRES. DA SEÇÃO DE DIREITO PRIVADO), WANDERLEY JOSÉ FEDERIGHI(PRES. DA SEÇÃO DE DIREITO PÚBLICO) E FRANCISCO BRUNO (PRES. SEÇÃO DE DIREITO CRIMINAL).
São Paulo, 26 de outubro de 2022.
FERNANDO ANTONIO TORRES GARCIA
Corregedor Geral da Justiça e Relator
APELAÇÃO CÍVEL nº 1026118-04.2021.8.26.0602
APELANTE: Olga Aparecida dos Santos
APELADO: 2º Oficial de Registro de Imóveis e Anexos da Comarca de Sorocaba
VOTO Nº 38.825-– Texto selecionado e originalmente divulgado pelo INR –
Registro de imóveis – Dúvida – Recusa em registrar escritura pública de doação com reserva de usufruto com cláusulas restritivas em face da inexistência de indicação de justa causa – Inteligência dos arts. 1.848, “CAPUT” e 2.042 do código civil – Aplicação das exigências legais contemporâneas ao registro – ITCMD – Dever do oficial de registro de velar pelo recolhimento do tributo – Impossibilidade de reconhecimento de compensação, isenção ou dispensa do tributo na estreita via administrativa – Recurso desprovido.
Cuida-se de apelação interposta por OLGA APARECIDA DOS SANTOS contra a r. Sentença (fls. 52/54) que julgou procedente a dúvida suscitada pelo 2º Oficial de Registro de Imóveis, Títulos e Documentos e Civil de Pessoas Jurídicas da Comarca de Sorocaba, mantendo-se os óbices registrários.
A Nota de Exigência (fls. 23) indicou como motivos de recusa do ingresso do título:
“1. Constar da Escritura se a doação é da meação disponível ou o justo motivo pelo qual foi gravado com as cláusulas.
2. Apresentar prova do recolhimento do ITCMD”.
Sustenta a recorrente, em suma, que não se aplica ao caso o disposto no artigo 848, do Código Civil, uma vez que a doação configura ato jurídico perfeito, consumado em 1998, quando não se exigia justa causa para a inserção de cláusulas de inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade. Por fim, sustenta a desnecessidade de recolhimento do ITCMD, uma vez ter sido recolhido o tributo exigido à época da lavratura do ato notarial.
A D. Procuradoria Geral de Justiça opinou pelo desprovimento do recurso (fls. 84/88).
É o relatório.
O recurso não merece provimento.
Trata-se de registro de escritura pública de doação com reserva de usufruto, gravada com as cláusulas de inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade, lavrada em 16 de fevereiro de 1998 perante o Registro Civil e Tabelião de Notas da Comarca de Jandira, prenotada em 14 de maio de 2021 no 2º Oficial de Registro de Imóveis, Títulos e Documentos e Civil de Pessoas Jurídicas da Comarca de Sorocaba.
Por meio de referido ato notarial Francisco Israel dos Santos e Olga Teodora dos Santos doaram, dentre outros, o imóvel matriculado sob o n.º 11.698, no 2º Oficial de Registro de Imóveis, Títulos e Documentos e Civil de Pessoas Jurídicas da Comarca de Sorocaba, à apelante e outros, com reserva de usufruto para si e imposição de cláusulas restritivas de inalienabilidade, incomunicabilidade e impenhorabilidade (fls. 24/31).
O registro do título foi negado, nos termos da nota devolutiva de fls. 23, objeto da dúvida, julgada procedente (fls. 52/54).
A qualificação registral visa verificar se o registro de determinado título pode ser promovido em conformidade com os princípios e as normas aplicáveis na data em que admitido seu ingresso, pois como esclarece Afrânio de Carvalho:
“A apresentação do título e a sua prenotação no protocolo marcam o início do processo do registro, que prossegue com o exame de sua legalidade, que incumbe ao registrador empreender para verificar se pode ou não ser inscrito. A inscrição não é, portanto, automática, mas seletiva, porque depende da verificação prévia de estar o título em ordem. Além de a qualificação do título constituir um dever de ofício, o registrador tem interesse em efetuá-la com cuidado, porquanto, se lançar uma inscrição ilegal, fica sujeito à responsabilidade civil.” (Registro de Imóveis, 4ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 276).
Logo, não importa o momento da lavratura do ato notarial, pois é na data da sua apresentação ao registro que será analisado, em atenção ao princípio “tempus regit actum”, sujeitando-se o título à lei vigente ao tempo de sua apresentação na Serventia Imobiliária.
Nesta ordem de ideias, irrelevante que a escritura pública telada tenha sido lavrada sob a égide do Código Civil de 1916, ocasião em que a justa causa para instituição das referidas cláusulas era dispensável, nos termos que estipulava o artigo 1.676, daquele Diploma Legal, uma vez que o título foi levado a registro em 2021, quando em vigor o Código Civil de 2002.
À luz do artigo 1.245, do Código Civil, a transferência de propriedade imóvel entre vivos (in casu, a doação) é feita mediante o registro do título translativo no Registro de Imóveis, destacando-se que, na hipótese, ao tempo da transferência, já estava em vigor o Código Civil de 2002, que exige a indicação da justa causa à validade das cláusulas restritivas.
Fixadas estas premissa, consoante dispõe o artigo 544, do Código Civil:
“A doação de ascendentes a descendentes, ou de um cônjuge a outro, importa adiantamento do que lhes cabe por herança.”
Assim, ausente, no ato notarial telado, menção à inclusão dos bens doados entre os que compõem a parte disponível, presume-se o adiantamento da legítima, nos termos do artigo 2.005, do Código Civil, in verbis:
“Art. 2.005. São dispensadas da colação as doações que o doador determinar saiam da parte disponível, contanto que não a excedam, computado o seu valor ao tempo da doação.”
O artigo 1.848, do Código Civil, por seu turno, estabelece que:
“Salvo se houver justa causa, declarada no testamento, não pode o testador estabelecer cláusula de inalienabilidade, impenhorabilidade, e de incomunicabilidade, sobre os bens da legítima.”
Daí se infere, pois, que a imposição de cláusulas restritivas sobre bens da legítima afigura-se admissível apenas com a declaração de justa causa no testamento.
Sobre os bens que compõem a parte disponível, não há restrição.
A despeito da ausência de previsão legal expressa, a partir da interpretação sistêmica ao artigo 544, do Código Civil, importando a doação, no caso telado, em adiantamento da legítima, referidas cláusulas restritivas apenas poderão ser impostas quando ocorra, a tanto, causa justificadora.
No ponto, relevante trazer os comentários de Mauro Antonini ao artigo 1848, do Código Civil:
“(…) o art. 1.848 não faz menção à necessidade de indicação de justa causa na doação. A despeito da falta de previsão legal expressa, a solução mais acertada parece ser considerar necessária a declaração de justa causa também na doação, quando represente adiantamento de legítima. A não se adotar tal entendimento, o doador, por meio de doação, conseguiria burlar a restrição do art. 1.848. Sendo a doação de ascendentes a descendentes, ou de um cônjuge a outro, adiantamento da legítima, por expressa previsão do art. 544, não há sentido em dar tratamento legal diferenciado à limitação da clausulação da legítima por testamento ou por doação. A coerência do sistema exige solução uniforme.”[1]
Entendimento diverso abriria a possibilidade de burla à restrição legal, bastando que o titular dos bens os doasse em vida aos filhos, para que pudesse gravá-los sem nenhuma justificativa.
Foi, nesse sentido, o entendimento deste C. Conselho Superior da Magistratura, exarado no v. acórdão de relatoria do então Corregedor Geral da Justiça, DESEMBARGADOR MAURÍCIO VIDIGAL, cuja ementa assim se transcreve:
“Registro de Imóveis – Dúvida – Recusa do Oficial em registrar escritura pública de doação com reserva de usufruto – Cláusulas restritivas – Inexistência de indicação de justa causa – Inteligência dos arts. 1.848, “caput”, e 2042 do Código Civil – Nulidade – Cindibilidade do título – Precedentes do Conselho Superior – Registro da escritura de doação, desconsiderada a cláusula restritiva – Recurso provido” (Apelação Cível nº 0024268-85.2010.8.26.0320).
Do corpo do r. Acórdão extrai-se que:
“Manifesta, pois, a intenção de o legislador reduzir os poderes do testador em relação à legítima. Por essa razão, presente a mesma “ratio legis” (“Ubi eadem ratio ibi idem ius”), não há como afastar a aplicação extensiva do art. 1848, “caput”, às doações feitas aos herdeiros, consideradas adiantamento de legítima (art. 544, do Código Civil). Não fosse assim, estaria aberta a via para burlar a restrição imposta pelo art. 1848, “caput”: bastaria que o titular dos bens os doasse em vida aos filhos, para que pudesse gravá-los sem nenhuma justificativa.
O Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo, em acórdão de 03 de março de 2009, Rel. Des. Luiz Antonio de Godoy, proferido na apelação cível no. 613.184-4/8-00 concluiu: “…com o advento do Código Civil de 2002, estabeleceu-se nova regra acerca da possibilidade de previsão de cláusula de inalienabilidade em seu art. 1848, “caput”… Insta ressaltar que, conforme corretamente anotado na sentença, referido dispositivo é, também, aplicável à doação considerada adiantamento de legítima, como se verifica na presente hipótese. A despeito de a doação ter ocorrido à época da vigência do Código Civil de 1916, não há como negar que a hipótese se enquadra no art. 2042, do Código Civil de 2002, que viabiliza a incidência do texto do art. 1848, “caput”, acima referido.”
Ultrapassado este ponto, incumbe ao Oficial de Registro a fiscalização do recolhimento dos impostos devidos por força dos atos que lhe forem apresentados.
É o que dispõe o artigo 289, da Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973:
“Art. 289 No exercício de suas funções, cumpre aos oficiais de registro fazer rigorosa fiscalização do pagamento dos impostos devidos por força dos atos que lhes forem apresentados em razão do oficio.”
A omissão do delegatário pode levar à sua responsabilidade solidária no pagamento do tributo (artigo 134, VI, do Código Tributário Nacional).
Aduz a ora apelante, no entanto, que à época da lavratura do ato notarial foi recolhido o imposto de transmissão.
Em se tratando do imposto sobre a transmissão de bens ou direitos, mediante doação, o fato gerador ocorrerá, no tocante aos bens imóveis, pela efetiva transcrição realizada no registro de imóveis.
Assim, a comprovação do pagamento é devida com lastro na lei em vigor sobre o ITCMD – Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação de Quaisquer Bens ou Direitos, qual seja, a Lei Estadual nº 10.705, de 28 de dezembro de 2000.
Não cabe ao registrador, pois, determinar se é caso de compensação, isenção ou dispensa do tributo, o que somente cabe ao órgão tributante, que deverá emitir documento neste sentido para viabilizar o registro.
Nesse cenário, portanto, não há como se concluir pela superação dos óbices apontados pelo Registrador.
Ante o exposto, pelo meu voto, nego provimento ao recurso.
FERNANDO ANTONIO TORRES GARCIA
Corregedor Geral da Justiça e Relator
NOTA:
[1] in Código Civil Comentado doutrina e jurisprudência, Coord. Min. Cezar Peluso: Comentários ao art. 1.848, fl. 1.837 /1.838. (DJe de 08.02.2023 – SP)
Fonte: INR Publicações.
Publicação: Portal do RI (Registro de Imóveis) | O Portal das informações notariais, registrais e imobiliárias.
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